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DEBATE DEBATE S7

Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção


Primária à Saúde: desafios para a organização
de serviços básicos e da Estratégia Saúde
da Família em centros urbanos no Brasil

A historical and conceptual model for Primary


Health Care: challenges for the organization of
primary care and the Family Health Strategy
in large Brazilian cities

Eleonor Minho Conill 1

Abstract Introdução

1Departamento de Saúde This paper focuses on the experience with Prima- Apesar da enorme influência da medicina hos-
Pública, Universidade
de Santa Catarina,
ry Health Care as a strategy for reorganizing the pitalar, a figura do clínico geral ou do médico
Florianópolis, Brasil. health care model, based on reforms in this direc- de família talvez simbolize ainda hoje uma ima-
tion and their implementation in the Brazilian gem idealizada da medicina. Esse tipo de prática
Correspondência
E. M. Conill case. The article identifies a shift in the discourse foi se configurando com formas e importância
Departamento de Saúde concerning health sector reforms, with a return distintas em diversos países sendo atualmente
Pública, Universidade
to emphasis on primary care and integration of denominada de atenção primária, o que inclui,
Federal de Santa Catarina.
Rua Vento Sul 306, services. The Brazilian context demands reflec- algumas vezes, o exercício de especialidades bá-
Florianópolis, SC tion on the possibilities for synergy between this sicas ou a presença de outros profissionais. Duas
88063-070, Brasil.
strategy and other social policies and the factors concepções de Atenção Primária de Saúde são
eleonorconill@yahoo.com.br
needed to ensure adequate performance. Evalu- predominantes, a de cuidados ambulatoriais na
ation research has suggested that primary care porta de entrada ou a de uma política de reor-
activities are slightly superior as compared to ganização do modelo assistencial, quer seja sob
traditional health care units, despite persistent forma seletiva ou ampliada.
difficulties in access, physical infrastructure, Optamos por enfocar a trajetória da atenção
team formation, management, and organization primária enquanto política de reforma setorial,
of the network. These difficulties correlate with a reunindo observações de estudos que realizamos
low level of public financing, persistent segmen- complementados com trabalhos mais recentes
tation of the system, and weak integration of pri- feitos para o caso brasileiro. Um dos desafios ad-
mary care services with other levels of care. From vém do fato de que nas práticas locais, objetos
the technical perspective, a reasonable target is to de nosso interesse, se entrelaçam determinantes
guarantee the strategy’s continuity with the nec- das esferas macro e microssocial numa rede de
essary adjustments, conditioned by the dynamics fatores cuja complexidade nem sempre poderá
of the health care technical models involved in ser desenvolvida dentro dos recortes e limites
the dispute. deste trabalho. Por isso, a importância de todas
as contribuições que se fizerem necessárias, uma
Primary Health Care; Health Services; Family vez que a idéia é de que o panorama apresentado
Health possa oferecer um conjunto de ponderações pa-
ra facilitar a discussão do tema.

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A relação entre pobreza, doença e vida urba- Canadá, Inglaterra, Espanha, para citar alguns
na está na origem dos modelos de assistência, exemplos.
proteção social e da prestação de serviços locais. Com base na revisão de diversas experiên-
A noção de distrito é encontrada nas propostas cias, formulamos a hipótese que o conteúdo pro-
da “polícia médica” na Alemanha, nos comitês posto se articulava em torno de dois pólos prin-
da Revolução Francesa e num conjunto diversi- cipais expressando respostas a necessidades de
ficado de ações desenvolvidas por paróquias e ordem econômica, política e social, mas também
municípios no contexto da Revolução Industrial demandas oriundas dos movimentos sociais e
Inglesa, incluindo a criação de dispensários que setoriais desse contexto. De um lado, um pólo
surgem como complemento à ação dos hospitais. tecnocrático propondo a incorporação de medi-
Os centros de saúde norte-americanos do início das inovadoras e de racionalização das práticas
do século XX visavam a integrar a prestação de (comunidade como fundamento das necessida-
serviços sociais e de saúde para comunidades des de saúde, hierarquização, coordenação e in-
excluídas, com o argumento de que a aplicação tegração do cuidado), e de outro, um pólo parti-
efetiva destes serviços requeria uma relação cipativo associado a uma maior democratização
com a população em seu próprio terreno e mais dos serviços (mudanças na divisão do saber com
próxima da moradia 1. Muitos deles tinham em ampliação da equipe, incorporação de agentes
comum a responsabilidade sobre um distrito ou da comunidade, acesso e controle social). O es-
uma população definida e a coordenação dos re- tudo das diversas conjunturas ou contextos de
cursos dentro desta área, atributos considerados aplicação permitiria identificar seus elementos
essenciais nas conceituações atuais para caracte- principais, combinações ou a direção predomi-
rizar as práticas de atenção primária. nante em torno de três eixos principais: racio-
A difusão da noção de atenção primária é nalização, legitimação do Estado por meio de
atribuída ao Relatório Dawson, elaborado pelo políticas públicas ou uma maior democratização
Ministro de Saúde do Reino Unido, que em 1920 dos serviços 5.
a associou com a idéia de regionalização e hie- Na primeira parte deste texto ilustramos, ain-
rarquização dos cuidados 2. Conforme veremos a da que brevemente, a trajetória da atenção pri-
seguir, serão necessários mais de cinqüenta anos mária através da descrição dos casos das reformas
para que alguns destes princípios sejam postos na Província de Québec, Canadá, e do National
em prática mesmo no Reino Unido. Health Service (NHS) da Inglaterra. A diversidade
Somente na década de sessenta, com a crise de situações não permite a importação mecânica
determinada pela expansão de serviços cada vez de qualquer elemento comparativo para o con-
mais especializados é que ressurgirá nos Estados texto brasileiro, mas a enorme importância dada
Unidos um movimento em favor da medicina ou à atenção primária nesses sistemas torna inte-
saúde comunitária, com duas vertentes princi- ressante sua análise pela coincidência com a es-
pais, de um lado os Departamentos de Medicina tratégia atualmente adotada para reorganização
Social e Preventiva de centros universitários, e de das práticas no Sistema Único de Saúde (SUS).
outro, o contexto da “guerra à pobreza” desenca- Isso também nos permitirá argumentar que, uma
deada pelo Governo Federal. São suficientemente vez arrefecida a fase de um discurso centrado no
conhecidas as análises relacionando a emergên- controle de custos, na competição e na eficiência
cia e difusão dessas propostas com a conjuntura pode-se perceber os contornos de um novo mo-
de crise econômica e do modo de acumulação vimento de reformas setoriais, no qual a ênfase
instalada nos países centrais a partir dos anos 70 na atenção primária e na integração dos serviços
e com o enfrentamento de uma situação explo- torna-se novamente importante.
siva determinada pelo crescimento de periferias Após situar elementos do contexto interna-
urbanas, entre outros problemas 3,4. cional, o tópico seguinte trata dessa trajetória no
O conceito estabelecido como consenso Brasil, começando pelos projetos experimentais
mundial em 1978, destacou elementos que a na década de 70 e sua relação com o movimento
Organização Mundial da Saúde (OMS) estava de reforma sanitária cujos processos priorizaram
empenhada em difundir nesse momento: inte- as dimensões político-institucional e político-
gração dos serviços locais num sistema nacional, administrativa na primeira década de sua im-
participação, necessidade de ações intersetoriais plantação até a emergência em 1994 do “Saúde
e a relação da saúde com o desenvolvimento da Família” com a mudança do status de progra-
econômico e social. Esse discurso informará ao ma para estratégia de reorientação do modelo
longo dessa década, de distintas maneiras e com assistencial.
distintos graus de intensidade, processos de re- De posse desse referencial, procedemos a
forma em países com modelos de prestação de uma síntese de pesquisas realizadas a partir da
serviços tão diversos quanto Cuba, Moçambique, implantação dessa estratégia, principalmente

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aquelas que deram origem a relatórios oriundos com um papel de coordenação, incluindo o setor
de demandas do Ministério da Saúde ou foram privado. Houve aumento na regulação do traba-
decorrentes da atual política de institucionaliza- lho médico instituindo-se algumas atividades
ção da avaliação implementada a partir de 2005 6, obrigatórias e um sistema de remuneração dife-
organizando-as por blocos temáticos considera- renciada para exercício em locais específicos. No
dos centrais na análise dos sistemas de saúde. Se centro dessas redes surgiu um novo estabeleci-
esta escolha introduz um viés de seleção, preten- mento denominado Centre de Santé et des Ser-
de contribuir, por outro lado, para o acompanha- vices Sociaux (CSSS), fruto das fusões dos CLSC
mento da incorporação dos resultados dessas e de hospitais de cuidados de curta e longa du-
avaliações no processo decisório, o que se cons- rações, com o objetivo de estabelecer corredores
titui num dos principais objetivos dessa política de serviços integrados. Na porta de entrada, fo-
cuja importância é destacada na conclusão. ram criados os Groupes de Médècine de Famille
(GMF), uma continuidade das policlínicas já
existentes, agora com subvenção governamental
Reformas sanitárias e atenção primária para estrutura física e recursos humanos 9,10.
de saúde: idas e vindas de um discurso A análise das reformas realizadas em Québec
mostra que a manutenção de direitos em saúde
Ao aderir em 1970/1971 aos princípios de cober- foi garantida durante uma conjuntura de con-
tura universal estabelecidos pelo Governo Fe- trole de gastos por meio da redução seletiva da
deral, Québec realizou uma reforma de caráter oferta com diminuição da atenção hospitalar
muito inovador. Na porta de entrada de uma rede em favor da reorganização de novos modos de
de estabelecimentos hierarquizados por regiões prática. A atenção primária voltou à cena com
foram criados os Centres Locaux des Services uma “nova roupagem”: menos intersetorial e
Communautaires (CLSC), cujo Conselho de Ad- participativa, uma estratégia para racionalizar
ministração era majoritariamente constituído a oferta, diminuir custos, facilitar o acesso e a
por usuários e cujo atendimento deveria privi- coordenação dos cuidados. Vejamos agora como
legiar a integralidade da atenção (“la globalité esses processos ocorreram nas reformas no caso
des soins”) e a dimensão familiar e comunitária da Inglaterra.
dos cuidados. Esse período foi marcado por um Em 1948, no momento da criação do NHS,
importante crescimento de movimentos sociais fora preconizada a organização de um sistema
urbanos com cooperativas de habitação e clíni- descentralizado e pluralista sob controle mu-
cas populares autônomas que influenciaram a nicipal (as Local Authorities – LA). No entanto,
criação desses centros. Os médicos generalistas em decorrência de negociações para superar a
estimulados pela perspectiva de ascensão de oposição médica a um controle local, o sistema
status pela grande ênfase na atenção primária, foi estruturado de forma centralizada com três
inicialmente aceitaram participar da experiência partes independentes: hospitais, serviços locais
dos CLSC podendo optar pelo assalariamento de saúde pública e serviços locais de assistência
ou pelo pagamento por ato. Embora esses cen- médica, odontológica, farmacêutica e de opto-
tros tenham mostrado a viabilidade da prestação metria. Os serviços comunitários, a saúde escolar
de um cuidado integral, foram gradativamente e o saneamento continuaram sob controle das
assumindo uma posição marginal na rede de LA que permaneceram pouco integradas ao sis-
serviços, sendo dirigidos para atendimento de tema 11.
imigrantes, programas de prestação de cuidado Os especialistas (“consultants”) tornaram-se
em domicílio para idosos ou serviços em regiões assalariados exercendo suas atividades em hos-
distantes 7. pitais, e os generalistas (“General Practitionner”
Na década de 1980 e início dos anos 1990, o – GP), cuja prática tem raízes antigas nesse pa-
discurso se modificou num contexto neoliberal ís, permaneceram em seus consultórios como
de restrições orçamentárias e ajustes macroeco- prestadores liberais financiados pelo governo
nômicos com ações regulatórias que ultrapassa- através de um sistema de pagamento por lista
ram o âmbito dessa província. Em Québec a des- de pacientes sob sua responsabilidade. Embora
centralização foi adotada, com a criação de agên- com origens diferentes e associações profissio-
cias regionais encarregadas de realizar fusões de nais distintas, os médicos têm na British Medical
estabelecimentos, fechamentos de hospitais e a Association (BMA) uma interlocutora poderosa
chamada “virada ambulatorial”, na qual os CLSC na representação de seus interesses junto ao go-
voltaram a cena como estruturas de apoio 8. verno.
Em 2003, essas regionais transformaram-se Somente em 1974 ocorreu a primeira reforma
em Agências de Desenvolvimento de Redes Lo- importante criando-se autoridades regionais, de
cais de Serviços de Saúde e de Serviços Sociais área e equipes de gestão distrital, mas o controle

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e o pagamento dos serviços de atenção primá- A volta à cena da estratégia de Atenção Pri-
ria permaneceram a cargo de uma estrutura se- mária à Saúde é confirmada pelo Observatório
parada. Em 1982, as autoridades de área foram Europeu de Sistemas e Políticas de Saúde, que
suprimidas estimulando-se a descentralização analisou reformas orientadas pela Atenção Pri-
e a gestão distrital por intermédio das District mária à Saúde em países da União Européia a
Health Authorities (DHA). partir de 1990 17. O papel crescente da atenção
A introdução de uma concepção empresarial primária se deveria, em parte, à transferência de
e a instituição de um mercado interno com ên- cuidados hospitalares para o nível ambulatorial
fase na competição pública foram as principais havendo grande diversidade nas formas de or-
mudanças adotadas pelas políticas de saúde do ganizar e de prestar estes serviços. As funções da
governo conservador que durou de 1983 a 1996. Atenção Primária à Saúde adotadas pelo Obser-
O princípio de regionalização foi rompido e as vatório Europeu praticamente coincidem com
autoridades distritais passaram a realizar con- os atributos sugeridos por Starfield 2 para avaliar
tratos com hospitais e outros serviços de atenção estas práticas: primeiro contato, longitudinali-
secundária, transformados em “trusts”, ou seja, dade, integralidade, coordenação, centralização
com a responsabilidade de gerar seu próprio or- na família, orientação para a comunidade, e
çamento. Os GPs foram também estimulados a que começaram a ser utilizados no Brasil com
administrar fundos para compra direta de ser- a validação de um instrumento desenvolvido na
viços. Há controvérsia quanto aos resultados Johns Hopkins University, o Primary Care Assess-
dessas medidas 12,13, mas o fato é que elas intro- ment Tool (PCAT) 18 conforme veremos a seguir.
duziram uma dinâmica favorável à atenção pri- Uma pesquisa desta autora com países da Orga-
mária aumentando consideravelmente o status nization for Economic Co-Operation and Deve-
dos generalistas. lopment (OECD) mostrou que quanto maior a
Esse aspecto será estrategicamente aprovei- orientação do sistema para a atenção primária
tado na nova fase que se inicia com a chegada menor é o custo e melhor o desempenho na área
do partido trabalhista ao poder em 1997, com o materno-infantil. No entanto, para o conjunto
compromisso de abolir o mercado interno subs- de indicadores não havia diferenças importantes
tituindo a competição por um trabalho colabo- para os países agrupados no ranking superior ou
rativo entre as instituições que, no entanto, per- intermediário de Atenção Primária à Saúde, com
maneceram como “trusts”. A gestão local passou destaque para os seguintes atributos do sistema
a ser responsabilidade de novas estruturas de- como um todo: distribuição eqüitativa de re-
nominadas Primary Care Trusts (PCTs), às quais cursos, cobertura universal, baixa contrapartida
todos os GPs estão vinculados e onde, finalmen- financeira dos usuários e orientação integral e
te, começaram a trabalhar juntos as autoridades familiar nos serviços 19.
distritais e os órgãos de controle dos serviços de Examinemos agora o contexto da emergên-
atenção primária. cia dessa política no Brasil para refletir acerca de
Em funcionamento desde 2002, os PCTs pa- seus limites e possibilidades a partir da síntese de
recem estar avançando na direção de uma maior alguns trabalhos já divulgados.
integração entre os serviços, sendo a compra de
cuidados especializados definida a partir das
necessidades do nível local 14. Foram previstos Sobre as origens e implantação da
investimentos para o período 2000/2010 visando Atenção Básica e a Estratégia Saúde da
a reduzir os tempos de espera para no máximo Família na reforma brasileira
48 horas no caso dos GPs, três meses para espe-
cialistas e seis meses para cirurgias eletivas 15. A partir da década de 1970, surgiram diversas ini-
O monitoramento do acesso é hoje central nas ciativas visando a ampliar as práticas nos centros
atividades dos PCTs, cujo trabalho enfrenta o de- de saúde tradicionalmente ligados à prestação de
safio de promover qualidade entre uma diversi- serviços de saúde pública para populações po-
dade de prestadores liberais. Em janeiro de 2006, bres, entre as quais podemos destacar: o projeto
um novo documento apresentado ao Parlamento de saúde comunitária Murialdo da Secretaria Es-
reiterava a continuidade dessas medidas 16. tadual de Saúde do Rio Grande do Sul, em Porto
Tal como em Québec, a trajetória do sistema Alegre, com residência multiprofissional e que
de saúde inglês mostra uma tendência de garan- funcionou como pólo aglutinador para outros
tir e facilitar o acesso com a busca de maior in- projetos semelhantes realizados em Vitória de
tegração entre os serviços, atribuindo destaque Santo Antão, Rio de Janeiro, Teresina, São Luiz,
para o papel de coordenação de estruturas de Cotia, Sete Lagoas, Pelotas e Joinville, com a cria-
atenção primária, ainda que com estratégias e ção da Sociedade Brasileira de Medicina Geral
arranjos institucionais bastante diversos. Comunitária (SBMGC) 20,21; experiências de me-

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dicina comunitária como a de Montes Claros que Para Vianna & Dal Poz 29, teria havido uma
serviram de base para programas de extensão interação positiva entre a sua implantação e a
de cobertura; o Programa de Interiorização das descentralização, com o PSF facilitando a adoção
Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) no Nor- do financiamento per capita das ações básicas.
deste, que ao ser estendido para todo o país pro- O que estaria impedindo sua expansão seriam
moveu uma grande expansão da rede ambulato- as estruturas burocráticas ainda pesadas, o cor-
rial; além de experiências municipais em Lages, porativismo, o aparelho formador e os precon-
Campinas, Londrina e Niterói, por exemplo 22. ceitos em relação à tecnologia simplificada. É
O desenho do SUS teve influência do ideá- importante lembrar que o Banco Mundial havia
rio das reformas dos sistemas contemporâneos divulgado seu relatório anual propondo pacotes
na década de setenta, mas os conhecimentos mínimos de serviços 30 exacerbando críticas a
acumulados com novos modos de práticas e for- formas de Atenção Primária à Saúde que pudes-
mação de recursos humanos em nível local não sem significar um retrocesso de direitos.
encontrarão eco no movimento sanitário, cujos Analisamos a implantação do PSF por meio
esforços centraram-se em questões mais gerais do estudo do caso de Florianópolis no período
das políticas e do direito à saúde. 1994/2000 utilizando uma combinação de me-
Os primeiros anos da reforma foram marca- todologias de avaliação 31. O atraso da capital
dos pela integração e fusões de instituições as- catarinense confirmava resistências de ordem
sociadas à tentativa de manter e difundir novos político-ideológica com prioridade para oficinas
princípios num contexto de grave crise fiscal e fi- de territorialização, numa conjuntura em que o
nanceira. A partir de 1996, houve um impulso na PSF ainda não era considerado uma estratégia
política de descentralização com Normas Opera- de reforma sem garantias de sua continuidade.
cionais favorecendo um arcabouço legal e admi- Com a troca do poder municipal inicia-se uma
nistrativo necessário ao novo papel atribuído pa- política expansionista havendo concordância
ra o poder local. Porém, mais do que reorganizar em nível de gestão de que obter recursos huma-
o modelo assistencial, o que predominou nesse nos adequados se constituía num dos problemas
momento foi o interesse em cumprir requisitos centrais.
a fim de assegurar repasses federais, não sendo Para as coordenações dos postos o PSF ha-
raros os exemplos em que a montagem das novas via gerado avanços na prevenção, na consciência
estruturas administrativas era coincidente com o sanitária e na realização de visitas domiciliares,
momento em que o município assumia a gestão citando-se o agente comunitário de saúde como
da rede de serviços 23. um grande fator de mudança neste sentido. No
Surgiram propostas mostrando a necessida- entanto, era unânime a percepção de que esses
de de mudanças paradigmáticas com projetos avanços ficavam prejudicados pelo dimensiona-
estruturantes no campo da saúde e no campo mento inadequado entre equipe e população. As
dos serviços 24, alertando-se para a importância dificuldades quanto ao acesso coincidiam com
da subjetividade dos usuários e dos coletivos de a percepção das famílias, para as quais a prin-
trabalho, com uma crítica contundente à racio- cipal diferença também se devia à presença do
nalidade tecnoburocrática 25,26. agente comunitário. Na grade avaliativa final, o
A confluência de um conjunto de fatores pa- grau de implantação do programa foi conside-
rece explicar a emergência do Programa Saúde rado moderadamente adequado com problemas
da Família (PSF) nesse momento: a experiência no acesso (relação inadequada entre equipe e o
bem sucedida das ações do Programa de Agentes número de famílias) e numa das dimensões da
Comunitários de Saúde (PACS) no Nordeste, o integralidade (referência). Concluímos que essa
vazio programático para a questão assistencial dificuldade no acesso poderia dificultar as van-
no SUS e os atrativos políticos que um programa tagens obtidas nos demais itens da integralidade
desta ordem poderia representar mesmo para um ao prejudicar a realização de atividades de pro-
governo de cunho neoliberal. É possível também moção, prevenção e visitas devido à sobrecarga
que oferecer um incentivo financeiro para con- das equipes. Havendo problemas na referência
tratação de equipes se configurasse como uma para especialidades, o cuidado mais complexo
medida operacionalmente viável para estimular tornava-se também difícil e a integralidade ficava
o reordenamento da atenção básica. prejudicada como um todo.
Se no primeiro documento ministerial ela- Alguns aspectos sugeridos por este trabalho
borado em 1994 27 o PSF é entendido como um vêm a se confirmar nos estudos do período que
programa, no referencial que se segue passa a ser se segue, o qual será marcado por ações do Pro-
considerado uma estratégia para reorientação do jeto de Expansão e Consolidação do Saúde da
modelo assistencial com caráter substitutivo das Família (PROESF), apoiado pelo Banco Mundial
práticas convencionais 28. e estruturado em três componentes principais:

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expansão da estratégia em municípios de grande resultados variáveis. Tanto no interior como na


porte, desenvolvimento de recursos humanos, capital de São Paulo, as dimensões com as quais
monitoramento e avaliação 32. os usuários estavam mais satisfeitos eram a porta
Em 2004, as Regiões Nordeste, Centro-Oes- de entrada, o vínculo e os profissionais 39,40. Na
te e Sul apresentavam as maiores proporções de capital a acessibilidade foi referida por usuários,
população coberta pelo PSF, aproximadamente profissionais e gestores como a pior dimensão
55%, 41% e 38%, seguidas das Regiões Norte e Su- em todos os estratos de exclusão tanto no PSF
deste, com 34% e 30%. De 1998 a 2004, houve ex- como nas unidades básicas de saúde tradicio-
pansão importante em todas as regiões, mas com nais. Nesse caso, o índice de atenção básica (IAB)
cobertura maior nos municípios com Índice de foi comparativamente mais favorável ao PSF em
Desenvolvimento Humano (IDH) baixo. Embora todos os estratos, mas quanto maior a exclusão
tenha havido adesão precoce de cidades periféri- pior era a avaliação.
cas às regiões metropolitanas, a partir de 2000 a O impacto do PSF nos indicadores de saúde
ampliação ocorreu em municípios menores, fato permanece controverso. A análise de alguns in-
que começa a se modificar recentemente 33,34. dicadores selecionados para o Brasil de 1998 a
Existem poucos trabalhos avaliando a estru- 2003/2004 aponta para a diminuição da brecha
tura física das unidades, o mesmo ocorrendo em entre as faixas de IDH sugerindo efeitos positi-
relação aos custos e ao financiamento. Num estu- vos para a eqüidade 33, porém um estudo feito
do comparativo Nordeste/Sul, os trabalhadores em municípios nordestinos de grande porte não
referiram baixa satisfação com essa estrutura em identificou diferenças significativas nos indica-
ambas as regiões e modelos de atenção, sendo dores de saúde da criança entre áreas cobertas
que a principal diferença entre as equipes do PSF e não cobertas pelo PSF. Nesse caso, havia uma
e as tradicionais foi decorrente da presença dos clara relação desses indicadores com a situação
agentes comunitários 35. A maioria dos médicos sócio-econômica, confirmando-se assim, a já
e enfermeiros mostrava-se otimista em relação conhecida importância da determinação social
ao programa citando o ambiente na equipe co- desses agravos 41.
mo um aspecto positivo, mas consideravam sua As análises acerca do PSF em grandes centros
atividade desgastante e eram freqüentes os vín- mostram obstáculos decorrentes do padrão de
culos precários, pouca experiência ou formação desenvolvimento urbano e do acentuado proces-
na área 35,36. Os gestores aprovavam o programa so de favelização, com a necessidade de ações in-
e a equipe propostos pelo Ministério da Saúde, ter-setoriais sinérgicas face às situações de extre-
porém sugeriam a inclusão de dentista e de assis- ma precariedade. A essas situações se somariam
tente social citando dificuldades para encontrar problemas setoriais pela existência de sistemas
“médicos generalistas” 37. municipais com baixos graus de eficácia e sus-
Uma pesquisa em municípios paulistas mos- tentabilidade na gestão e problemas de financia-
trou uma correlação entre a eficácia da gestão e mento decorrentes da política de repasses, com a
a efetividade do sistema municipal, havendo ne- violência urbana repercutindo no cotidiano e na
cessidade de ganhos substanciais neste sentido. rotatividade das equipes 34.
Municípios de grande porte tendem a ter maior Para finalizar, gostaríamos de destacar algu-
capacidade e maior aprendizado institucional, mas das recomendações da avaliação feita em
mas muitos ainda mostravam pouca experiência dez centros urbanos em 2001/2002, sob enco-
e maturidade no PSF. Quanto mais baixa a gover- menda do Ministério da Saúde 42: necessidade
nabilidade com a existência de conflitos entre os de estratégias de negociação com as corporações
agentes (Conselho, Câmara, prestadores, Secre- médicas e de enfermagem; integração de equi-
taria Estadual, Ministério da Saúde, Ministério pes nos serviços existentes ou no interior de uma
Público) piores eram os resultados 34. unidade básica de saúde para compartilhamento
No que diz respeito ao desempenho, o pro- de recursos e interconsultas; redução do número
grama tende a favorecer um trabalho territoriali- de famílias adscritas em função do grande leque
zado, com participação em atividades na comu- de atividades; práticas para atrair usuários com
nidade e bons resultados na cobertura de ações adscrição próxima ao local do trabalho, horários
programáticas 35,38. No entanto, em algumas noturnos, melhor acolhimento e, adequação do
cidades estudadas no Estado do Rio de Janeiro financiamento à situação peculiar das periferias
notou-se que a ação setorial focalizada não pare- urbanas com incentivos salariais para áreas de
cia modificar a “lei do cuidado inverso”: quanto risco social e epidemiológico. Além disso, cha-
pior a condição econômica do município pior a mam atenção para o fato de que um sistema inte-
cobertura e a qualidade do atendimento 38. grado de serviços necessita de investimentos nos
A avaliação dos atributos da atenção primá- demais níveis de complexidade e não apenas na
ria a partir da aplicação do PCAT tem mostrado atenção básica.

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Em março de 2006 foi aprovada a Política Québec. Uma das razões que nos levaram a des-
Nacional de Atenção Básica com uma revisão da crever os processos realizados nessa província e
legislação em função da experiência acumulada no NHS da Inglaterra foi o de ilustrar o percurso
e das diretrizes do novo pacto entre as esferas de da Atenção Primária à Saúde enquanto política
governo 43. O Pacto de Gestão regulamentou o de reorientação do modelo assistencial em dois
bloco financeiro da atenção básica para superar países centrais, cuja organização dos serviços de
a fragmentação vigente, extinguindo-se a vin- saúde tem adquirido uma importância paradig-
culação de incentivos por faixas de cobertura o mática. Mas também queríamos destacar a im-
que prejudicava os grandes centros. O Pacto pela portância de se ter em mente que a dinâmica dos
Vida reiterou como prioridade a consolidação e atores sociais, especialmente daqueles que são
a qualificação da Estratégia Saúde da Família co- sujeitos das relações no cotidiano assistencial,
mo modelo de atenção básica e centro ordena- reconstrói e reconfigura teorias, normas e pres-
dor das redes de atenção à saúde 44. crições tecno-burocráticas.
Esses casos apontam também para a necessi-
dade de tolerância quanto ao tempo necessário
Nem cavalo de Tróia nem travessia para construção de novos modos de práticas no
messiânica para o SUS: considerações sistema de saúde, o qual precisa levar em con-
finais acerca da Estratégia Saúde ta, portanto, o papel e a expressão dos diversos
da Família enquanto política de grupos sociais envolvidos. Assim, a intenção de
reforma da atenção básica que os CLSC fossem a porta de entrada em Qué-
bec não encontrou adesão efetiva dos médicos,
Conforme mostramos na introdução deste tra- porém, trinta anos depois, os GMF parecem ser
balho, a prestação de serviços locais como forma uma variante mais restrita porém consensual
de lidar com a pobreza e a exclusão social é an- desta idéia. Surpreendentemente, os CLSCs pas-
tiga. A história da proposta de organizar serviços sam a se localizar em hospitais para promover
orientados pela atenção primária é marcada por a integração do cuidado, facilitando formas de
uma trajetória de sucessivas reconstruções até se trabalho que foram sendo amadurecidas pelas
consolidar como uma política de reforma, uma práticas profissionais no cuidado de pacientes
alternativa diante da permanente crise dos siste- crônicos. Na Inglaterra, uma oposição à lógica
mas de saúde contemporâneos. Esse discurso di- do mercado interno favoreceu o desenvolvimen-
funde-se com grande intensidade nas décadas de to de um novo modelo baseado na integração
1960 e 1970 associado a princípios participativos e na cooperação, o qual no entanto, manteve e
e de democratização das práticas, retrocede na se beneficiou de algumas das medidas que ha-
fase de reformas neoliberais dos anos 1980 para viam sido anteriormente implantadas, como a
reaparecer a partir da última década do século autonomia orçamentária das instituições. Apesar
XX, com uma roupagem mais racionalizadora e da inegável turbulência dos últimos decênios, há
instrumental. Seria interessante aprofundar os nesses sistemas forte tradição de consulta aos
fatores conjunturais que poderiam explicar as envolvidos, de prestação de contas à sociedade
diferenças desses momentos, principalmente e de continuidade na manutenção dos grandes
entender o atual interesse que o Banco Mundial princípios acordados.
demonstra ao apoiar a implementação dessa po- Sem dúvida, ocorreram importantes avanços
lítica no contexto brasileiro. nesse sentido em nosso meio, com a existência
Também aqui essas propostas surgiram liga- dos Conselhos e de um planejamento que tende
das a projetos docente-assistenciais de reforma a ser mais comunicativo por meio do estabeleci-
da educação médica ou de programas localizados mento de metas pactuadas. Mas é preciso cautela
de saúde comunitária, mas não encontraram eco com um agir tecnocrático e com o desequilíbrio
na primeira década de funcionamento do SUS. dele resultante: uma formidável engenharia ad-
A emergência do PSF parece estar relacionada ministrativa mas uma ausência relativa de alguns
com a precariedade de respostas dadas no plano atores sociais importantes como as corporações
assistencial pela reforma, mas a envergadura e a profissionais. Um aspecto que tem sido posto em
continuidade de sua implementação fazem com relevância para a qualidade dos sistemas con-
que esse programa venha a se constituir num temporâneos é a chamada “responsiveness” 45, ou
caso particular de aplicação de uma política de seja, a capacidade de ser permeável às demandas
atenção primária num país de inserção periférica dos que os utilizam e, acrescentaríamos, daque-
na economia mundial. les que neles trabalham. É verdade que gradati-
Há na extensão e difusão dessa política (e vamente algumas demandas foram incorporadas
apenas nisso) alguma semelhança com o que ao PSF, tais como a ampliação da equipe com a
aconteceu nos primeiros anos da reforma de presença de dentistas e o modo de financiamen-

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to, de forma a não prejudicar municípios de de integração dos serviços de atenção básica e,
grande porte. em especial, aqueles do PSF, ao sistema como um
Um aspecto crucial da discussão das possi- todo. Também não é possível desconhecermos
bilidades dessa política diz respeito aos limites a necessidade de importantes mudanças cultu-
impostos pela heterogeneidade estrutural da for- rais e no aparelho formador para que uma prá-
mação social brasileira e suas conseqüências no tica que não tem tradição nem nas corporações
desenvolvimento econômico e social do país e profissionais nem diante da população venha a
nas condições de vida da população. Os traba- legitimar-se.
lhos que apresentamos mostram que o impac- Sem minimizar a importância da continui-
to do PSF nos indicadores de saúde permanece dade de estudos de avaliação, temos insistido
controverso, fato que não se constitui numa sur- acerca de dois desafios a serem superados nesse
presa, uma vez que existe farta bibliografia sobre sentido: o desafio da profusão (de estruturas, de
o papel limitado dos serviços na determinação formulários, de relatórios, de dados, de pesqui-
social da doença. sas) e o desafio de comunicação (da divulgação,
A questão que nos parece central é refletir- do retorno das informações, da implementação
mos se o PSF tem potencial para somar-se de de mudanças). Ocorre assim um estranho para-
forma sinérgica a outras políticas públicas no en- doxo: uma demanda excessiva de informações
frentamento dessa situação e, neste caso, quais (muitas vezes sobrecarregando equipes locais)
os fatores setoriais que se mostram necessários com dificuldades na realização de mudanças.
para garantir um desempenho adequado. Os eixos de racionalização dos serviços, de
As evidências atuais apontam para uma dis- legitimação política do Estado através das políti-
creta superioridade do programa em relação às cas públicas ou de democratização das práticas,
atividades de unidades tradicionais com a incor- permeiam as ações da estratégia da saúde da fa-
poração de práticas de territorialização, maior mília, atual política brasileira para a reforma da
vínculo, envolvimento comunitário e acompa- atenção básica, porque os conceitos que com-
nhamento de prioridades programáticas, o que põem esta política representam a resposta a um
é coerente com o cumprimento de seu referen- conjunto de contradições do sistema de serviços
cial normativo. No entanto, o acesso permane- e do contexto social. Mas o PSF nem se constitui
ce como um grande nó crítico, com dificuldades numa espécie de cavalo de Tróia nem tampouco
na estrutura física e nas equipes, fragilidades da representa a garantia de uma travessia messiâ-
gestão e na organização da rede de serviços. Já nica para os problemas do SUS. Muitos e impor-
demonstramos o quanto os problemas no acesso tantes aspectos já são suficientemente visíveis
podem vir a comprometer avanços no plano da com o acompanhamento e os estudos de sua im-
integralidade. plementação para que se realizem ajustes neces-
Três categorias sugeridas por Mendes 46 para sários. Garantir sua continuidade realizando es-
a análise dos sistemas de serviços nos parecem ses ajustes com respeito à diversidade de práticas
importantes de forma a correlacionar essas di- e de situações parece ser um horizonte razoável
ficuldades com outras mais gerais que se situam a ser defendido, do ponto de vista técnico. Sabe-
no âmbito da macrorregulação, as quais preci- mos, no entanto, que é a dinâmica de atores nas
sarão ser melhor discutidas e enfrentadas pela disputas de projetos tecnoassistenciais que de-
sociedade brasileira: o baixo patamar do finan- lineiam horizontes na arena setorial, uma entre
ciamento público atualmente vigente, a persis- tantas outras que se estabelece na complexidade
tência de segmentação do sistema e a ausência da produção social.

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DESAFIOS PARA A ORGANIZAÇÃO DE SERVIÇOS BÁSICOS E DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA S15

Resumo

O trabalho enfoca a trajetória da Atenção Primária à formação das equipes, na gestão e na organização da
Saúde enquanto política de reorganização do modelo rede. Essas dificuldades se correlacionam com o baixo
assistencial, tendo como referência reformas orien- patamar de financiamento público, a persistência de
tadas por este princípio e sua implantação no caso segmentação no sistema e a fraca integração dos ser-
brasileiro. Aponta-se para uma mudança no discurso viços de atenção básica com outros níveis de atenção.
das reformas setoriais com um retorno da ênfase na Garantir a continuidade dessa estratégia realizando os
Atenção Primária à Saúde e na integração dos servi- ajustes necessários é um horizonte razoável a ser de-
ços. No contexto brasileiro, é necessário refletir sobre as fendido do ponto de vista técnico, o qual será sempre
possibilidades de sinergia dessa estratégia com outras condicionado pela dinâmica dos projetos tecnoassis-
políticas sociais e sobre os fatores necessários para ga- tenciais em disputa.
rantir seu desempenho. Os estudos de avaliação mos-
tram uma discreta superioridade de suas atividades Atenção Primária à Saúde; Serviços de Saúde; Saúde
sobre aquelas de unidades tradicionais, mas perma- da Família
necem dificuldades no acesso, na estrutura física, na

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