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& Universidade Federal do Ceara GELF Grupo de Estudos ‘Ludwig Feuerbach' A Karl Riedel Para a retificagao do seu esbogo www.feuerbachfilosofiaufc.blogspot.com 2011 A Karl Riedel Para a rectificagéo do seu esbogo ‘en caro Karl Riedel! Os grandes passos na cultura da Humanidade chegam as cidades por mio de estafetas, mas a nés, que vivemos no campo, per pedes apostolorum. Nao admira que o pacato camponés esteja sempre a uma significativa distincia do expedito citadino. Foi assim que sé no passado sébado, 16 de Marco, recebi o Jabrbuch der Literatur (Hamburgo, Ano 1, 1839) em que juntamente com um esbogo de Daumer delineaste um outro da minha insignificante pessoa. Mas ja hoje, 19 de Marco, agora mesmo que dei por acabado um trabalho, seguro na pena para completar os tracos do teu desenho com alguns tragos em sentido contrério, Entre outras coisas, afirmas: “Seria altamente desejavel que Feuerbach se dedicasse muito em breve a uma attividade definida. Em reas mais pr6ximas da vida e da arte 0 seu talento havia de brilbar, podendo deixar Para outros as compilagies eruditas que mereceram um fraco reconhecimento por parte dos contemporaneos.” possfvel; mas como, se o interessado no quiser brilhar agora? Ou se nao quiser brilhar nunca? Se preferir a sombra de uma certa [4] obscu- ridade ao brilho de uma celebridade resplandecente? Ser4 que todas as plantas s6 crescem sob a luz solar? Podes censurar o peixe, que s6 se sente bem profundidade da corrente, por nao subir 4 superficie para se expor ao sol, sob os olhos da assis- téncia? Podes dizer & flor que s6 floresce na sombra do escuro pinhal: que pena no estares num passeio pablico, ou mesmo num aprazivel espaco de recteio? Nao é ela aquilo que é apenas no territério onde se encontra? Nao pertence a localizagio 2 caracterizagio da planta? Nao possui cada uma o seu solo especifico? Nao hé tantas plantas que procuram expressamente para si mesmas o solo que lhes € adequado? Sem diivida que também a tempestade do destino arremessa a semente da planta para lugares a que ela nao pertence; mas, ou ela nfo germina, ou entio cria para si a sua existéncia, suprindo a deficiéncia do solo pela sua propria forca, com substan- clas extraidas do ar. Nao te sucedeu jé tantas vezes veres as bétulas a esvoacarem em muros, € mesmo em torres de igreja? E entdo? Seria o homem, o mais nobre 3 34 LUDWIG FEUERBACH FILOSOFIA DA SENSIBILIDADE rebento do reino organico, a set sactificado ao capricho do acaso? Seria ele o tinico a no encontrar o solo correspondente & sua natureza? De maneira nenhuma! Cada um € 0 forjador do seu préprio destino. Também eu encontrei 0 solo que me é propicio, e encontrei-o assim que troquei a situagio de professor por uma simples vida privada, a tinica que, pelo menos nesta altura, me assenta bem. £ certo que ‘enquanto lugar 0 lugar onde moro € uma simples ironia de lugar, que apenas pode ser entendida no préprio sitio, numa tranquila tarde de outono ou numa limpida manhi de primavera — um lugar que, aliés, 4 conduziu um austero erudito do século pasado até ao entusiasmo poético. Mas a qualidade espiritual do lugar — e tu bem sabes quao importante € a qualidade tanto na vida como na filosotia — é verdadeiramente excelente. Aqui sopra ar puro, saudével, e como 0 ar puro e fresco € importante para o mais importante [5] 6rgio do homem, o 6rgio pensante! A filosofia especulativa da Alemanha, tal como se desenvolveu até agora, € um exem- plo das influéncias perniciosas do ar empestado da cidade. Quem pode negar que 0 seu 6rgio de pensamento, nomeadamente em Hegel, se encontrava muito bem organizado? Mas por outro lado, quem pode no ver que nela a fungio do érgio central estava demasiado separada das func6es sensitivas e, em particular, que 0 canal através do qual a natureza nos envia o seu alento reparador se encontrava obs- truido? Eu sei-o por experiéncia propria. Sempre pensei com liberdade e clareza; € no entanto sofria de constantes ataques de constipagao que impediam 0 afluxo do livre ar natural. Oh, como o status naturalis € excelente para o pensador! De quantas ilusbes da Humanidade s6 me dei conta precisamente aqui! E quantas lacunas do meu saber nao colmatei in silentio! E quantas no hei-de colmatar ainda! Feliz- mente nio és um feiticeiro. Porque nesse caso os teus desejos poderiam perturbar a paz dos meus estudos, que me é indispensdvel pelo menos ainda durante varios anos — estudos, aliés, de modo algum apenas “eruditos”, mas também muito diversificados — e privar-me além disso de um terreno no qual me situo espiritual e fisicamente melhor, e mesmo infinitamente melhor, do que numa qualquer uni- versidade, onde além da plantagio das ciéncias do sustento apenas continua ainda a prosperar a piedosa criacio de gado ovino. Nao foi por um destino adverso, foi por um favordvel destino de vida que o meu génio pessoal me transferiu para este terreno, Nao avalies ninguém pelos outros! O que para um é veneno, é para outro um bilsamo. Bem diferentes sio os caminhos que conduzem os homens até 4 meta. ‘Um vai de diligéncia pela estrada principal, o outro segue por atalhos pouco trilha- dos, sozinho e a pé, em direccio ao seu objectivo. Eu hei-de alcangar os meus fins — tanto quanto dependa de mim alcangé-los -, mas prossigo, despreocupado e sem A KARL RIEDEL. PARA A RECTIFICAGAO DO SEU ESBOGO 35 cuidados, tendo em conta o rumo que planeei e que é adequado a minha natureza, Devagar se vai ao longe, cada coisa a seu tempo — so 0s princfpios que me guiam. {6} A escrita apenas erudita, isto é, hist6rica, nao € certamente a minha vocacio; pelo contrério: ela contradiz a minha esséncia, por mais que a compreensio da sua necessidade me faca também tender para estudos hist6ricos. Mas por isso mesmo, porque me contradiz, submeti-me a ela. Quis superar a subjectividade pessoal num elemento puramente objective, aprender a falar apenas com 0 siléncio, obter o prazer da produgio pessoal apenas através da rentincia ao prazet, o direito 4 autonomia através da autonegacio. Ora, como € natural, deste modo no podia nem desejava superar-me, uma vez que sacrificava o superior av inferior, o pensador ao historiador, 0 interesse filos6fico ao interesse erudito. Por isso, ao chamares aos meus trabalhos histéricos compilagies eruditas limitas-te a julgar segundo a aparéncia superficial. Neles, o momento essencial nao é a exposi¢ao, mas 0 desenvolvimento do ponto central das filosofias expostas, que se deixam reconduzir sempre a uma tinica proposigio Paradoxal (seja-o aparente ou realmente), como em Descartes a proposicio: “Cogito, ergo sum”, em Malebranche & proposicio: “Nous voyons toutes choses en Dieu”, em Espinosa & proposigdo: “A essencialidade do ser absoluto pertencem nfo sé a ptopriedade essencial do espitito, o pensamento, mas também a propriedade essencial da matéria, a extensdo.” Tivesse eu encontrado explicagdo sobre o sentido destas pro- posigdes nos livros de hist6ria dispontveis, nunca me teria ocorrido escrever sobre Descartes, Malebranche, Espinosa. E 0 mesmo acontece com Leibniz. O que propriamente me atraiu e me levou A exposigio e a interpretacio desta filosofia foi um tinico ponto dificil, o significado da matéria, acerca do qual nfo encontrei qualquer explicagio nos livros — pelo menos nos que me eram conhecidos, excepto alids uma sugestio inteiramente casual e passageira em Jacobi. Outros pontos, pelo contrério, como os do espaco e tempo, da razo suficiente, pareceram-me razoa- velmente tratados € por isso sé toquei neles en passant, {7} porque considerei desnecessério voltar a dizer 0 que antes, j4 hé 30 ou 50 anos, tinha sido dito de modo satisfat6rio € porque 0 objectivo essencial da minha Histéria se circunscrevia Aquilo de que uma interpretagio filos6fica me parecia ser capaz e necessitar; a interpretagio no é sendo o desvendamento do enigma do verdadeiro sentido de ‘uma filosofia. Cada filosofia do passado é para uma época posterior um paradoxo, uma anomalia, uma contradi¢ao com a sua razfo. A interpretac&o tem a tarefa de resolver esta contradigao, de eliminar este paradoxo, de nos mostrar o peiisamento alheio como um possivel, pelo menos sob certas condigées, pensamento préprio de nés. Nao é uma actividade empfrica que tenha de lidar apenas com o dado, no € 36 LUDWIG FEUERBACH FILOSOFIA DA SENSIBILIDADE uma actividade meramente hist6rica que restitui servilmente o original com pedan- tismo filolégico e se limita a acompanhé-lo com glosas marginais explicativas ou criticas; € uma actividade que reproduz, uma actividade livre, espiritual, que nao restitui o seu objecto com pele e cabelos, mas o restitui transfigurado, que o penetra _ com a luz do intelecto e o torna transparente. Enquanto actividade livre, proveniente da apreensio pessoal, a interpretagio encontra-se porém exposta a possibilidade do erro e da ilusio. Foi por esse motivo que, a par da interpretagio, coloquei constan- temente como controlo a exposi¢ao puramente objectiva cujo meio é, agora sim, a com- pilagio hist6tica, porque é preciso compilar ordenadamente as passagens dispersas a fim de produzir um todo — um trabalho penoso, ingrato, monétono. Mas mesmo que quiséssemos ser sempre espiritualmente activos, e sé-lo exclusivamente, nao terfamos no fim de contas de renunciar também a actividade da escrita? Nao j4 a.escrita enquanto escrita uma actividade desprovida de esptrito? Nao hé tantos homens cheios de espfrito para quem constitui uma resolugao tremenda trocar 0 nobre trabalho intelectual pelo vulgar trabalho manual da pena? Nao significa ir da cabega para a mio o mesmo que ir de cavalo para burro? [8] No que concerne as relagdes exteriores dos meus trabalhos histéricos, recebi tanto por parte do piblico leitor quanto do meu honrado editor o reconhe- cimento que esperara — se € que esperava algum: niio mais, mas também nio menos. Quem escteve uma Histéria da filosofia moderna tenuncia de antemio a produzit 4lat e tumor; sabe que s6 vai encontrar aqueles leitores que se interessam por um Descartes, um Espinosa, um Bacon. E quo poucos sao. E claro que a histéria da filosofia também se pode tratar, e bem, de uma maneira que seja no geral interes- sante e formativa para todos. Mas se abstrairmos do facto de o interesse filos6fico mais profundo ficar sempre prejudicado num tratamento desse tipo, esse género de hist6ria era ainda prematuro quando comecei a minha, uma vez que o material ainda no estava suficientemente elaborado. Em geral, as ideias cientificas s6 podem transitar para a vida — uma‘ transicao que*€ sempre mediatizada pela estética —, se estiverem completamente elaboradag do ponto de vista cientifico —e daf ser muito prematuro que talentos mais jovens queiram transpor para a vida as ideias da filosofia moderna quando estas ainda necessitam de intimeras modificagdes, mesmo de rectificagées criticas. No entanto, nunca perdi de vista — nem nas-mais fngremes alturas da filosofia, nem nos mais remotos vales da hist6ria — a referéncia @ vida, a tendéncia pratica. B certo que nunca aprovei, nem hei-de aprovar, aquela maneira como alguns escritores mais jovens reivindicaram a tendéncia prética na literatura, por mais que a considere justificada por oposicio ao pedantismo erudito, ‘A KARL RIEDEL. PARA A RECTIFICAGAO DO SEU ESBOGO 37 porque se ela for prosseguida com coeréncia desemboca na aniquilagio do momento mais nobre da actividade cientifica, 0 cuidado da ciéncia por ela mesma, e conse- “quentemente {9} no utilitarismo mais vulgar, mais desprezivel. Na vida, 0 mais nobre € também sempre 0 mais itil, no sentido auténtico deste termo — e tal 6 a «titude spiritual. O meio mais importante para formar e enobrecer a atitude espi- ritual de um povo ficard porém minado se as ciéncias e as artes forem avaliadas apenas segundo a referéncia & vida, como se o culto da arte e da ciéncia nao fosse 0 supremo acto da vida. Examinada com atengio, a esséncia do que comummente se ‘chama vida é apenas e sempre o egofsmo, que para prolongar a sua existéncia se apoia no que hé de mais vio, valorizando no mundo, sob a aparfncia da necessidade, precisamente o que em si € mais desprovido de esséncia e mais desnecessatio: o luxo. “Um povo incapaz de actos nobres no dominio da ciéncia também é incapaz de actos nobres na vida. $6 0 nobre e livre povo grego se pode gabar de ter produzido um Parménides, um Plato e um Aristételes. Na Humanidade, a manutencio de atitu- des espitituais nobres, livres, liga-se por isso apenas & manutengao e ao cultivo inde- pendente dos estudos abstractos ou filoséficos, dos estudos puramente cientifico- ~natutais, dos estudos cléssicos — claro est, niio naquela maneira execrével, pedante € uptessura dos espfritos, como em grande parte ou esporadicamente se pratica nas nossas escolas. O que é sobretudo necessério € que o espirito livre nao se entregue apenas & estética, que a par das tendéncias mais sérias corteja sempre e em iiltima instncia a beleza da forma, correndo por isso o perigo de degenerar na mais oca futilidade e no auto-comprazimento, e que deixe a erdigdo — uma arma poderosa quando € conduzida pelo espirito — para o pedantismo, o fanatismo religioso ou 0 absolutismo politico. A referéncia a esta necessidade era a tendéncia pratica que se encontrava na base da minha Historia, mas que decerto nao salta aos olhos af onde coincide com a tendéncia objectiva, puramente cientifica. A tendéncia prética (no, levado sentido) da minha actividade de escritor manifesta-se aids jf no seu(@aétodo)[10} Este método consiste em Jigar constante- mente o elevado com o aparentemente comum, o mais longinguo com 0 mais préximo, ‘.abstracto com 9 concreto,o especulativo com 9. emplrico, a filosofia com a vida;.consiste m_apresentar 0 universal no particuar, afundado no elemento da sensibilidade, mas.de tal modo que.o pensamento,.mesmo.no.meio.dos alegres arrehatamentos da fantasia, no perca a ponderagéi, u presenca de epfriro, mas que, pelo contrétio, no meio do.serfora-de-ti da sensibilidade esteja imediatamente em si memo c deste modo, mas inteiramente incégnito, polemize contra. ¢quela douttina que na natureza ou no ser sensivel apenas avista 0 set-outro ou o ser-fora-de-si do espirito. O elo 38 LUDWIG FEUERBACH FILOSOFIA DA SENSIBILIDADE intermédio, 0 terminus medius, entre o superior e o inferior, o abstracto e 0 concreto, 0 universal e 0 particular é, do ponto de vista pratico, o amor, do ponto de vista te6rico, o humor. O amor liga o espérito com o homem, o humor a ciéncia com a vida. O amor € ele mesmo humor e o humor amor. Introduzir o humor na ciéncia - que de resto de modo algum se reduz a gracejos espirituosos ou associagées e interrup- " ges arbitrdérias, mas s6 pode ser vélido no dominio da ciéncia segundo as suas propriedades estenciais — tal foi o meu empenho. 0 escritor e 0 bomem — uma série de aforismos humor stico- -filoshfi ficos — nfio.é nem a set senio uma exposi¢io auténoma do meu método a p icular. A tarefa deste escrito no foi propriamente outra seniio a de definir 0 ‘ fantesma vazio da alma, colocando assim em lugar da anterior imortalidade subjectiva e apenas quantitativa, que tem como sua expresso caracteristica a sobrevivéncia eterna, a imortalidade objectiva qualitativa, que mede o valor do homem nao pelo somatério, mas pelo contetido, pela qualidade da sua vida. “Isso — diz-se, por exemplo, na p. 36 — que nao deixa © homem sossegado nem de dia nem de noite, que nunca Ihe sai da cabega e do coragio, acerca do qual ele se esquece de rezar a sua béngio [11] vespertina e matinal, {...] isso que durante toda a sua vida o puxa pelo nariz, que o prende a si com forca irresistivel, que o aperta contra si tio violentamente que ele nao € capaz de respirar livremente [...}, isso — e mesmo que este “isso” seja tio-s6 a soma de cem ducados, ou uma nova conjectura em Eutrépio, ou a invengo de uma nova graxa pata sapatos, ou uma fitinha honorifica com a palavrinha “de” ~, s6 isso,,e nem mais um milfmetro, é a a/ma do homem.” — “A alma do homem € o que ele reconhece e experiencia em si como o verdadeiro € 0 supremo, o que determina a sua maneira de apreciar as coisas, de ser, de viver e de actuar” (p. 86). Como imagem e exemplo deste pensamento geral escolhi uma esfera particular da acco e da vida do homem, embora se trate da esfera espiritual ¢ como tal mais elevada — a esfera do escritor, seja ele poeta ou fildsofo ou sébio em geral, e procurei sempre, por assim dizer, matar dois coelhos de uma s6 cajadada, ao definir, juntamente com o signi- ficado do livro em oposigéo a vida sensfvel, o significado da alma em oposigio a0 reino de espfritos e de fantasmas do além — mas apenas com imagens humoristicas. Alids, no considero a imagem como a excrescéncia de uma fantasia lwxuriosa que se insere irreflectidamente entre o intelecto e a coisa com o fim de embelezar, ou até de substituir 0 pensamento; a imagem € mim a coisa mesma, mas num caso concreto, € 0 préprio pensamento, mas ao mesmo tempo um_objecto da intuicao. A actividade humorfstica das imagens € para mim méodo do pensamento perfeitamente senhor de si mesmo e consciente de si mesmo. “E muito frequente que A KARL RIEDEL. PARA A RECTIFICAGAO DO SEU ESBOGO 39 ironia e fantasia, quando no se encontram no seu elemento peculiar, o da poesia, sejam apenas vitia splendida, metos substitutos do pensamento. Algo diferente acontece, pelo contratio, quando sio frutos do conhecimento [12] a que s6 a maturagéio interna imprimiu o atraente cromatismo da beleza, quando o fogo da sensibilidade no € 0 ardor do desejo que se esforga por apreender 0 objecto ansiado em imagens enganadoras, mas o fervor do prazet perfeito, quando a fantasia € a amada do Pensamento que em olbares extasiados de alegria irradia ao pensamento a certeza feliz de que ela éa esséncia dele e ele a esséncia dela.” (Preficio a Abelardo, p. IV). Neste caso, ironia e fantasia nfo sio mais que o pensamento que se reconhece a si mesmo ese penetra com clareza, que se extetioriza de livre vontade na imagem, que se pode- ria exprimir de outra maneira se 0 quisesse, que apenas por ironia esconde o sério da verdade sob a méscara do gracejo e da imagem. Ora, um atributo essencial do pensaménto que assim se exprime € 0 humor, que contudo nao tem aqui outro significado excepto o de ser 0 docente privado de filosofia” (p. V). Note-se bem: 0 docente privado, pois se o humor tivesse achado por bem exprimir-se no tom vulgar de um docente piblico, entéo esse velhaco teria muitas vezes falado com estas palavras secas: na filosofia especulativa sinto falta do elemento da em empiria sinto falta do elemento da especulagio; 0 mcu método é, por isso. 0 de Tigar: ambas, no porém segundo o conterido mas segundo o elemento, quer dizer, ligar dade empitica com a actividade especulativa. E 0 elo de ligacao destes dois Gpostos reais ~ e nao apenas de determinagées e abstraccbes contrapostas — é para mim 0 cepticismo ou critica, quer do meramente especulativo quer : mente emp\- rico, Mas no € o humor de humor céptico? Era este método que devias ter posto em relevo, se tivesses mesmo querido trazer, e de uma vez por todas, até a luz da imprensa diéria a minha obscuridade escondida em si mesma. Le style c'est U’bomme méme, quanto mais s6 0 método! Em vex disso, destacas apenas os Pensamentos sobre morte ¢ {13] imortalidade — um escrito anénimo, no publicado por mim pi6prio, um escrito que nao deve ser reconhecido como meu nesta forma em que se apresenta, e nio s6 pelos habituais erros de um jovem escritor, mas sobretudo por ser um escrito desfigurado por acrescentos alheios (n0s Epigramas) e por intimeras e absurdas ettos tipogréficos — enfim, um escrito sobre o qual pesa— oh! como sinto calafrios — a maldigéo do clero no seu conjunto. Oh! tivesse-lo tu deixado na sombra até que fosse o proprio autor a levantar 0 véu do anonimato! Apenas nisto reside a “peculiaridade” deste livro na sua forma actual, no facto de ser sem nome, sim, sem nome em todos os aspectos. Mas por agora abstenho-me de me pronunciar mais detalhadamente sobre este livro e limito-me, 40 LUDWIG FEUERBACH FILOSOFIA DA SENSIBILIDADE por fim, a aludir a um trago do teu esbogo com o qual me incluiste no quadro negro dos insatisfeitos e dilacerados, ao dizeres que dentro de mim habita “um secreto impulso para o prazer na dor, no sofrimento, na dilaceragio”. Se entendes por esta dor da dilaceragéo a dor geral de um presente que esté consciente de um _ fucuro melhor, ou a dor da insatisfagéo consigo mesmo que move infatigavelmente para diante todos os espiritos esforgados, ou a dor daquela experiéncia de o enten- dimento 6 nos chegar com o passar dos anos, ou a dor ética da consciéncia de que na vida ficamos sempre aquém do nosso conhecimento, entio tens razio quando iio me isentas desta dor, mas nfo tens razio se tomas a dor da dilaceragio num outro sentido, nao tens razo se me atribuis de facto um prazer pela dor, pelo softi- mento, pela dilaceragio. Gusto, pelu cuutririv, ¢ seja onde for, do simples, do todo, do indiviso. Aprecio, por exemplo, tanto entre os animais quanto entre os homens, as decididas criaturas da Sgua, os peixes vertebrados e cartilaginosos, mais do que a classe dos répteis, s6 porque a {14} vida destes é uma vida dilacerada, embora mais alta~ mente organizada. Sem diivida que muitas vezes me sucedeu, como o pescador na balada de Goethe, ser atrafdo pelo peixinho mudo no seu limpido elemento, mas nunca, nunca fui tentado a invejar, dadas as vantagens da sua organizacio, as bolsas cheias de ar dos batréquios (das ras, sapos, etc.) ou as serpentes, viboras e lagartos de duas linguas, em detrimento da classe dos peixes vertebrados e cartilaginosos. Nio; para mim, o peixinho que permanece no seu elemento € preferivel ao sapo que partilha do mesmo solo que o homem e todavia pertence, por origem ¢ esséncia, a0 lamacal; prefiro 0 pisco com o seu canto monocérdico, mas proprio e natural, a0 ~papagaio que palra a palavra alheia; o burro, que nada mais quer set do que burro, a0 macaco, que pretende ir para além do animal e est4 porém condenado a ser besta. E com este sentimento e sentido interior pelo indiviso, pelo que est em “unidade consigo, concordam todos os meus sentidos, mesmo no mais fnfimo dos pormenores. Os meus olhos apreciam mais as flores e plantas de folhas inteiras do que de folhas recortadas e rasgadas; as suas folhas preferidas no pertencem as dicoti- ledéneas, mas as monocotiledéneas. As minhas mios aplaudem este juizo dos meus olhos; preferem tocar o tronco direito e simples de uma palmeira oriental do que © tronco retorcido, dividido e quebrado de uma florescéncia duplamente lobulada cristo-germanica. Avé 0 meu nervus olfactorius € monoteista: no dom{nio da evolugio da civilizagio presta certamente homenagem 20 “parisiense” (scilicet, tabaco de rapé), mas no dominio da natureza nada lhe agrada mais do que o encantador aroma do lirio, que pertence as monocotiled6neas. O meu paladar é decerto picante, amigo do Acido, do amargo, do salgado, mas por isso mesmo tm ant{poda declarado de todas A-KARL RIEDEL. PARA A RECTIFICAGAO DO SEU ESBOGO 4 as composigées antinaturais; ele rejeita imediatamente misturas geralmente apre- ciadas, como as do café com acticar e leite, apenas para deixar o café na sua plena originalidade ¢ integridade, para nao interpolar no texto {15} da natureza ingredien- tes estranhos. Os meus ouvidos sio muito menos molestados por um burto que ‘fala como um homem do. que por um homem que pensa como um burro, quando se socorte de argumentacées irracionais para colocat a conttadigéo do burro sobre- naturalista de Balaam em harmonia com a razio. Agora faz as contas, mas peco-te por favor, no as voltes a fazer sem 0 anfittiao. Dus seems bastam em face do tribunal, ¢ segundo os antigos sdbios i mem, m, valia como um testimonium mor “Menos do que cinco, digo cinco, testemunl do que cinco, digo cinco, sentidos do, su lado. Que podes exigir mais? Fica bem!

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