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Ano 9 | 2011 | Janeiro · Fevereiro · Março · Abril

DISTRIBUIÇão gratuita
f a c e a f a c e

olhar f

Diva, fotografada por Chico Canhão, na década de 80.


eminino
por Mário Ivo Cavalcanti

Ada, fotografada por Ney Douglas, em 2010.


Reunir Diva Cunha e Ada Lima em uma mesma conversa é coincidir
duas trajetórias, poéticas e profissionais, que a distância gera-
cional só aproxima. Enquanto Ada, aos 25, parte para seu segundo
livro, Diva já publicou seu quinto de poesia, que vem se juntar a ou-
tros quatro na área de crítica e pesquisa literária. Enquanto Diva
se dizia “da pá virada/ a da vida torta”, em sua estréia tardia, Ada, à
época com dois anos, se definiria depois, e igualmente estreante,
como uma “menina gauche”. Não à toa, ambas recorrem à loucura
para descrever seus inícios acadêmicos – Ada, apenas entrando no
Mestrado; Diva, aposentada da UFRN e ainda mergulhada em leitu-
ras, pesquisas, estudos, e de volta às salas de aula, em um eterno e
saudável recomeço.

DIVA Como não sou disciplinada, enchi DIVA Meu curso de Letras pegou o
o meu dia de aulas, estou assim, pareço auge da confusão. Além das grandes
uma estudante, não saio do CEFET. bandeiras nacionais, aqui tinha também
o problema específico da Faculdade de
ADA Eu saí do jornal justamente pra
Filosofia, Letras e Artes, que era esta-
poder me preparar para a seleção do
dual e queria ser federalizada. E eu, da
mestrado.
esquerda festiva, perdia meu tempo fa-
DIVA Mas você é formada em Letras ou zendo barulho. Fui estudar quando pas-
Jornalismo? sei no concurso e me vi diante de qua-
tro turmas pra ensinar. Foi duro, mas foi
ADA Eu me formei em Jornalismo em
bom. No início dos anos 70, quando o
2004, Letras em 2010 e ingressei agora
mestrado chegou ao Brasil, eu, deses-
no Programa de Pós-graduação em Es- Formatura em Letras, 2010: Ada.
perada, decidi sair. Houve um seminário
tudos da Linguagem da UFRN, na área
na Academia Norterriograndense de Le-
de Linguística Aplicada.
tras sobre Literatura Brasileira e trouxe-
DIVA Eu tinha 23 anos quando come- ram Gilberto Mendonça Teles, que me
cei a ensinar, e de cara me deram qua- encaminhou para um mestrado na PUC,
tro turmas. O curso de Letras tinha sido no Rio de Janeiro. Foi importantíssimo
federalizado, era um dos grandes em- na minha vida, foi quando eu conheci os
pregos da época, todo mundo querendo professores que estavam na onda – Sil-
ser melhor – e eu fiquei louca. Só vivia viano Santiago, Cleonice Berardinelli...
pra estudar. Larguei Jornalismo e fui en- Pra quem vive aqui é preciso sair...
sinar Literatura Portuguesa. Hoje, quan-
ADA Você terminou o mestrado e voltou
do faço uma retrospectiva, reconheço
logo pra Natal?
que aprendi Literatura com a Literatura
Portuguesa, que por sua vez aprendi DIVA É. Tirei licença de três anos, de-
ensinando. Eu não tinha sido uma boa fendi a tese e voltei pra cá. Nesse ínte-
aluna. Foi a época das greves, 68, eu rim, minha vida mudou: no terceiro ano
vivia fazendo discurso em cima das me- eu estava grávida e fiquei viúva. Esse
sas, estudar que era bom... período também foi muito importante
porque foi no Rio que eu conheci minha
ADA Eu já era o contrário, nunca me en-
parceira intelectual, Constância Lima
volvi com o movimento estudantil.
Duarte. O professor Waldson Pinheiro
DIVA Sim, mas você viveu outros tem- era o chefe de departamento, e como
Arquivo pessoal

pos, as coisas estão frias. a UFRN estava crescendo, me pediu


para que eu indicasse alguns colegas
ADA A última greve que eu peguei foi
para o cargo de professor visitante. Mas
quando eu fazia Jornalismo, 2000, 2001,
ninguém quis, porque Natal era uma vi-
uma greve que durou três meses.
lazinha. Em 78 isso aqui era uma beira xonando pela área de Linguística e não trar na Literatura do RN, eu senti um
de praia, era uma delícia, mas ninguém larguei mais. Atualmente estou com um prazer, uma alegria tão grande... Tanto
queria ficar num lugar que não era um projeto sobre Quadrinhos, a construção assim que a proposta inicial da minha
centro de irradiação. de sentido no gênero. tese de doutorado – eu fiz os créditos e
a qualificação na Espanha – era inspira-
ADA Não tinha tradição nenhuma em DIVA Esses interesses a gente vai des-
da em Câmara Cascudo, no estudo dos
pesquisa. pertando aos poucos. Eu sempre gostei
temas espanhóis na Cultura Brasileira,
de Literatura, sempre fui apaixonada,
DIVA Nada. Eu falei com Silviano e ele que ele propõe no prefácio de uma edi-
desde menina que vivia agarrada com
disse “e os seus amigos?” – meus ami- ção do Dom Quixote. Cheguei a conver-
os livros, e quando entrei para a vida
gos eram Constância e Eduardo Duar- sar com Manoel Onofre Jr., com Marcos
acadêmica fui levada para a Literatura
te – e eu disse “mas eles também não Silva, mas quando apresentei ao orien-
Portuguesa. Quando eu comecei a en-
querem”. “Mas como? Eles precisam tador, ele começou a cortar, cortar, cor-
ao menos conhecer”. Aí eles vieram. E

foto Arquivo pessoal


foi muito importante, porque fizemos
uma parceria, eu e Constância, pri-
meiro em Literatura Portuguesa e de-
pois passamos para a Literatura do Rio
Grande do Norte.
PREÁ Quando começou esse interesse
pela Literatura Potiguar?
DIVA Interesse eu sempre tive, mas não
tinha livro, não tinha nada, alguém fazia
uma conferência, você corria para as-
sistir. Tarcísio Gurgel, na apresentação
da Informação da Literatura Potiguar,
conta como eu, participando de uma de
suas palestras, pedi “Tarcísio, pelo amor
de Deus, escreva, escreva o que você
sabe”. Foi um interesse que foi crescen-
do. Eu convivia muito com Vicente Se-
rejo e ele já naquela época tinha aquela
preocupação de colecionador e me pas-
sava algumas coisas. Constância, por
outro lado, resolveu que o tema do seu
doutorado seria Nísia Floresta e come-
çou a procurar material para ver se justi-
ficava... então, nós fomos descobrindo,
procurando, mas foi uma dessas coisas
que acontecem, a onda...
PREÁ Uma onda que vocês criaram...
DIVA Sim, mas esse vocês não somos
só eu e Constância, tem mais gente.
Hoje, a gente vê pessoas como Ana
Laudelina lançando um livro sobre Auta
de Souza em São Paulo.
ADA Eu não vou mentir: eu conheço
muito pouco da Literatura daqui, tenho
até vergonha de falar.
DIVA Mas não tenha, não, você é no-
vinha...
ADA Quando eu entrei no curso de Le-
tras, meu interesse maior era Literatura,
especialmente Fernando Pessoa, que
é minha grande paixão. Fui me apai- Formatura em Letras, 1969: Diva e Djair Dantas.
tar, à maneira do europeu que diz que

foto Arquivo pessoal


não pode ser amplo assim...
ADA ... tem que ter um foco...
DIVA Corta isso, corta isso, corta isso,
terminou só “A festa de São João” – resul-
tado: perdi o interesse, achei que tinha fi-
cado muito limitado. Foi quando optei por
estudar uma revista de Cultura Brasileira
que a embaixada publica na Espanha.
PREÁ Você fez o estudo também da
Via-Láctea [revista feminina/literária, de
Palmyra e Carolina Wanderley, publica-
da no RN entre 1914 e 1915].
DIVA Mas nós fizemos apenas a intro-
dução à edição fac-similar. Não é um
estudo aprofundado. A Via-Láctea dá
dissertação e tese.
PREÁ A propósito, existe uma Literatura
Feminina?
ADA Literatura. Ponto. Não gosto da
divisão, “feminina”, “potiguar”. Literatu-
ra boa é universal: você escreve e em
qualquer canto do mundo alguém se
toca, alguém se arrepia.
DIVA Mas isso é o bonito de se dizer. Na
verdade a gente sabe que não funciona,
aqui, na prática, na prática...
ADA Na academia, principalmente.
DIVA Você sabe disso. Eu também acho
que Literatura boa é universal, mas se
a gente não estudar o autor potiguar,
quem vai estudar? Quem? Se o melhor
que a gente tem, que foi Jorge Fernan-
des – melhor no sentido do contexto da
época – não chegou lá fora... Cada es-
tado vai valorizar o seu, ele até valoriza
o outro, mas primeiro ele valoriza o dele.
Agora, nós precisamos da crítica. Já ti-
vemos, não temos mais. Mas dizem que
no Brasil não existe crítica...
ADA Eu ia dizer isso.
DIVA ... os jornais fazem apenas resenha...
ADA ... se brincar, sem nem ter lido o livro.
PREÁ E Ada, que começou a escrever
na época da internet, sente que a sua
poesia é mais facilmente lida lá fora?
ADA Cara, ninguém lê o que eu escrevo!
[risos] Eu sou ruim demais de divulgação
e não tenho disciplina para alimentar o
blog [www.meninagauche.blogger.com.
br]: o meu tem uns dois meses sem no- Diva, aos 17, carnaval em Recife.
“Eu também
acho que
Literatura boa
é universal,
“Literatura boa é mas se a gente
universal: você escreve não estudar
e em qualquer canto do o autor
mundo alguém potiguar, quem
se toca, alguém se vai estudar?
arrepia.” Quem?”

vidade. Até porque eu não tenho parado PREÁ Mas, por ser a vida profissional não concordo com aquela regra de 5%
para escrever. Começou essa seleção mais urgente, mais necessária, do que de inspiração e 95% de transpiração.
do mestrado, eu comecei a enlouque- a vida de, digamos, poeta, o ato de
ADA Eu concordo.
cer. Ficou blog, ficou livro, tudo lá, de escrever não termina ficando em se-
lado. O livro estava praticamente pron- gundo plano? DIVA Eu não concordo, não. Senão todo
to, ainda bem. mundo estava escrevendo. Existe algu-
ADA Escrever é trabalhoso, não é acor-
ma outra coisa, existem mais coisas.
DIVA Como é o nome do seu novo li- dar e ter uma idéia, a ser desenvolvida
Existe aquele desejo de colocar aquilo
vro? por uma “entidade” – Fernando Pessoa
no papel, de ser lido, de expressar...
diz que escreveu de uma vez mais de
ADA Águas. Agora, que pede, sim, muita leitura,
30 poemas, de pé, sobre uma cômo-
muito trabalho, muita dedicação.
PREÁ Vocês duas são da área acadê- da: beleza, ele era genial, gente comum
mica e são poetas – como é conciliar como eu não faz isso. Eu preciso de um PREÁ E existe, antes de tudo, uma for-
esses dois labores? pouquinho de ócio pra sentar, escrever ma diferente de ver o mundo – e a poesia
e trabalhar um poema. de vocês tem muito disso. Ada já falou
DIVA Eu penso que foi o fato de ter sido
que não acredita em “poesia feminina”,
professora de Literatura que me ajudou DIVA Mas às vezes não significa que
mas existe uma forma diferente...
muito. A Poesia Portuguesa é de um ri- você vai saber usar o muito tempo que
gor muito grande e só me apurou, buri- você tem disponível. Eu estou num mo- DIVA Eu acredito.
lou e me mostrou que eu não era nada mento da vida diferente da sua e posso
ADA Não é que eu não acredito: eu não
excepcional, não. dizer que tenho todo o tempo pra mim,
gosto da maneira que as pessoas querem
sou eu quem ocupo meu tempo. Mas
ADA O bom da academia é que você separar, botar as coisas em gavetas.
sou eu que me matriculei em não sei
acaba encontrando muita gente interes-
quantas aulas e estou agora correndo DIVA Inclusive às vezes para desvalorizar.
sada em Literatura, em leitura em geral,
de um lado pra outro. Já me perguntei:
você troca idéias, às vezes você escre- ADA Isso.
eu transformei minha vida num entra-e-
ve uma coisa, passa pra outra pessoa, e
sai, estou fugindo de quem? De mim. DIVA Existe: porque eu sou mulher, por-
ali dentro você recebe um comentário,
De mim mesma. De sentar e estudar que eu fui criada de um modo... vou co-
um incentivo – e isso só ajuda.
– estudar que eu digo é ler. Porque eu meçar pela minha história: eu era a mais
DIVA Fora, você não sabe de nada. Infe- acho que a gente só escreve... velha de cinco irmãos, todos os quatro
lizmente a coisa está assim: você publi- homens. Mamãe tinha uma lei pra mim
ADA ... se você ler, claro.
ca um livro, sai uma matéria, seu retrato e outra pra eles – como é que eu vou
no jornal, alguns segundos na televisão, DIVA Às vezes eu digo aos livros na es- ser igual a eles? Eu até queria, só queria
depois aquilo ali... tante: não falem comigo, pelo amor de brincar com eles – de caubói, e como eu
Deus! Porque se eu começar a ler, não não morria nunca, eles me expulsavam.
ADA ... morre. Eu acho que lá dentro
paro mais. E realmente é muito bom, Mas, era um mundo pras mulheres e um
você tem mais facilidade pra divulgar,
mas é muito forte, mexe muito. Eu não mundo pros homens. Pode ser até que,
pra trocar uma idéia.
sei como você se sente, Ada, mas eu agora, para as meninas das gerações
mais novas, seja diferente. Mas eu fui
criada de outra maneira, e esses anos paraibano que viveu em Natal]. Esse ca-
foram fundamentais na minha vida. O derno rodou na Fundação José Augusto
mundo das mulheres era outro mundo. e disseram que iam publicar – mas não
Os meninos podiam ficar na rua, soltos, publicaram e me devolveram, e eu dei-
eu não podia – começa por aí. Agora, eu xei na casa de mamãe e se perdeu. Hoje
acho que a experiência feminina é algo eu me arrependo profundamente.
muito forte...
PREÁ Eram as “obras completas”...
ADA Talvez o olhar da gente seja um
DIVA Eram. Eu queria um verso: se sal-
olhar diferenciado...
vasse um verso já valia a pena. Me dói
DIVA Eu não acho que somos iguais muito, porque ali deve ter tido algum
aos homens. Eu quero os mesmos di- verso, ora, no auge da juventude, dava
reitos, mas somos diferentes deles. A pra salvar alguma coisa. Hoje eu sei cor-
mulher menstrua, a mulher engravida... tar, hoje pra escapar da minha tesoura...
Mas queremos as mesmas chances de Outro motivo para eu ter demorado a
emprego e as mesmas condições de publicar foi quando eu comecei a estu-
salário... Hoje eu ouvi duas mulheres dar Literatura Portuguesa e a achar que
conversando sobre um cara que ma- o que eu escrevia não prestava pra na-
tou a mulher e a amante. Quantos ca- da. Continuei escrevendo, porque era
sos você ouve de uma mulher matar o uma pulsão muito forte, mas escondido.
homem? A mulher ainda é vista como Quem primeiro publicou meus poemas
objeto, como posse. A cultura é machis- foi a revista Grande Ponto, de Socorro
ta e nós estamos inseridas nela. Então, Trindad. Eu lembro que ia passando no
nós vamos escrever de uma maneira di- Centro de Convivência da UFRN quando
ferente. Eu tenho lido com cuidado as Zila [Mamede] me chamou: “Diva, você
autoras potiguares e é como se a gente está escondendo o leite”. Mas eu tinha
estivesse escrevendo o mesmo texto. uma vergonha... Tanto que no primeiro
São muitas mãos escrevendo o mesmo livro, Canto de página [1986] eu venho
texto. O mesmo olhar, a mesma maneira protegida por Serejo e Luís Carlos, na
de encarar a vida. apresentação, e Eduardo Assis [Duarte],
no posfácio.
PREÁ Você lançou seu primeiro livro
tarde... ADA No meu caso o que ajudou foi a in-
DIVA Com mais de 38 anos e lá vai fu-
ternet. Eu comecei a escrever para não “Ah, meu Deus, a
perder mais o que escrevia no papel, e
maça... Quando eu fiz vestibular eu já
tinha minhas Obras completas, você
criei um blog que só eu sabia o endere- palavra, como dá
ço. Mostrei para um amigo, que mostrou
imagine... um cadernão com uns 300
para outro, que também tinha um blog, trabalho, como
poemas, aos 18 anos.
ADA Os meus eu dei fim a eles: aos 13
que foi lido por um colega que deu uma dói às vezes fazer
notinha no jornal... aí o meu pai [o poeta
anos de idade eu joguei tudo fora. Adriano de Sousa], que não sabia que um poema.”
eu escrevia, descobriu meu blog assim,
DIVA E esse cadernão já era o resultado
e como na época ele estava criando a
de milhões de caderninhos, de papei-
editora Flor do Sal, um dos três primei-
zinhos, milhões de coisas que mamãe
ros livros publicados foi o meu. Agora,
mostrava para a rua to-di-nha – o pior
quando eu pego esse primeiro livro às
era isso.
vezes eu tenho vergonha de umas coi-
ADA Os meus eu escondia, ninguém sas – “meu Deus, eu não teria escrito
nem chegou a ver. isso assim, isso não está legal...”
DIVA Eu desenhava, ilustrava, escrevia DIVA Mas vai ser assim a vida toda. Se
as historinhas. Quando eu estava no você soubesse o corte que eu dei em “às vezes eu digo
colégio, era muito amiga de uma prima Resina. Hoje eu me arrependo. Paulo
de Lêda, mulher de Luís Carlos Guima- de Tarso [Correia de Melo] disse: “Não aos livros na
rães, e ainda estudante eu frequentava faça isso!” Marize, que editou: “Eu,
a casa deles, conversava muito com você, não fazia”. Quando eu descobri estante: não falem
ele. Quando entrei na faculdade, mos- o tal do enxugar o texto... agora eu
trei o caderno a Luís Carlos, que passou quero enxugar, quero enxugar...
comigo, pelo amor
para Eulício [Farias de Lacerda, escritor de Deus!”
ADA Eu tenho mania de enxugar desde

foto Giovanna Hackradt


sempre. Os poemas têm dois versos,
três, quatro, é só retalhando...
DIVA José Bezerra Gomes, quando Luís
Carlos organizava a sua antologia, todo
dia ia na Fundação José Augusto e cor-
tava um verso [ver artigo e poemas a
partir da página 86]. Vira mania. Quando
Vilma Arêas veio passar um verão aqui,
na Redinha, ela me aconselhou muito a
cortar – foi fundamental para meu pri-
meiro livro. Eu não sabia cortar e ela
mesma meteu a tesoura. Mas a gente
não pode cortar demais senão os poe-
mas perdem o nexo.
ADA No meu caso eu me arrependo quan-
do vejo os excessos de alguns poemas.
PREÁ Essa é mais uma coincidência na
poesia de vocês: poemas curtos. Quan-
to ao tema, percebe-se em Diva um cer-
to ar doméstico, a casa é...
ADA ... muito presente.
DIVA Mas, a casa pode ser uma metáfo-
ra, é só uma metáfora.
ADA Mas a figura da casa está sempre lá.
PREÁ Vocês também coincidem na re-
flexão do fazer poético. Há uma autore-
ferência, da poeta, da poesia, no pró-
prio poema.
ADA É uma angústia permanente, isso.
DIVA A poesia brasileira, como um todo,
tem essa consciência. Desde o final do
século 19, desde o Simbolismo... a pró-
pria Auta de Souza (eu sou apaixonada
por Auta) tem um poema onde diz que
procurava nos seus olhos apenas mo-
tivo para escrever versos. Essa cons-
ciência é muito forte, e se a gente não
tivesse, agora, um século depois...
ADA ... tem que ter...
DIVA ... saber que é um trabalho com
a palavra.
ADA Existe também um quê muito forte
de autocrítica, de nunca ficar satisfeito.
É um traço meu, do meu comportamen-
to, da minha personalidade, que acaba
se refletindo na minha atividade como
poeta. Você escreve, acha que não
está legal, vem aquela angústia – ah,
meu Deus, a palavra, como dá trabalho,
como dói às vezes fazer um poema. Às
vezes você evoca coisas que estão lá Ada, aos 27, em Natal.
Diva estreando em sala de aula, 1971: primeiro lugar no concurso da UFRN.

foto Arquivo pessoal


dentro que você não lembrava mais e ADA E aí você precisa escrever, pelo ADA ... um impulso, uma vontade, uma
aquilo vai fluindo... menos é o que acontece comigo... lembrança...
DIVA Mas é um fenômeno muito forte, DIVA ... uma pessoa que eu nunca pen- DIVA ... é uma paixão fortíssima, mais
né? Lá estou eu tomando a palavra... sei que eu pensasse nessa pessoa. forte que você, tudo na sua vida. Embo-
Como na época eu estava numa “dis- ra você fuja dela como o diabo da cruz.
ADA Pode falar, fique à vontade...
cussão” com João Cabral de Melo Neto, ADA Ela persegue você.
DIVA Tenha cuidado comigo: eu sou sa- estudando sua obra, escrevi o poema,
gitariana – qual é o seu signo? “arremedando João Cabral”. [recita o DIVA Porque ela lhe trucida. Porque
poema “D. Maria Cândida”, que termina você não tem hora, não tem dia, não
ADA Canceriana.
com os versos “de que vivia/ velha se- tem nada... eu tenho consciência que eu
DIVA [risos] Eu gosto dessas coisas, nhora/ que volta a viver/ fora de hora?”] fujo muito de escrever. E agora eu estou
viu? numa entressafra. O refluxo da maré.
ADA Eu lembro desse poema. Eu li o
ADA Canceriana com ascendente em Áries. Resina há uns quatro meses... ADA A minha já dura meses.
DIVA Mas é um fenômeno incrível. Um DIVA Eu devo ter feito umas correções, DIVA Eu também – esse livro [Resina]
dia eu estava trabalhando na tese, de cortado alguma coisa, mas saiu quase levou muito de mim.
castigo, no birô, e, sem mais nem me- do jeito que eu escrevi no momento – ADA É engraçado isso: quando nasce
nos, me chega, como se eu estivesse eu queria ser pintora pra pintar aquela um livro, você precisa de um tempo pra
vendo, uma figura que eu conheci quan- imagem maravilhosa que me surgiu: aí, se recuperar.
do eu era menina. escrevi. Já esse outro, “Mãe Ninha”, eu
levei uns cinco anos escrevendo. Por DIVA É como se fosse ainda a época de
ADA Nossa. De vez em quando acontece.
isso que, se não se quer usar o nome amamentar o filhote. [risos] Eu também
DIVA Foi um negócio tão forte que eu “inspiração”, porque todo mundo con- queria escrever outras coisas.
comecei a ver aquela mulher, que deve dena por ser usado facilmente, mude-se
ter morrido há uns 40 anos... o nome: não é inspiração – é um desejo,
uma paixão...
“Eu preciso de ADA Eu durante um tempo escrevi ar- PREÁ Quais poetas vocês lêem?
tigos, mas tenho mais dificuldade em
um pouquinho escrever em prosa.
ADA Manoel de Barros é o primeiro
nome que me vem – adoro. Tenho lido
de ócio pra DIVA Mas são tão boas aquelas crôni- também José Paulo Paes, Ana Cristina
cas do Novo Jornal... Quantas você pu- Cesar, Eliot, Borges... Eu não conhecia
sentar, escrever blicou? Borges até entrar no curso de Letras
e sou eternamente grata ao professor
e trabalhar um ADA Acho que umas dez.
Francisco Ivan, que me apresentou. Mas
poema.” DIVA Por que não vai sair nesse novo quando me perguntam de um poeta, o
livro? Já está pronto? nome é Manoel de Barros, aquela coisa
de ver nas coisas simples, do dia-a-dia,
ADA Já. São só poemas.
uma beleza...
DIVA Mas no próximo coloque também
PREÁ E sua poesia tem muito pouco a
as crônicas, os textos são bons. Acho
ver com a dele...
que você tem jeito. Eu tenho uma ambi-
ção, pela prosa, uma vontade, que não DIVA É isso que eu ia dizer.
seja apenas teorizar sobre mulher e Li-
ADA Não tem nada a ver. Mas eu adoro.
teratura, Literatura do RN...
PREÁ A sua tem muito a ver com a de
ADA A gente já teoriza tanto na universi-
“É uma paixão dade, tem que ter um escapezinho...
Diva, e vice-versa. Por exemplo, a pre-
sença do homem...
fortíssima, mais DIVA Se fala muito que aqui só tem poe-
ADA ... não como gênero.
ta, não tem prosador, mas não acho que
forte que você, seja uma vocação só do RN. Quem são PREÁ Como gênero masculino, sim.
embora você fuja os prosadores, de hoje, por exemplo, do
ADA Ah, é verdade, tem uma coisa ou ou-
Ceará, que você conhece? Deve ter.
tra. A pessoa escreve um livro e não lembra
dela como o diabo ADA Mas está escondido. mais o que fez, é uma vergonha. [risos]
da cruz.” PREÁ Fica tudo muito regionalizado. E PREÁ Esse, por exemplo, lembra muito
o centro continua sendo São Paulo e Diva: “Ele me levou tudo// das palavras
Rio. Ou autores que migraram pra lá. escondidas/ às roupas no varal//”...
DIVA Como migraram todos os pernam- ADA ... “Sutil/ como um serial killer.” Eu
bucanos, Manuel Bandeira, João Cabral nem lembrava mais desse...
de Melo Neto.
DIVA É aquilo que eu disse: como as
ADA Também porque as grandes edito- mulheres conseguiram escrever e publi-
ras estão lá... car, apenas recentemente – isso é uma
vitória da metade do século passado
DIVA ... e os jornais.
para cá –, estamos indo na mesma dire-
ADA Parte da crítica, a mídia mais forte ção, embora Ada seja muito mais nova
está lá. do que eu.
PREÁ Entre os poetas potiguares talvez ADA Você não falou dos seus poetas...
quem tenha tido mais destaque foi Zila
DIVA Manuel Bandeira. Quando você
Menina gauche: a estréia de Ada. Mamede.
falou em Manoel eu pensei “será que é
DIVA Sim. E veja que Zila publicava o meu?”. Não, não era o meu Manuel.
muito nos jornais do Recife, onde fez Bandeira foi uma paixão de infância...
muitas amizades... Cecília Meireles (minha filha se chama
Cecília)... a poesia brasileira como um
PREÁ O próprio João Cabral...
todo. Li demais os românticos...
ADA Sim, mas João Cabral foi mais tarde.
ADA Nossa, os românticos! Minha pri-
Na década de 50 era mais o pessoal do
meira experiência com poesia foi jus-
Recife, mesmo. Ela escreve pra Manuel
tamente através de uma coleção de
foto Fábio Farias

Bandeira, vai ao Rio, onde conhece Ban-


autores românticos, as três gerações,
deira, que interfere na obtenção de uma
uma encadernação linda, dourada, mi-
bolsa de estudos para cursar Biblioteco-
nha avó guardava lá no alto da estante...
nomia. Era uma mulher muito articulada.
Casimiro de Abreu, Castro Alves...
DIVA Comigo também, poesia brasileira de aprender para ensinar. Até hoje sou não fico esperando louros da crítica.
e também nessas edições antigas: eu lia impressionada com Fiama Hasse Pais Fico mais feliz quando alguém mais
tanto – era muito marcada a contagem Brandão, uma portuguesa... Sophia de próximo é sincero e diz se gostou ou
das sílabas, né? – que eu acordava fa- Mello Breyner... Mas tem que ler mais, não gostou.
zendo versos e contando sílabas. traduzir: quanto mais estudar, melhor. E
PREÁ Mas enquanto acadêmicas, vo-
sem esperar muita coisa, fazer simples-
ADA Nos seus primeiros poemas tinha cês esperam de, no futuro, ter a obra
mente nosso ofício.
uma influência do que você lia? Porque estudada, reconhecida?
com 12, 13 anos, eu lia os parnasianos e PREÁ Você está falando de reconheci-
ADA Acho tão distante isso.
tudo que eu escrevia tinha de ter quarte- mento? Incomoda não ter o reconheci-
tos, tercetos, rimas, senão eu não ficava mento? DIVA [risos]. Acho que a minha já está
satisfeita. sendo estudada, já aconteceram al-
DIVA Incomoda. Às vezes a gente vê re-
guns seminários... E eu não vivo pra
DIVA Tinha. É um exercício importante. senhas muito boas nos jornais nacionais
isso. Meu sonho maior é reescrever
Mas meus mestres – até porque eu não e quando vai ler o livro: meu Deus, aqui,
Palmyra Wanderley.
lia em inglês, e só um pouquinho em no estado – não só eu – estamos fazen-
francês – eram todos da poesia brasilei- do coisa, talvez, melhor. Aí eu digo: tudo PREÁ O Roseira brava? Como seria
ra, e, depois, já ensinando na universi- bem, escrevo porque é o que me toca. essa reescritura?
dade, os portugueses.
ADA Talvez por eu ser muito na mi- DIVA Pegar os poemas, antropofagica-
ADA E Fernando Pessoa, pelo amor de nha, por ser muito bicho-do-mato, mente devorar e devolver. Ela escreve
Deus, tinha esquecido! eu não ligo muito que não me leiam, sobre Natal quando era uma coisinha,
que não saibam quem eu sou. Talvez uma cidadezinha nas dunas. Quando me
DIVA A Literatura Portuguesa como um
daqui a alguns anos isso mude. Se dá um desespero olhar para essa cidade
todo é uma literatura de qualidade – o
eu continuar escrevendo... cimentada, amuralhada, eu corro pra ler
que eles têm de pequeninho, uma tiri-
Palmyra. Ela não teve uma crítica, a orien-
nha de terra, no final do continente... DIVA Espero que sim.
tá-la, a sugerir cortes, arrumar melhor –
Enquanto os autores brasileiros foram
ADA É bom você saber que de algu- acho desarrumada a sua poesia.
lidos quando eu era jovem – por deleite,
ma forma tocou alguém. Que alguém
por prazer –, a leitura dos portugueses PREÁ E Ada? Algum sonho, alguma
leu seu poema e se arrepiou. Mas,
veio acompanhada dessa exigência, vontade?

“Apenas deságüe em mim

e faça surgir/

um coração/ em meu ventre.”

ADA LIMA
ADA [demora a responder]. Escrever DIVA Primeiro por que ele é homem. conseguiam publicar. Lygia Fagundes
melhor do que eu escrevo hoje. Eu nun- Telles conta uma história interessante:
ADA [risos] É. Isso já é uma característi-
ca estou plenamente satisfeita. Esse se- no século 19 as mulheres escreviam,
ca bem diferente. Eu até fiquei lisonjea-
gundo livro é mais maduro, coeso, do escondido, e quando morriam pediam
da quando descobri que ele lia o que eu
que o outro. E tenho certeza de que da- pra botar o caderninho de versos dentro
escrevia, e gostava.
qui a um ano, dois, eu vou querer fazer do caixão. Uma coisa tão delas, tão ínti-
um melhor. PREÁ Quem escreve sempre passa por ma, que não podiam mostrar a ninguém.
um momento em que descobre alguém Isso me comove muito. De repente as
PREÁ Diva está na fase de olhar pra
que acha tão bom que se sente até inti- mulheres estão aí, escrevendo até mui-
trás, de rever o que foi escrito.
midado em continuar escrevendo... tas coisas fortes, abrindo o coração. Me
DIVA Quando eu fui homenageada, jun- sinto irmanada com todas. A boa poesia
ADA Comigo nunca aconteceu.
tamente com uma poeta portuguesa em como um todo, como Ada disse, é uni-
um seminário realizado aqui em Natal, e DIVA Quando eu fui trabalhar com a versal. Mas neste momento específico
disse que não tinha nada novo, me su- Literatura Portuguesa, quando conhe- estou pensando nessa movimentação
geriram uma antologia. Mas eu saí ca- cei Fiama Hasse, eu passei por isso. Já das mulheres em busca de uma voz, de
tando e descobri uns 80 novos poemas, com Cecília Meireles foi diferente: ela um lugar na sociedade.
além dos três primeiros livros esgota- me levou a escrever. Ler um bom poema
ADA E eu preciso lê-las.
dos. O resultado está em Resina. tanto pode levar a procurar escrever tão
bem, quanto também a se retrair – “nun- DIVA Pode ter certeza: porque você vai
PREÁ E ser filha de poeta, Ada, interfere
ca vou chegar a ele”. se encontrar e se superar. Pra concluir,
na sua produção?
só dizer que a poesia está viva, viva a
PREÁ Pra concluir...
ADA Não. Eu admiro muito a poesia poesia.
dele, é uma referência pra mim, mas DIVA Termino por onde comecei: falan-
ADA Amém.
tenho consciência de que a minha pro- do da Literatura do RN, desse grupo de
dução é muito diferente. Às vezes acon- mulheres. É muito interessante quan-
tece uma comparação, “ah porque ela é do você olha pra trás e vê que há cem
filha de Adriano”, “ah mas a poesia dela anos as mulheres não escreviam, não Mário Ivo Cavalcanti é jornalista e edi-
é diferente”... publicavam, ou, quando escreviam, não tor da Preá.

“Homem bicho frouxo/ passa pelo mundo sem tilar/

sujou as mãos/ corre pra lavar//

imagina o homem/ quatro dias e aquele sangue/

aquele cheiro impregnado nas paredes da casa//

imagina o mundo/ crescendo redondo/ na barriga de um macho desses//

nem nascia o novo/ nem se fundava a História”

DIVA CUNHA
o u t r a s p a l a v r a s

Pr a
fazer
a
c u l tur a
acontecer

A ressurreição da revista Preá tem signi- tratégica para reforçar, complementar e Formamos a primeira turma de 40 agen-
ficado que ultrapassa a mera retomada ampliar o papel da Fundação José Au- tes encarregados de dinamizar o fun-
da publicação. Ela sinaliza – com outros gusto na concepção e na execução de cionamento das 29 Casas de Cultura
fatos já do conhecimento público – que políticas públicas de cultura. Popular, para transformá-las em centros
a arte e a cultura deixam de ser encara- de produção e difusão artística nos mu-
Outra medida relevante foi a elevação
das como assuntos de segunda linha e nicípios, atuando junto com as escolas,
do teto de renúncia fiscal via Lei Câ-
voltam a figurar na lista de prioridades porque entendemos que a cultura é im-
mara Cascudo de Incentivo à Cultura,
do Governo do Estado. portante para resgatar a qualidade da
que passou para R$ 6 milhões por ano,
educação pública no RN. E já destina-
Artistas e produtores de cultura não 50% a mais do que a média dos anos
mos um primeiro repasse de recursos –
mais serão tratados como mendigos, a anteriores. O próximo passo na área de
R$ 960 mil – para assegurar às Casas
quem se destinam apenas as sobras or- financiamento será a criação do Fundo
de Cultura seus Pontos de Cultura sele-
çamentárias. Eles serão tratados como Estadual de Cultura, mensagem que
cionados desde 2009.
agentes sociais importantes, que pro- enviaremos à Assembleia ainda este
duzem informação e educação, diver- semestre, garantindo o funcionamento Montamos o calendário cultural do RN
são e conhecimento, lazer e reflexão para 2012 como é da Lei. e estamos elaborando a programação
sobre nós e o nosso tempo. Com direito para agosto, com uma série de ativi-
É importante destacar, além dessas
a políticas e recursos específicos, com- dades destinadas a transformar o mês
duas medidas macroestratégicas, al-
patíveis com a dimensão socioeconômi- do folclore em centro da política de for-
gumas ações pontuais que também
ca que essas atividades ocupam na vida talecimento da cultura popular. Nosso
demonstram o grau de seriedade do
dos potiguares e no desenvolvimento objetivo de médio prazo é fazer da terra
nosso trabalho e do nosso projeto ge-
do Rio Grande do Norte. de Luís da Câmara Cascudo uma re-
ral para a cultura. Uma delas é o próprio
ferência internacional de promoção do
Estamos começando na medida das relançamento da Preá, que nasceu forte
folclore e de outras matrizes culturais,
possibilidades de um orçamento en- e rapidamente tornou-se referência de
com ressonância também econômica,
gessado pela falta de planejamento e publicação especializada, mas foi se
associada ao turismo.
de compromisso com o equilíbrio fis- dissolvendo na maré de inércia que ca-
cal. Nosso projeto de política cultural é racterizava a gestão pública na cultura. Com essas medidas iniciais, esperamos
abrangente e irreversível. Com o pas- ter virado a página em branco em que
Reativamos a gráfica Manimbu, reto-
sar do tempo, as diferenças e os re- se transformara o aparato cultural do
mando também a publicação de livros
sultados em relação à inércia anterior estado. Agora é mãos à obra para con-
pela FJA, com o lançamento dos pri-
ficarão cada vez mais claros. Mas, em tinuarmos a avançar, restabelecendo a
meiros volumes da Coleção Cultura
pouco mais de 100 dias, já há avanços confiança dos artistas e da sociedade
Potiguar. Pagaremos os prêmios dos
a contabilizar. no poder público. Pra fazer a cultura
editais em atraso e em breve estare-
potiguar acontecer e voltar a ocupar o
O mais importante talvez tenha sido a mos lançando novos editais com re-
lugar destacado que merece em nossas
criação da Secretaria Extraordinária de cursos para publicações, premiando
vidas e em nossos corações.
Cultura, uma antiga reivindicação dos a imprensa especializada, o repórter
artistas, que o nosso Governo encam- fotográfico e abrindo o primeiro Salão Rosalba Ciarlini
pou e fez acontecer. A secretaria é es- de Arte Popular. Governadora do Rio Grande do Norte
Um

n ovo

tri l h a r

Há um novo caminho sendo trilhado pela da cultura. Através do Cena, Centro


cultura potiguar. O destino está sendo Educacional de Artes, implantaremos
traçado neste primeiro ano – e prosse- os cursos técnicos profissionalizantes
guirá nos próximos, quando o Governo de nível médio em Dança, Teatro, Mú-
do Estado do Rio Grande do Norte terá sica e Artes Visuais, com habilitação em
promovido uma verdadeira revolução, Plásticas, Gráfica, Tecnológica, Design
na cultura e em outras áreas. e Planejamento e Gestão de Eventos
Culturais.
Nos movem esperanças e sonhos: jun-
tos, equipe de governo e artistas, trans- Estamos promovendo, ainda, o di-
formaremos os indicadores de cultura, álogo participativo com secretarias
hoje ainda vergonhosos. Vamos sair da de estado – como as de Agricultura,
condição de lanterninha, dos últimos Educação, Saúde e Segurança – e
lugares no ranking dos estados brasi- outras instituições, entre elas a FA-
leiros, para chegarmos, em 2014, aos PERN, UERN, UFRN e SEBRAE, para
primeiros do Nordeste. celebrarmos a cultura popular durante
todo o mês de agosto.
Vamos nos integrar ao Sistema Nacional
de Cultura, cumprindo suas exigências, Esta revista, que agora retorna às mãos
a começar pela criação da Secretaria de do povo potiguar, faz parte deste novo
Cultura e do Fundo Estadual de Cultura, caminho, encruzilhada que une presen-
e promovendo, também, a Conferência te, passado e futuro. E que, como os ho-
Estadual de Cultura. menageados neste primeiro número de
2011 – poetas, arquitetos e artesãos da
Na realização dos estudos preliminares,
palavra – contribui para o planejamento
para definir com segurança a sistemá-
de novos rumos, onde cultura e cidada-
tica do trabalho a ser desenvolvido,
nia podem, enfim, trilhar lado a lado a
convidamos toda a classe artística, de
construção de uma nova realidade.
quem esperamos colaboração e críticas
construtivas em torno dos muitos ob-
jetivos comuns, entre eles a formação, Isaura Amélia de Souza Rosado Maia
qualificação e requalificação na área Secretaria Extraordinária da Cultura
Germinam

lilases

“Abril é o mais cruel dos meses, germi- Poetas e jornais já não são mais
nando/ Lilases da terra morta, mistu- pródigos nos ângulos cegos das ruas
rando/ Memória e desejo, avivando/ – se multiplicaram por outros espaços,
Agônicas raízes com a chuva da prima- especialmente no meio virtual, a grande
vera.” Os versos iniciais de “A terra de- rede, no mundo, como no ver-
solada”, de T. S. Eliot, na tradução de so de Jorge Fernandes. Ada Lima, uma
Ivan Junqueira, não cessavam de ecoar de nossas entrevistadas, nasceu ali,
nos ouvidos daqueles que faziam, entre blogs, posts e comments. Daniel
então, ainda em março, essa revista. Minchoni, nossa quarta capa, se alterna
Prevista para sair no final do primeiro entre as esquinas virtuais e os muros
trimestre, entrava abril e a Preá patina- urbanos, contrariando a velha tradição
va, como se indecisa entre ir e vir. Mal de que grafite não é arte e tão pouco
sabíamos que abril se mostraria ainda poesia, e indo muito além, desobrigan-
mais cruel quando a sombra de maio do o spray do muro, alcançando sites –
começou a crescer mais que o devido, ou sítios – nunca dantes navegados.
muito mais que o desejado.
Mais ou menos como fazem Os Poetas
Nossas desculpas a quem nos espe- Elétricos, unindo acordes e poemas
rou, como se, justamente, ansiasse a (o que tampouco é novidade, vide
primavera após um longo e tenebroso Othoniel Menezes, príncipe dos poetas
inverno – o largo tempo em que a revis- potiguares, e sua “Praieira”), ou o
ta da Fundação José Augusto se calou. grupo Casarão de Poesia, que prefere
Inútil descrever as dificuldades, dispen- a voz ao livro, sem, claro, desmerecê-lo
sável medir os esforços empreendidos ou renegá-lo. Não poderia ser diferen-
para que o bicho saísse da toca. E com te: foi nas páginas impressas – dos
o mesmo nome, rompendo a velha livros e jornais – que nomes como
tradição de se passar uma borracha Deífilo Gurgel, Sanderson Negreiros e
no passado como se o patrimônio do João Gualberto se destacaram, muitas
estado pertencesse a partido ou grêmio vezes, também, como no caso dos
político – e não ao povo. dois últimos, enquanto jornalistas. Que,
aliás, são aqui recorrentes: de Henrique
É como parte deste patrimônio que a
Castriciano a Sanderson Negreiros, de
Preá desperta, e recupera, no primeiro
Rubens Lemos a Adriano de Sousa,
número deste renascimento, uma qua-
para citar alguns dos presentes nas
drinha clássica que as novas gerações
próximas páginas.
talvez desconheçam: “Rio Grande do
Norte/ Capital Natal/ Em cada esquina
um poeta/ Em cada rua um jornal”. Que viva a poesia.
Mário Ivo Cavalcanti
Editor
Governadora Rosalba Ciarlini
Secretária Extraordinária de Cultura Isaura Amélia de Souza Rosado Maia
Diretora Geral da Fundação José Augusto Ana Neuma Teixeira de Lima

Coordenador de comunicação - FJA Mário Ivo Dantas Cavalcanti


Sub-coordenador de comunicação - FJA Fábio Farias
Centro Educacional de Artes - CENA Cléa Maria Galvão Bacurau
Escola de Dança Wanie Rose de Medeiros Souza Preá
Revista da Fundação José Augusto
Escola de Música Francisco Araújo Alves
Secretaria Extraordinária de Cultura do RN
Escola de Artes Plásticas Número 23 | Ano 9
Wandeci de Oliveira Holanda, Jomar Jackson Nogueira do Nascimento Janeiro - Fevereiro - Março - Abril
Teatro Alberto Maranhão Dione Maria Barros Caldas Xavier 2011
Teatro de Cultura Popular Chico Daniel Sônia Maria Soares Santos
Centro Cultural Adjuto Dias Robson Araújo Pires Editoria e projeto editorial
Mário Ivo Cavalcanti
Pinacoteca Novenil Barros
Museus Hélio de Oliveira Projeto gráfico e diagramação
Dimetrius de Carvalho Ferreira
Memorial Câmara Cascudo Daliana Cascudo Roberti Leite
Planejamento e Monitoramento de Projetos Sanclair Solon de Medeiros
Casas de Cultura Popular Joana d’Arc Xavier
Agentes de Leitura Andressa Lenuska Sousa de Macedo Colaboram nesta edição
Pontos de Cultura Clenia Maria de Luna Freire Ada Lima
Anchieta Xavier
Regente da Orquestra Sinfônica e do Coral Sinfônico Canto do Povo
Carla Bruttini
Pedro Ferreira da Costa Carlos de Souza
Conferência Estadual de Cultura Ivanira Ribeiro Machado Chico Canhão
Centro de Pesquisas Juvenal Lamartine José Tarcísio Rosas, José Albano da Silveira Carlos Gurgel
Chico Moreira Guedes
Lei Câmara Cascudo Silvana Macedo de Souza Civone Medeiros
Biblioteca Pública Câmara Cascudo Márcio Rodrigues Farias Daniel Minchoni
Gráfica Manimbu Maria do Socorro Soares, Ester Alves dos Santos Daniel Nec
Deífilo Gurgel
Diva Cunha
Domingo A. Dalama
Fábio Farias
Francisco Assis Câmara
Giovanna Hackradt
Giovanni Sérgio
Jansen Baracho
Jarbas Martins
João Gualberto
Endereços Larissa Gabrielle
Luana Ferreira
blog www.secretariadeculturarn.blogspot.com
Márcio dos Santos
site www.fja.rn.gov.br
Márcio Simões
twitter @Fja_RN e @Revista_Prea Marcos Silva
telefone (84) 3232.5323 Maria Emília Wanderley
e-mail assecomfjarn@gmail.com Marize Castro
Max Pereira
Esta edição não seguiu necessariamente o último Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Ney Douglas
Pablo Capistrano
Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. É proibida a repro- Paulo de Tarso Correia de Melo
dução total ou parcial de textos, fotos e ilustrações por qualquer meio sem prévia autorização dos artistas ou do editor da revista. Pola Kouli
A Preá é um espaço aberto para novas e velhas idéias, tendências artísticas e experimentos. Para colaborar, envie seu material Renan Rêgo
por correio ou e-mail. Vicente Serejo
Volonté
W. D. Cavalcanti
Impressão RN Econômico
Tiragem 1.000 exemplares
Em memória de

Distribuição gratuita Berilo Wanderley


Homero Homem
José Bezerra Gomes
Luís Carlos Guimarães
Miguel Cirilo
Agradecimentos a todos os envolvidos, particularmente a Laélio Ferreira de Melo e Lêda Guimarães. Newton Navarro
Othoniel Menezes
Agradecimentos mais que especiais a Giovanni Sérgio pela presença constante. Rubens Lemos
í n d i c e

p. 04 > face a face | olhar feminino | mário ivo cavalcanti


p. 16 > outras palavras | pra fazer a cultura acontecer | rosalba ciarlini
p. 17 > outras palavras | um novo trilhar | isaura rosado
p. 18 > outras palavras | germinam lilases | mário ivo cavalcanti
p. 22 > raconto | os mundos de miguel | pablo capistrano
p. 26 > máscara | retrato sem moldura | francisco assis câmara
p. 28 > espinho e flor | o feijão do príncipe – muito além da vitimização
p. 30 > memento | acalanto para othoniel | por deífilo gurgel
p. 34 > recital | poetas que falam | luana ferreira
p. 41 > musa | seduzir-se | maria emília wanderley
p. 43 > métrica | poesia, vende? | fábio farias
p. 44 > poema | o bicho imaginado | w. d. cavalcanti
p. 46 > ensaio | versos versus versos | jarbas martins
p. 54 > ensaio | por giovanni e giovanna
p. 68 > antologia | ada lima | carlos gurgel | civone medeiros | deífilo gurgel | diva cunha | jarbas martins | joão gualberto | marize
castro | paulo de tarso correia de melo | volonté
p. 74 > resgate | todo poema é romance e o melhor repórter da poesia | joão gualberto
p. 77 > poema | ciclos da pedra e do cão | rubens lemos
p. 78 > ensaio | três poetas nos anos dois mil | márcio simões
p. 83 > encanto | homero homem
p. 84 > tríplex | três poetas antes dos trinta | fábio farias
p. 86 > memorabilia | seu gomes | vicente serejo
p. 88 > releitura | 05 poemas ilustrados | josé bezerra gomes | carla bruttini| dimetrius ferreira | domingo a. dalama | márcio dos santos | pola kouli
p. 94 > poema | canção urbana | luís carlos guimarães
p. 95 > quadrinhos | canção urbana | jansen baracho
p. 99 > fja & cia | poetas, artistas, mandatários | carlos de souza
p. 101 > fja & cia | programação diversificada marca o dia da poesia | carlos gurgel
p. 102 > fja & cia | cultura potiguar é discutida com a ministra ana de hollanda | aniversário do tam, presente para artistas e produtores
culturais | secretaria anuncia publicação de 70 livros até 2012 | capacitação de agentes e pagamento dos pontos de
cultura | primeira exposição homenageia as mulheres | cia de dança do tam recebe reconhecimentos internacionais
p. 105 > fja & cia | da radical poética do gesto | chico moreira guedes
p. 106 > eles passarão, eu passarinho | eu tuíto | larissa gabrielle
Ilustração Daniel Nec
OS MUNDOS
DE MIGUEL
por Pablo Capistrano | fotos Max Pereira

22
r a c o n t o

Quando cheguei ao Sítio da Pitom- sada, marcando como fogo negro sobre
beira, em Pium, acompanhado do fogo branco o corpo liso do papel. Esse
fotógrafo Max Pereira, para conhecer é um amor trovadoresco. Um amor ma-
o que havia sobrado da biblioteca de riano, pleno de contemplação mística.
Miguel Cirilo, confesso que fiquei um Uma espécie de possessão apolínea
pouco constrangido. que faz do livro um objeto de idolatria.
Ver os livros de um homem é como rou- Miguel Cirilo não era esse tipo. Ele
bar senha de banco. E, nesse caso, a mantinha com seus livros uma relação
riqueza que tem na conta do usurpado de amor profano. Eles os possuía, os
não se mede em valores monetários. marcava, deixando seus sinais pelo
Tem algo muito mais profundo, algo meio das páginas. São inúmeros po-
muito mais intenso, muito mais valioso emas inéditos, fragmentos de pensa-
a ser expropriado. mento, impressões narrativas soltas
pelas laterais das folhas, inúmeras
Foi lá, na Pitombeira, que Gilvan Cade-
gravuras, desenhos de rostos, pro-
te, dono do sítio e sobrinho do poeta,
sa visual de uma riqueza espantosa,
me falou pela primeira vez sobre a rea-
imprensadas pelas partes em branco
ção de Miguel a um texto meu, publica-
das páginas, pelas contracapas, pe-
do em jornal quando da reedição de Os
las margens.
elementos do Caos, lançado original-
mente em 1964. Abimael Silva, da Edi- Como se o leitor Miguel não conseguis-
tora Sebo Vermelho, pôs uma cópia do se se separar do Miguel poeta. Como se
artigo embaixo da porta de Miguel, que o poeta não pudesse ser nada além do
morava então (salvo engano) em um ho- gravurista, do artista gráfico. Como se
tel no centro da cidade. O poeta Volonté esse artista, com alma de filósofo, com
também fez chegar às mãos de Miguel uma vida interior tão intensa e profunda,
uma cópia. aprendesse a despistar aqueles que só
lhe conheciam silêncio, solidão, isola-
Segundo o sobrinho, Miguel gostou
mento social auto-imposto.
muito do que leu. Só em saber disso eu
já estaria satisfeito. Mas parece que Mi- Miguel Cirilo é um daqueles autores
guel queria mais. Então, fui convidado a que não pode ser lido sem que sua vida
conhecer sua biblioteca, ou, melhor, o se encontre com seu texto. Não que a
que sobrou dela após o sacrifício ritual a poesia de Miguel guarde algum segre-
que o poeta submeteu seus livros (fala- do biográfico bombástico, que poderia
rei sobre isso mais na frente). alimentar a indústria de biografias não
laudatórias (as únicas que merecem ser
Sim, existem dois tipos de homens que
lidas): é a vida de Miguel que mostra
amam livros. Aqueles que tratam os li-
sua poesia. Ou melhor, a vida que não
vros como objetos de culto. Que louvam
se viu viver, que não se tem em público,
as edições, que adoram o cheiro das
que não se mostra à curiosidade dessas
capas velhas, que temem o efeito desa-
gerações de popespectadores culturais,
gregador da temporalidade sobre suas
loucos por transformar pedaços de car-
folhas, sobre a tinta que um dia foi pren-
ne em celebridades.

23
Miguel Cirilo conversava com seus li- Passantes diários das ruas do centro? permitem que os exemplares de suas
vros e, ali, nesses livros conversados, Pouco importa. A viagem pictográfi- estantes passem por eles sem serem
nos deparamos com o filósofo leitor de ca de Cirilo por seus livros merece um emprenhados por sua linguagem, por
Heidegger, Wittgenstein, Willian James, estudo à parte. Como Max Pereira ob- seus signos, por suas mensagens, seus
Pierre Levy. Encontramos o místico servou, ele metamorfoseava seus dese- sinais cifrados para as ilhas do futuro.
leitor de Krishnamurti, Masaharu Tani- nhos em estilos claramente delimitados
Esse é mais um dos paradoxos desse
guchi, Carlos Castañeda. O poeta, lei- e extremamente diversos. Passando de
poeta que se escondia do mundo, e que
tor atento de Manoel de Barros, ou de gravuras ao estilo Escher, que parecem
cultivava uma multidão de universos
tudo o que se produziu ao seu redor no ter saído da capa de velhos discos de
em sua privacidade. Gilvan também me
tempo em que ele habitava esse nosso rock progressivo dos anos setenta, até
contou quando Miguel, na década de
universo: Anchieta Fernandes, Moacy formas abstratas, cubistas, concretas,
70, abandonou um bem sucedido car-
Cirne, Volonté, Franklin Capistrano, Jar- expressionistas. Era como se o artista
go, de grande destaque no funcionalis-
bas Martins. Seus companheiros de ge- gráfico Cirilo estivesse nos mostrando,
mo público potiguar, viajou para Salva-
ração também objeto de sua leitura, de didaticamente, cada uma das passa-
dor, onde morou por 15 anos e de onde
sua observação direcionada, como se gens mais significativas da sensibilida-
tornava, vez ou outra, a Natal.
ele os vigiasse de dentro do seu próprio de estética de nossa modernidade.
mundo, observando o cenário da cidade Em uma dessas transitórias viagens, Mi-
Miguel Cirilo era fruto do Sertão poti-
de Natal atrás de uma cela invisível na guel botou fogo em sua biblioteca.
guar, nascido em São José do Seridó.
qual ele, por uma escolha própria, aca-
Um homem urbano demais para ser ru- Queimou todos os livros. Apagou, pelo
bou se prendendo.
ral e rural demais para ser urbano. Seu fogo, as marcas que havia deixado em
Gilvan me disse na conversa agradá- caminho foi o da linha, do limite, da fron- suas brechas, em suas ranhuras. Como
vel do sábado, entre as pitombeiras teira. Sua poesia é uma poesia de fron- se estivesse fazendo o mesmo sacrifício
de Pium e os pés de Cambuim, que teira. Não é uma poesia de literalidades, de Abraão a um deus ciumento, Miguel
“Tio Miguel” costumava fazer longos como o verso acadêmico brasileiro, con- destruiu ritualmente aquilo que o havia
jejuns e que havia transitado por diver- taminado pelo desejo de agradar um ou libertado, e destroçou aquilo que com-
sos tipos de seitas místicas e grupos outro professor de letras. Também não pôs o caminho para a sua travessia me-
esotéricos durante a vida. Um homem é uma poesia que se resolve em petar- tafísica.
obcecado pela transcendência do cor- dos de nominalismo linguístico, como,
Passado algum tempo, começou a
po pelo corpo e do verbo poético pelo por exemplo, a poesia dos movimentos
restabelecer os títulos perdidos, re-
próprio poema. de vanguarda que agitavam a Natal dos
comprando algumas obras que havia
anos sessenta. Cirilo construiu uma po-
A consciência desse estado do Ser, entregue na pira do sacrifício. Foi essa
esia do meio, do entre, das frestas, das
imerso no tempo, desse ente limitado, reconciliação que permitiu que algo dos
escapatórias semânticas que nos levam
leva a poesia de Miguel Cirilo a ser uma mundos de Miguel pudesse hoje chegar
além. É um instrumento, um veículo a
exata expressão da antinomia da mor- ao conhecimento de gente como eu,
serviço de seu próprio e radical proces-
te. A absoluta certeza da finitude da como nós, ou como Max Pereira, que
so de transcendência poética.
aventura espaço-temporal, paralela à fotografa sem parar, debruçado sobre
radical e inexpugnável estranheza que Contou o sobrinho que o avô, pai de as imensidões mínimas de sua arte nas
essa certeza traz, acostumou a levar a Cirilo, não era um homem de instrução muitas páginas abertas sobre a mesa,
reflexão e a poética dos homens a luga- formal, mas que teve a sensibilidade de alpendre da Pitombeira.
res distantes. Miguel seguiu essa pista mandar o filho estudar no colégio Maris-
Miguel ainda permanece lá. No meio
e entrou nesse sertão privado, nesse ta, em Natal. E teria sido justamente em
dos seus muitos mundos. Em plena vi-
oceano interior, que o encaminhou – não Natal que Miguel entrou em contato com
talidade de sua linguagem.
como um mero espectador intelectual, a biblioteca de Sanderson Negreiros. O
mas como um navegante, um explora- impacto dos livros na existência de um Como filósofo, pensou o Ser e entregou
dor das veredas da transcendência – autor contemporâneo, a descoberta de sua vida no altar do deus ciumento da
aos limites do poético. uma biblioteca após uma herança de transcendência. Como poeta, revelou o
quase três séculos de isolamento ser- sagrado, e nos ofereceu o privilégio de
Miguel Cirilo encheu seus livros de fa-
tanejo é, com certeza, uma experiência partilhar com ele a deliciosa aventura de
ces humanas.
desconcertante. Ainda mais para um amar o deus louco da poesia.
Muitas faces. Diversos traços étnicos, marrano do Seridó potiguar.
sociais. Diversos mundos particulares,
A poesia inédita de Miguel Cirilo está
prospectado pelo leitor urbano, que pas-
em meio a seus livros. Todos riscados,
sava horas e horas em frente ao Banco
todos marcados, todos inalienavelmen-
do Brasil, no centro de Natal, lendo, ob-
te impregnados de sua presença poé- Pablo Capistrano é escritor e professor
servando o mundo, observando, lendo
tica. Como que tomados por gestos de filosofia do IFRN
o mundo. Registros abstratos de almas
de profunda possessividade, amantes
penadas? Fantasmas? Vultos urbanos? Max Pereira é fotográfo
ciumentos dos livros como Miguel não

24
Em uma dessas
transitórias viagens,
Miguel botou fogo em
sua biblioteca.

25
m á s c a r a

Retrato sem
moldura
por Francisco Assis Câmara | foto Max Pereira

Entre muros, só
Miguel se fez alquimista na manipulação
dos elementos do caos e desenhou seu
roteiro em espirais preenchidas de mo-
léculas que receberam o nome de medo
(noite), fera (fome), carne (sangue), es-
tigmas impostos à condição humana
para castigar todas as ousadias de
aproximação e intimidade com o divi-
no santuário dos deuses. Esse roteiro,
também percorrido por Albert Camus,
revelara Sísifo, castigado e condenado
a rolar, montanha acima, uma enorme
pedra, que já no alto lhe escapava das
mãos e voltava ao sopé, para ser outras
vezes transportada. Miguel, na mes-
ma perspectiva de Camus, decifrou o
enigma – a própria essência do absur-
do, que outra coisa não significa senão
aquilo que é contrário à razão, o que
não pode ser justificado. Esse roteiro-
rotina era a própria face do absurdo da
vida, aparentemente sem sentido. Sísifo
só encontraria felicidade (sentido para a
vida) se assumisse sua humanidade, na
compreensão de que o homem é senhor
do seu destino. Sísifo não desistiu. Mi-
A convivência com Miguel Cirilo mar- opiniões sobre temas extraídos de suas guel não desistiu:
cou minha passagem pelo IAPB, antigo permanentes leituras. Sabia agregar va-
órgão previdenciário dos bancários. Ali lor à amizade. Sempre com um livro à Estou satisfeito comigo mesmo. Porque não
ingressamos em 1963, sob o signo de mão, ilustrado com grifos e rabiscos, desisti. E sinto que não desistirei nunca.
uma década de transformações. Cursá- discorria sobre temas instigantes, do Mas, a Ópera traz um segundo ato:
vamos Direito na tradicional Faculdade Tao ao Zen-budismo, do existencialismo Sartre, ao abrir as cortinas de seu te-
da Ribeira. Miguel “trancara” matrícula de Sartre ao absurdo de Camus. Mas atro, ergue o estandarte da liberdade
no 1º ano, enquanto eu já avançava o 3º era Deus que pairava sobre o universo como penhor do significado da exis-
período anual, minha única e aparente de suas inquietações. Deus, inacessível, tência. Será possível, então, agregar
ascendência sobre aquele que logo eu assumia o trono de sua angústia. Era Ele ao mundo relativo um valor absoluto?
reconheceria situar-se bem acima de o leitmotiv da esperança, o fim último a Que sentido atribuir a categorias de
meu incipiente aprendizado intelectual. justificar sua razão de existir. A despeito pensamento tais como liberdade, des-
A rotina de trabalho tornou-se prazero- de todas as impossibilidades humanas, tino, livre–arbítrio, o ser e o nada...?
sa. Miguel, em sua cordialidade, preen- como chegar até Ele? Como alcançá- Instala–se a angústia. Miguel penetrou
chia espaços de tempo com relatos e Lo? Como contemplar a Sua face? nesse labirinto e concluiu:

26
Eu não existo. O que sou, atualmente, é do mistério, consolo religioso à nossa sua hermética poesia. Anchieta Fernan-
justamente a negação de mim mesmo. capacidade de compreensão. Engen- des abre a segunda edição de Os Ele-
Testemunha dessa fase, registro um epi- dramos fórmulas de conhecimento a mentos do Caos, obra poética editada
sódio em que Miguel se revela, por intei- partir dos mitos. Assim, nada mais belo por Miguel Cirilo, anunciando que sua
ro, em seu conflito existencial. Aconteceu do que atribuirmo-nos a condição de poesia “começa, decorre e some em es-
comigo. Convidei-o a participar, na con- parceiros da criação. Se, ao Criador, tado de consciência transcendente...”
dição de padrinho, do batizado de minha um fiat bastava, nossa participação, su-
Também assim a vejo, na percepção de
primeira filha, eleita sua afilhada. Miguel bordinada a ciclos evolutivos, do nasci-
que a obra reflete o criador, pois Miguel
não compareceu. No outro dia, rabiscado mento à morte, reproduz o destino de
exalava transcendência. Não se rotulava
a mão, um bilhete seu me dizia: Sísifo, criando e recriando. Assim, o que
poeta. Dizia:
seria um castigo (o trabalho sob o estig-
Receba minha recusa como um gesto ma da condenação) foi assumido como Poeta, vocação, consciência – são, por
de amigo. Porque toda a minha existên- processo de transformação, pois o ato enquanto, meras palavras para mim: não
cia, Assis, é a história de um outro. Seria de criar confere-nos o privilégio que nos vivi ainda sua significação. [...] Não creio
ele, e não eu, que teria comparecido. E arroga a condição de imagem e seme- que a felicidade de alguém depende dis-
estimo muito você para enganá–lo como lhança de Deus. to: escrever ou não escrever.
engano a mim mesmo.
E complementa:
O que fazer quando a sinceridade se
impõe? O escritor vem sempre depois do
Retrato ou homem.
Com a unificação dos órgãos da Previ-
dência Social, tomamos rumos diferen-
gravura?
tes. Uma bolsa de estudos me levou a Impossível ajustar o retrato de Miguel a
qualquer moldura. Não o contaminava a
Paris, em plena efervescência do mo-
morbidez do narcisismo que deformou o
Pássaro ferido
vimento de maio de 1968. Miguel, em
rosto, e a vida, de Dorian Gray, no retra- Final de novembro de 2004. Depois de
decisão pessoal, tomou o rumo de Sal-
to que a pena de Oscar Wilde produziu. algum tempo sem vê-lo, fui encontrar
vador. Cumpria velho sonho alimentado
Miguel Cirilo expressou, em versos, sua Miguel em seu “refúgio”, um modesto
pela atração do movimento cultural que
rejeição ao próprio retrato. Oculta sob a apartamento de uma bem cuidada pou-
se processava na Bahia. Alguns anos
opaca sombra dos vidros quebrados, sua sada, na Rua Princesa Isabel, em Natal.
depois, já desvinculados do serviço pú-
imagem, captada mecanicamente, seria o Movia-me o pretexto de convidá-lo para
blico, encontramo-nos em plena Rua
retrato do “outro” – porque eu não exis- testemunhar o lançamento do meu pri-
João Pessoa, em Natal. Foram horas
to. O retrato é o morto em mim: foi bom meiro livro de poemas, no qual incluíra
de conversa. Entre suas revelações, o
que lhe dessem fim. Como poderia, “um um Soneto a ele dedicado. Emocionan-
bem-estar vivido nas igrejas e mosteiros
morto”, encarar a própria imagem? Que do-se, confessou:
de Salvador.
espelho poderia refletir, para os olhos da Sua visita é providencial. Estou sem
alma, a essência do ser? Já tenho quase condições de locomover-me. Preciso de
como moldar o rosto à sua própria ima- um médico. Mas, antes de prestar-me
No princípio era gem. Artesão de si mesmo, trabalhava esse favor, leia seu poema.
a argamassa do espírito em desenhos e
o caos gravuras ilustrados por reticências e inter- Nem seria necessário dizer da emoção e
Absurdos e angústias à parte, Miguel rogações. Para ele não havia ponto final. das lágrimas inevitáveis. Procurei o médico.
identificava no caos a violência que Nasceu transeunte, viveu peregrino. Sua No dia seguinte, Miguel seria internado
prepara o amor. Sim, o amor como es- morte − o cansaço do ser − interrompeu na Policlínica do Alecrim, de onde não re-
sência, como força criativa e redento- sua busca. tornaria. Dei conhecimento do ocorrido a
ra. Amor que nasce do caos por uma
seus familiares, solícitos e imediatamente
VONTADE ordenadora. Amor criativo.
presentes. Nada faltou a Miguel, pássaro
O caos como realidade cosmológica,
ferido de morte, cujo trinar ainda reverbe-
divina, jamais expressão do nada, que Transcendente ra seu canto de despedida:
nada cria. O caos como elemento de
possibilidades. O caos que enche de
poesia Vou porque tenho de ir/ não levo pena
luz − e vida − o Universo, e determina, Miguel − poeta, estilo e substância. A de nada/ meu sonho foi existir/ meu
a partir da explosão criativa, a flecha do consciência da alteridade nos revela amor... a minha estrada./ Jerusalém, mi-
tempo, a linha − imaginada por Prigo- duas faces, duas visões: uma, pela qual nha amada/ ai de quem viu tua fronte,/
gine − que perpassa o infinito e recebe nos enxergamos; outra, como os outros tua face ensangüentada,/ o teu morto
o nome de eternidade. Tamanha cons- nos vêem. Isto nos permite, em se tra- sobre o monte./ Jerusalém, ai de mim./
trução ultrapassa nossa incapacidade tando de Miguel, confrontar timidez e que não morro por ninguém.
de entendimento, suprida na aceitação auto–negação, espraiadas no mar de
Francisco Assis Câmara é poeta.

27
Muito além da
vitimização

O feijão
do príncipe por Marcos Silva

28
e s p i n h o e f l o r

Cláudio Galvão tem publicado impor- A Poesia de Othoniel possui singulari- Cláudio menciona as dificuldades da es-
tantes livros sobre a cultura norte-rio- dades estilísticas e históricas. Nos livros posa e dos filhos do escritor na época,
grandense. Príncipe plebeu – Uma bio- Gérmen e Jardim tropical há um recorte com o sustento de todos às custas do
grafia do poeta Othoniel Menezes (2010) formal parnasiano voltado para as pe- pai e do sogro de Othoniel mais a pro-
se encaixa nesse trajeto. Escritor, que- culiaridades da natureza e do meio so- dução de doces, tapiocas e outras co-
rido em seu estado, Othoniel foi esco- cial potiguares. Menezes, nessa etapa, midas típicas por sua mulher. Estamos
lhido “Príncipe dos Poetas Potiguares” elabora uma Modernidade peculiar que diante da família de escritor de renome,
em 1925. Mas enfrentou dificuldades de não se confunde com o Modernismo. Há originário de classe média, em condição
sobrevivência, dependendo de empre- vestígios de Romantismo em sua poética, de pobreza naquele momento. Galvão
gos inseguros e insatisfatórios. A ênfase mesclados a elementos do Naturalismo. lembra ainda o apoio financeiro de ami-
em limitações financeiras e expectativa Ele se aproxima de alguns parnasianos gos do poeta, incluindo Sérgio Severo,
por cargos públicos que não vieram ou heterodoxos (Vicente de Carvalho, Ola- que era integralista. Saindo da prisão,
demoraram a vir apagaria uma persona- vo Bilac). Sua originalidade foi percebida Othoniel trabalhou no combate à malá-
lidade altiva, que fez opções e se recu- por Câmara Cascudo, que o incluiu em ria, em Assu, realizou festivais de poesia
sou ao conformismo. Apenas vitimizá-lo Alma patrícia. Na maturidade (Sertão de e seresta e manteve relações cordiais
seria negar sua liberdade. Essa biografia espinho e de flor e A canção da monta- com interventores estadonovistas. Em
vai muito além de tais limites. nha) há um reforço modernizante – ritmos 1942, começou a trabalhar na Base Aé-
diversificados, ausência de rimas, certo rea de Natal. E, em 1951, foi indicado
Cláudio apresenta a infância do poeta
coloquialismo – também surpreendente, para cargo no Instituto Nacional do Sal.
em Jardim do Seridó, alfabetização (com
contemporâneo de poetas hostis ao Mo- Sua etapa final de vida, pobre, envelhe-
o pai, depois com professor particular) e
dernismo – a “Geração de 1945”. Galvão cido e doente, ocorreu no Rio de Janei-
a vinda para Natal a fim de dar conti-
menciona uma “Noite parnasiana” nata- ro, exílio em relação à terra que não o
nuidade aos estudos. O futuro escritor
lense, em 1959, que contou com o apoio tratou com a devida atenção.
revelou-se aluno dedicado e até laure-
de Othoniel e Esmeraldo Siqueira. Mas os
ado. Um breve período como militar foi Vivendo num país que adotou agressi-
dois não eram propriamente parnasia-
sucedido pela experiência jornalística vas políticas anticomunistas durante dé-
nos e sim modernos muito específicos,
em Macau, onde também atuou como cadas, Othoniel sofreu conseqüências
classicizantes.
Promotor Público Interino. Em 1918, dolorosas devido àquela identificação
tornou-se segundo oficial na Secretaria O episódio boêmio de 1926 (destruição que se lhe atribuiu em relação ao mo-
de Estado, ascendendo para a posição a tiros de iluminação pública) gerou pro- vimento de 1935. Isso se misturou com
de primeiro oficial, que ocupou entre cesso por dano ao patrimônio, punição seu caráter inquieto, a boemia juvenil,
1919 a 1926. Perdeu esse cargo por se funcional e, em janeiro de 1929, desli- a angústia em relação aos limites bu-
envolver em destruição de iluminação gamento do cargo. Othoniel optou por rocráticos dos empregos e o exercício
pública durante bebedeira. retornar à vida militar e participou da re- do poder por governantes que oprimiam
pressão à Coluna Prestes, com batalhão diferentes categorias sociais, inclusive
Seu prestígio literário incluiu a realiza-
natalense. Quando da revolta comunista poetas respeitados, como se lhes fizes-
ção de um “Festival do Poeta Otho-
de 1935, ele trabalhava na Imprensa Ofi- sem o Bem.
niel Menezes” no Teatro Carlos Gomes
cial do estado como um dos redatores
(hoje, Alberto Maranhão), em 1922. A Apesar de tudo isso, a Literatura venceu
do jornal A República e preparou, com
edição dos livros Gérmen (1918), Jardim – a obra do poeta está aí.
Gastão Correia, a edição do jornal re-
tropical (1923) e, mais tarde, Sertão de
voltoso A Liberdade. Derrotado o mo-
espinho e de flor (1952) e A canção da
vimento, Othoniel foi demitido, fugiu de
montanha (1955) mereceu apoio gover-
Natal e findou preso em Recife, recon-
namental. Suas relações com o público
duzido para a cidade de origem, julgado Marcos Silva é historiador e professor na
leitor local e o governo estadual até fo-
e condenado em 1938. FFLCH/USP.
ram harmoniosas.

29
Acalanto
para Othoniel

30
m e m e n t o

por Deífilo Gurgel | ilustrações Newton Navarro


Pelo que viveste, pelo que sofreste, escrevi este Acalanto

Conheci Othoniel Menezes, pessoal- mande recolocar a placa (se ainda exis- Aí, deu um nó. Qué que eu ia dizer, para
mente, no ano de 1944, quando cheguei tir) ou mande fazer uma outra mais bo- o poeta? É Deífilo? E ele lá ia se lembrar
a Natal para cursar o segundo grau, nita ainda, e coloque no lugar para que quem diabo era Deífilo? Preferi o silên-
mais precisamente, o Curso Clássico. O não se perca no esquecimento a Me- cio, dentro de minha inibição.
Atheneu, onde estudei, ficava na antiga mória Poética desta cidade e a de uma
Junqueira Aires, atualmente – desde o poetisa maravilhosa. – Quem é? Retornou.
centenário de Luis da Câmara  Cascudo, Diante do meu silêncio, o poeta veio até
Tornemos a Othoniel.
em 1998 – dividida em duas partes: a a porta e perguntou-me educadamente:
primeira, desde o jornal A República até Eu o conhecia da leitura de antologias
o relógio do Sesc, denominada Avenida nos cursos primário e ginasial, no inte- – O que é que deseja rapaz?
Câmara Cascudo. A segunda, na parte rior, em Areia Branca e Mossoró. Mas Foi então que criei coragem e desembu-
alta, do relógio do Sesc até a Prefeitura, meu tio Chico o conhecia pessoalmen- chei de uma vez:
denominada Boulevard Junqueira Aires. te. Chico Avelino era funcionário da
Promessas foram feitas, de embeleza- Mesa de Rendas e morava na Floriano, – Poeta, sou Deífilo, sobrinho de Chico
mento desse segundo trecho. por trás da Rádio Poti, onde funcionou Avelino, da Recebedoria, seu amigo.
também, depois, o Diário de Natal. Tio Ele lamentou:
Promessas, words, words, words.
Chico era poeta e escreveu um peque-
O Ateneu ficava nesse segundo trecho, no livro de sonetos, Perfis, retratando – Ô rapaz! Por que não disse logo? Eu já
exatamente onde funciona hoje a Secre- os colegas da Mesa de Rendas. Foi em teria lhe atendido, há mais tempo! Mas,
taria de Tributação do Município – em sua casa que me hospedei, quando vim sente, sente, vamos conversar.
frente à Praça do Estudante, por trás da para Natal. Ficamos amigos...
Agência Central do Banco do Brasil, na
Revelado a meu tio o desejo de conhe- Depois daquele dia, voltamos a nos
Avenida Rio Branco.
cer Othoniel, lá fui eu, poucos dias de- encontrar inúmeras vezes, inclusive na-
Quanto a Othoniel, quando eu o conhe- pois de Chico Avelino haver lançado a quela casinha da Correia Teles, onde
ci, morava na Rio Branco, esquina com ponte entre nós dois, para a pensão de o poeta morou, quase esquina com a
a Auta de Souza, na pensão familiar de D. Sílvia, conhecê-lo. Othoniel morava Princesa Isabel.
D. Sílvia. Por que Auta de Souza, ali? num modesto apartamento, no pátio in-
Porque, descendo-se a Rio Branco, em terno que existia na pensão, com fron- Um dos nossos assuntos preferidos
direção à Ribeira, cinco casas, mais ou dosas mangueiras ao centro. era o poeta Itajubá. Às vezes ele me
menos, adiante, encontra-se a casa dizia: “Ah, seu Gurgel, ele foi o maior
Me indicaram o apartamento e eu fui, de nós todos!” num tom da mais pro-
onde faleceu a poetisa. Tinha uma placa
até lá. Bati palmas. Uma voz tonitruante, funda reverência.
no local. Não tem mais. Peço ao meu
atendeu, lá de dentro:
amigo Roberto Lima, que já assumiu a Othoniel, foi amicíssimo de Esmeral-
presidência da Capitania das Artes, que – Quem é? do Siqueira, que foi meu professor, no

31
Atheneu. Contava-me que Esmeraldo, No início desta conversa, eu disse que Há, na poesia de Othoniel, um soneto
logo depois de formado, tinha consul- quando morava no interior, conhecia que, pela sua beleza, pela sua verdade,
tório aqui em Natal e que foi seu mé- Othoniel, através da leitura de seus transcende todos os limites da perfeição
dico particular, durante muito tempo. poemas, nos livros escolares. Errei. – é “Coroa de beijos”. É com ele que eu
O melhor que conheceu. Dizia-me que, Menino de três, quatro anos, em Areia encerro este depoimento sobre o poeta
às vezes, ia visitá-lo no consultório. Branca, na rua do Progresso, meu pai de “Praieira”.
Esmeraldo chamava a atendente e de- me embalava, a mim e a minha irmã
terminava: “D. Fulana, remarque todas Terezinha, cantando a Praieira de
as consultas de hoje que eu só volto a Othoniel e outras modinhas, de Itaju-
atender amanhã.” E o papo rolava solto bá que não esqueci jamais: “Vi-te. Era Deífilo Gurgel é escritor, poeta e folclorista
o resto da tarde, sobre o reino encanta- noite/ A  lua descorada/ brilhava, nas
do da poesia. paragens luminosas...”

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Coroa de beijos
Othoniel Menezes

Com a rosa à mão direita, a esquerda ao peito,


Dorme lembrando os séculos sofridos.
Drama dos sete maternais sentidos
Senhora dona a padecer no eito.

Sofrer foi sempre o seu amor perfeito


Passos perdidos, ideais perdidos
Nossa Senhora dos desiludidos
Dos humilhados órfãos contrafeitos.

Seus sonhos andam todos pelos túmulos.


Olhou o céu em vão. Negrumes. Cumulus.
Ganhando flor logo essa flor morria.

No sorriso envolvendo meu destino


Toda a vida a seus olhos fui menino.
Bastou nascer como nasceu – Maria.

33
r e c i t a l

Poetas
que falam por Luana Ferreira

Os Poetas Elétricos

34
foto Renan Rêgo
É preciso estar atento: nem toda poe- Poesia, vestiu e despiu robe preto em tar essa memória (chega quase a mili-
sia produzida no Rio Grande do Norte frente a uma penteadeira para recitar tar), em intervenções, nas oficinas que
o aguarda, disponível e eterna, nas pá- versos de Florbela Espanca. Ano pas- ministra e nas conversas em mesa de
ginas dos livros ou na tela do computa- sado, Carito, Civone e Carlos Gurgel se bar. Em 2009, pintou o próprio nome e
dor. Para encontrar parte dela é preciso juntaram a Renata Mar e Pedro Quilles os de artistas potiguares em estrelas no
marcar hora, sair de casa, procurar um e interpretaram os próprios versos em chão, transformando o Beco da Lama,
bom lugar na plateia, abrir bem os olhos “Toque de Colher Poemas”, para uma centro histórico de Natal, na “Calçada
– talvez tirar os óculos, que aqui não é única apresentação no Buraco da Cati- da Fama”.
preciso ler –, aguçar os ouvidos e se ta, na Ribeira. Com roteiro, ritmo e mar- Carlos Gurgel é um dos “caras moder-
deixar levar pela performance do poeta. cação, mas sem ser necessariamente nos” citados por Civone. Participou dos
Que vai falar, gritar, distorcer, cantar e musical, recital ou teatro. Ideia de Carlos festivais de arte da Fortaleza dos Reis
entoar palavras. E interpretar, iluminar, Gurgel, o aglutinador, é coisa rara esses Magos na transição da década de 70
vestir, ambientar e criar a atmosfera que poetas se juntarem: mesmo sendo de para 80, integrou todos os movimentos
recobre essas palavras. gerações diferentes, mas que convivem ligados à Contracultura em seu auge e
Civone Medeiros ofereceu o coração, no mesmo espaço-tempo, eles não têm consumiu o que pode de arte outsider,
cru, aberto, recheado de poemas e de- quase nada em comum, exceto viverem drogas e psicodelia. “Sou a soma disso
pois costurado, para as pessoas que na mesma cidade, serem poetas, e, não tudo e ao mesmo tempo despojado dis-
assistiam a uma de suas muitas per- terem a menor pretensão de agradar so tudo”, diz, num eterno nadar contra
formances (como não podia arrancar e ninguém. a corrente. “Quero continuar provando.
segurar o próprio, substituiu-o por um Quero saber o que posso fazer do tem-
de boi). Michele Régis matou os dois po que me resta”. Ouviu pela primeira
amantes e escreveu na pele deles antes vez seus versos na voz do pai, o poeta
de abandoná-los, enquanto Os Poetas Caras Modernos Deífilo Gurgel, que curtia tanto as “obras
Elétricos perguntavam “O que significa E desagradam mesmo muita gente, e de arte” do menino que passou a lê-las
palavra?”, no vídeo “Palarveando”. A conquistam outras tantas, e a maioria nas reuniões com amigos em casa.
poesia foi a matéria-prima para o CD, continua alheia, como convém à arte de Tinha oito anos. Depois, aos 12, era o
DVD, livro e camiseta, tudo parte do vanguarda. Civone Medeiros lamenta prório Carlos quem lia para os ícones da
projeto “Dramática Poética”, lançado que as novas gerações desconheçam época: Newton Navarro, Zila Mamede,
por Carlos Gurgel no início deste ano. tudo de bom e revolucionário que acon- Sanderson Negreiros, Berilo Wanderley,
No vídeo de Daniel Minchoni, um bule teceu por aqui antes dos anos 2000. “Os Miguel Cirillo e outros. Fez canto, fez
animado abre-se e ele diz “estava tão caras daqui eram modernos. O que os artes cênicas. Participou de banda de
tampouco/ que destampou e saiu/ o meninos fazem hoje, achando que estão música, The Functus, do colégio Maris-
oco”. Longe dos bits, lá em Currais No- inventando a roda, já era feito há 30, 40 ta. Na primeira performance, se vestiu
vos, Luma Carvalho, do Casarão de anos”. Ela está sempre tentando resga- de padre, substituiu o incenso no turíbu-

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lo por maconha e celebrou uma missa ziam apresentações paralelas. Em 2003,
ensandecida. quatro anos depois do fim do Modus, os
dois se descobriram em crise de abs-
Naquela época, os Dias da Poesia (14
tinência daquelas farras experimentais.
de março) eram comemorados na rua,
Voltaram, encontraram gravações como
inflamados, espontâneos. “As pessoas
“Sina de Ina” e “Serafina”, compuseram
chegavam e falavam; eu, me atrevia”,
“Ofício” e outras, e o CD Poemas ele-
lembra Civone Medeiros. Artistas e in-
tri-ficados & outros que foram embora
telectuais agitavam os dias dos sebos e
estava pronto. Não era poesia sonora,
as noites dos bares do Beco da Lama. A
nem declamada, nem musicada, nem
Praia dos Artistas era ponto de encontro
trilha sonora, nem música. “Na verdade,
e de fumaça. Jota Medeiros havia escri-
a gente fica na dúvida se ele é mesmo
to um poema com sangue do próprio
um disco. Assim, é um objeto circular de
pulso. E o movimento Oxente entrava
12cm de diâmetro e é reproduzido no cd
para o Guiness Book por ter feito a maior
player. Mas possui um livreto como en-
obra de arte de sucata do mundo.
carte lotado de poesias. As músicas são
Desde muito cedo Civone se atreveu a poemas musicados ou músicas poeti-
atrever. A ler filosofia ainda adolescente zadas? Não sei e acho que é difícil de-
na biblioteca da escola (e depois aban- finir”, tentou entender o crítico carioca
donar a escola); a transformar lixo em Jairo de Souza. Era – é – palavra e som
poemas visuais e chamá-los de arte; a dialogando, aquilo que não tinha nome.
ingressar no grupo Teatro Mágico para A própria voz é transformada por efeitos
Loucos; a continuar com as performan- eletrônicos.
ces polêmicas – apesar do pessoal do
“Não temos estilo, temos estalo”, brin-
contra. Ela faz poesia com vídeo, tinta,
cou Carito com a própria indefinição do
quadro, tecido, sucata, o próprio corpo
trabalho. Ainda hoje há quem resista em
e o que mais estiver à mão. E também
chamar o que ele escreve de poesia.
escreve livros. Em 2010, lançou Escri-
Carito usa o jogo de palavras, faz troca-
turas Sangradas, dois volumes de fo-
dilhos, tece pequenas ironias. “Ora, eu
lhas soltas organizadas em caixinhas.
escrevo em versos, digo que é poesia,
“Eu sou poeta. O resto é uma alegoria
publico como poesia. Então, é poesia!”
da escrita”, diz, sobre a multiplicidade
de suas obras. Em uma de suas perfor- No palco, eles usam figurino e Carito,
mances na Ribeira, subiu nua na mesa: que já participou de grupo de teatro,
era ela a obra de arte. “Escreva-me ou interpreta: o visual também compõe a
te devoro!”, gritava de tempos em tem- poesia. “A gente gostava muito da coisa
pos, fazendo a esfinge grega. Custou estranha, e queríamos apenas agradar a
para que as pessoas entendessem que nós mesmos”. Mas o público gostou, a
a poesia seria escrita ali, coletivamente, crítica “lá de fora” elogiou, Michele Ré-
no corpo dela. gis se integrou à dupla e surgiu o segun-
do CD, Estirado no estirâncio.

Estilo, estalo
Carito e Edu Gomez já eram artistas for- Na rua
mados e atuantes na cena underground O ingresso de Daniel Minchoni para o
natalense da década de 90 quando co- mundo da poesia marginal veio num en-
meçaram a “desaprender” tudo para carte da revista Trip: era o CD da banda
formar Os Poetas Elétricos. Ainda na CEP 2000. “Neste momento eu percebi
banda Modus Vivendi, tinham o costu- que a poesia não só poderia ser insti-
me de passar as madrugadas no estú- gante como poderia ser amplificada, e
dio criando o que não cabia no sistema passei a expor a palavra como ela deve
refrão-poucos-acordes-do-rock: Carito ser, com a voz do poeta por trás dela”,
compunha e vocalizava poesias; Edu diz. Ele fala poesia como quem conta
colocava as possibilidades da guitarra uma história, com molejo no corpo e tre-
a serviço dos versos. Vez em quando jeitos nas mãos. “É um pouco mais que
inseriam alguma coisa nos shows ou fa- stand-up poetry e é menos que teatro,

36
Carlos Gurgel

37
foto Giovanni Sérgio
mas parece. É um pouco a expansão do Gullar, Florbela Espanca e Carlos Drum- Experimentando
meu pensamento”. Ele pinta nas ruas de mond de Andrade. Currais Novos nunca o verbo
São Paulo (onde nasceu e para aonde tinha visto aquilo. “Nós tínhamos uma
Pode parecer contraditório, mas saber
voltou em 2006 depois de oito anos em necessidade de criar uma identidade
experimentar e criar sem preconceitos
Natal) e se apresenta em lugares mar- nossa no meio dessa realidade que a
também exige concentração, disciplina
cados ou de improviso, como praças gente sabia como funcionava e via que
e rigor. “Tudo é pensado: cada acorde,
e ônibus. Gosta de relacionar a poesia não chegava nada pra gente”, diz Wes-
cada sílaba da palavra, cada tom na voz
com a rua. “A arte na rua, isto me inte- ckley Gama, que aprendeu a tocar vio-
e no instrumento, a interação entre eles.
ressa: lugar de artista é na rua”. lão num pedaço de madeira pintado. Na
Cada segundo, cada frame, tudo é mui-
cidade não há teatro, e no cinema (hoje
A quilômetros de Sampa, o Grupo Ca- to importante, o timbre, o efeito, a tex-
fechado) só passavam filmes como Os
sarão de Poesia só foi saber que exis- tura, a postura, a atmosfera”, diz Carito
Trapalhões e Rambo, além dos porno-
tia poesia potiguar, além do clássico sobre a composição dos Poetas, que é
gráficos. As influências culturais vieram
circuito acadêmico, em 2004, quando feita com hora marcada, em estúdio, ou
da televisão, dos cordéis, dos discos
conheceram através do blog Balaio em conversas e mensagens trocadas
dos pais, dos festivais de repente e
Porreta o poeta Moacy Cirne. Natural de por telefone. Tudo pode ser aproveita-
dos livros. Já adultos, estudantes uni-
Jardim do Seridó, mas vivendo no Rio do: um ruído sonoro captado na fazen-
versitários, eles se reuniam na residên-
de Janeiro desde os anos 60, foi Moacy da onde costumam ensaiar, uma cena,
cia abandonada do campus de Currais
quem ciceroneou virtualmente os seis um trocadilho inventado, devaneios de
Novos para beber vinho e recitar poe-
integrantes do grupo pelos caminhos ambos. O último CD, Breves incandes-
sias. “Essa inquietação fez com que nós
pouco trilhados dos versos contempo- cências, foi composto e gravado em
percebêssemos que poderíamos ser a
râneos potiguares. “A gente pensou: estúdio em 15 dias – talvez uma reação
mola propulsora e trazer para a cidade
‘meu Deus, tem esse povo todo aqui da dupla ao segundo CD, que consumiu
movimentos culturais para dar um senti-
e a gente só valoriza Sicrano, Fulano e dois anos em experimentações. Michele
do à nossa vida”, lembra Wesckey.
Beltrano!’”, conta Iara Carvalho. Mais Régis se afastou do grupo, e as faixas
ou menos nesse período começaram estão mais melódicas. Ele será lançado
a criar performances, às vezes com os antes de junho.
próprios versos (dos seis, apenas um
Para experimentar é preciso, ainda, co-
não escreve) e de outros, como Ferreira
ragem. Algumas pessoas não gostam

Civone Medeiros

38
foto Acervo Pessoal
Casarão de Poesia

quando Civone tira a roupa. “O corpo Com “Dramática Gramática”, voltou ao


é uma ferida que a sociedade precisa estúdio, onde não aparecia há alguns
descascar”, escreveu certa vez. Diz que anos, para mais uma vez misturar som,
se exibe para ser incluída. “Tive uma in- imagem e palavra numa mesma poesia.
fância invisível porque meu irmão tinha “Pois que poesia em estúdio é muito
a saúde frágil e concentrava a atenção bom. Pois a poesia quando mergulha
dos meus pais. Estou sempre querendo por sobre a imagem, ela se reconhece
ser aceita”, psicanalisa. Paradoxalmen- de outra forma. Ela pula, ressuscita,
te, não cede um milímetro às exigências revigora o verbo. Pois ultrapassa, voa,
do público. “Eu sempre sei que vou de- liberta. Falta-me vocabulário. Foi muito
sagradar.” bom”, escreveu no encarte do CD.
Carlos Gurgel é outro que está sempre Estúdio, invés, não é a praia de Mincho-
em busca da provocação. “Não gos- ni: ele se interessa mais pela relação
to de ser bonitinho. Quando estou no entre o público e o poeta, o confronto,
palco, eu quero ser um bicho do mato, o improviso, as diversas possibilidades.
instigar, provocar”. Ele grunhe, estica, Nada é muito ensaiado. Alguns dos po-
encolhe, grita e trunca palavras em suas emas só “funcionam” quando apresen-
performances, acompanhado ou não tados. “Muitas vezes vou a um sarau
por instrumentos musicais. “É como se com uma ideia e vou descobrindo ela
estivesse em outro plano. Fico em sin- enquanto estou fazendo, improvisando,
tonia com outro ritmo, a palavra me joga errando em público. Gosto disto de ter
dentro de uma vibração, e aí ela se ma- uma obra aberta, que pode ser sempre
nifesta”, explica. modificada”. Pela editora natalense Jo-
vens Escribas, publicou Escolha o título,
Mas só em 2003 começou a oralizar
em 2006, um livro de poesias. Agora, os
sistematicamente o que escreve. Que-
versos, animados, falados ou escritos
ria “espalhar o verbo”, levar a poesia –
(ou tudo junto), estão disponíveis em si-
muito solitária para poeta e leitor – para
tes da internet.
uma experiência mais social, coletiva.

39
Para saber mais
Já o pessoal do Casarão sabe que nem Carlos Gurgel
só de internet vive a poesia. E que não vocabulariodaraca.wordpress.com
bastam as performances para romper a
barreira da cultura elitista local. “Quando
a gente diz que cobra por apresentação, Casarão de Poesia
as pessoas dizem: ‘ah, e não querem casaraodepoesia.blogspot.com
divulgação?’ Por isso, mergulhamos
nos editais”, conta Iara Carvalho. Em
Civone Medeiros
2007, assumiram-se como grupo e co-
meçaram a agitar os Dias da Poesia na escriturasangradas.blogspot.com
cidade. Em 2009, fundaram o Ponto de vimeo.com/civonemedeiros
Leitura com apoio do Governo Federal.
Participam de concursos de poesia (e
vencem, muitas vezes), dão aulas de Daniel MinchonI
informática, xadrez e violão, quase de soundcloud.com/danielminchoni
graça, para crianças e idosos, e realizam
rodas de leitura com escolas e doentes www.youtube.com
psiquiátricos (duas das integrantes são watch?v=dq33GJfdW7
assistentes sociais). “A gente não segu-
ra bandeira política: prefere atuar mais Os Poetas Elétricos
diretamente na comunidade”, diz Iara.
www.carito.art.br
“A gente não faz pelo dinheiro: é para se
sentir vivo”, resume Wesckley. www.ospoetaseletricos.com.br

Para que, além de vivos, os poetas poti-


guares sigam unidos e fortalecidos, Car-
los Gurgel idealizou o “Verbeto Voador”,
que a Fundação José Augusto vai to-
car a partir deste ano. Os poetas terão
espaço e hora marcada semanalmente
para discutir, trocar e, quem sabe, con-
ceber poesia juntos. Quem sabe a partir
daí o verbo se espalhe ainda mais pelas

foto Acervo Pessoal


terras potiguares.

Luana Ferreira é jornalista.

Daniel Minchoni

40
m u s a

Ah, o poder de sedução que têm os


homens inteligentes.
por Maria Emília Wanderley
E é aí, como diz Sartre, que a mulher
faz-se.
Pois bem, o sedutor não sabe a arte que
tem de transformar, em segundos, todo
o poder da terra em sonhos.
E o sonho é sempre uma forma de nos
afastar da dor. Chega a confundir: a vida
é sonho ou a vida é real?

“Oferecer-te-ei
Pérolas de chuva
Vindas de países
Onde nunca chove”

Os versos são de Jacques Brel, mas... a


musa? Acho que sou eu, ou você.

Maria Emília e Berilo Wanderley, noite de formatura, Aeroclube de Natal, 1960 Maria Emília Wanderley é musa.

41
m é t r i c a

Por Fábio Farias

42
Em tempos de crescimento econômico, já escrito, ainda não esgotou sua tiragem Para a poeta, as vendas mínimas se de-
de aumento na oferta de emprego e na de 300 exemplares. “Acho que ainda exis- vem à falta de educação formal do públi-
renda média do trabalhador, uma per- tam uns cem no mercado”, pensa. co e também à falta de informação. “Acho
gunta paira: e a literatura, José? que se as escolas fossem boas, e se os
Mesmo diante dessa dificuldade merca-
alunos aprendessem a gostar de poesia
Não é novidade que o bolo da economia dológica, Abimael insiste em editar poe-
desde cedo, a situação era outra”.
não é lá tão vistoso quando o recheio é feito sia. “Faço isso porque leio poesia e gosto
de letras e palavras. O produto livro não en- de publicar”. O Sebo Vermelho já publicou
cabeça a lista de preferências mercadológi- autores como Iracema Macedo (nascida
cas dos brasileiros. A pesquisa “Retratos da em Natal em 1970) e Palmyra Wanderley
Prestígio
Leitura do Brasil” feita pelo IBGE em maio (Natal, 1894-1978). Só no ano passado, Engenheiro agrônomo, poeta, criador e
de 2008, revela que mais da metade dos foram 12 os livros de poesia que saíram editor da Flor do Sal, Adriano de Sousa
livros vendidos são didáticos. Além disso, na Coleção João Nicodemos de Lima, de é direto: “Historicamente, poesia nun-
a conta do mercado torna-se ainda mais sua editora. Abimael pretende alcançar ca vendeu”. Exceção aos “canônicos”,
negativa nas balanças dos novos autores número semelhante ainda este ano. Cé- como Bandeira, Drummond, Vinicius,
e das pequenas editoras. Outros dados tico, não titubeia: “Lamentavelmente pou- os livros penam para sair das pratelei-
entram na caderneta do atraso – o mais cos vão vender”. ras. Ele não conhece nenhum caso de
marcante indica que 45% dos brasileiros um livro de poesia que tenha virado best
As vendas de livros de poesia, segundo seller. Para comprovar o que diz, apela
não leram um livro sequer nos últimos três
Abimael, concentram-se mais nos eventos para a história: segundo ele, o primeiro
meses. Com um mercado tão pequeno e li-
de lançamento. Nessas ocasiões, amigos, livro de Manuel Bandeira não teve tira-
mitado para quem se dedica à atividade de
escritores, jornalistas e alguns fieis leitores gem superior a 300 exemplares. Drum-
escrever, editar e publicar, é de se imaginar
se encarregam das maiores vendas. “De- mond também teve uma tiragem sim-
que este cenário, para a poesia, seja ainda
pois, vende a conta-gotas”. Daí a tiragem bólica na primeira obra e contou com
mais grave e sombrio.
média de, no máximo, 300 exemplares. ajuda de amigos para começar a pu-
Daí surge uma nova pergunta: quais fo- blicar. Ambos passaram a vender livros
Para o editor, as vendas quase insignifi-
ram os livros de poesia mais vendidos depois que atingiram prestígio e depois
cantes são características intrínsecas ao
nas livrarias de Natal? de lançarem várias edições. Hoje são os
gênero. “Poesia é pessoal, intransferí-
Em um levantamento realizado nas duas vel, uma conversa a dois entre o poeta e chamados canônicos.
principais livrarias da capital – a Poty Li- o leitor”. E exemplifica com Drummond, “Não existe poesia de entretenimento.
vros e a Siciliano –, e levando em conta cujos livros tinham uma tiragem de três Ela tem uma chave diferente da prosa
os três primeiros meses do ano, a cam- mil exemplares para os 26 estados bra- no sentido de repercussão”, afirma, ex-
peã de vendas foi a edição de bolso da sileiros, mesmo depois de consagrado. plicando o porquê do consumo incipien-
Antologia poética de Vinicius de Moraes: “Se formos dividir, é pouco mais de cem te. Para o editor, nem a internet nem os
152 exemplares na Poty. Enquanto que A livros para cada estado, uma média meios digitais vão mudar esse cenário.
rosa do povo, de Carlos Drummond de muito pequena”. “O fato de ter formas mais acessíveis
Andrade, foi o mais vendido na Siciliano: não vai mudar a questão da poesia.
48 exemplares nos últimos três meses. Ela exige mais do leitor”. A sua editora
Entre os autores potiguares o cenário Faltas lançou cinco livros de poesia em quatro
pode ser ainda mais desolador: os livros Entre os mais vendidos da livraria Poty, anos de existência – incluindo o mais re-
simplesmente quase não saem da pra- está Resina, de Diva Cunha, na terceira cente, Águas, de Ada Lima, lançado em
teleira. O primeiro lugar da Poty Livros posição. Lançado em 2009 pela editora abril. As tiragens não passam dos 300
coube à poeta Lisbeth Lima: 13 exem- Una, com tiragem de 500 exemplares, exemplares. “As tiragens são ridículas
plares de Vasto. Já na Siciliano, Verme- oito exemplares foram vendidos nos úl- do ponto de vista comercial e mostram
lho mel, de Vânia Aurélio, conseguiu ba- timos três meses. Ao ser informada, a como a poesia é de baixo consumo”.
ter a casa dos 111 exemplares, número autora não disfarçou a surpresa e consi- Se a situação é assim tão ruim, por que
inflado pela recente noite de lançamen- derou “alto” o número. “Não esperava”, então existem cada vez mais autores?
to, ocorrida em março. confessa. Com uma tiragem maior do Ele arrisca: apesar da escala peque-
que o padrão, Diva enviou exemplares na, o leitor existe – “não para comprar
do seu livro para amigos e professores 300 mil exemplares, mas para 300,
Caos de outros estados. “Os livros aqui não sim”. Além disso há o prestígio, tanto
Editor e criador da editora Sebo Verme- circulam”, explica. Segundo ela, pouco para o autor, quanto para o editor. O
lho, Abimael Silva é peremptório: poesia mais de cem exemplares foram vendi- que justifica algumas editoras maiores
não vende. O exemplo ele tira do bolso dos no lançamento, outros cem foram manterem poetas em suas publica-
sempre que entrevistado: Os elementos enviados a esses contatos, e o restante ções unicamente por esse prestígio,
do Caos, de Miguel Cirilo, editado há exa- está nas prateleiras. “Tenho ainda al- inerente ao fazer poético.
tos 10 anos por Abimael e por ele consi- guns em casa e sei que sobraram pou-
derado o melhor livro de poesia potiguar cos nas livrarias”, comemora. Fábio Farias é jornalista.

43
p o e m a

foto Wellington Dantas Cavalcanti

44
O BICHO
IMAGINADO
W. D. Cavalcanti

A Francesco de Assis, o homem Meu reino por um cavalo traduz o trágico preciso.
Por sobre os cacos, aonde me levam os pés por cascos?
Beijo leprosos,
converso com os pássaros,
Furta-me o olhar a graça dessa fera, desnudo-me no tribunal,
forte fibra entre flores e relva, deserdo-me das transitórias tramas,
carne tenra pastando sobre a terra. livro-me dos tecidos,
Vê-la em comunhão com tudo que a cerca, reergo templos devastados,
a indagar-me sobre o corte original me leva: abraço desvalidos,
como, onde, quando me desnaturei? fundo-me ao barro,
Por que do reino por rei me separei? sangro como Cristo.

Aterram-me pensares incômodos Abstraio-me de mim,


que ao humano acodem como sucedâneos sorvo a seiva da flora,
e, parasitas, o cobrem como as heras, me amalgamo à fauna,
preenchem o vazio que anima os bichos, rumino folhas, ervas e insetos
de lisonjas servem aos infelizes Sísifos e os sou, assim como me é tudo que é vivo
e entre um relâmpago e outro no breu infinito e uno-me ao circunstante indiviso
acendem a escuridão tal Prometeu no mito, enquanto num instante viro bicho
sem aliviar o fígado, na imaginação em seu cio
sem apagar o dano, - com a pauta por lei,
sem reparar o prejuízo. longe do pensar
que faz do homem
um mendigo
Reintegro-me por cúmplice olhar ao paraíso,
a suspender nesse improviso de breve suspiro
a pena cominada à espécie dos aflitos. e um rei.

W. D. Cavalcanti é poeta e artista visual.

45
e n s a i o

46
por Jarbas Martins | arquivo fotos Giovanni Sérgio

possível traçar um panorama, crítica em nossa literatura, JBMN, com mentados, o que nos parece atualíssimo,
ainda que incompleto, da poesia uma visão arguta e despreconceituosa, assim se expressa o jovem LC Cascudo:
norte-rio-grandense, tomando- analisa algumas pedras de toque (ex- “Livro capital, livro póstumo, desprovido
se o verso romântico como uma nota pressão cara a Mário Faustino) do autor da lógica e natural orientação que o au-
constante e dissonante, tendo como de “Terra Natal”. Como esses versos que tor lhe daria, é um poema sincero, que
ponto de partida Nísia Floresta. Seu fazem parte de um soneto: “Como os comove e faz pensar” (Cascudo, “Alma
verso híbrido, entre o tom professoral semblantes dos desamparados/ o sorri- Patrícia”, apud Francisco das Chagas
e ilustrado, que tanto aborrecia o crí- so das almas dolorosas,/ o alvor marmó- Pereira, Ferreira Itajubá, Ed.Universitária,
tico Luís da Câmara Cascudo, e um reo dos crucificados”. Natal, 1981, p. 47).
nativismo patrioteiro, de decassílabos
Alvor/lavor. Não me furto a interagir com verso romântico, que motiva
mal construídos, faziam dela uma po-
a poética de Itajubá. Extraio de um de este miniensaio, imbrica-se
etisa romântica menor. Esse, aliás, é o
seus versos a palavra alvor (estilema não raras vezes com o seu du-
“status” que lhe confere o crítico Nelson
simbolista que associo à palavra lavor, plo (versos, antiversos, pós-versos de
Werneck Sodré.
lembrando o artesanato, o rigor – pro- extrações várias: expressionistas, sur-
Ao seu lado, em pé de igualdade estética, cedimentos tão clássicos). Em seu itine- realistas, grafismos da arte pop etc.);
não vemos como não alinhar a poetisa rário, esse barqueiro livre se deixa levar talqualmente o verso clássico (que
Auta de Souza. Seu verso, onde a auto- pelo Romantismo, pelo seu avatar, o está subjacente na ars poetica de Ní-
piedade se faz presente, sílaba a sílaba, Simbolismo, e antecipa a saudável téc- sia) se ramifica, enlaça-se com o par-
mal esconde a saudável contribuição do nica de neoparnasianos ilustres: Otho- naso-simbolismo (do qual Henrique
verso neoclássico. Mesmo tendo o aval niel Menezes e Juvenal Antunes. Castriciano é a sua mais perfeita tra-
do grande artesão que foi Olavo Bilac. dução) e atinge sua culminância com
Com toda razão, Itajubá pode ser con-
Zila Mamede, nome central do nosso
Mas voltemos ao verso romântico. Des- siderado o berço progônico do nosso
cânone poético. Clássica por natu-
ta vez, personificado (sim, não se pode verso romântico, antecipando a poética
reza, Zila reinventa o verso, inova-o,
separar a biografia de um poeta da sua dilacerante de Sanderson Negreiros,
empresta-lhe a mobilidade, novas
obra) em Ferreira Itajubá, poeta ribei- que hesita entre a tradição e a ruptura, o
sonoridades, pausas, improvisações
rinho que logrou descortinar horizontes divino e o humano, a desrazão e a busca
melódicas, constrói e desconstrói o
mais amplos. O alexandrino, que usou existencialista do significado. FI, o Can-
verso, no limiar da Modernidade com
com o desleixo, ou o relaxo, de um ro- guleiro Cósmico, contrariando a versão
a Pós-Modernidade.
mântico, não foi compreendido pela eli- de poeta ingênuo, que a crítica do seu
te intelectual da época. Preconceituosa, tempo lhe impusera, escreveu poemas, Mas antes, bem antes, do verso clássico
não quis enxergar o quanto havia de refi- onde se envereda até pelas cosmogo- imbricar-se com o parnaso-simbolismo
namento e inventividade na obra do Poe- nias, exposições míticas da origem do de Castriciano, ele já estava de corpo e
ta Canguleiro. Até a publicação do ensaio universo, tão presentes na poesia erudi- alma na poética de Segundo Wander-
Revendo Itajubá (Editora Sebo Vermelho, ta, de cunho filosófico, de Augusto dos ley. Em versos anacrônicos como os de
Natal, 2007), do professor e poeta João Anjos e Tobias Barreto – este último um seu soneto “Implacável!”, incluído por
Batista de Morais Neto, pouco se sabia nome de relevância da chamada Escola Tarcísio Gurgel no livro Informação da
da arte de Itajubá, oleiro de mãos leves. do Recife. Ao falar de “Terra Natal” gran- Literatura Potiguar (Editora Argos, Na-
Representante de uma nova tendência de poema, composto de cantos frag-

47
IMPLACÁVEL tal, 2001, p.177). Vejamos o soneto, ao
lado, tal e qual TG o reproduz:
estudioso, erra ao atribuir uma supos-
ta modernidade à SW. Diz que “Impla-
cável!” (com sua apostrófica exclama-
Segundo Wanderley é um poeta com o
ção) é um “claro experimento de feição
seu artesanato e idéias deslocados, no
Resvala o raio rútilo rasgando simbolista, onde o uso da aliteração é
tempo e no espaço. Seu verso é clássi-
espantoso” (Informação da Literatura
Da imensidade a tela vaporosa; co e nada o autoriza a colocá-lo como
Potiguar, p.42). Não é. A moldura des-
pioneiro do Simbolismo, como o fizeram
Treme a terra terrível, tenebrosa, se soneto (com suas veleidades mo-
os doutos Padre Jorge O’Grady e Tar-
dernosas) é uma pista falsa, dada pelo
Ao rugir dos trovões, de quando em quando. císio Gurgel. Nem há como se imputar
retardatário natalense para cantar o
o seu verso de inventividades, como o
amor fatídico, mal apropriando-se de
Volve a vaga valente vomitando fez Moacy Cirne, em um vanguardístico
gastas imagens, envolvendo as forças
ensaio sobre a poética nativa (cf. A Po-
Alvos cachões de espuma procelosa; da natureza. Temas e formas glosadas,
esia e o Poema no Rio Grande do Norte,
e já cediças, em pré-românticos. Seu
Do firmamento a face fosforosa FJA, Natal, 1977). O reverendo O’Grady
decassílabo, de ritmo postiço, sua arte
erra e vai fundo, por mares nunca dan-
Vai de chamas as nuvens inundando. “culinária e digestiva” (para usar termos
tes navegados, confundindo a anti-
de José Guilherme Merquior acerca do
quíssima figura da pangramática (de
Nos sombrios sertões silva a serpente, kitsch) só aparentemente se identifica
caráter cerebral, mais próxima do esti-
com o pré-modernismo dos simbolis-
Aos furores fugindo das fagulhas lo clássico) com a aliteração dos sim-
tas. Aliás se é para se falar na presença
bolistas, onde a repetição de fonemas
Cede o cetro aos caprichos da corrente… do Simbolismo em nosso verso, lembre-
se dá, como espontaneamente, vindo
mos, aqui, o que eu já dissera há dezes-
das camadas do Inconsciente. Mas isto
sete anos:
Só tu resistes na paixão dos mares, é uma lição de outro erudito: o alemão
Ernst R. Curtius. “É, no entanto, com o soneto ‘Por Janei-
Desprezando, do trono em que te orgulhas,
ro’, de Ferreira
Itajubá, um poeta onde
Sem a erudição e o pedantismo do Pa-
Promessas, prantos, penas e pesares. se mesclam variadas técnicas
composi-
dre O’Grady, Tarcísio Gurgel, dotado de
tivas, predominando verso alexandrino
um estilo bem articulado e encantador
tão ao
gosto dos românticos, e o decas-
como a nossa belle époque, da qual é

48
sílabo, de dicção lírico-parnasiana, que,
ao meu ver, melhor o movimento simbo-
lista está representado, nesta despreten-
siosa mostra. […] Enquanto Castriciano
e Auta ainda se mantêm presos ao
ideá-
rio racionalista do parnasianismo, Itajubá
força a barra
da tradição com seu poema
composto em versos eneassílabos. Um
metro que foge do automatismo decas-
silábico e
subverte já o código sonetís-
tico vigente. Erodindo-o, parodiando-o,
rarefazendo-o.” (Jarbas Martins apud
João Batista de
Morais Neto, Ed. Sebo
Vermelho, Natal, 2007, p.21).
Quanto ao ensaio de Moacy Cirne, há
que se considerar que ele foi mais co-
erente que O’Grady e Gurgel. O estilo
amaneirado de Segundo tem lá o seu
charme inventivo e… kitsch. O soneto
“Implacável!” é um bibelô, trompe l’oeil,
adornando os salões da sua época. E
Moacy acaba abonando uma tese de
Haroldo de Campos. Existe mais coisas
entre a Vanguarda e o Kitsch do que se
possa imaginar (cf. “Vanguarda e Kits-
ch” in A Arte no Horizonte do Provável,
Ed.Perspectiva, SP, 1969).
omando-se Zila Mamede – com
sua arte clássica, seu verso lím-
pido, assentado na tradição, cul-
minância da Modernidade – e seu duplo
– um lirismo, de nuances românticas,
baseado nas rupturas, anunciador das
vanguardas e da Pós-Modernidade –,
e veremos o verso norte-rio-grandense
como uma interface. Sistemas opostos
que se unem ou se sobrepõem. O verso
clássico e/ou o verso romântico, depen-
dendo da interpretação de quem o lê.
Leitura arbitrária e interativa. De minha
parte, vejo o verso romântico como uma
constante, de Nísia Floresta à poética
multimidiática de Carito.
Antes, porém há que se falar em prógo-
nos, como Henrique Castriciano, com
seu verso neoclássico. Como um Bau-
delaire nos trópicos, Castriciano usaria
a grade clássica do soneto parnasiano
para mascarar a sua inquietação. No
caso do poeta macaibense, a causa
da sua angústia seria sua condição de
poeta mestiço (se bem que aquinhoado
e protegido pelo mecenato do oligarca
Alberto Maranhão) numa sociedade ex-
cludente e preconceituosíssima. Leitor
pioneiro da alta poesia do simbolista

49
Cruz e Souza, com o trágico poeta cata- Abram-se aqui parênteses para dizer animado. Sem falar que, em sua poética,
rinense, de certa forma, se identificaria, que esses estilemas chegam até nomes se faz presente algo raro na nossa esté-
ajudando a disseminar por estas terras da contemporaneidade, como Marize tica parnaso-simbolista: o humor corro-
uma espécie de romantismo expressio- Castro e Iracema Macedo, e nos po- sivo da dicção coloquial-irônica, a que
nista. De que, aliás, o decassílabo da emas bissextos e apócrifos de Franklin alude o crítico norte-americano Edmund
jovem Zila Mamede tanto se nutre. Jorge. Othoniel Menezes, em minha lei- Wilson. Em meu 14 versus 14 (1994),
tura arbitrária, seria uma nota dissonan- apesar de citá-lo, como grande poeta,
Por mais que se queira ver o dândi
te nos quadros do Neoparnasianismo. não incluí nenhum soneto seu, entre os
Castriciano como um antecipador de
14 escolhidos. Não tinha, ainda, avalia-
rupturas, há que se considerar que seu oeta multivalente e moderníssi-
do a força do Neoparnasianismo – uma
verso jamais chega à ludicidade de ne- mo, Othoniel Menezes pode ser
corrente estética tipicamente brasileira.
oparnasianos como João Lins Caldas, visto como o mais versátil dos
Foi necessário que o olhar de uma his-
Juvenal Antunes e Othoniel Menezes. nossos neoparnasianos. Claro que sua
toriadora e filóloga estrangeira (Luciana
Poetas de mundos tão díspares, como poesia vai além do Neoparnasianismo,
Stegagno-Picchio, em sua História da
díspares eram as influências que anima- seu modernismo inclui o verso livre, a
Literatura Brasileira, RJ, Nova Aguilar,
vam o neoparnasianismo, a que perten- poesia política, formal e tematicamente
1997) me abrisse os olhos para esse
cem. Se em Caldas o tradicionalíssimo revolucionária, a poesia onde a força da
fenômeno tropical. Veja-se esse soneto,
decassílabo convive com o verso livre oralidade se faz presente, a poética art
abaixo, vazado em versos nada ortodo-
(do qual foi um dos pioneiros no Brasil) nouveau, que floresceu, em determina-
xos, mas vivo e rutilante como uma tela
e a invenção gráfico-visual (como no da época do Modernismo, e pode ser
impressionista. Extraí-o da antologia de
alagoano Hermes Fontes), em Juvenal até arrolado, aqui, como uma pedra de
Tarcísio Gurgel (obra citada) que soube
o verso desleixado faz um par perfeito toque (touchstone), o título de um livro
criteriosamente garimpá-lo.
com os estilemas do Decadentismo. de puro sabor pop midiático, Desenho

SUGESTÃO DA LUZ

A Paulo Pereira da Câmara

Na glória vesperal do sol, que o facho


forja, em clarões de fogo e prata ardente,
passa, dentro do incêndio, lentamente,
– subindo o rio – o vulto de um patacho.

Pando, à brisa cantante, o amplo velacho


oscila, e molha a ponta na corrente…
A água murmura. A espuma abrolha, rente
à proa, abrindo em férvido penacho!

Toda tarde, é este esplêndido cenário:


– negro, rasgando a tela azul do estuário,
o barco avança, ao lento embalo da onda…

Lá vem! Parece à luz – que é fogo e prata –,


o navio fantasma de um pirata,
trazendo maravilhas de Golconda!

50
neoparnasianos, com sua dísticos e vazados por uma angústia dência Deífilo é folclorista, tendo pesqui-
devoção pelo verso de- existencial, própria daquela época. sado, como seu mestre Luís da Câmara
cassílabo e pelo soneto, Cascudo, de quem foi aluno na UFRN,
A esses nomes junta-se um poeta, de
deixariam discípulos, em nossa literatu- os velhos cancioneiros, de origem ibé-
estréia tardia em livro: Homero Ho-
ra, numa geração que poderia se cha- rica, guardados na memória do nosso
mem, radicado no Rio de Janeiro, mas
mar “Geração pós-45”. Emergiu daí Zila povo.
fortemente fincado às suas raízes. Terra
Mamede, chamada pelo epíteto “Estrela
iluminada, aliás, é título de livro desse Em Zila Mamede, a quem Cascudo ba-
Guia” por Luís Carlos Guimarães. Este,
Homero da nossa Pós-Modernidade. tizou de “Cantadora lírica da cidade, do
um lírico-romântico na arte e na vida.
Em sua arte poética, o verso clássico rio e do mar”, pude fazer um apanha-
À semelhança dos Neoparnasianos, une-se ao verso experimental, descons- do de velhos gêneros poéticos, como
essa geração, que brotou como uma truído e atomizado. Como bem assina- o romance e a canção, renovados pelo
flor atômica, no período da Guerra Fria, lou o escritor Manoel Onofre Jr., os ver- gênio da nossa Poeta. Uma técnica
trouxe a sábia lição dos versos clássi- sos de HH estão “passados de valores não muito distante da que se utilizara
cos conectada à rebeldia dos versos românticos”. Ezra Pound. Desse Breve Romanceiro
românticos. Rebeldia que se traduz pela de Zila Mamede (título de uma pales-
De versos românticos embebem-se tam-
paixão a que se entrega Nei Leandro tra que dei, na UFRN, num evento co-
bém os poemas do areiabranquense De-
de Castro, o poeta de versos eróticos, memorativo) extraio, dando destaque,
ífilo Gurgel, principalmente os poemas
romanticamente planfetários, vanguar- um dos seus poemas mais pungentes
que se utilizam das quadras setissilábi-
e renovadores: “Romance de Lula-
cas, de origem popular. Não por coinci-

51
lua”. A semelhança, ainda que tênue, o submete ao crivo de uma estética quela época fortemente ideologizada,
com o “Romance da lua lua”, de Fe- inovadora. Onde a presença da Poesia o nosso talentoso poeta e estudioso
derico Garcia Lorca, não é coincidên- Concreta, de São Paulo, e demais van- do cinema, Paulo de Tarso Correia de
cia. O Romanceiro gitano do espanhol guardas surgidas na segunda metade Melo, não tenha se dado conta da força
era um dos livros preferidos de Zila. Só do século passado. É possível também descritiva e dramática desse romance,
que tematica e formalmente os dois detectar-se a tendência para o gosto ar- apesar de considerá-lo “alentado” (cf.
romances, em muito, se distanciam. tístico, vigente nas conversas de porta Navegos/A Herança, EDUFRN, Natal,
O poema de Lorca, em versos de sete de livraria com cinecluistas e literatos, 2003, ps.27 e 28).
sílabas, trata do medo de uma criança, naqueles vertiginosos tempos (anos 60
Avessa como o poeta Paulo de Tarso
num cenário surrealizante. O de Zila, e meados dos 70). Era imperativo gostar
a engajamentos poéticos e políticos, à
em versos heterodoxos e experimen- do cinema de vanguarda da época, dos
vida boêmia, à euforia dos esquerdofrê-
tais, refere-se ao estupro e assassinato princípios montagísticos das vanguardas
nicos dos anos de chumbo, e às rodi-
de uma pobre velha, que frequentava a do passado, vistos no cinema de arte,
nhas literárias provincianas, Zila Mame-
casa da poeta, lembranças da infância dos planos-sequência do nosso Cine-
de soube, com rara intuição, perceber
no interior. ma Novo, das tendências neorrealistas.
a miséria humana, a dor dos oprimidos,
E ler, ainda que a contragosto, o estilo
Em “Romance de Lula-lua”, Zila Mame- as miudezas divinas do cotidiano, a
jornalístico da imprensa reacionária.
de descarta procedimentos poéticos brutalidade, a escória do mundo, onde
mais tradicionais, como os adotados Talvez pelo sua aversão à qualquer tipo todavia há lugar para a fé, a caridade,
em seu famoso “A cruz da menina”, e de vanguarda, estética ou política, da- e a esperança, as chamadas virtudes te-

52
ologais do seu credo cristão. Da leitura LIRISMO CÓSMICO
do seu livro Corpo a corpo (1978) reno-
vamos a nossa percepção na dor que
existem nas coisas, ou em nós mesmos,
como sempre alardearam os versos Cobre meu corpo de corpo
dos românticos de todos os matizes, Antecipa a florilúnea estrela
tenham eles os nomes de Baudelaire,
Leopardi ou Zila Mamede. Mas à pre- Funda-me funde-se me
sença da estética do sublime, de cunho Envolva-me nos teus braços
salvacionista, que o brilhante ensaísta,
que é Paulo de Tarso, apontou com (barcos-mísseis)
ênfase, nos poemas de Corpo a cor- no cósmico-cosmos,
po, prefiro apontar para outra direção.
Para a estética romântico-expressio- na nave nuvem névoa
nista, presente em seus primeiros ver- estágios do abandono certeza
sos, como os do soneto “Mar Morto”.
Ou para o romantismo neobarroco, seu cápsula dádiva porto dívida
horror vacui gráfico-visualmente inscri- dividida totalidade do ser, no ser
to nos versos, anti-versos e pós-versos
de poemas como este “Lirismo cósmi- luavida vida lúcida:
co” (in O Exercício da Palavra). lúnica
ida
sônica
tua
Jarbas martins é professor e poeta. única

53
e n s a i o

Rio Grande do Norte


capital Natal
eme cada esquina um
m cada rua um jornal

por Giovanna e Giovanni


poeta
Giovanna Hackradt e Giovanni Sérgio
são fotógrafos
a n t o l o g i a

S a n d e rs o n
N e g r e ir o s

esquina do Potengi com o Atlântico

Era o derradeiro de uma família


De homens bons. Cultuava
Mistérios e usava a memória
Para longas viagens repetidas.

Todos admitiam que sua vida


Era o destino de toda gente
Feliz. Tinha fazendas, mulheres,
Bois e bom pasto de sombras.

Rico, fazia-se pobre diante


De Deus. Caminhava para missa
Do domingo, vertical, de branco.
O chapéu de abas afastava

Equívocos e maus murmúrios.


A cidade, cedo, repetia-lhe
Bons-dias. Mas, em noites de solidão,
Ele partia em seu cavalo

Para longe. Um longe de que


Ninguém se lembra. E de onde
Nunca mais voltou. Para sempre.
Seo João Miguel de Águas Pretas.
P a u l o d e T a rs o
C o rr e i a d e M e l o

esquina da Rua da Conceição

Cérebro: primeira reflexão

O cérebro,
planeta ameaçado,
atrai
notícias,
lixo orbital,
meteoros
de proporções
maciças,
luz gelada
em cometas,
música de
esferas
inauditas.
O cérebro
imanente
e imantado
recebe
e comunica
resíduos
siderais
de matéria
quântica.
Momentum
fugaz
de trocas
orbitais
garante
que pensamento
J o ã o Gu a l b e rt o
sobreviva.
O cérebro
esquina da Praia da Redinha
mensageiro
temporário
A Última Sessão de Poesia
grafita
Não tenho posses, nada tenho de meu sua voz
Mulher nem filho nem pai nem mãe e outras vozes
Mas não posso dizer que estou só na ronda
Porque sempre tenho em mim infinita.
A solidão de todas as coisas
A mulher partiu o filho morreu
Papai está no céu
Mamãe no coração de Jesus
Amei uma paixão de mulher
Como se lesse uma poesia de amor
E fiz do verso a escrita do silêncio
Muito tempo depois morri
Mas aí era tarde demais para mim
A morte sagrara a memória do destino
D e í f i l o Gur g e l

esquina da Praça 7 de Setembro

Solidão

Com quem festejarei minha chegada,


à terra onde nasci, ao chão comum,
se todos já partiram, um a um,
levados pelo Vento, para o Nada? C a r l o s Gur g e l
Com quem dividirei minha risada, esquina da Praça 7 de Setembro
se não encontro mais, aqui, nenhum
dos velhos companheiros de jornada, Intimação
que o Vento arrebatou, frágeis anuns?
procuro por mim
De que vale perguntar à Morte como se fosse
Por que os levou, para que Sul ou Norte, um cão sem dono
Se a Morte não responde à indagação?
como se fosse
Um dia a Morte, monja silenciosa, uma lanterna
me levará também, morto, entre rosas, que turva
para a outra margem desta solidão. sábados e falecimentos

procuro por mim


na poltrona
de uma casa vazia
sem móveis, cortinas, fantasias

procuro por mim


como se fosse
um animal em extinção
que na última hora
se entristece
e some

procuro por mim


ao redor
do que o mundo me oferece:
cordas, seringas e poentes

e
como um homem falso
rio
de mim
e de tudo
que me olha.
M a ri z e C a str o

esquina da Rua Câmara Cascudo com


Travessa José Alexandre Garcia

Néctar

A verdade aproxima-se.
Olha-me com os olhos
abismados da beleza.

Não sou a mulher


que corta os pulsos e se joga da janela
nem aquela que abre o gás
nem mesmo a loba que entra no rio
com os bolsos cheios de pedra.

Sou todas elas.

Escrever me fez suportar todo incêndio


– toda quimera.

Volonté

esquina da Av. Rio Branco com Rua


Ulisses Caldas

Hoje acordei pensando nela. No seu jei-


to de ser, sua ironia, loucura de um tem-
po, verão vagamundo, a paisagem de
uma geração. American graffiti. Não sou
cronista, réu confesso. Like a Rolling
Stones. Não sei nem por onde ela anda.
Perdi a coragem de vê-la. Acontece.
Amor de índio. Sou mais um perdido no
espaço sideral, quasar romântico. Pen-
so nisso tudo enquanto vagueio meu
pensamento entre o coração e a razão.
Mar e oceano.
Ci v o n e M e d e ir o s

esquina da Av. Romualdo Galvão com


Av. Lima e Silva

Ode às xananas
Xananas são exóticas, xananas são albi-
nas, xananas são comuns. Xananas são
radiantes, são lenhosas, são bacanas.
Xananas são belas e são banais. Xa-
nanas são singelas, são sugestas, são
factuais. Xananas são fuleiras, são lasci-
vas, são esplêndidas, são substantivas
e são substanciais. Xananas são xamãs,
xananas são alheias, xananas são da-
nadas, são estóicas, são turneráceas.
Xananas são ulmifolias, são estanques,
são sacanas, são solares. Xananas são
daninhas, são suntuosas, são extem-
porâneas, são bucólicas, são vulgares.
Xananas são tinhosas, são luzentes, são
capsulares. Xananas são sagradas, são
urbanas, são extáticas, são solitárias.
Xananas são pentâmeras, são reiêiras,
são rebeldes. Xananas são poéticas,
são ornamentais, são descuidadas, são
malditas, são tribais. Xananas são emo- Ad a Li m a
cionais, são malandras, são selvagens,
são medicinais. Xananas são Chananas esquina da Av. Nascimento de Castro
e mais que tais. com Rua Murilo de Melo

Agora
que tudo é silêncio

adormeço
ouvindo
o barulho das ondas

o mar é
dentro de mim.
J a rb a s M a rti n s

esquina da Av. do Contorno com


Rua Quintino Bocaiúva
D i v a Cu n h a
O dia de Irani
esquina da Praça André de Albuquerque
Como te esquecer neste dia, neste dia
Potygirl
que é só teu, e que por isso me sa-
Na boca do meu canto há uma pedra code com um leve sabor de nostalgia.
só navios de pequeno calado E que me desperta para um passado,
podem gorjear em suas costas onde se acumulam, dores e alegrias,
e sonhos nunca colhidos, mas talvez,
tateio de olhos fechados sim, realizados, que o amor, amor, exi-
os contornos das letras ge dos amantes um entregar-se infini-
que o sol ilumina
to, exercício para um Hércules desavi-
sado. E enquanto o teu dia me sacode
quero por direito de herança
a voz que me cabe com sua música de pardais e lingerie,
desastradamente esquecemo-nos de
emplumada de estrelas
flagrar, de nossa varanda de nuvens,
o terceiro minuto da aurora. Coisas de
amantes, reconhecemos e rimos. Por
que esquecer, logo hoje, de flagrar
o terceiro minuto da aurora? Coisas
para nós não impossíveis, em nossos
exercícios de surpresas, como aguar-
dar, numa tarde de verão, uma colisão
de andorinhas, ou, num fim de sábado
qualquer, à margem do Potengi, espe-
rar a colisão do trem contra paisagem.
Coisas tangíveis, Irani, como teu nome
entre vogais iluminadas e um ranger
sonoro de páginas rasgadas, ou de
uma rede, guardadora de sonhos in-
confidentes como os nossos.
74
r e s g a t e

Todo DOS ENGENHOS E ARTES

poema é De língua solta, em verso livre, disser-


tou-se: – “Sou viciado em fim de linha,

romance
em ponto final de literatura. Em princí-
pio, fazem o meu gênero, em versos e
prosas de direitos autorais”. Submerso

&
em provas, prosseguiu, com a saliva
dos que estão a dizer-se. O seguinte: –
“Não é poesia, nem é prosa. São textos.

O melhor
Sacou? Se não sacou, ensaque-se. En-
sarilhe-se”. Tentou explicar os detalhes
de uma teoria prática: – “Se escrevo

repórter
uma linha, componho um romance. Ih!
Componho um romance de quinhentas
páginas numeradas, em cada página

da Poesia um capítulo, em cada capítulo textos de


livre expressão, épicos ou trágicos, no
transcorrer dos olhos e no passar dos
dedos, é claro que faço um romance.
Todo poema, leia o senhor, todo poe-
ma é romance”. Pôs. Expôs. Abelhas,
abelhudas por entender, esclareceu o
escuro obscuro do absurdo: – “E todo
romance é poema”. Um verso é um
conto, sem delongas, a odisséia ou a
ilíada de um qualquer cronista do des-
cobrimento das línguas. O bom Mautner
poetizara a Filosofia: todo fim tem um
começo. O personagem desenvolvera a
linha do raciocínio: – “Todo começo tem
um meio de vida, um meio de rua, um
meio dia de sol a pino, um meio-fio, no
meio do caminho tinha uma pedra de
poesia”. Drummonizara o pão nosso da
leitura de cada instante, encontrava-se
na linha divisória de ser e estar no mun-
do das letras. Em versos, em contos,
ficcionara-se em amálgamas. Juntou a
poesia à vontade de escrever. Fome e
gula, os ensaios da Língua, o gestual da
por João Gualberto | ilustrações João Gualberto fala. As escritas.

75
DAS VASSOURAS

DE PIAÇABA

Em fumos, o luto da luta. Em permanên- nhia do célebre e hoje finado Cadengue, friam inevitavelmente de censura, ilusão
cias, o Poema. No canto direito inferior narrou o necrológio de todos os mortos e poder. Para escapar da ditadura, atra-
da primeira página, a foto cinza. A foto, reverenciados no Bar do Lourival. Era vessou a Cordilheira dos Andes. Depois
verídica, do amigo. Acima dele, foto- poeta de jornal, um homem do rádio, o da anistia, no voto a voto, defendeu a le-
gramático, o tenista de Roland Garros. melhor repórter da Poesia. Os dedos genda do PT, os vitoriosos nem tomaram
É, não deu. Morre o homem, ficam as dele eram baquetas de tamborim. Pago- conhecimento do povo altruísta e sofrido.
idéias. Os títulos, multigráficos. A deu- deava, dizia versos de improviso. Foi e O diabo é que depois da queda do Muro
sa da democracia festeja o massacre sempre será o poeta de Ciclo da Pedra de Berlim perdemos o contato com o nos-
na Praça da Paz, em Pequim. As notí- e do Cão, prêmio de poesia, um gênio so amigo, o compadre chora um filho na
cias na folha de rosto. Brasil enfrenta nas falas, um boêmio de humor perene guerrilha de Salvador, o símbolo da liber-
Holanda, amistoso na Bahia, o futebol nas noites de sol, um companheiro im- dade, o velho Rubão, aquele que tinha o
de América versus Pauferrense é fogo! prescindível (depois de morto, todo ho- dístico, a holística do Rubens. Lemos, ou
Roda Viva alardeia o fim do monopólio, mem é elogiável), bamba do samba, do não lemos? Lemos, o necrológio, o obi-
mudanças na Justiça, aviões sobem de frevo, do maracatu e do baião de dois tuário, o revolucionário, o destinatário, o
preço. OAB, CPI, as siglas do jornalismo em nossa festança de Brasil. Engraça- periódico operário, o intelectual a serviço
político, OTAN, Iugoslávia, ataques aé- do, depois de Rubão descobrimos: há da revolução proletária, o anti-burguês, o
reos, o vôlei, o mosquito da dengue, o seres inteligentes antes dos micros de amigo do peito de Lênin e Marx.
hospital infantil do Parque dos Coquei- Bill Gates. Governava-se em notícias:
ros, as baterias dos celulares, o médico esses cotidianos, cordialidades da pa-
do posto de saúde, os bondes elétricos, lavra escrita. Para fazer jornal, um dos
o dia dos namorados. Ele, o amigo, tinha melhores companheiros de Zé de Noca
breve semelhança com Hagar, o herói e Seu Nezinho, um poeta de máquina de
das HQ. Onde andará? Nem Cesimar, escrever letras de chumbo. Dedos de li-
nem Olinto, nem Rubinho sabiam dizer. notipo, a crônica quente e diária, para o
De transmissor de rádio a técnico de fu- café da manhã, olhos de Ramos e Balta-
tebol foi uma parábola. Dos tempos de zar, na hora em que Januário dava sinal
João Saldanha, chamaram-no para diri- Paulo Leão derretia sob a fumaça das João Gualberto é poeta e jornalista.
gir o glorioso Atlético. Sofreu uma der- barras de chumbo. Dia e noite, estava “Dos engenhos e artes” e “Das vassou-
rota acachapante, de 6 x 1, pendurou as no prelo, nas páginas de rosto. Naque- ras de piaçaba” são capítulos do roman-
chuteiras. Dia de Finados, em compa- les tempos, os jornalistas militantes so- ce inédito Os olhos dos outros, 1999.

76
p o e m a

Ciclos da Pedra e do Cão


Rubens Lemos

Na rua existe um cachorro


latindo as broncas da noite.

Esse latido se cala


durante a hora do dia.

É que o cachorro sabe


pertencer o dia ao homem.

Quando é dia, brigue o homem;


se é noite, o cão tome conta.

Rubens Lemos (Santana do Matos, 1941 – Natal, 1999) foi jornalista em tempo integral desde os 17 anos. O combate à ditadura militar levou-o à prisão,
onde foi torturado, e posteriormente ao exílio no Chile. Estreou na poesia com Ciclos da pedra e do cão, em 1978, seu único livro. Segundo Ticiano
Duarte, “sofreu amarguras e decepções, mas sempre continuou sonhando com um Brasil mais justo”.

77
e n s a i o

Três
poetas
nos Anos
Dois Mil

por Márcio Simões


A consolidação de uma literatura norte- pretação, uma intervenção reveladora pelos que buscam, hoje, uma expres-
rio-grandense, seus autores canônicos de um livro, filme, fato, tela ou escritor. são poética válida. Estruturalmente, ou
e obras eleitas, assemelha-se a uma via Mas, mais do que isso: é uma respos- o poema diz-se de um só fôlego e é uma
de dupla passagem. Se por um lado con- ta subjetiva e criativa ao experiencia- longuíssima unidade rítmica onde cada
figura um campo de estudo e interesse, do através do contato com diferentes verso é um acréscimo, um take de uma
impulsionando-lhe e dando-lhe vitalida- manifestações artísticas. cena que vai se desenrolando; ou cada
de, por outro, corre o risco de falsear seu linha é uma emissão de fôlego e sentido
A primeira seção do livro, intitulada “Bi-
próprio objeto e enfraquecer-lhe na base, tão completa que não necessita da pon-
blion”, é inteiramente composta a partir
caso se perca de vista o contexto mais tuação para delimitar as pausas e esta-
de um diálogo nesses termos com as
amplo em que esta literatura está inserida. belecer os nexos sintáticos; ou ainda é
personagens e eventos dos livros bíbli-
Desse modo, antes de falar em uma litera- a própria disposição estrutural que fun-
cos do antigo testamento, em poemas
tura do RN, parece mais funcional pensar ciona como pauta sonora e sintática.
que vão da compreensão mais funda
numa literatura criada no Rio Grande do
à ironia mais contundente. A segunda No título do volume, fazendo uso da
Norte: mantendo a porta aberta à univer-
e terceira partes terão, explicitamente, grafia de uma das primeiras ocorrências
salidade e à literatura em língua portugue-
o mesmo impulso dialógico: em “Ky- da palavra sertão em nosso idioma – sa-
sa e estrangeira como um todo.
nema”, mais onze textos sobre filmes, artão – o autor refere-se à etimologia até
Buscando fugir ao mero ajuntamento de atores e diretores diversos; e em “Meta- hoje obscura desse termo para evocar,
nomes de forma mais ou menos acrítica lurgia”, sete poemas endereçados a di- imagino, o diletantismo, o desprendi-
a que está sujeita toda historiografia e pa- ferentes autores norte-rio-grandenses: mento, à não filiação de seu texto às
norama geral, optou-se aqui por percorrer de Oswaldo Lamartine a João Gualber- vazias e vaidosas querelas eruditas, ao
o caminho da poesia realizada recente- to, passando por Zila Mamede e Luís mesmo tempo em que o associa a uma
mente no Rio Grande do Norte por meio Carlos Guimarães, Adriano de Sousa terra erma e pouco conhecida, como a
de três livros de poemas publicados nos parece reconhecer pares e ascenden- própria produção literária do nosso es-
últimos anos: Saartão (Natal: Edição do tes, ao mesmo tempo em que toma tado, mas por isso mesmo mais plena
Autor, 2004), de Adriano de Sousa; Para partido e assenta um cânone pessoal. de possibilidades e novidades aos que
sair do dia (Natal: Edufrn, 2006), de Márcio A última estância do volume, “Matolão”, aceitam assumi-la e descobri-la. Possi-
de Lima Dantas; e Pequeno manual prá- terá maior amplidão temática: pinturas, bilidades que se firmam e se ampliam
tico de coisas inúteis (Natal: Flor do Sal, ocorrências cotidianas, notações, jogos com esse livro agreste e lúcido de Adria-
2008), de Theo G. Alves. Tal roteiro não de palavras, qualquer coisa será motivo no de Sousa.
pretende nem de longe esgotar a paisa- para o poema.
gem, nem mesmo exaurir as paradas elei-
É, sem dúvida, essa dialética entre o ex-
tas. Apenas passeia, ao sabor da deriva,
perienciado e a resposta criativa e lúdica ***
embalado pelos climas dos lugares em
a essa experiência que está na raiz da
que se detém.
fatura e intenção dos poemas do livro.
Mas, não se pode esquecer que sua re-
Em Márcio de Lima Dantas a melanco-
alização estética só se dá pela acabada
lia está madura, certa da si e de seus ar-
*** consciência formal de seu realizador. Há
redores, iluminada de quando em quan-
em seus textos um laborioso cuidado
do por uma abertura de transparência
construtivo, uma cultivada consciência
que a ilumina. Para sair do dia é um
crítica aliada a uma assinalada sensibili-
Não é novidade o entendimento de que tríptico composto por poemas curtos
dade rítmica e prosódica. Há igualmente
a arte nasce da própria arte, as obras que dialogam com a tradição bíblica,
um conhecedor competente da língua.
geram-se umas às outras. O diálogo budista e greco-romana. Em “Palimp-
O seu verso assimila o que veio antes
criativo entre os diversos realizadores sestos bíblicos”, a seção de abertura,
dele e não tem pretensões de ultrapas-
com sua tradição e contemporanei- encontram-se referências a cenas e
sá-lo – opta, antes, pelos rasgos de ori-
dade sempre foi e continua sendo um acontecimentos dos livros bíblicos; em
ginalidade e reelaborações. O texto em
dos mais fortes substratos da criação, “Poemas assim”, sua parte central e
caixa baixa; a pauta sonora e sintática
senão condição imprescindível para a mais extensa, as filosofias religiosas do
muitas vezes imprecisa e demarcada
elaboração e o aparecimento de novos oriente, em especial o Zen, informam
pela disposição e corte dos versos em
trabalhos. Disso nos dá bom exemplo uma visão de mundo voltada às coi-
função da emissão de ar e da unidade
Adriano de Sousa com Saartão. Divi- sas e eventos cotidianos; e finalmente
rítmica; o aproveitamento do falar coti-
dido em quatro partes precedidas de em “Antiguidades”, sua última parte, os
diano; a pontuação que se faz desne-
um pequeno intróito em prosa poemá- mitos e personagens das literaturas da
cessária e é abandonada; tudo isso são
tica, praticamente todos os poemas Grécia e Roma são revistos e refeitos
recursos da poesia contemporânea dos
do livro são elaborados a partir do no crisol da palavra. Sobriedade, rigor e
quais faz uso proveitoso. O seu ritmo
convívio cultural e humano do autor. precisão determinam a elaboração dos
parece ao mesmo tempo o mais origi-
Cada poema é uma leitura, uma inter- poemas, onde os versos normalmente
nal e o mais provável de ser alcançado

79
curtos fazem um uso bastante funcio- ses instantes em que a atenção leva à
nal das vírgulas e sinais de pontuação. percepção poética.
Uma cuidadosa construção rítmica e
Tudo isto está contido na ideia budista
fônica – que permanece despercebida
que lhe serve de base: a da liberação,
numa primeira leitura – sustenta ditos
manifesta na metáfora título, referente
aparentemente cotidianos e coloquiais.
a uma “brecha” nas rotinas cotidianas.
Percorre o livro a consciência da morte,
Outro ponto de aproximação refere-se
a meditação sobre o tempo e a maturi-
à imanência de filosofias contemplati-
dade, a intuição da ilusão dos eventos
vas como o Zen, em que toda disci-
a par de um desapego pelas coisas que
plina do corpo e da atenção é dirigida
confere um delicado equilíbrio à solidão
para uma experiência direta da reali-
do seu olhar para elas.
dade, desvencilhada de automatismos
Boa parte dos poemas é permeada e condicionamentos. O concreto é de
pelo cotidiano. Mas não um cotidiano fato o campo de eleição da melhor
ordinário, sem sentido. É um cotidiano poesia do Oriente. No entanto, a ex-
observado do interior de uma “pausa”, periência contemplativa delineada no
de uma janela no tempo materializada livro de Márcio de Lima Dantas é mais
em linguagem poética. Longe da de- intelectualizada que intuitiva, resultan-
satenção e distração, o que temos é do antes de uma compreensão racio-
atenção desperta, focada num objeto nal e lógica que de um pensamento
único: seja a conversa da viúva sobre analógico e simpático. Há uma forte
o câncer do marido, o trombonista que racionalidade na origem de tudo que
como último gesto deixa o instrumento está dito, o que demarca os limites da
ao aprendiz promissor, o próprio poeta orientalidade que norteia o volume.
ao anoitecer sentado tomando notas.
Mesmo assim, a influência do haicai se
Nada há além do dia e os instantes de
faz sentir em vários poemas de três ver-
sensibilidade em que irrompe o poé-
sos, como este: “Nas ancas da noite/
tico e o arranca dele. Mas esta saída
grilos tiritam/ o triunfo das sombras.”,
está exatamente nele mesmo. Ocorre
onde avulta a notação instantânea; ou
através das coisas e eventos os mais
ainda o descritivo despretensioso de:
simples e diários. Também a lingua-
“No puro e intacto/ firmamento azul/
gem poética é a mais simples, focada,
estrela alguma.”; tudo isto modos e ma-
serena, fruto deste “Diligente trabalho/
neiras caros à poesia oriental: declarati-
de erguer/ um aquietar-se consigo
va serenidade e secreta beleza firmadas
mesmo”. Poesia de solidão, de even-
no limite do “incomensurável mar”.
tos, de objetos, de livros, de quadros,
tudo é como deve ser: comum, natural,
sem mistérios que inquietem a alma.
No entanto, cada objeto contemplado, ***
cada leitura revelada, cada cena des-
crita resplandece de inusitada e natural
importância: foi preciso prestar aten-
Com Theo G. Alves pode-se começar
ção a ela. Cada instante de realidade
por leveza, lembrando as lições de Cal-
concreta a motivar o poema parece ter
vino. Seu Pequeno manual prático de
sido portador da completude inequí-
coisas inúteis volta-se igualmente ao
voca do que se sabe permanentemen-
universo cotidiano e às coisas comuns,
te efêmero e sem valor transcendente,
constituindo-se num pequeno relicário
mas que é neste exato momento todo
de miudezas. Organizado num tríptico, a
o presente. Em outras palavras, a pró-
primeira parte nos apresenta às coisas:
pria transitoriedade é responsável pelo
o inverno sertanejo, as pedras, os inse-
valor único de cada instante, jamais
tos, a casa miúda, o homem, a memória,
repetido. Atentar a isto é libertar-se
o amor, a cidade, a morte. Na segunda
do enfado para ver com olhos novos
encontram-se instruções para elas: para
a novidade das coisas. Fluir na ressur-
inventar os pássaros, para reinventar a
reição perene dos instantes encadea-
memória, para compreender as coisas
dos. E o livro constitui-se então na fina
do chão, para construir um homem só
tapeçaria dessas efemeridades, des-
ou uma manhã de domingo. Na última,

80
tudo é definitivamente reinventado, e
a prosa poética se abre ao imaginário
para figurar em pé de igualdade o pra-
zer de dizer e aquele advindo do modo
de fazê-lo.
O livro todo é habitado pelas coisas do
chão, onde o homem em desuso está
atento apenas ao seu redor. Os aconte-
cimentos mínimos do cotidiano deixam
de ser apenas isto; ressurgem numa
cadeia sensível de reverberações: lem-
branças, associações, sensações; e tor-
nam a ser exatamente aquilo que são:
acontecimentos pequenos, mas cheios
dos significados que nos podem fazer
experimentar: “como estrelas/ estas pe-
dras miúdas/ refazem o céu/ na terra”,
encontramos a certa altura.
Embora o tom dos poemas seja obje-
tivo, tematizando coisas concretas, há
sinais da subjetividade que as enxerga
e concede traços determinados àquilo
que vê: é possível entrever o pai morto,
o convívio saudável da infância junto à
avó, o amor pelas noites de junho com
o frescor das chuvas durante o inverno
sertanejo. Um dos elementos centrais
do livro é precisamente a memória.
Meio ambiente da subjetividade, fonte
de onde ressurge a experiência vivida,
ao tornar novamente presente o que se
passou, instaura nesse mesmo movi-
mento a percepção da ausência do que
já não há. Resta reconhecer a fragilida-
de e a efemeridade de tudo que pode
ser evocado diante de um presente que
só se reconhece em si mesmo, uma vez
que “a memória/ deita pedras enormes/
sobre os ombros –/ não sobre os dias”.
A pedra, aqui, adquire valor simbólico,
especialmente porque ressurge me-
tamorfoseada em vários poemas: não
apenas a metáfora de um sentimento,
mas uma flor (“as orquídeas de pedra/
– as pedras de orquídea –”), a própria
paisagem (“a chuva desenha pétalas/
nas pedras”), um fruto (“o tempo e a pe-
dra do caju”), a palavra poética (“o ven-
tre mineral da palavra pedra”), ou carne
e ossos: “noventa e oito por cento/ de
uma pedra/ são puro metal// apenas o
que lhe resta/ é carne/ e ossos”.
Estilisticamente, os poemas de Theo são
marcados pela precisão construtiva, tão
minuciosos e ricos em estrutura e de-
talhes como os insetos, flores ou meio

81
ambientes que descrevem. O verso cur- lírica nacional à forma e ao esteticismo? opção pelo pequeno e inútil da parte
to, irregular, com as palavras lançadas Se é verdade que a literatura mais re- de Theo G. Alves (citando a praticidade
umas sobre as outras, confere veloci- levante nunca abriu mão de ser ques- como uma “virtude atualmente superes-
dade à exatidão das estrofes. É preciso tionadora, de romper com seu próprio timada”), são indícios de que os poetas
reconhecer o talento para a expressão tempo, o escritor que não se empenha não permanecem acríticos diante do
lapidar em exemplares como este: “des- em desmistificar as superstições e mi- seu tempo. Não são radicais, mas cer-
perta a manhã/ de domingo estende/ os tos convertidos em lugar-comum de sua tamente levam adiante possibilidades
braços e descrê no tempo”, ou ainda: época não estaria deixando de cumprir de realização do trabalho artístico e, por
“o sol/ o acorda/ ou o fim de seu sono/ parte de seu papel? No entanto, a luci- que não dizer, do indivíduo que o realiza
desperta o dia?”. Como não se admirar dez irônica e individualidade de Adriano e dos leitores que deles partilham o gos-
com: “toda palavra inventada/ é menor de Sousa (numa época de domestica- to e a sensibilidade.
que seu coração// e seu coração con- dos e arrebanhados), a contemplação
tente ainda menor que a vida”. O deli- silenciosa de Márcio de Lima Dantas
cado lirismo que transparece funde com (na era do ruído e da velocidade), e a Márcio Simões é poeta.
rara felicidade a forma da expressão
com o conteúdo e sentimento expres-
sados, condição da arte literária.
É ainda uma poesia íntegra, no que o
autor não passa pelo que não é, porém
embarca na miudeza de sua existência,
com seu “tantinho de medo e um baú
pesado de anseios”, munido daquele
“olhar armado” às coisas, que confere
sentido e sensibilidade ao que vê, de
uma maneira tão natural que não nos
deixa opção senão reconhecer o sen-
tido e a sensibilidade como dimensões
humanas. Se, como diz a certa altura,
“para se inventar um poeta/ é melhor
esquecê-lo”, que assim seja – mas que
permaneça presente na memória este
pequeno livro-mundo.

***

Antes de tudo, é preciso reconhecer o


apurado senso de medida dos três poe-
tas. Todos ostentam um domínio formal
acentuado: poemas polidos e sem so-
bras assinalam o cuidado e dedicação
de seu artesanato construtivo. Todos
criam igualmente poemas que podem
ser descritos como sintéticos, enxutos,
com versos normalmente curtos e de-
sembaraçados. Todos aderem assim
ao que pode ser chamado de “estilo
da época”. Todos, igualmente, produ-
ziram seus livros em torno de objetos
artísticos: filmes, livros, quadros... Mas
será que não se pode sentir aí a ausên-
cia de uma visão mais crítica sobre seu
tempo? Ressonâncias do esvaziamen-
to político-ideológico a que assistimos
atualmente? Ecos de certa tendência da

82
e n c a n t o

Homero Homem

“Eu fecho os olhos e sou capaz de reconstituir as ruas,


as casas, as pessoas, os lugares,os sabores, os ventos, a
paisagem marítima, os mangues, os perfumes daquele
mundo, aquele universo de deslumbramento, de
encanto, de impacto, que é o despertar da consciência
e da sensibilidade da criança para a realidade que
a rodeia. Guardo até certos registros físicos, como
este dedo que tem um corte profundo, produto de um
dos meus primeiros deslumbramentos poéticos. Eu
sempre paguei um alto e sofrido pedágio à poesia.
Era um animal lindo, azul, que caminhava pelo campo
no período que se chamava ‘andada dos caranguejos’.
Era um goiamum maravilhosamente azul, de olhos
levantados como uma antena, e que entrou de casa
adentro. Eu me fascinei por aquele bicho inusitado que
eu não sabia o que era – me parecia uma coisa cordial
e amiga; então, fui pegar e ele me pegou no dedo.
Machado de Assis fala naquele cachorro do Rubião
que guardou a memória das pancadas; eu guardei a
memória de muitas pancadas, embora tenha perdoado
e sublimado muito. Mas essa primeira pancada, como
represália e resposta ao impulso ingênuo, puro e lírico
– essa eu não esqueço, porque a marca dela está no
meu dedo.”
[Homero Homem, em entrevista gravada para a Fundação José Augusto, início da década de 1970, e publicada este ano em Conversas de
poetas, FJA, 2011]

Homero Homem (Canguaretama, 1921 – Rio de Janeiro, 1991) foi jornalista e professor universitário, radicado no Rio muito jovem. Estreou na poesia
com A cidade, suíte de amor e secreta esperança, em 1954. Também escreveu contos, romances e novelas infanto-juvenis. Segundo Wilson Martins,
“a sua poesia é, antes de mais nada, uma reafirmação da Poesia, em respostas implícitas aos que lhe proclamaram o desaparecimento ou procuraram
renová-la por meios antipoéticos”.

83
t r í p l e x

por Fábio Farias

Elas têm menos de 30 anos de idade. Versos DeLírios


Publicam a maior parte dos poemas
na internet e buscam na contempora-
Marina Rabelo é daquelas que res-
neidade uma estética própria. Marina
piram poesia. De fala mansa e sorriso
Rabelo, Renata Marques e Ada Lima

Três
tímido, tem 29 anos. Nas mãos, o ins-
representam uma amostra do que pode
tinto de escrever belos poemas. Sem
ser chamado de renovação da poesia
livros lançados, mas com versos espa-

poetas
potiguar. As três apresentam uma es-
lhados pelo Brasil, é a mais velha das
crita focada em versos livres, haikais e
três. Formada em engenharia química
inspirações que passeiam sem discrimi-
pela UFRN, nunca seguiu os desígnios

antes
nação tanto pela cultura regional quanto
da profissão de Exatas. Ela preferiu se
pela cultura pop.
ater à produção poética na internet.
As influências variam entre os escritos

dos
Quando tinha 22 anos, Marina fundou
de Ana Cristina César, Manoel de Bar-
o blog Versos DeLírios, pontapé para a
ros, Hilda Hilst e Paulo Leminski. Entre
carreira de webwritter. A página abriu

trinta
as potiguares, são unânimes em citar
para ela contatos com gente de fora do
Marize Castro, Iracema Macedo e Diva
estado que também produz poesia. E
Cunha como as principais autoras que
a rede com outros autores resultou na
influenciam seus poemas. Jorge Fer-
criação do blog comunitário E-Digitais,
nandes também não é esquecido pelas
e depois no Blog de 7 Cabeças, espa-
meninas, que dizem ter na inspiração
ços que reúnem produções poéticas e
pura o maior motor para a confecção
em prosa de escritores de todo o país.
dos versos.

84
Dentre os autores com quem conse- e bons sites e se diz fã de autores como dução poética ao trabalho incansável
guiu estabelecer uma relação mais Patrícia Antoniete, do blog Não discuto. de cortar e reescrever as palavras, até
próxima está Múcio Góes, poeta per- chegar a um formato próximo ao que ela
Sua poesia é, em geral, mais palavro-
nambucano, autor dos livros O avesso imagina ser o ideal.
sa, mas mantém pontos de contato
e o verso, editado pela Nossa Livraria
com as das outras autoras, principal- Seus poemas nascem do cotidiano,
e lançado em 2004, e Grãos ao alto,
mente quanto ao tema escolhido e a da vivência diária. Eles se apresentam
lançado em 2009 pela Árvore de Po-
forma de tratá-los. Os textos não dis- como um emaranhado de frases e pa-
emas. A admiração e a amizade mú-
pensam os versos livres e a criativida- lavras arrebatadoras que deixam, por
tuas, resultaram num laço poético en-
de na construção. “Me vem a inspira- vezes, o leitor sem ar, graças ao grau
tre os dois. “Múcio é uma das minhas
ção e, a partir dela, muitas vezes, eu certeiro que o atinge. O início da carreira
maiores influências”, declara.
trabalho os versos.” foi lento, com a publicação restrita a um
Um dos seus poemas fez parte da pri- blog secreto, mantido como forma de
Ano passado, em parceria com o poe-
meira edição do “Pão e Poesia” – pro- desabafo para a jovem escritora. Des-
ta Carlos Gurgel, participou do projeto
jeto realizado em Minas Gerais onde coberto por amigos e divulgado entre
“Toque de colher poemas”. Enquanto a
os poemas são escritos em papel de os fãs de poesia, logo atraiu a atenção
ideia de publicação de um livro amadu-
embrulhar pão – e outro da “Árvore dos leitores.
rece, Renata Marques pensa numa par-
dos Poemas”, projeto também minei-
ceria com o fanzine Lado [R]. Ada, que nunca imaginou que poderia
ro onde os versos são pendurados em
atingir qualquer grau de reconhecimen-
galhos de árvore.
to, hoje deixou de ser promessa. É uma
No ano passado, Marina ficou entre as realidade do mundo literário potiguar.
10 finalistas no concurso da Fliporto
(Festa Literária Internacional de Per-
Menina Gauche
nambuco) de poesia pelo twitter. Atu-
Das três, Ada Lima é mais objetiva.
almente, se dedica ao projeto do seu
Mais João Cabral de Melo Neto que Vi-
primeiro livro, em conjunto com outras
nicius de Moraes. Menina Gauche é seu
três poetas – que já tem título: Por
primeiro livro, publicado em 2008 pela
cada uma. A obra foi ideia de uma das
Flor do Sal. Recentemente, publicou
escritoras que mais admira, Marize
Águas pela mesma editora. Modesta,
Castro, e sai pela editora Una, ainda
jeito simples, Ada, 26, credita sua pro-
no primeiro semestre de 2011. Fábio Farias é jornalista.

Versos Poty
Renata Marques é sutil, simples, per-
sistente. Ela é poeta de sensibilidade
afiada, com a capacidade de fazer
brotar poemas quando (e onde) menos
se espera. É a caçula das três, com
25 anos de idade e um diploma de
jornalismo pela UFRN. Mantém o blog
Versos Poti desde 2006. Bebe das
mesmas influências das outras meni-
nas, mas tem um carinho especial pelo
poeta Manoel de Barros. “Ele mudou
meu jeito de escrever poesia.”
Apesar de publicar via internet há cinco
anos, a intuição da escrita veio cedo,
quando escrevia versos e textos e os
dedicava aos amigos. “Eles gostavam e
foto Anchieta Xavier

me incentivaram a criar um espaço para


publicar”, conta. Da página da web, o
que ela mais gosta é a possibilidade de
interação imediata com o leitor. Renata
Marques gosta de compartilhar escritos

85
m e m o r a b i l i a

Seu Gomes
Cumpri meu tempo de foca, no ofício do sobre o rosto redondo, adornado por
aprendizado de repórter, numa redação um sorriso doce. Num passo lento, de
cheia de talentos. Daí ser bem-nascido, sapatos grandes e gastos, atravessava
se é que aprender é uma fortuna. Tinha a redação para conversar com o chefe
como editores, no velho Diário de Natal, de reportagem.
João Neto e Cassiano Arruda Câmara.
Logo depois, Sanderson deixaria o
E o chefe de reportagem era Sanderson
jornal para assumir a TV Universitária
Negreiros, que naquele tempo escrevia
e depois a Fundação José Augusto.
sua coluna “Quadrantes”, nascida de
Lá, antes dele, estivera o poeta Dió-
um lirismo que encantava toda a cida-
genes da Cunha Lima que, na presi-
de, retocando com literariedade um jor-
dência, decidiu publicar os poemas
nalismo marcado pelo crivo de ferro de
de José Bezerra Gomes. Era claro o
uma objetividade absoluta.
encanto do poeta-presidente de Lua
Pela mesa de Sanderson, naquelas ma- quatro vezes sol pela poesia do seri-
nhãs luminosas que deixavam entrar o doense. José Bezerra, embora tivesse
casario antigo da Ribeira e, lá longe, o vários livros publicados e um romance
rio e o mar, passava um pouco da vida famoso chamado Os brutos – lançado
literária de uma Natal que ainda vivia um pela Pongetti nacionalmente durante
jeito pachorrento de ser com suas ruas sua temporada em Minas – era inédito
calmas e largas do Tirol e Petrópolis. nos seus versos, tão belos e tão ines-
Em alguns dias, aparecia na redação o peradamente singulares.
por Vicente Serejo poeta José Bezerra Gomes. De chapéu

86
“Trazia a mesma A missão coube a outro grande poeta, quando sonhou fundar, sozinho, um ci-
Luís Carlos Guimarães, que também fre- clo do algodão na literatura nordestina.
fotografia três quentava a redação para conversar com
Quando Sanderson Negreiros deixou
Sanderson, mas trabalhava na Tribuna do
o jornal, para nunca mais voltar a uma
por quatro e, numa Norte – onde Berilo Wanderley publicava
redação diária – como até hoje –, era a
sua “Revista da Cidade”, enriquecendo
mim que o poeta procurava. Uma vez
folha de ofício ainda mais o jornalismo cultural de então.
por ano, perto do seu aniversário, 9 de
Dos poemas, ou daqueles que ao menos
março. Como no tempo de Sanderson,
timbrada com um eram conhecidos, restavam poucos. A
trazia a mesma fotografia três por qua-
solução foi chamar de antologia o peque-
tro e, numa folha de ofício timbrada com
velho carimbo, seu no livro, e, ainda assim, diminuída a cada
um velho carimbo, seu nome, a inscri-
visita do poeta às oficinas da Gráfica Ma-
ção na OAB como advogado, endereço
nimbu, ali do lado da Rua Açu – e que
nome, a inscrição na e uns poucos dados sobre sua vida de
naquele tempo não era Assu, mas uma
escritor, para ninguém esquecer os seus
rua-rio, de tão mansa, correndo nas que-
OAB como advogado, bradas de Petrópolis.
livros e atividades intelectuais.
Demorava pouco. Quase não conver-
endereço e uns Poeta de poemas curtos, de fachos rá-
sava. Agradecia com um sorriso e saía
pidos, luminosos e perfeitos, mas tam-
no seu andar lento, descansando numa
poucos dados sobre bém, às vezes, de longas dicções poé-
perna e noutra, de chapéu e óculos,
ticas, José Bezerra Gomes foi retirando
acenando levemente pra quem passa-
sua vida de escritor, uns, cortando outros, a ponto de Luís
va. Até hoje tenho dentro de um dos
Carlos pedir que se evitasse sua pre-
seus livros um daqueles seus manus-
sença nas oficinas da Fundação José
para ninguém critos e guardo comigo um retrato seu
Augusto. De tudo, restou uma peque-
na redação do Diário. Só alguns anos
níssima antologia com umas cinquenta
esquecer os seus páginas, guardadas por uma apresenta-
depois, pude compreender o sentido de
sua poesia. É que ainda guardo uma fo-
ção do seu organizador e um texto de
livros e atividades Moacy Cirne, conferindo uma estética
tografia que Rejane fez em Paris quando
viu uma maçã intacta, no chão de uma
de vanguarda à poesia de Seu Gomes.
intelectuais.” rua. Nem sabia que ela carregava na
Anos depois, na companhia de Tarcísio alma o minúsculo poema de José Be-
Gurgel, fui conhecer a casa do poeta, no zerra Gomes e que está na página 51 de
Alecrim, bem perto da Igreja de São Pe- sua antologia: Diz assim: “Paris – Uma/
dro. Um casarão despojado, de terraços maçã/ no caminho”. Seu Gomes estava
avarandados, guardado pelas sombras ali. Sem nunca ter ido a Paris.
de suas velhas árvores e o olhar de D.
Veneranda, sua mãe. Estava de chapéu,
como sempre. Respondeu as perguntas
de Tarcísio, já misturando nomes e da-
tas dos episódios que tentava lembrar.
No tempo de sua intensa vida literária, Vicente Serejo é jornalista.

87
r e l e i t u r a

0 5 p o e m a s

d e J o s é B e z e r r a G o m e s

i l ustr a d o s

por Carla Bruttini | Dimetrius Ferreira | Domingo A. Dalama | Márcio dos Santos | Pola Kouli

[“Limite”] Carla Bruttini é artista plástica.


[“Sempre sábado”] Dimetrius Ferreira é diretor de arte.
[“Lápis”] Domingo A. Dalama é desenhista e pintor.
[“Paris”] Márcio dos Santos é ilustrador e diretor de arte.
[“Seridó”] Pola Kouli é vitralista e historiadora da arte.
S e rid ó

Casa Grande
S e m p r e s á b a d o

Naquele
sábado
a música
daquele
sábado

90
L á p is

Confesso-me
de assim
ter sido

Ainda que não fosse mais

91
PA R I S

Uma
maçã
no caminho

92
Li m it e

Marido e mulher

93
p o e m a

CAN Ç ÃO U R B ANA

Luís Carlos Guimarães

O que me chama atenção é um homem sozinho numa mesa,


nos seus cinqüenta anos bem morridos,
a entornar seu chope silenciosamente,
o homem de paletó cor de goiaba.
Necessariamente funcionário público,
na vizinhança da obesidade e do enfarte,
o homem de paletó cor de goiaba,
tem cinco filhos, três netos,
uma mulher de barriga caída e varizes nos braços e nas pernas,
um apartamento de dois quartos no 12º andar do Edifício Flor das Laranjeiras
(financiado em 25 anos, com correção monetária, pelo BNH),
calos na sola do pé direito,
dentes cariados,
fígado inchado,
acessos semanais de asma brônquica,
uma sogra que encarna o dragão vomitador de fogo,
uma acentuada hipermetropia na visão esquerda
e bolsos furados.
E mais:
no morrer de cada dia,
o homem de paletó cor de goiaba
tem os ouvidos rasgados pelo barulho do trânsito,
sua sangue poluído de asfalto na repartição,
nas filas de ônibus e do INPS.
Entornando silenciosamente o seu chope,
o homem de paletó cor de goiaba
parece um boi.
Um boi.
Não o boi que pasta no campo,
mas o boi que vão levando ao matadouro.

Luís Carlos Guimarães (Currais Novos, 1934 – Natal, 2001) foi advogado e juiz de direito, e trabalhou como revisor nos principais jornais do RN. Estreou
na poesia com O aprendiz e a canção, parte da “Coleção Jorge Fernandes”, editada pela Imprensa Oficial do Estado, em 1961. Também escreveu con-
tos, novelas e haikais. Foi tradutor de Rimbaud e de muitos poetas latino-americanos. Segundo Sanderson Negreiros, “Luís Carlos Guimarães soube,
mais do que todos nós, seus companheiros de romagem terrena, consagrar o que, nele, já foi definido como lirismo modelador de espanto: comungar
a dor da existência, sem angústia destruidora, nem esse falso anarquismo intelectual que se traveste de vanguarda”.

94
q u a d r i n h o s

por Jansen Baracho

95
96
97
98
f j a & c i a

Poetas,
artistas,
mandatários

Para começo de conversa (sem que- biblioteca do poeta. Informação correta,


rer fazer este trocadilho infame), tenho mas a reportagem não dizia que Zila era
a absoluta certeza de que este livro a mais importante poeta potiguar, e ain-
Conversas de poetas, organizado por da grafava o nome dela como se fosse
Adriano de Sousa e Flávia Assaf, Funda- “Zilá”. Eu escrevi para a revista pedindo
ção José Augusto, 42 páginas, deveria uma retificação, que nunca houve.
ser adotado pelas escolas e universida-
Por essas e outras, vale a pena passar
de potiguares. Por quê? Porque reúne
os olhos por esta publicação que traz
a fina flor, poética, literária, de gerações
entrevistas memoráveis com nomes da
importantes de autores nordestinos,
importância de Dorian Gray, Fagundes
alguns deles com repercussão nacio-
de Menezes, Jayme Wanderley e José
nal, como é o caso de Nei Leandro de
Bezerra Gomes. Importantes porque
Castro, Homero Homem, Moacy Cirne e
dão uma idéia do tamanho de nossa li-
João Cabral de Melo Neto.
teratura, quase completamente ignora-
Há autores importantíssimos, como Zila da pelo resto do país. Outra coisa curio-
Mamede, que não são conhecidos na- sa no livro é que as entrevistas não são
cionalmente por pura inépcia de críticos apresentadas na forma tradicional, de
e comentaristas do centro-sul. Quer um perguntas e respostas. Os organizado-
exemplo? Não faz muito tempo, a revista res preferiram destacar frases importan-
Bravo publicou uma extensa reportagem tes dos entrevistados, e cada trecho é
sobre o poeta pernambucano João Ca- introduzido por um subtítulo, facilitando
bral de Melo Neto, onde o autor anota- a leitura imediata segundo o assunto de
Carlos de Souza va que Zila Mamede tinha organizado a maior interesse do leitor.

99
Último trem que soltou as amarras do verso, deixan- lares. Olhando atentamente para essa
do ele livre e sem rimas. forma de expressão artística, aprecian-
do as fachadas das casas nordestinas,
Na mesma leva de publicações, é apre- Percorrendo suas páginas, eu, que um
vamos encontrar a trilha percorrida pela
sentado ao leitor este Alma que voa, de dia sonhei também escrever poemas
tradição até chegar aos nossos talen-
Antônio Júnior, Fundação José Augusto, e fracassei, anseio por estas mesmas
tosos artesãos. O livro tem a vantagem
73 páginas. O que dizer deste? Notada- palavras desfiadas em prosa. Porque
de trazer uma boa quantidade de gra-
mente é um livro de época. Sua temáti- a maioria esmagadora desses poemas
vuras para o entendimento do leitor, e a
ca hippie se escancara logo na epígrafe: poderia muito bem virar crônicas fabu-
desvantagem de ser impresso em papel
versos do compositor paraibano Zé Ra- losas, contos, anotações. Mas o poeta
poroso, que, ao absorver a tinta, tirou
malho – “as borboletas estão voando...” preferiu expressar suas sensações em
um pouco da magia dessa arte que ga-
– que fizeram a delícia de “malucos be- versos e é assim que devemos lê-lo.
nharia mais numa impressão em papel
lezas” (inclusive eu) nos idos dos anos
Como bem definiu seus comentadores, couché. Mesmo assim é um documento
70. É poesia de qualidade? Não quero
contemporâneos, Maia Neto é um sen- de rara importância para o conhecimen-
entrar no mérito dessa questão e fazer
timental incurável. Isso é pecado em to de nossa cultura.
juízo de valor para não ser acusado de
poesia? Aparentemente, sim. Porque a
andar com uma fita métrica no bolso,
poesia raramente alcança o sublime, e
medindo o tamanho dos poetas. Há no
quase sempre quando alcança, canta
livro, sim, todo o imaginário de uma épo-
ca que acreditou em utopias e em heróis
as dores do mundo. O jornalista Cid Au-
gusto, talvez por ser mais jovem que os
Mandatários
como Chico Mendes e Che Guevara. A
outros comentaristas do poeta, é mais
realidade, como sempre, foi mais cruel Para encerrar, temos esta Cronologia
incisivo: a poesia de Maia Neto tem cor-
com tais sonhos. Ao folhear essas pá- dos mandatários do Rio Grande do
respondências com a poesia de Florbela
ginas, o leitor vai saboreando palavras Norte – Brasil Colonial – Volume I,
Espanca, a poeta portuguesa que canta
que remetem ao deslumbramento com Capitães-Mores – 1600 a 1822, Centro
essas dores de amores.
a natureza, antecipando a onda de defe- de Estudos e Pesquisas Juvenal Lamar-
sa do meio ambiente; e vai viajando nas tine, Fundação José Augusto, 289 pági-
sensações lisérgicas de uma geração nas. Completamente didático, este livro
que esbarrou na feiúra do mundo real. traça um retrato do poder político no RN
A poética bicho-grilo de Antônio Júnior
Gravuras desde a fase colonial.
serve, ao menos, para consolar almas mágicas Se você é daquelas pessoas que pas-
perdidas pelo consumismo, pela falta sam pela Bernardo Vieira, em Natal, e
de leitura, pelo embrutecimento pro- Já As vertentes criativas da gravura tem curiosidade de saber quem deu
porcionado pelos meios de comunica- brasileira, de Dorian Gray Caldas, Fun- nome a esta avenida, eis aqui uma boa
ção, pela burrice geral. Poesia não é só dação José Augusto, 119 páginas, pres- oportunidade de adquirir informações
para intelectuais. Serve também para cinde de qualquer comentário pela sua sobre a história de sua cidade e de seu
caminhoneiros e manicures. O livro de importância para o conhecimento das Estado. Se você é um estudante que
Antônio Júnior chega atrasado, como artes plásticas no Rio Grande do Nor- quer conhecer melhor a história de sua
alguém que ficou plantado na estação à te. Aqui está outro livro que deveria ser terra, eis aqui um bom começo.
espera do último trem. Mas há imagem adotado nas escolas.
mais poética do que essa? Do primeiro mandatário, João Rodrigues
Apresentando os autores por ordem alfa- Colaço até a última junta de Governo
bética, e não cronológica, o também ar- Provisório, nos tempos de dom João VI,
tista Dorian Gray traça um percurso que o leitor terá uma idéia precisa desses
vai de Assis Trajano a Zeneide Pessoa. acontecimentos que marcaram nossa
Dores de amores E, ao assumir o papel de historiador da história. O livro é resultado de uma pes-
arte, explica para o leitor o nascimento quisa cuidadosa levada a cabo por uma
Certos livros não deveriam ser escritos desta arte que é “a manifestação mais equipe de pesquisadores do CEPEJUL,
na forma de poemas. Deveriam ser em antiga da sensibilidade humana”, desde coordenada por Décio Américo Gomes
prosa mesmo, destilando a poesia que que as pinturas rupestres na caverna de de Lisboa: José Albano da Silveira, Ro-
há no âmago do autor. É o caso deste Lascaux, na França, encantaram e atra- sane Braga Ponte, Ênio Gomes Ferreira,
Noturno quase infinito, de Maia Pinto, íram os olhos do mundo, até chegar ao Clênia Maria de Luna Freire, Jailton Fon-
Fundação José Augusto, 195 páginas. beco sem saída de um Paul Klee. seca, Jorge Rodrigues da Silva, Aucides
Incensado por grandes intelectuais de Bezerra de Sales, Kátia Maria Gurgel do
Dorian Gray mostra que toda essa ri-
sua geração, como Luís Carlos Guima- Amaral e Tânia Lúcia da Silva Cabral.
queza da imaginação humana encon-
rães, Woden Madruga e Dorian Jorge
trou uma de suas mais fecundas formas
Freire, o poeta que virou economista é
de expansão na gravura nordestina, a
marcado pelo modernismo brasileiro,
xilogravura, a gravura de cordel e simi- Carlos de Souza é jornalista.

100
f j a & c i a

Programação
diversificada
marca
o Dia da Poesia
por Carlos Gurgel | foto Anchieta Xavier

Comemorou-se mais um 14 de março, lor da Cultura e o empenho do Governo sor e poeta Vicente Vitoriano, que levou
o Dia da Poesia, quando os poetas e do Estado para o setor, no que foi se- o público ao delírio, seja pelas letras
seus simpatizantes desfraldaram ver- guida pela Secretária Extraordinária de inspiradas, seja pelas concepções cêni-
sos e outras linguagens, tudo acom- Cultura, Isaura Rosado. cas arrojadas. Marcelus Bob encerrou a
panhado de lançamentos literários e participação dos poetas/grupos locais,
Com a regência do maestro Paraguai,
homenagens. Este ano o grande ho- extrapolando um pouco seu tempo e o
ouviu-se o Hino do Rio Grande do Norte,
menageado foi o poeta Luís Carlos diálogo com a platéia.
antecipando o lançamento da Coleção
Guimarães, nos 10 anos de encanta-
“Cultura Potiguar”, com os primeiros Do Maranhão e de Minas Gerais vie-
mento, representado pela sua compa-
quatro títulos – Conversas com poetas ram, respectivamente, Celso Borges e
nheira, Lêda Guimarães.
(organização de Adriano de Sousa), Wilmar Silva. O primeiro, acompanhado
O Governo do Estado, a Secretaria Ex- Noturno quase infinito (de Maia Pinto), pelo guitarrista Christian Portela, o se-
traordinária de Cultura e a Fundação Príncipe plebeu – uma biografia do po- gundo com o também guitarrista Fran-
José Augusto trabalharam de forma eta Othoniel Menezes (de Cláudio Gal- cesco Napoli. E, ambos, primando pelo
conjunta e eficaz para que a programa- vão) e Alma que voa (de Antônio Júnior) refinamento poético associado a um
ção tivesse a melhor acolhida possível. – momento de grande destaque da pro- experimentalismo de alto nível, e encer-
O público compareceu, lotando pátio e gramação, que encerrou as atividades rando oficialmente as comemorações
palco do Teatro de Cultura Popular (TCP) no pátio do TCP com a apresentação do do Dia da Poesia de 2011, patrocina-
e prestigiando a extensa programação, grupo de Tovar, interpretando modinhas do pelo Governo do Estado, Secretaria
que teve início com a apresentação da de Othoniel Menezes. Extraordinária de Cultura e Fundação
poetisa Michelle Ferret e seu espetáculo José Augusto (que contribuiu efetiva e
A programação no palco foi aberta com
“Poesias & Flores em caixas”. Sempre eficazmente através do trabalho de Ana
o poeta Plínio Sanderson, que intera-
atento e interessado, a platéia acompa- Neuma, Conceição Jasiello, Sonia San-
giu com o público e realizou uma ótima
nhou o recital dos poemas autorais dos tos, Anchieta Xavier, Gilberto, Silvânia,
apresentação, seguido por Carito, na
integrantes do grupo (além de Michelle, Joana D’Arc, Selma, Saint Clair, Regina
ocasião sem Os Poetas Elétricos, mas
Vânia Maria, Igor Rodrigues, Thiago Me- e Márcia Moreno, entre outros).
que também arrebatou o sentimento dos
deiros e Potyra Pinheiro), que apresen-
presentes, com seu recital carregado de
tou boa desenvoltura cênica.
imagens poéticas. Um dos pontos altos
A seguir, a governadora Rosalba Ciarlini da programação foi o retorno do grupo Carlos Gurgel é poeta, funcionário da
recebeu os convidados, homenageados sonoro/performático Gato Lúdico, lide- Fundação José Augusto e coordenador
e o público presente, destacando o va- rado pelo artista plástico, crítico, profes- do Dia da Poesia 2011.

101
Divulgação
(foto da mesa com a ministra,
governadora, Garibaldi, Isaura)

Cultura potiguar O aniversário de 107 anos do Teatro


é discutida com Alberto Maranhão contou com apre-
a ministra Ana de sentações do Coral Canto do Povo,
Hollanda Coral Hamus e da Escola de Dança do
TAM. Na programação, foram home-
nageados os ex-diretores Dorian Gray
A governadora Rosalba Ciarlini, acom-
Caldas, Hilneth Correia, Diana Fontes,
panhada do ministro Garibaldi Filho,
Olga Aranha e Ivonete Albano. O ponto
da deputada federal Sandra Rosado e
alto da noite agradou os artistas e pro-
da secretária extraordinária da Cultura
dutores culturais, que receberam como
Isaura Rosado, reuniu-se com a minis-
um presente a boa notícia transmitida,
tra Ana de Hollanda, ainda em fevereiro
na ocasião, pela governadora Rosalba
deste ano. Na pauta, o apoio às ações
Ciarlini: o incremento de 50% no valor
que o governo pretende desenvolver
da renúncia fiscal da Lei Câmara Cascu-
para tornar o estado referência nacional
do para o exercício de 2011. Congelado
na cultura popular. O programa, que en-
há oito anos, este valor, que era de R$
volve salões, mostras, dança, cinema,
4 milhões, subiu para R$ 6 milhões. O
vídeo, teatro de rua, mamulengo, pu-
aumento traduz os esforços e os objeti-
blicações, concursos e seminários, foi Aniversário do vos do governo em apoiar, incentivar e
apresentado à ministra, que aprovou as TAM, presente prestigiar a cultura.
propostas e sinalizou o apoio imediato
do Ministério da Cultura.
para artistas

foto Anchieta Xavier


e produtores
A governadora também solicitou à mi-
nistra o retorno dos sete convênios fir-
culturais
mados entre a Fundação José Augusto
e o MinC, no valor de quase R$ 8 mi-
lhões, cujo cancelamento foi pedido
pela gestão estadual anterior. Ana de
Hollanda prometeu reexaminar o caso e
se comprometeu em desenvolver ações
conjuntas com o Governo do RN.

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Secretaria anuncia
publicação de 70
livros até 2012
Como parte do projeto de renovação da Já publicados Gráfica Manimbu
Editora e Gráfica Manimbu, a Secretaria Conversas de poetas - Adriano de Sousa Dramacital - Emanoel Antônio da Silva
Extraordinária de Cultura e a Fundação Caminhos da lembrança - José Lacerda Alves Escrevendo, lendo, publicando -
José Augusto apresentaram o Plano Felipe Enélio Lima Petrovich
Editorial para 2011, que prevê a publica- Noturno quase infinito - Maia Pinto Bocas que murmuram/Repouso do Adônis -
ção de 40 títulos – 30 livros e 10 cordéis. Alma que voa - Antônio Júnior Paulo Dumaresq
Alguns títulos já estavam aguardando fi- Vertentes criativas da gravura brasileira -
nalização na gráfica, outros são frutos Dorian Gray Caldas Centro de Pesquisa Juvenal Lamartine
dos estudos e pesquisas do Centro de Brasil Colonial Mandatários I - Tarcísio Rosas Brobró - vocabulário e breve gramática -
Documentação Cultural Juvenal Lamar- Alcides Sales e Albano da Silveira
tine, e ainda há aqueles provenientes de Edital FAPERN Chico Traíra - Jorge Rodrigues
editais da Fundação de Apoio a Pesqui- Conversa e prosa - Isaura Rosado Flauta Cabocla - Alcides Sales e Albano da
sa do RN – FAPERN. Até o fechamento Vozes do povo - Chico Alves Silveira
desta edição, seis livros já tinham sido Em cena - Maria Bezerra Dramaturgia potiguar - Racine Santos
lançados. Vozes do canto - Cláudio Galvão Brasil Imperial Mandatários II - Tarcísio Rosas
Dentro da política estadual do Livro e da Severo iconográfico - Giovanni Sérgio, Laura
Leitura, a Secretaria Extraordinária de Alaíde, Olímpio Maciel e Isaura Rosado
Cultura publicou, em abril, o Edital Cul-
tura Publicações 2012 de número 002. Reedições
A minuta do documento ficou disponí- Gizinha - Polycarpo Feitosa
vel para apreciação pública até o dia 8 Roseira brava - Palmira Wanderley
de abril e recebeu sugestões de todos
os setores da sociedade. Através deste
edital, a comissão editorial da Coleção
Cultura Potiguar escolherá os 30 títulos
para publicação no próximo ano.

Capacitação de agentes e pagamento


dos Pontos de Cultura
Abrigados durante quatro dias no Cen-
Em solenidade realizada no dia 1º de tro de Treinamento da Emater, os can-
março no Teatro da Cultura Popular, foi didatos a agentes de cultura discuti-
encerrado o treinamento de 40 agentes ram experiências exitosas – como a da
foto Anchieta Xavier

de cultura e anunciado o pagamento Casa de Cultura de Campo Grande – e


de R$ 960 mil aos Pontos de Cultura, a participação e o apoio do municípios.
saldando dívidas de 2009. A solenidade Juntamente com técnicos do SEBRAE,
foi presidida pela governadora Rosalba os professores Deífilo Gurgel, Maria Be-
Ciarlini, com a presença do empresário zerra e Josenilton Tavares orientaram os
Antonio Gentil e de prefeitos dos muni- candidatos a agentes a elaborar o plano
cípios com Casas de Cultura. de atividades para este ano.

103
Cia de dança do
TAM recebe
reconhecimentos
internacionais
A Companhia de Dança do Teatro Alber-
to Maranhão participou do Festival Inter-
nacional de Dança Tanzolymp, realizado
entre os dias 13 e 20 de fevereiro deste
ano, em Berlim, na Alemanha [veja críti-
ca ao lado]. O grupo trouxe para O RN o
prêmio máximo na categoria “Conjunto
de Dança Moderna”.
Além disso, os bailarinos Breno Lucena
e Meyriane Gonçalves receberam bol-
sas para o estudo de dança nos Esta-
dos Unidos. Eles participaram do Youth
Primeira Exposição American Gran Prix (YAGP), realizado
homenageia as em Nova York, de 23 a 26 de setembro
mulheres de 2010. Breno, do grupo infanto-juvenil
da Edtam, foi selecionado para estudar
na Harid Conservatory, na Flórida, en-
Disponibilizar acervos privados para a O Privado é Público - Programação
quanto Meyriane Gonçalves, do grupo
apreciação do público: esse é o obje-
Maio clássico, para o Rock School, também
tivo do projeto “O Privado é Público”,
Luís Carlos Guimarães na Flórida. Ambos começam os estudos
que teve início em março deste ano na
Acervo de Lêda Guimarães em janeiro de 2012.
galeria Newton Navarro, na Fundação
José Augusto. A iniciativa é da Secreta- Junho Já a diretora da Edtam, Wanie Rose, foi
ria Extraordinária de Cultura/FJA e vai Xananas e Baobás convidada para proferir palestra no Fes-

foto Anchieta Xavier


trazer os melhores acervos privados Acervo de Diógenes da Cunha Lima; tival Brasil Move Berlim, que acontece
do estado para o hall da entidade. O na Alemanha entre 8 e 12 de abril.
Julho
primeiro acervo exposto foi o da pes-
Augusto Severo
quisadora Leide Câmara, uma home-
Acervo de Olímpio Maciel
nagem às mulheres potiguares que
fazem música, com dezenas de fotos, Agosto
partituras, documentos e figurinos. O As Cores do Folclore
projeto seguiu, em abril, com o acervo/ Acervo de Gutemberg Costa e
exposição do artista Ricardo Veriano, Daliana Cascudo
Paixão de Espinho em Altar de Pedra.
Setembro
Dorian de Dorian
Acervo de Dorian Gray Caldas

Outubro
A Arte que Convivo
Acervo de Elenir Varela

Novembro
Sem título
Acervo de Selma Bezerra

Dezembro
Presépios
Acervo de Antônio Marques

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Da radical poética
do gesto por Chico Moreira Guedes | foto Divulgação

“Paul Valéry comparava a prosa à mar- Há um caminho etimológico que me ajuda guagem – só que linguagem corporal.
cha e a poesia à dança.” Essa frase, lida na provocação que anunciei acima, a de Não a narrativa teatral anedótica – não
décadas atrás, nunca me saiu da me- que dança é poesia. Sabe-se que poiéo, o poema prosaico – Clébio vai buscar
mória. Está num texto de Octavio Paz verbo que está na raiz grega de poiésis, no repertório dos gestos, na fala do
que trata do ritmo na poesia, um capítu- diz fazer, executar, dar forma a, construir, corpo, as soluções poéticas constitu-
lo de O arco e a lira. antes de dizer compor, ou representar em tivas da sua obra viva, cinética, que,
poesia. Diz o gesto antes do discurso, o sendo dançada e re-dançada, se refaz
Mas aqui me interessa ir mais longe, in-
movimento antes do logos. polissemicamente para cada olhar in-
verter os termos da comparação; sus-
dividual que a assiste, como um po-
tentar que dança é poesia, a poiésis Mas elucubrar que o gesto precedeu
ema que tem vigor refloresce e pode
radical da corporalidade, que “dançar é ou até deu origem à poesia não é ain-
nos surpreender a cada nova leitura.
escrever com o corpo”, como no poema da dizer que ele é poesia. Deixemos
de Clevane Pessoa, uma potiguar radi- de abstrações e consideremos, num Sim, dança é poesia. E corpos que dançam
cada em Minas Gerais que descobri ao caso real e próximo de nós, alguns pa- a dança de hoje também refazem as eternas
garimpar na grande teia referências para ralelos haventes entre a elaboração de perguntas sem resposta; suas corpo-gra-
este texto. Nesse garimpo, surpreen- uma coreografia e seus dançamentos, fias revivem e recriam os medos, pasmos e
deu-me a grande variedade de ilustres e a construção de um poema “verbal” epifanias que mobilizam também os poetas
poetas mortos que tocaram o tema da e suas múltiplas leituras. do verbo escrito em papel. E, como estes,
dança: Goethe, Schiller, e. e. cummin- podem fazê-lo com mais ou menos vigor,
5 num 5x5 na Figueiredo Magalhães é
gs, Emily Dickinson, Yeats, Ezra Pound, maior ou menor precisão, impacto e ficân-
uma de três coreografias dançadas em
Carl Sandburg, Jean Cocteau – e Philip cia. Para decidir, é preciso lê-los, é preciso
Berlim, fevereiro passado, por jovens da
Larkin, para não encompridar a lista. vê-los, é preciso revê-los, como relemos o
Companhia de Dança do Teatro Alberto
poema que nos intriga e instiga, sabendo
E também o outro lado dessa relação: Maranhão, que lhes valeram o prêmio
que não se trata de decifrá-lo, mas de nos
O Corsário, um dos grandes balés do de melhor conjunto contemporâneo no
abrirmos ao seu mistério.
repertório romântico é baseado num festival Tanzolymp.
poema homônimo de Lord Byron; o Para “ouvir” o pulsante mistério da
Autor da peça, Clébio Oliveira, dan-
American Ballet Theater criou uma core- dança contemporânea é preciso não
çarino e coreógrafo potiguar radicado
ografia para três homens inspirada em temer a radicalidade da poética dos
na Alemanha, bebeu em tempos de
Remanso, fragmento final da Suíte dos corpos – inclusive, quem sabe, a do
penúria partilhados com mais quatro
Espelhos, de García Lorca; a Compag- nosso próprio.
companheiros num minúsculo conju-
nie Joszef Trefeli, de Genebra, adaptou
gado em Copacabana, e, como fazem
o poema Passionément, do surrealista
os poetas, transmutou memória de Chico Moreira Guedes é professor de
romeno-francês Gherasim Luca.
alegrias e aperreios ali vividos em lin- inglês e tradutor de húngaro

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e l e s p a s s a r ã o , e u p a s s a r i n h o

eu tuíto
por Larissa Gabrielle

“Você me ama?” não é pergunta que se Ele. Que em algum instante da vida foi o As vezes abro a gaveta das calcinhas e
faça. “Amo” não é resposta que se dê. que mais amei. Atravessava a rua, sem penso: vou vestir você, que faz tempo
30 de julho de 2010 representar nada além de uma extinta que não te uso.
estória de amor. 11:28 AM Dec 3rd, 2010 via web
Curso pra gente indecisa aprender q há
11:20 AM Oct 11th, 2010 via web
coisas que não são metades. Ex. não Eu e minha arte de estar sempre na mira
existe meio morto, não existe meio sozi- Não beba o que eu chorar que ainda sem apertar o gatilho.
nho, não existe meio amor é cedo. about 5 hours ago via web
11:55 AM Feb 4th via web Wed Oct 13 2010 16:25:52 via web
Ah, eu prefiro a paixão quando eu tenho
tudo que a gente vive ou vira saudade Desafiar uma mulher mossoroense não certeza de que vou morrer do que quan-
ou vira remorso. é uma boa estratégia. Homens, deve- do eu sei que vai passar.
Thu Jan 06 2011 11:04:09 via web riam saber disso... ¬¬ Fri Mar 11 2011 08:42:29 via web
10:27 PM Sep 28th, 2010 via web
Achei que era amor, mas era tempo perdido. Desço o elevador sempre de coração
Thu Dec 30 2010 12:28:52 via web ... quando o soldadinho de chumbo dá partido e o que me parte o coração é
corda na bailarina. saber que ele está na porta, contando
Quando virar a página não é suficiente,
Thu Oct 07 2010 17:38:20 via web os andares.
a gente cria coragem e rasga. #filosofia-
17:11 PM Jan 29th, 2010 via web
daembriaguez a gente se refaz
4:13 AM Nov 7th, 2010 via Mobile Web Mon Nov 15 2010 13:59:23 via web Adoro quando ele perde o sono, vai ler
jornais e faz o café. Amo quando traz na
Moral da história: a gente não alimenta o Vou me repetir antes que chegue quar-
cama pra mim. Morro quando se deita
que deve morrer ta-feira: 23/11 - Saudade só presta se
de novo. 
Mon Feb 14 2011 17:12:00 via web for ingrata.
9:16 AM Nov 22th, 2009 via web
11:19 PM Nov 23rd, 2010 via web
durmo pra viver os sonhos
Hoje eu fiz o caminho mais longo só por-
Wed Feb 16 2011 01:35:30 via web Só gosto de desculpas esfarrapadas!
que por lá o movimento é mais bonito.
Sat Feb 19 2011 22:23:10 via web
Aprendi tanto a ser só que tem horas Wed Feb 16 2011 08:57:56 via web
que me abandono e nem me sinto falta.
Quanto tempo para o próximo anjo cair
Tue Feb 22 2011 22:33:46 via web Runn, estava aqui, pensando com as
do céu?
rendinhas da minha camisola.
de todos os beijos, o mais inesquecível Thu Jul 22 2010 17:24:20 via web
Wed Jan 19 2011 23:52:00 via Mobile Web
é aquele que ameaçou ser e não foi/ o
Quantos anos inteiros ainda me res-
que ameaça ser amor e não é Um aperto no peito. Vou ali diminuir um
tam?
8:08 PM Apr 13th, 2010 via web colchete do sutiã. Já volto!
1:27 PM Jun 8th, 2010 via web
3:42 PM Oct 13th, 2010 via web
Larissa Gabrielle é publicitária.

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É MÃOS À OBRA NA

O Governo do Estado está dando à cultura o papel de destaque que ela merece no Rio Grande
do Norte. Em tão pouco tempo, passos importantes já fazem a diferença. O primeiro deles
foi a criação da Secretaria Extraordinária da Cultura. O Governo aumentou para R$ 6 milhões
a renúncia fiscal para o setor, um crescimento de 50% em relação aos últimos 8 anos.
Novos recursos levam a mais investimentos, que acontecem no incentivo às artes, música,
literatura e em várias outras ações que dão novo fôlego à produção potiguar. E isso é apenas
o começo. A cultura do RN não precisa mais esperar, porque agora é mãos à obra.

REPASSE DE R$ 960 MIL A 16 ASSOCIAÇÕES TREINAMENTO DE NOVOS AGENTES PARA


DOS AMIGOS DAS CASAS DE CULTURA. AS CASAS DE CULTURA.

PROPOSTA PARA CRIAÇÃO DO FUNDO CRIAÇÃO DO PROGRAMA EDITORIAL


ESTADUAL DA CULTURA ENCAMINHADA DA SECRETARIA DA CULTURA, COM O
À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA. LANÇAMENTO DE 30 LIVROS E 10 CORDÉIS.

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