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INTRODUCAO Este livro trata da populaggo kachin ¢ chan do nordeste da Birmania, mas pretende também fornecer uma contribuigio a teoria antropol6gica, Nao foi proje- ado como uma descrigio etnogréfica. A maioria dos fatos etnogréficos a que me refiro foram publicados anteriormente. Nao se deve, pois. procurar qualquer originalidade nos fatos de que trato, mas na interpretacio desses mesmos fatos. A populagio de que nos ocupamos é a que habita a regio assinalada com o nome KACHIN nomapa 1 emostrada em grande escala no mapa 2, Essa populagao fala diferentes linguas ¢ disletos, ¢ existem grandes diferengas de cultura entre uma outa parte da regido em questo. No entanto, é comum denominar-se a totalidade dessa populagio com os termos chan e kachin. Neste livro chamarei toda a regio de Regido das Colinas de Kachin. ‘Num nivel grosseiro de generalizago, os chans ocupam os vales ribeirinhos onde cultivam arroz em campos irrigados; sio um povo relativamente sofisticado, ‘com uma cultura algo semethante & dos birmaneses. Os kachins, por outro lado, ‘ocupam as colinas onde cultivam arroz usando sobretudo as técnicas de cultura itinerante através de derrubadas ¢ queimadas. A literatura publicada no século pasado quase sempre tratou esses kachins como selvagens primitivos e belicosos, to diferentes dos chans na aparéncia, na lingua ¢ na cultura geral que devem ser considerados de origem racial totaimente distinta!, 1. Por exemplo, Malcom (1837) lckstedt (1944) “s SISTEWAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA Sendo assim, est dentro das convengées normais da antropologia que as monografias sobre os kachins ignorem os chans e as monografias sobre os chans ignorem os kachins. Todavia, os kachins e os chans so em quase toda parte vizinhos préximos e esto bastante associados nas questées comuns da vida. Considere-se, por exemplo, 0 seguinte documento. Faz parte do registro textual do depoimento de uma testemunha num inquérito confidencial realizado nos Estados Chans do Norte em 1930, [Nome da testemunha: Hpaka Lung Hseng Raa: Kachin Lahtawng (Pawyam, pseudo-chan) dade: 79 Religifo: budista zawti Reside em: Man Hkawng, Mong Hko [Nascido em: Pao Mo, Mong Hko ‘Ocupaglo: Chefe aposentado Pai: Ma La, antigamente Duwa de Pao Mo ‘Quando eu era menino, cerca de setenta anos arés, o Regente (chan) Sa0 Hkam Hseng, que entéo reinava em Mong Mao, mandou um parente seu, de nome Hge Hkam, negociar uma slianga com os kachins de Mong Hko, Pouco tempo depois Nge Hkam estabeleceu-se em Pao ‘Mo e mais tarde trocou de nome com meu antepassado Hko Tso Li e meu avé MaNaw, ento uwas de Pao Mo; depois disso nos tomamos chans e budisls e prosperamos grandemente e, como membros do cld Hkam, sempre que famos a Méng Mao ficdvamos com o Regente, © inversamente, em Mong Hko nossa casa era deles. [..] Parece que essa testemunha considerava que nos dltimos setenta anos ou aproximadamente sua familia tinha sido simultaneamente kachin ¢ chan. Como kachin, a testemunha era membro da linhagem do cla Lahtaw(ng). Como chan, era bbudista ¢ membro do cla Hkam, a casa real do Estado de Mong Mao. Além disso, Méng Mao ~ 0 conhecido Estado Chan desse nome em territério cchinés ~ ¢ tratado aqui como sendo uma entidade politica do mesmo tipo e tendo quase a mesma situagéo de Mong Hko, que aos olhos da administragao britanica de 1930 nada mais era que um “eftculo” administrativo kachin no Estado Hsenwi do Notte. Dados desse tipo ndo podem ajustar-se prontamente a qualquer esquema etnogrifico que, em termos lingttisticos, situa kachins e chans em “categorias” raciais diferentes. © problema, contudo, nio é simplesmente o de distinguir entre kachins € chans; hé também a dificuldade de distinguir os kachins entre si. A literatura 2. Harvey & Barton (1930), p. 81 nro ucto discrimina diversas variedades de kachins. Algumas dessas subcategories séo principalmente lingifsticas, como quando se distinguem os kachins que falam jinghpaw, dos atsis, dos marus, dos lisus, dos nungs etc.; outras so sobretudo territoriais, como quando se distinguem os singphos de Assam dos jinghpahs da Birmfnia, ou os hkahkus da regio do Alto Mali Hke (Triangulo) dos gauris, aleste de Bhamo. Porém a tendéncia geral tem sido minimizar a importncia dessas distingdes € dizer que 0 essencial da cultura kachin é uniforme em toda a Regifio das Colinas de Kachin’ Livros com tftulos como The Kachin Tribes of Burma; The Kachins, their Religion and Mythology; The Kachins, their Customs and Tradi- tions; Beitrag zur Ethnologie der Chingpaw (Kachin) von Ober-Burma* referem- se por implicacao a todos os kachins onde quer que sejam encontrados, isto 6, a uma populacio de cerca de 300 mil pessoas escassamente espalhadas por uma regio de uns 130 mil quil6metros quadrados*. ‘Nao faz parte de meu problema imediato discutir até que ponto semelhantes generalizagSes sobre a uniformidade da cultura kachin sio efetivamente justificd- veis; meu interesse reside antes no problema de saber até que pontose pode afirmar que um iinico tipo de estrutura social prevalece ao longo da regiéo kachin. E legitimo pensar que a sociedade kachin é organizada em toda parte segundo um conjunto particular de prineipios, ou seré que essa categoria bastante vaga de kachin inclui muitas formas diferentes de organizagio social? ‘Antes de tentar investigar essa questio, devemos primeiro deixar claro 0 que se entende por continuidade e por mudanga com respeito aos sistemas sociais. Sob 4que citcunstincias podemos dizer de duas sociedades vizinhas A e B que “essas duas sociedades tém estruturas sociais fundamentalmente distintas”, enquanto entre duas outras sociedades Ce D podemos afirmar que “nessas duas sociedades a estrutura social 6 essencialmente a mesma”? No restante deste capitulo de abertura meu objetivo sera explicar o ponto de vista te6rico a partir do qual abordo essa questo basi A tese, em suma, & a seguinte. Os antropélogos sociais que, na esteira de Radcliffe-Brown, usam o conceito de estrutura social como uma categoria por meio da qual se pode comparar uma sociedade com outra pressupsem na verdade que as sociedades de que tratam existem durante todo o tempo em equilfbrio estével. Seré, ento, possivel descrever, por meio de categorias sociol6gicas comuns, sociedades. que presumivelmente ndo esto em equilibrio estavel? 3. Porexemplo, Hanson (1913), p. 13. 44 Carrapet (1929); Githodes (1922); Hanson (1913); Wehsl (1904) 5. Chaptndice 5. o SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA Minha conclusdo é que, conquanto modelos conceituais de sociedade sejam necessariamente modelos de sistemas de equilfbrio, as sociedades reais nfo podem jamais estar em equilibrio. A discrepancia esté ligada ao fato de que, quando estruturas sociais se expressam sob forma cultural, a representagio é imprecisa em comparagio com a fomecida pelas categorias exatas que o soci6logo, qua cientista, gostaria de empregar. Digo que essas inconsisténcias na légica da expressio ritual so sempre necessérias para o bom funcionamento de qualquer sistema social. ‘A maior parte de meu livro é um desenvolvimento desse tema. Sustento que essa estrutura social em situagées prticas (em contraste com o modelo abstrato do sociélogo) consiste num conjunto de idéias sobre a distribuigio de poder entre pessoas e grupos de pessoas. Os individuos podem nutrir, e nutrem, idéias contra- dit6rias ¢ incongruentes sobre esse sistema. Sdo capazes de fazé-lo sem embaraco por causa da forma em que suas idéias sio expressas. A forma é a forma cultural; a expresso ¢ a expresso ritual, A dtima parte deste capitulo introdutério € uma claboragio desta portentosa observagio. Antes, porém, voltemos a estrutura social e &s unidades sociais, Estrutura Social Num certo nivel de abstragdo podemos discutir a estrutura social simples- mente em termos dos principios de organizacio que unem as partes componentes do sistema. Nesse nivel, a forma da estrutura pode ser considerada de mancira totalmente independente do conteiido cultural". Um conhecimento da forma de sociedade entre os cagadores gilyaks da Sibéria Oriental” e entre os pastores nuers do Sudao* me ajuda a entender a forma da sociedade kachin, a despeito do fato de estes tiltimos serem, em sua maioria, agricultores itinerantes que habitam a densa floresta de mongao das chuvas. [Nese nivel de abstracio, nfo € dificil distinguir um modelo formal de outto. As estruturas que 0 antropélogo descreve so modelos que existem apenas em sua propria mente na forma de construcGes Iégicas. Muito mais dificil € relacionar tal abstragio com os dados do trabalho empfrico de campo. Como podemos ter realmente certeza de que um modelo formal particular se ajusta aos fatos melhor do que qualquer outro modelo possivel? 6. Fontes (1945, pp 5860 iets 4. Lasers (900, apa XVI yea ce Evans Prichard (1040, Seah 2 wraopueko ‘As sociedades reais existem no tempo ¢ no espago. A situagéo demogritica, ecolbgica, econdmica e de politica externa ndo se estruturam num ambiente fixo, mas num ambiente em constante mudanga. Toda sociedade real é um processo no tempo. As mudancas que resultam dese processo podem ser discutidas sob dois angulos’. Primeio, existem as que so coerentes com uma continuidade da ordem formal existente. Por exemplo, quando um chefe morre e ésubstituido por seu filho, ‘ou quando uma linhagem se segmenta e temos duas linhagens onde anteriormente havia apenas uma, as mudangas séo parte do processo de continuidade. Nao hé ‘mudanga na estrutura formal. Segundo, existem mudangas que de fato refletem modificagées na estrutura formal. Se, por exemplo, se puder demonstrar que numa localidade particular, durante certo lapso de tempo, um sistema politico composto de segmentos de linhagem igualitérios substituido por uma hierarquia ordenada de tipo feudal, podemos falar de uma mudanga na estrutura social formal. Quando, neste livro, eu falo de mudancas da estrutura social, sempre me estou referindo a mudancas deste ultimo tipo. Unidades Sociais ‘Nocontexto da Regio das Colinas de Kachin, 0 conceito de “uma sociedade” apresenta muitas dificuldades que se tomnardo cada vez mais evidentes no curso dos préximos capftulos. Por ora vou seguir a recomendacao insatisfatéria de Radcliffe-Brown ¢ interpretar “uma sociedade” como se significasse “alguma localidade conveniente”™, Alternativamente, aceito os argumentos de Nadel. Por “uma sociedade” entendo realmente qualquer unidade politica autOnoma" ‘As unidades politicas na Regio das Colinas de Kachin variam grandemente de tamanho ¢ parecem ser intrinsecamente instéveis. Num extremo da escala pode-se encontrar uma aldeia composta de quatro famflias que reivindicam firme- mente o seu direito de ser considerada uma unidade plenamente auténoma. No ‘outro extremo temos o Estado Chan de Hsenwi, que, antes de 1885, continha 49 subestados (méng), alguns dos quais compreendiam por sua vez mais de cem aldeias separadas. Entre esses dois extremos podemos distinguir numerosas outras, variedades de “sociedade”. Esses virios tipos de sistemas politicos diferem uns 9. Fortes, op cit pp. S455. 10, Radclife-Brown (1940), 1, CE Nadel (1951, p. 187 SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA dos outros no s6 em escala mas também nos prinefpios formais & luz dos quais io organizados. E aqui que reside 0 ponto fundamental do nosso problema. Para certas partes da Regio das Colinas de Kachin os registros hist6ricos gemufnos remontam ao comego do século XIX. Isso mostra claramente que durante 0s tltimos 130 anos a organizagéo politica da regigo foi muito instavel. Pequenas ‘unidades politicas aut6nomas tenderam frequentemente a agregar-se em sistemas ‘maiores; hierarquias feudais em larga escala fragmentaram-se em unidades meno- es. Houve mudangas violentas ¢ muito rapidas na distribuicio global do poder politico. portanto metodologicamente erréneo tratar como tipos independentes as diferentes variedades de sistemas politicos que encontramos hoje nessa regio; deveriam ser consideradas claramente como parte de um sistema total mais amplo em continua mudanca. Mas a esséncia de minha tese é que o proceso pelo qual as. equenas unidades se desenvolvem em unidades maiores e as grandes unidades se fragmentam em menores nao € uma simples parte do processo de continuidade estrutural; nio é apenas um processo de segmentagio e agregacio, é um processo que envolve mudanga estrutural. Eo mecanismo desse processo de mudanga que nos interessa em particular. [Nao hé divida de que tanto o estudo quanto a descrigéo da mudanga social em contextos antropol6gicos comuns apresenta grandes dificuldades. Os estudos de campo sio de curta duragio, os registros hist6ricos raramente contém dados do tipo correto em pormenores adequados. Em verdade, embora os antropélogos tenham declarado amitide um interesse especial pelo assunto, sua discussao tedrica dos problemas da mudanca social tem merecido até agora poucos aplausos! Mesmo assim, parece-me que pelo menos algumas das dificuldades s6 surgem como um produto secundério dos préprios falsos pressupostos do antropé- logo acerca da natureza desses dados. Os antropélogos sociais ingleses tenderam a extrair seus conceitos bésicos muito mais de Durkheim do que de Pareto ou de Max Weber. Em conseqiiéncia, estio fortemente predispostos em favor de sociedades que apresentam sintomas de “integragio funcional”, “solidariedade social”, “uniformidade cultural”, “equi brio estrutural”. Essas sociedades, que os historiadores ou cientistas politicos bem poderiam considerar como moribundas, costumam ser vistas pelos antropélogos como ricas ¢ idealmente afortunadas. As sociedades que exibem sintomas de faccionarismo ¢ conflito interno que conduzem a répida mudanga so, por outro lado, suspeitas de “anomia” e de decadéncia patolégica’®. 12. Por exemplo, Malinowski (1945); G, & M, Wilson (1945); Herskovits (1949). 13, Homans (1951), pp. 336. 7” iwrmoougio Essa predisposigdo a favorecer as interpretagbes do “equilfbrio” decorre da natureza dos materiais do antropélogo ¢ das condigées sob as quais ele exccuta o seu trabalho. © antropélogo social normalmente estuda a populagio de um local particular num determinado ponto do tempo e nao esté muito preocupado com a probabilidade de ser ov nao a mesma localidade estudada de novo por outros antropélogos numa data posterior. Desse modo, temos estudos da sociedade trobriand, da sociedade tikopia, da sociedade nuer, mas ndo da “sociedade tro- briand de 1914”, da “sociedade tikopia de 1929”, da “sociedade nuer de 1935”. Quando as sociedades antropol6gicas sao assim dissociadas do tempo e do espaco, a interpretagio que é dada a0 mate pois, se assim néo fosse, decerto pareceria ao leitor que a andlise era incompleta. Mais do que isso, porém: como na maioria dos casos 0 trabalho de investigagio foi realizado definitivamente sem qualquer nogio de repeticao, a apresentagio € de equilibrio estével; 08 autores escrever como se os trobrianders, os tikopias, os ruers fossem 0 que so, agora e para todo o sempre. Com efeito, a confusio entre os conceitos de equilfbrio e de estabilidade esta tdo profundamente arraigada na literatura antropoldgica que 0 uso de qualquer desses termos esté sujeito a ambi- gilidade. Eles nao sao, claro esté, a mesma coisa. Minha posicdo pessoal é a que segue. 1 énecessariamente uma andlise de eqniltbria, Sistemas de Modelo Quando o antropélogo tenta descrever um sistema social, ele descreve neces- sariamente apenas um modelo da realidade social. Esse modelo representa, com feito, a hipstese do antropélogo sobre “o modo como o sistema social opera”. As diferentes partes do sistema de modelo formam, portanto, necessariamente, um todo coerente~ é um sistema em equilibrio. Isso porém no implica que a realidade social forma um todo coerente; a0 contréio, a situagio real é na maioria dos casos ccheia de incongruéncias; e so precisamente essas incongruéncias que nos podem propiciar uma compreensio dos processos de mudanca social. Em situagGes como as que encontramos na Regio das Colinas de Kachin, podemos considerar que qualquer individuo particular detém uma condigio social ‘em sistemas sociais diferentes a0 mesmo tempo. Para 0 proprio individuo, tais sistemas apresentem-se como allernativas ou incongruéneias no esquema de valo- res pelo qual ele ordena sua vida. O processo global de mudanga estrutural realiza-se por meio da manipulagio dessas alternativas como forma de progresso social. Todo individuo de uma sociedade, cada qual em seu proprio interesse, se n SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA empenha em explorara situagio & medida que apercebe e, a0 fazé-lo, acoletividade de indivéduos altera a estrutura da propria sociedade. Essa idéia um tanto complicada receberé frequente ilustracéo nas piginas seguintes, mas o argumento pode ser ilustrado por um simples exemplo. Em matéria politica, os kachins tém diante de si dois modos ideais de vida totalmente contraditérios. Um deles é 0 sistema chan de governo, que se assemelha uma hierarquia feudal. O outro é aquele que denomino neste livro organizacéo de tipo gumlao; 6 um sistema essencialmente anarquista ¢ igualitirio, Nao é raro encontrar um kachin ambicioso que assuma os nomes eos titulos de um principe chana fim de justificar sua pretensio 8 aristocracia, mas que apela simultaneamente 8 prinefpios gumlao de igualdade a fim de fugir a obrigacio de pagar direitos feudais a0 seu proprio chefe tradicional, E assim como os individuos kachins se véem freqiientemente diante de uma escolha quanto ao que é moralmente correto, da mesma forma pode-se dizer que 0 conjunto das comunidades kachin se oferece uma escolha quanto 20 tipo de sistema politico que seré 0 seu ideal. Em suma, minha (ese é que em termos de organizagio politica as comunidades kachins oscilam entre dois tipos polares — “democracia” gumlao, de um lado, ¢ autocracia chan, de outro. A maioria das auténticas comunidades kachins nao sio nem do tipo gumlao nem do tipo chan, ‘mas estdo organizadas segundo um sistema descrito neste livro como gumsa", que 6, com efeito, uma espécie de compromisso entre o ideal gumlao e o chan. Num capitulo posterior descrevo o sistema gumsa como se fosse um terceiro modelo estitico entre 0 modelo gumlao ¢ 0 chan, mas naturalmente o leitor precisa compreender que as comunidades gumsa nfo sto estéticas. Algumas, soba influén- cia de circunstancias econdmicas favordveis, tendem cada vez mais para o modelo ‘chan, até que no final os aristocratas kachins sentem que “se tornaram chans” (sam tai sai), como no caso do anciéo de Mong Hko, que encontramos na pégina 66; outras comunidades gumsa movem-se na diregio oposta e tornam-se gumlao. A organizagio social kachin, tal como € descrita nos relatos etnograticos existentes, sempre o sistema gumsa; mas minha tese € que esse sistema considerado em si ‘mesmo € realmente incompreensivel, pois esta cheio de contradigdes inerentes. Apenas enquanto esquema de modelo ele pode ser representado como um sistema de equilibrio's, embora Lévi-Strauss tenha percebido que a estrutura assim repre- sentada contém elementos que estio “en contradiction avec le systéme, et doit donc 14, Salvo quando ¢ dectarado em contétio, todas as palnasnativas usadas nese Livro so palavas da lingua jinghpaw pronunciadas de acordo com o sistema de romanizagf ciado por Hanson; ef. Hanson (1906). 15. Leach (1952), pp. 40-45 n monucko entrainer sa ruine”"*, No campo da realidade social, as estruturas politicas gumsa io essencialmente instaveis, e sustento que elas 6 se tornam plenamente inteli ‘giveis em termos do contraste apresentado pelos tipos polares de organizagio ‘gumlao e chan, utra maneira de estudar os fendmenos de mudanca estrutural consiste em dizer que estamos interessados nas mudangas sobrevindas no foco do poder politico dentro de um dado sistema, A descrigdo estrutural de um sistema social fomece-nos um modelo ideali zado que declara as relagGes de status “corretas” existentes entre grupos dentro do sistema total e entre as pessoas sociais que compdem grupos particulares”. A posigio de qualquer pessoa social em tal sistema de modelo é necessariamente fixa, ‘conquanto se possa pensar que os individuos preenchem diferentes posigdes no desempenho de diferentes tipos de ocupagao ¢ em diferentes estégios de sua carrera. Quando nos referimos a mudanga estrutural, temos de considerar nio apenas as mudangas na posigéo dos individuos com respeito a um sistema ideal de relacionamentos de status, mas também as mudangas no préprio sistema ide seja, mudancas na estrutura de poder. O poder em qualquer sistema deve ser pensado como um atributo de “deten- totes de cargo”, isto 6, de pessoas sociais que ocupam posigSes as quais 0 poder esté ligado. Os individuos exercem poder somente em sua capacidade de pessoas sociais. Como regra geral, creio que nunca se justifica que 0 antrop6logo social interprete @ aco como sendo inambiguamente orientada para algum fim particular. Por essa razo nunca me contento com os argumentos racionalistas referentes 3s ““necessidades” e “metas” como os aventados por Malinowski e por Talcott Par- sons!t, mas considero necessdrio e justificavel supor que um desejo consciente ou inconsciente de adquirir poder € um motivo muito geral nas questes humanas. Por isso, suponho que os individuos que se defrontam com uma escolha de acio iri geralmente usar tal escolha para adquirir poder, vale dizer, procurardo o reconhe- cimento como pessoas sociais que tém poder; ou, para me servir de uma linguagem diferente, eles procurario ter acesso a0 cargo on ao apreco de seus companheiros que pode levé-los ao cargo. O aprego é um produto cultural. O que é admirado em uma sociedade pode ser deplorado em outra. A peculiaridade do tipo de situagio nas Colinas de Kachin 16, “..em contradigho com o sistema e deve aarreta a sus ruina”. Lévi-Strauss (1949), p. 325. 17, Para esse uso da expresio “pessoa social”, cf. especialmente Radelitfe-Brown (1940) p. 5 18 Malinowski (1944); Parsons (1949); Parsons & Shs (1951), Pate I a SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANA 6 que um individuo pode pertencer a mais de um sistema de aprego, e que esses sistemas podem nfo ser coerentes. A acZo que é meritria segundo as idéias chans pode ser tachada de humilhante no cédigo gumlao. Portanto, raramente é clara a ‘melhor maneira de um individuo adquirir aprego em qualquer situagéo particular. Isso parece dificil, porém 0 leitor nio precisa imaginar que tal incerteza seja de qualquer modo incomum; em nossa propria sociedade a aco eticamente correta para um homem de negécios cristao é quase sempre igualmente ambigua. Ritual ara elaborar esta argumentacdo devo primeiramente explicar como uso 0 conceito de ritual. O ritual, digo eu, “serve para expressar 0 status do individuo enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra temporaria mente”. Obviamente, a importancia de semelhante aforismo dependera do sentido que se deve atribuir & palavra ritual. Os antropélogos sociais ingleses, em sua maioria, seguiram Durkheim ao dividir as ages sociais em duas grandes classes ~ a saber, ritos religiosos que so sagrados e atos técnicos que so profanos. Das muitas dificuldades que resultam dessa posigio, uma das mais importantes diz respeito a definigdo e & classificagao de magia. Haveré uma classe especial de agdes que se podem descrever como atos migicos e, se houver, pertencerio & categoria “sagrada” ou & categoria “profana”, estario mais ligadas & natureza e & fungdo dos atos religiosos ou as dos atos técnicos? Varias respostas foram dadas a essa pergunta. Malinowski, por exemplo, situa a magia no terreno do sagrado”; Mauss parece consideré-la profana™. Mas, independentemente de a principal dicotomia estar situada entre 0 magico-religioso (Sagrado) e 0 técnico (profano), ou entre o religioso (sagrado) e 0 magico-téenico (profano), permanece o pressuposto de que situagdes de algum modo sagradas e profanas sio distintas como totalidades. Ritual € pois uma palavra usada para descrever as agées sociais que ocorrem em situagdes sagradas. Uso a palavra de modo diferente deste. Do ponto de vista do observador, as agSes afiguram-se meios para atingir fins, ¢ € perfeitamente exeqiiivel seguir a recomendacdo de Malinowski e classifi- car as agbes sociais no tocante a seus fins — isto &, as “necessidades basicas” que 20, Mauss (1947), p. 207, ” urtaopu¢ko parecem satisfazer. Mas os fatos que se revelam desse modo sio fatos técnicos; a anflise nfo fornece nenhum critério para distinguir as peculiaridades de alguma cultura ou de alguma sociedade. Pouquissimas ages, com efeito, tém essa forma elementar funcionalmente definida. Por exemplo, se se deseja cultivar arroz, é certamente essencial ¢ funcionalmente necessério limpar um pedago de chao € jogar sementes nele. E sem diivida as perspectivas de uma boa colheita melhorardo se o terreno for cercado e as ervas daninhas forem capinadas de quando em quando. (Os kachins fazem todas essas coisas e, na medida em que ofazem, esto executando simples atos técnicos de um tipo funcional. Essas ages servem para atender a “necessidades bisicas”, Mas hd muito mais do que isso. No “procedimento costu- meiro” dos kachins, as rotinas de limpar 0 terreno, plantar as sementes, cercar 0 pedago de terra e capinar as ervas daninhas so todas padronizadas de acordo com as convengdes formais e entremeadas com todos 0s tipos de adornos e omatos tecnicamente supérfluos. Sao esses adornos ¢ ornatos que tomam o desempenho ‘um desempenho kachin, e nfo um mero ato funcional. E 0 mesmo sucede com todo tipo de ago técnica; hé sempre o elemento que funcionalmente é essencial, ¢ outro elemento que é apenas o costume local, um adomno estético. Tais adornos estéticos, Malinowski os chama de “costume neutro”, e nesse esquema de andlise funcional 0 tratados como irrelevancias menores. Parece-me, contudo, que so precisamen- te esses adomos costumeiros que fornecem ao antropélogo social seus dados bésicos. Logicamente, estética e ética sdo idénticas, Se quisermos entender as normas éticas de uma sociedade, é a estética que devemos estudar. Na origem, os pormenores do costume podem ser um acidente histérico; mas para os individuos que vivem numa sociedade tais pormenores nunca podem ser irrelevantes, sio parte do sistema total de comunicagio interpessoal dentro do grupo. Sao agées simbéli- cas, ropresentagbes. & tarefa do antropélogo tentar descobrir ¢ traduzit para seu proprio jargio técnico aquilo que esta simbolizado ou representado. Tudo isso, € claro, esta muito préximo de Durkheim. Mas Durkheim e seus discipulos parecem ter acreditado que as representagées coletivas estavam confi- nadas & esfera do sagrado, e desde que afirmam que a dicotomia entre o sagrado € profano era universal e absoluta, inferia-se que s6 eram especificamente sagrados 0s simbolos que o antropélogo submetia & andlise. Quanto a mim, acho injustificével a énfase que Durkheim coloca na dicoto- mia absoluta entre 0 sagrado ¢ 0 profano®. Parece, antes, que as ages acontecem 21. Malinowski in Hogbin (1934), p. xxv 22, Wingenstein (1922) 6421. 23, Durkheim (1925), p53. * SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA ‘numa escala continua. Num extremo temos as agbes que sio inteiramente profanas, {nteiramente funcionais, pura e simples técnica; no outro, temos as ages que so inteiramente sagradas, estritamente estéticas, tecnicamente ndo-funcionais. Entre esses dois extremos temos a grande maioria das agées soci parte de uma das esferas e em parte da outra, Desse ponto de vista, técnica ¢ ritual, profano e sagrado nao denotam tipos de ago, mas aspectos de virtualmente qualquer tipo de agio. A técnica tem conseqiiéncias materiais econémicas que sio mensursveis e prediziveis; o ritual, por outro lado, ¢ uma declaragdo simbélica que “diz” alguma coisa sobre os individuos envolvidos na aco. Assim, de certos pontos de vista pode-se dizer que uum sacrificio religioso kachin 6 um ato puramente técnico econémico. £ um procedimento para matar gado ¢ distribuir a came, e acho que talvez haja pouca diivida de que para a maioria dos kachins isso parece ser 0 aspecto mais importante da questo. Um nat galaw (“executar um nat”, sacrificio) € quase sindnimo de uma boa festa. Mas do ponto de vista do observador ha muita coisa que ocorre num sacrificio que é absolutamente irrelevante no que conceme a matadouro, a cozi- mento ¢ a distribuigio de carne. Séo esses outros aspectos que tém significado como simbolos de status social, ¢ so esses outros aspectos que descrevo como que participa em rituais quer envolvam ou nao diretamente qualquer conceituagio do sobrenatural ou do metafisico™. mito, em minha terminologia, é a contrapartida do ritual; mito implica ritual, ritual implica mito, ambos sio uma s6 ¢ a mesma coisa, Essa posigio é ligeiramente diferente das teorias de Jane Harrison, de Durkheim e de Malinowski A doutrina classica na antropologia social inglesa é que mito e ritual sio entidades conceitualmente distintas que perpetuam uma & outra mediante uma interdepen- déncia funcional ~ o rito € uma dramatizagio do mito, 0 mito € a sangao ou a |justificativa do rito, Esse enfoque do material toma possivel discutir 0s mitos isoladamente como constituindo um sistema de crengas, e de fato uma parte muito grande da literatura antropolégica sobre religio diz respeito quase totalmente & discussdo do contetido da crenca e da racionalidade ou nfo desse conteido. Mas tais argumentos parecem-me um contra-senso escolistico. A meu ver, 0 mito encarado como uma afirmacdo em palavras “diz” a mesma coisa que o ritual encarado como uma afirmagio em aco. Indagar sobre 0 contetido da crenga que nio esta contido no contexido do ritual é um contra-senso. Se eu desenhar um diagrama grosseiro de um automével no quadro-negro escrever embaixo “isto € um carro”, ambas as declaragGes ~ 0 desenho € 0 escrito 24, Cf. dlstingto feta por Merton (1951) entre fungho manifesta e fang laren 76 ntroucho —“dizem” a mesma coisa ~ nenhuma diz mais do que @ outta, e seria claramente um contra-senso perguntar: “O carro é Ford ou Cadillac?” De igual modo, parece- me que, se eu vir um kachin matando um porco ¢ Ihe perguntar 0 que est fazendo ele disser nat jaw nngai ~ “Esto dando-o aos nats” -, esta afirmacao é apenas ‘uma descrigdo do que ele esté fazendo. E um contra-senso fazer perguntas com: “Os nats tém pernas? Eles comem came? Eles vivem no céu?” Em algumas partes deste livro farei freqientes referéncias a mitologia kachin, ‘mas nao farei nenhuma tentativa de encontrar qualquer coeréncia 6gica nos mitos aque me refiro. Os mitos, paramim, sio apenas um modo de descrever certos tipos de comportamento humano; 0 jargio do antropélogo € o uso que ele faz dos modelos estruturais so outras tantas maneiras de descrever os mesmos tipos de ‘comportamento humano. Na anélise sociol6gica nunca podemos ter uma autono- mia absoluta. Por abstrata que seja a minha representacio, minha preocupagio é sempre com o mundo material do comportamento humano observavel, nunca com ‘ametafisica ou com sistemas de idéias que tais. Interpretacao Em suma, portanto, minha opiniao aqui é que agio ritual e crenga devem ser entendidas como formas de afirmacao simbélica sobre a ordem social. Embora eu no afirme que 0s antropslogos estéo sempre em condigies de interpretar esse simbolismo, digo entretanto que a principal tarefa da antropologia social é tentar tal interpretacao™. Devo admitir aqui um pressuposto psicolégico basico. Suponho que todos os seres humanos, qualquer que seja a sua cultura e 0 seu grau de complexidade mental, tendem a construir simbolos e a fazer associagSes mentais do mesmo tipo geral. Isso é uma suposicio muito ampla, se bem que todos os antropdlogos a fagam. A situagdo importa nisto: suponho que com paciéncia eu, um inglés, posso aprender a falar qualquer outra lingua verbal ~ por exemplo, Kachin. Além disso, suponho que entio serei capaz de dar uma tradugio aproxiémada em ingles de qualquer afirmagio verbal comum feita por um kachin. Quando se trata de afirma- ‘gdes que, embora verbais, so inteiramente simbélicas — como, por exemplo, na poesia ~, a tradugio torna-se muito dificil, visto que uma tradugdo literal, palavra por palavra, provavelmente nao traz quaisquer associagées para o leitor inglés. 25. © conceito de eds, tal como fol desenvolvido por Bateson (1936), tem relevinciapaa esa parte de minha angameniaéo. SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA comum; suponho todavia que posso, com paciéncia, chegar a compreender apro- ximadamente até mesmo a poesia de uma cultura estrangeira e que posso entio comunicar a outros essa compreensio, Da mesma maneia, suponho que posso dar ‘um interpretagio aproximada mesmo de ages simbélicas ndo-verbais, como itens do ritual. E dificil justificar completamente esse tipo de suposigo, mas sem ele todas as atividades dos antrop6logos tornam-se sem sentido. Desse ponto de vista posso voltar ao problema que levantei no comego deste capitulo, isto é, a relacio entre uma estrutura social considerada como modelo abstrato de uma sociedade ideal ea estrutura social de qualquer sociedade empfrica conereta. Estou afirmando que onde quer que eu encontre um “ritual” (no sentido em que 0 defini) posso, como antropélogo, interpreté-lo. © ritual em seu contexto cultural é um modelo de simbolos; as palavras com que 0 interpreto sio outro modelo de simbolos composto largamente de termos técnicos inventados por antrop6logos — palavras como linhagem, classe, status etc. Os dois sistemas de sfmbolo tém algo em comum, a saber, uma estrutura comum. De igual modo, uma partitura musical e sua execugo tém uma estrutura comum". Isso € o que estou querendo dizer quando afirmo que o ritual torna explfcita a estrutura social ‘Acestrutura que é simbolizada no ritual & o sistema das relagbes “corretas” socialmente aprovadas entre individuos e grupos. Essas relagées nfo sio formal- mente reconhecidas em todos os tempos. Quando os homens estio envolvidos em atividades priticas para satisfazer o que Malinowski denomina “as necessidades bésicas”, as implicagbes das relagSes estruturais podem ser totalmente desprezadas; ‘um chefe kachin trabalha em seu campo lado a lado com 0 menor dos seus servos. Na verdade, estou preparado para afirmar que o desprezo da estrutura formal € cessencial para o prosseguimento das atividades sociais informais ordinérias. ‘No entanto, se quisermos evitar a anarquia, os individuos que compdem uma sociedade devem de tempos em tempos ser lembrados, pelo menos em simbolo, da ordem bésica que presumivelmente guia suas atividades sociais. Os desempenhos rituais t8m essa funcéo para o grupo participante como um todo”; eles tornam momentaneamente explicito aquilo que de outro modo ¢ ficgio. 26, Russell (1948), p. 479. 23h, Paro individ, a pacipasio num ritual pode também te ouras fngdes ~ por exempo, uma fungio psloldgica catia mas so, a mes ver, est fora do mbito do antropSlogo social * wronucko Estrutura Social e Cultura Minha opini&o quanto ao tipo de relacio que existe entre estrutura social ¢ cultura™* € uma decorréncia imediata disso. A cultura proporciona @ forma, a “roupagem” da situago social. Para mim, a situacéo cultural é um fator dado, é um produto e um acidente da hist6ria. Nao sei por que as mulheres kachins antes de se casarem andam com a cabega descoberia e 0 cabelo cortado curto, mas usam um turbante depois, tanto quanto néo sei por que as mulheres inglesas pdem um anel num dedo particular para denotar a mesma mudanga de status social; tudo 0 que me interessa é que nesse contexto kachin o uso de um turbante por uma mulher tem esse significado simbélico. & uma afirmagio sobre o status da mulher. Porém a esirutura da situacio é largamente independente da sua forma cultural. © mesmo tipo de rela¢o estrutural pode existir em muitas culturas diferentes ¢ ser simbolizado de maneiras correspondentemente diferentes. No exemplo que acabamos de dar, o casamento é um relacdo estrutural que é comum tanto & sociedade inglesa quanto & kachin; é simbolizado por um anel em uma e por um turbante na outra, Isso significa que um nico e mesmo elemento da estrutura social pode aparecer com uma roupagem cultural na localidade A e outra rowpagem cultural na Ioealidade Ro Mas Ae R podem ger lugares adjacentes no. mapa, Em outras palavras, nfo existe razo intrinseca pela qual as fronteiras, significativas dos sistemas sociais devam sempre coincidir com as fronteiras culturais. Admito que as diferengas de cultura sio estruturalmente significativas, mas © mero fato de dois grupos de pessoas serem de cultura diferente néo implica necessariamente ~ como quase sempre se sup6s ~ que pertengam a dois sistemas sociais totalmente diferentes. Nesse livro pressuponho 0 contrério. Em qualquer regio geografica que carega de fronteiras naturais bésicas, é provével que os seres humanos das regides adjacentes do mapa tenham relagdes uns com 0 outros ~ pelo menos até certo ponto -, nao importa quais possam ser 28. Como este livre pode ser lio tanto por antopSlogos americanas como ingleses, devo advrtt que 0 termo cultura, tal como 0 uso, no € aquela categoria sbrangeate que consti o tema dt antropotogia cultural americana. Sow um antroplogo sociale esou interessado a exratua social da sociedad kachio, Pars mim, os conceitos de eultutaesociedade sfo absolatamente dstnios. “Se se considers Sociedade como um agreyado de relagoes socials, ent a cultura € o conteddo dessas relagbes. A sociedade encarece o componente homano,ongregado de pessoas e as relagSes ene elas. A cul ‘enfatza 0 componente dos recuracsacumslados, amo material como material, que a pessossherdam, tempregam, transmutam, 2umentam €transmitem” (Firth, 1951, p. 27) Para 0 uso algo diferente do termo cultura coment ene os antrop6logos americanos, ver Kroeber (1952) e Kroeber & Kluckhohn (4952). * SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA seus atributos culturais. Na medida em que essas relagdes sio ordenadas e no totalmente fortuitas, hé implicita nelas uma estrutura social. Mas - pode-se per- guntar — se as estruturas sociais sio expressas em simbolos culturais, como se podem expressar as relagbes culturais entre grupos de cultura diferente? Minha resposta é que a manutengio da diferenca cultural e a insisténcia nessa diferenca podem por si mesmas tornar a agio ritual expressiva das relagbes sociais. Na regifo geogrifica discutida neste livro, as variagées culturais entre um grupo ¢ outro séo muito numerosas € muito acentuadas. Mas as pessoas que falam uma Ifngua diferente, usam roupa diferente, adoram divindades diferentes etc. naio io vistas como estrangeiros inteiramente, fora do Ambito do reconhecimento social. Os kachins e os chans sio mutuamente arrogantes uns com os outros, mas, resume-se que os kachins e os chans tém, apesar de tudo, um antepassado comum. Nesse contexto, atributos culturais como lingua, roupa e procedimento ritual so meros rétulos simbélicos que denotam os diferentes setores de um sistema estru- tural tinico e extenso. Para os meus propésitos, o que tem significado real é 0 modelo estrutural bisico, ¢ no o modelo cultural manifesto. Estou interessado nao tanto na interpre- taco estrutural de uma cultura particular, mas no modo como as estruturas particulares podem admitir virias interpretagdes culturais e no modo como estru- turas diferentes podem ser representadas pelo mesmo conjunto de simbolos cultu- ais. Ao tratar desse tema, procuro demonstrar um mecanismo bésico da mudanga social

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