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O PROBLEMA DO SOFRIMENTO

UM DEBATE ENTRE BART EHRMAN E N. T. WRIGHT


Tradução, revisão e edição:
www.ElielVieira.org
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
BIOGRAFIA DOS PARTICIPANTES
BART EHRMAN: Como o problema do sofrimento arruinou minha fé.
N. T. WRIGHT: O plano de Deus para nos resgatar.
BART EHRMAN: O que dizer sobre o sofrimento real?
N. T. WRIGHT: O que o mundo parece quando Deus está no comando?
BART EHRMAN: O reino de Deus não chegou!
N. T. WRIGHT: A Bíblia responde ao problema – veja como.
INTRODUÇÃO

O presente debate aconteceu durante o mês de Abril de 2008 e foi organizado


pelo siteBel i ef net1 com o título Is Our Pain God’s Problem? [A nossa dor é problema
de Deus?]. O formato deste debate é um pouco diferente do convencional, pois os
participantes não se encontraram pessoalmente, diante de uma platéia, para a realização
do mesmo. Ambos escrevem seus discursos e enviaram para serem publicados no
website que organizou o debate. Cada participante deve direito a escrever trêsposts, que
variaram entre 1000 e 2000 palavras cada.
Tradução e edição: Eliel Vieira 2. Todos os direitos da tradução reservados.
BIOGRAFIA DOS PARTICIPANTES

BART EHRMAN
Bart Ehrman é o autor de O Problema com Deus: as respostas que a Bíblia não
dá ao sofrimento (lançado no Brasil pela editora Agir), além de vários outros títulos.
Atualmente Bart Ehman é o titular da cadeira James A. Gray de estudos religiosos na
Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill, EUA.

N. T. WRIGHT
N. T. Wright é o bispo de Durham pela Igreja da Inglaterra. Foi professor de
Novo Testamento em Cambridge, McGill e Oxford, e tem continuamente escrito e
falado sobre teologia bíblica e história cristã. Wright é autor de Surpreendido pela
Esperança, Simplesmente Cristãoe O Mal e a Justiça de Deus (todos os três títulos
lançados no Brasil pela editora Ultimato), além de vários outros títulos.
BART EHRMAN

COMO O PROBLEMA DO SOFRIMENTO ARRUINOU MINHA FÉ

Durante a maior parte de minha vida eu fui um cristão devoto, acreditava em


Deus, confiava em Cristo para salvação, sabia que Deus estava envolvido de forma ativa
neste mundo. Durante minha adolescência eu era evangélico, com uma crença firme na
Bíblia como a Palavra inspirada e inerrante de Deus. Naquele tempo eu tinha algumas
visões bem simples, mas em geral aceitas, sobre como pode haver tanta dor e miséria no
mundo. Deus nos concedeu livre arbítrio (nós não fomos programados como robôs),
mas uma vez que éramos livres para fazer o bem, éramos livres também para fazer o
mal – desta forma ocorreram o holocausto, o genocídio em Camboja, etc. Com certeza,
esta visão não explicava todo mal presente no mundo, mas um bom número de
sofrimento era um mistério e, no fim das contas, Deus concertaria tudo o que estava
errado.
Por volta dos meus vinte anos de idade eu deixei de ser evangélico, mas
continuei sendo cristão por outros vinte anos – um crente em Deus, que confessava seus
pecados, que ia à igreja, que não mais sustentava a inerrância das Escrituras, mas que
acreditava que a Bíblia continha a palavra de Deus, digna de ser tomada como fonte de
reflexão teológica. E quanto mais eu estudava a tradição cristã, primeiro como um
estudante de graduação no seminário e depois como um jovem professor de estudos
bíblicos em universidades, mais sofisticadas ficavam minhas visões teológicas e minha
compreensão sobre o mundo e o que há nele.
A questão do sofrimento cada vez mais se tornava um problema para mim e
minha fé. Como alguém consegue explicar a miséria e a dor no mundo se Deus – o criador e
redentor de tudo – é soberano sobre nossas vidas? Por que, eu me perguntava, existe esta
fome desenfreada no mundo? Por que existem secas prolongadas, epidemias,
furacões e terremotos? Se Deus responde a orações, por que ele não respondeu às
orações dos judeus fieis durante o holocausto, ou dos cristãos fieis que também
sofreram tortura e morte nas mãos dos nazistas? Se Deus se preocupa em responder às
minhas pequenas orações relacionadas à minha vida diária, por que ele não respondeu às
minhas (e de várias outras pessoas) orações grandes quando milhões de pessoas foram
escravizadas pelo Khmer Rouge no Camboja, quando em questão de minutos um
deslizamento de terra matou 30 mil colombianos enquanto eles dormiam, quando
desastres de todos os tipos causados por seres humanos e pela natureza acontecem no
mundo?
Eu li muito sobre esta questão. Li filósofos, teólogos, estudiosos bíblicos,
grandes figuras literárias e autores populares, de Platão a Sartre, de Apuleio a
Dostoievsky, do apóstolo Paulo a Henri Nouwen, de Shakespeare a T. S. Eliot, a
Archibald Macleish, de C. S. Lewis (de quem eu sempre tomava alguma ideia
emprestada) a Harold Kushner, a Elie Wiesel.
Eventualmente, enquanto ainda era um pensador cristão, eu acreditava que o
próprio Deus estava profundamente relacionado com o sofrimento e intimamente
envolvido com ele. A mensagem cristã, para mim, naquele tempo, era que Jesus Cristo é
a revelação de Deus para nós humanos, e que em Jesus nós podemos enxergar como
Deus lida com o mundo e se relaciona com ele. Ele se relaciona com o mundo, eu
pensava, não o conquistando, mas sofrendo junto com ele. Jesus não estava sentado em
um trono em Jerusalém para governar o Reino de Deus. Ele foi crucificado pelos
romanos, sofrendo uma morte dolorosa, excruciante e humilhante por nós. Como Deus
é? Ele é um Deus que sofre. A maneira como ele lida com o sofrimento é sofrendo por e
junto conosco.
Esta foi minha visão por muitos anos, e eu ainda a considero uma visão teológica
muito poderosa. Esta seria a visão que eu abraçaria se ainda fosse um cristão. Mas eu
não sou.
Há cerca de nove ou dez anos atrás eu vim perceber que eu simplesmente não
acreditava mais na mensagem cristã. Grande parte do meu afastamento da fé aconteceu
por causa de minhas reflexões em relação ao sofrimento. Eu simplesmente não conseguia
mais abraçar a visão – que eu considerava ser essencial à fé cristã – de que

Deus era ativo no mundo; que ele respondia orações; que ele intervinha no mundo de
acordo com sua fidelidade; que ele trouxe salvação no passado e que no futuro, no
eschaton, ele endireitaria tudo o que estava errado; que ele vindicaria seu nome e seu
povo, e que traria um novo reino (seja na nossa morte ou aqui em uma Terra de
existência futura utópica).
Nós vivemos em um mundo no qual uma criança morre a cada cinco segundos
por não ter o que comer. Cinco segundos. A cada minuto vinte e cinco pessoas morrem
por não ter água potável para beber. A cada hora 700 pessoas morrem de malária. Onde
está Deus nisto tudo? Nós vivemos em um mundo no qual terremotos no Himalaia
matam 50 mil pessoas e deixam 3 milhões sem teto à beira do inverno. Nós vivemos em
um mundo onde um furacão destrói Nova Orleans. Onde um tsunami mata 300 mil
pessoas em uma gigantesca inundação. Onde milhões de crianças nascem com defeitos
de nascimento horríveis. E onde está Deus? Dizer que ele algum dia vai endireitar tudo
o que está errado me parece, agora, ser puro wishful thinking.
Como se vê, minhas várias lutas com o problema do mal me levaram, já como
um agnóstico, de volta à Bíblia, para ver como autores bíblicos diferentes lidaram com
este problema, a maior de todas as questões humanas. O resultado está em meu mais
recente livro O Problema com Deus: as respostas que a Bíblia não dá ao sofrimento 3.
Meu ponto é que muitos dos autores da Bíblia lutaram com esta mesma questão: por que
as pessoas (especialmente o povo de Deus) sofrem? As respostas bíblicas algumas vezes
são impressionantes por causa de sua simplicidade e poder (o sofrimento vem como
uma punição de Deus pelo pecado; o sofrimento é um teste para a fé; o sofrimento é
gerado por poderes cósmicos inimigos de Deus e de seu povo; o sofrimento é um
mistério gigantesco e nós não temos direito de perguntar por qual motivo ele acontece;
o sofrimento gera redenção e ele é o meio pelo qual Deus traz sua salvação; etc.).
Algumas destas respostas contradizem umas às outras (é Deus ou são seus inimigos
cósmicos que estão gerando destruição na Terra?), embora muitas delas continuam a ser
ensinadas às pessoas religiosas.
Minha esperança ao escrever este livro certamente não foi de encorajar as
pessoas a se tornarem agnósticas – o caminho que eu tomei. Meu objetivo é ajudar as
pessoas a pensar, tanto nesta questão, a maior de todas as questões, quanto no significado
histórico e cultural das respostas religiosas a esta questão que podem ser encontradas nos
livros de histórica de nossa civilização.
N. T. WRIGHT

O PLANO DE DEUS PARA NOS RESGATAR

Obrigado, Bart, pelo relato claro e comovente da fé que você abraçava, seus
questionamentos, e seu eventual abandono da fé cristã. Estou feliz em ler que você
escreveu seu livro sem o objetivo de encorajar as pessoas a te seguir no agnosticismo
(embora eu ache que é assim que o livro vai funcionar retoricamente a alguns), mas para
encorajar todos nós ap ensar. Isto é algo que eu constantemente falo às pessoas: eu
acredito na autoridade da Escritura e na tradição cristã como a comunidade de discussão
na qual os cristãos ouvem esta Escritura – mas acredito também, no muito importante
uso apropriado da razão. Nossa cultura caiu e tornou-se presa do emotivismo, que leva
as pessoas a dizer “eu sinto” quando elas querem dizer “eu penso”, e então a – em um
simples movimento – permitir que o sentimento triunfe sobre o pensamento, e em
seguida, substituí-lo por completo. Este caminho, eu acho que nós concordamos aqui,
permite o caos e a loucura.
Existem dois grandes elementos gerais em seu livro e seu primeiro discurso que
eu gostaria de mastigar nesta primeira resposta.
Primeiro, aproveitando este ponto sobre pensar e sentir, eu acho que o impacto
retórico tanto do seu livro quando de seu breve discurso de abertura está em fazer um
forte apelo às emoções, talvez particularmente às emoções das pessoas ocidentais como
nós próprios, que são acusados, geográfica e culturalmente, dos muitos horrores que
acontecem no mundo. Você devota muito tempo em seu livro, e até mesmo em seu
breve discurso de abertura, detalhando alguns destes horrores, como que para lembrar
aos leitores o que (certamente?) todas as pessoas inteligentes já sabem. (Eu não teria sido
capaz de recitar as estatísticas reais, mas nenhum dos fenômenos me soou como

surpresa.)
Existem, obviamente, múltiplas misérias no mundo, e para muitos (a maioria?)
deles é impossível dizer, “Olha! Um grande bem veio daquele mal.” Eu acho que nós
dois reagimos da mesma forma contra esta sugestão. Certa vez ouvi Rowan Williams
sugerir que pode ser imoral tentar “solucionar” o problema do mal, porque tão logo
você diga, “Olha, isto aqui resolve tudo, não?”, você já estará diminuindo o problema,
voluntariamente se cegando para a natureza radical, poderosa e real do mal. Mas eu não
estou certo sobre qual força lógica ou moral (em contraste com a retórica) que você
acrescentou ao seu caso ao descrever com tantos detalhes os horrores que ocorrem no
mundo.Em certo sentido você simplesmente nos trouxe de volta para onde a Europa
ocidental se encontrou após o terremoto em Lisboa no Dia de Todos os Santos de 1755.
Naqueles dias alguns diziam, “Olhe para o mundo, pense nisto, e você verá que Deus
existe e que o Cristianismo é verdadeiro.” O terremoto foi um chamado despertador
para a religião ocidental casual, e precipitou toda a revolução do Iluminismo, primeiro
em direção ao imparcial Deísmo e em seguida ao agnosticismo e ateísmo. Você fez algo
mais do que apenas recapitular aquele momento? E, se você não fez, então eu acho que
quero lhe perguntar: você não estava ciente, antes, da escala de mal existente no mundo
– o holocausto, os bebês mortos, os desastres “naturais” inexplicáveis, etc.? Você não
está implicando que as pessoas (como eu, por exemplo) que ainda abraçam a fé cristã
estão de alguma forma falhando em observar estes horrores, ou em refletir de forma
sóbria e profunda sobre eles? E se, como você diz, seu livro (e seu discurso de abertura)
não constituem na verdade um argumento contra a fé cristã (“Se você refletir nestas
questões você verá que as afirmações cristãs são incríveis”), não poderia parecer que
sua mudança de posição descrita por você próprio é uma mudança que ocorreu não em
virtude de argumentos lógicos, mas por causa de outros (não especificados) fatores, com
o problema do sofrimento provendo um tipo de pano de fundo intelectual para uma
jornada cuja principal energia veio de outro lugar? Eu não estou dizendo que os
argumentos não são importantes. Mas eu estou tentando entender o que você está
dizendo quando nega que os argumentos do seu livro e do seu discurso constituam um
apelo para que qualquer pessoa siga seu caminho.

O segundo ponto geral se refere à maneira de você lidar e descrever a Bíblia e a


fé cristã. Eu gostaria de comentar sua análise do material bíblico. É aqui que eu tenho
que referir ao tratamento que eu faço do mesmo problema em O Mal e a Justiça de
Deus4, que constitui parte do trabalho de base para meu novo livro Surpreendido pela
Esperança5. Eu não sei se você leu alguns destes livros, mas no primeiro eu forneço um
relato bem diferente do seu para o material do Antigo Testamento, enxergando o
chamado de Abraão não como Deus simplesmente chamando Abraão “para ter uma
relação especial com ele”, mas como o momento no qual Deus lança o plano de
realização em longo prazo para resgatar o mundo de sua miséria. Em outras palavras, eu
li a história de Israel como um todo (não apenas em suas partes individuais, que, por
elas mesmas, se retiradas de seu contexto, podem ser reduzidas para “Israel pecou, Deus
puniu”, etc.), como a história da teodicéia em prática: “está é a narrativa de como o
Deus criador vai eventualmente endireitar todas as coisas”. E, desta forma, as promessas
de Isaías 11, etc.
A partir disto temos três subpontos. Primeiro, sua leitura apocalíptica me parece
imprecisa em termos de substância e fora do tempo em termos acadêmicos. A disjunção
aguda entre “profético” e “apocalíptico”, e a caracterização do apocalíptico em termos
de dualismo, pessimismo, etc., é muito enganadora, e cresceu a partir de uma velha
ciência que não tinha simpatia alguma pelo o que os apocalipsistas estavam tentando
fazer.
Segundo, eu fiquei surpreso que ao discutir Paulo você nunca mencionou que
Romanos é todo sobre a “justiça de Deus”, ou seja, a mesma questão abordada em todo
o seu livro; você reduz o entendimento de Paulo a um relato substitutivo simplista da
cruz, o que, embora importante, não apresenta a grande imagem ou todo seu argumento.
Terceiro, você nunca analisou os evangelhos da forma como eles realmente se
apresentam – como o clímax da história enraizada em Abraão de Israel como a resposta
de Deus para o problema. A inauguração de Jesus do Reino de Deus (e a culminação da
inauguração do reino na cruz e ressurreição), como eu tenho argumentado em meus
livros, era precisamente a resposta para a questão “como o mundo se parece quando
Deus o comanda?” – a mesma questão de todo o seu livro. Não ficou claro para mim se
você estava dizendo que Jesus se enganou em suas crenças e ensinamentos... Eu senti com
frequência que a forma de fé cristã que você estava rejeitando era o tipo particular
do protestantismo norte americano, que eu não acho que faz justiça ao material.
Em particular, é claro, a ressurreição de Jesus é absolutamente central para mim.
Como muitas pessoas antigas e modernas, você não vê credibilidade nisto. Se eu não
acreditasse na ressurreição, eu não teria as crenças que eu tenho sobre as outras coisas.
Ainda há muito que comentar, mas aqui está o começo. Eu suspeito que ambos
ficaremos frustrados no fim por sermos limitados a três discursos. Ambos ultrapassamos
a meta de 500 palavras para este primeiro discurso. Estou satisfeito assim, caso você
esteja.
Estou ansioso para ouvir sua resposta.
Tom.
BART EHRMAN

O QUE DIZER SOBRE O SOFRIMENTO REAL?

Obrigado, Tom, pela sua profunda e interessante resposta. Eu acho que nós
percebemos o quão difícil é interagir neste tipo de fórum, onde queremos estabelecer
um debate, mas tivemos que nos limitar a breves respostas. Mas nós – você e eu –
precisamos nos adaptar da melhor forma que conseguirmos...
Você está certo. Meu objetivo não é fazer pessoas agnósticas nem com meu livro
nem com minhas respostas neste fórum. Isto porque eu não sou tão arrogante a ponto de
pensar que pessoas inteligentes precisam sempre estar de acordo comigo! Mas eu fico
pensando se você não estaria tomando uma posição semelhante, isto é, se você estaria
ou não querendo dizer que você também não está interessado em converter pessoas para
sua maneira de pensar ou acreditar.
Eu estou especialmente surpreso que você tenha considerado que um apelo a
emoções não seja digno de debate, ou seja, irrelevante às questões da dor e miséria no
mundo – como se a pura lógica (ou exegese!) fria fosse a única coisa necessária para
lidarmos com o problema do sofrimento. Sua visão me ataca como uma posição pós-
iluminista única e característica de um ramo particular do protestantismo moderno, e eu
devo dizer, em minha opinião, esta é uma postura completamente inapropriada. (Eu sou
influenciado, nesta questão, particularmente, pelas posições “antiteóricas” de Therence
Tilley e Kenneth Surin, que eu recomendo a todos que não se importam em ler leituras
um pouco mais pesadas sobre estas questões importantes.) A questão do sofrimento
humano não é um problema lógico ou um tipo de equação matemática que precisa ser 14

resolvido. É um problema humano que exige empatia, simpatia, envolvimento


emocional e ação.
Você pergunta se eu suspeito que você e outros como você não estariam cientes
da dor e da miséria no mundo. Não, eu acho que você sabe disto. Mas, pessoalmente, eu
sou totalmente contra uma abordagem para o sofrimento que pensa que a agonia
humana precisa ser vista distante do engajamento intelectual destas “questões”. Uma
coisa é pregar no púlpito de marfim da academia ou da catedral sobre a usurpação do
Reino de Deus, outra é sentar do lado de uma criança morrendo de fome em Darfur e
falar do propósito glorioso de Deus para este mundo. Durante o tempo que eu gastei
para escrever esta resposta para você, cerca de 30 mil morreram desta forma –
morreram terrivelmente por inanição – no mundo. Certamente você não está defendendo
que, ao lidarmos com este problema, nós devemos ser imparciais em relação a esta dor e
miséria e, ao invés disto, falarmos racionalmente sobre a exegese da carta de Paulo aos
romanos. Eu pelo menos *espero* que você não esteja dizendo isto (embora pareça ser
isto que você esteja dizendo), porque isto me parece desumano, e eu sei (uma vez que te
conheço) que você não é desumano.
Quanto à substância de sua resposta eu também fiquei um pouco atrás com sua
afirmação de que minhas visões do apocalipsismo estão de algum modo fora de época.
Eu não sei o que você tem em mente, já que você não diz, mas eu considero o estudo de
profecias antigas uma das áreas do meu conhecimento acadêmico; eu tenho lido e
estudado literatura apocalíptica pelos últimos 30 anos e tenho, acredito, um bom
conhecimento neste campo.
Desta forma, seu comentário improvisado de que meus pontos de vista estão de
alguma forma antiquados me parecem retóricos e sem substância. Ainda assim eu me
interessaria em ter uma discussão séria, caso queira me dizer onde você acha que eu
entendi errado.
Eu devo dizer, neste contexto, que eu não acho que o pensamento apocalíptico
esteja, de um lado, em radical descontinuidade com a profecia de alguém ou, por outro
lado, que ele deveria ser dispensado (estas parecem ser duas objeções que você sustenta
em relação ao meu ponto de vista). Visões apocalípticas, com certeza, surgiram a partir
de visões proféticas – em grande parte por causa das drásticas deficiências da insistência
profética de que o sofrimento chega ao povo de Deus porque Ele está punindo este povo

por causa de seus pecados: se está é a razão para o sofrimento, por que então as pessoas
sofrem quando elas seguem Sua vontade? A resposta apocalíptica provê uma
explicação. Para os apocalipsistas, são os inimigos cósmicos que estão causando o
sofrimento. Este é o período na história de Israel em que os pensadores judeus
começaram (ao contrário dos profetas clássicos) a considerar a hipótese da existência do
Diabo, demônios e outros poderes do mal que se opunham a Deus. E como você sabe,
por ter lido meu livro, eu não sou de todo antipático com esta visão. Esta foi a visão que
eu acreditei por muitos anos como um cristão, e se eu ainda fosse um cristão, eu
continuaria a abraçá-la.
Sim, eu li sua discussão da Bíblia hebraica e Abraão, e eu a considerei não
persuasiva e inadequada. A explicação para isto, possivelmente, é que você quis
escrever um livro simples e curto e então teve que simplificar suas visões. Em seu livro
sobre o mal você trata a Bíblia hebraica como se ela fosse uma narrativa contínua
escrita por um único autor com um tema geral (sendo Abraão o suporte principal da
história). Não é assim! A Bíblia hebraica nem um pouco mais do que o Novo
Testamento, ou mesmo a literatura evangélica do Novo Testamento, representa o ponto
de vista de um único autor. A Bíblia é gloriosamente rica, diversa e contextualizada.
Diferentes autores bíblicos escreveram em diferentes épocas, em situações diferentes e
para públicos diferentes, e eles tem diferentes perspectivas e pontos de vista, muitos
deles completamente contraditórios uns aos outros. Eu sei que você sabe disto. Mas por
que você age, fala e escreve como se fosse o contrário? Sua narrativa síntese do texto
(tanto em relação à Bíblia hebraica quando aos Evangelhos) é exatamente o que eu
tenho tentando corrigir em meus alunos durante a maior parte de minha carreira. As
narrativas da Bíblia hebraica incorporam inúmeras fontes, com várias perspectivas que
algumas vezes são contraditórias, em termos de perspectivas teológicas, umas às outras
(sobre o problema do sofrimento, por exemplo). Tudo isto está completamente perdido
em seu relato “da” história da Bíblia, tendo Abraão como o pivô que conduz a história
para Isaías 11 (e assim por diante).
Concluindo, eu acho que o que mais me surpreendeu foi que você não lidou na
verdade com o problema do sofrimento em seu discurso de abertura. Você se escondeu
atrás da idéia de que você tem alguma explicação teológica para tudo isto. Mas você não
indicou que explicação é esta. Eu gostaria de ouvi-la. Meu ponto de vista é que é

impossível explicar a dor e a miséria sobre nós – as milhões de crianças na África


morrendo de AIDS e malária, as outras milhões de crianças que estão morrendo ao
serem forçadas a beber água contaminada, os incontáveis desastres naturais (furacões,
tsunamis, secas, fome) – se existe um Deus bom e todo poderoso governando o mundo.
N. T. WRIGHT
O QUE O MUNDO PARECE QUANDO DEUS ESTÁ NO COMANDO?
Obrigado, Bart, pela sua resposta e novo discurso. Eu suspeito que nós fizemos
algumas lebres correrem na mente um do outro, mas que não terão tempo de serem
perseguidas. Eu penso que a questão da definição e descrição do que é apocalíptico é
uma destas lebres; nós podemos falar sobre isto outra hora talvez...
Mas eu gostaria de começar onde você terminou, sobre a questão-chave do seu
livro.
(E, obviamente, eu estou muito ciente da importância das emoções dentro do
conjunto do debate, e não quero de forma alguma reduzi-lo à lógica fria; mas se alguém
está apresentando um argumento, então multiplicar os exemplos do problema na
verdade não acrescenta força alguma ao argumento.)
A questão é, como pode haver todo este horror “se existe um Deus bom e todo
poderoso governando o mundo?” Meu comentário, em minha declaração anterior, era
que nos Evangelhos, a afirmação de Jesus era, “É assim que as coisas se parecem
quando Deus está no comando do mundo” (uma maneira de dizer “o reino de Deus está
próximo”). É claro que eu estou ciente das diferentes ênfases e nuances entre os
Evangelhos, mas em suas diferentes formas eles concordam, eu penso, sobre isto: que
tudo aquilo que estava acontecendo durante a carreira pública de Jesus era a
inauguração de uma nova forma de “Deus estar no comando do mundo”. (Neste ponto, a
despeito de suas várias ênfases, os evangelhos canônicos concordam ao contrário dos
não-canônicos, você não acha?)

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