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(Menor)idade e consentimento sexual em uma decisao do STF’ Laura Lowenkron Doutoranda em Antropologia Social ~ Museu Nacional) UFRJ RESUMO: O objetivo do trabalho € desnaturalizar as premissas que ser- vvem de base para a regulagio social e juridica da sexualidade de acordo com a idade, dando énfase 3 dimensio social e performativa dessa categoria ¢ a seu entrecruzamento diferenciado de acordo com género e classe. Para isso, serio analisados dispositivos legais que definem a menoridade sexual ow ida- ded consentimento ea sua manipulagao em uma decisio do STE que expli- cita controvérsias sobre o tema. Por fim, proponko questdes que ajudam a cexaminar os pressupostos que fundamentam a regulagio social e juridica da sexualidade de acordo com a dade: 0 que sexo tem aver com consentimento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser definida? Quem & considerado capaz para consentit? PALAVRAS-CHAVE: menoridade, consentimento sexual, leis. O objetivo deste trabalho consiste em desnaturalizar um “problema” que passou a ser um dos mais importantes focos de atengio, de horror e de regulagio na sociedade ocidental contemporanea: a relagao sexual intergeracional envolvendo menores. Um bom caminho nesse sentido é observar situages de conflito ou de negociagto da realidade (Velho, 1999). Ao recuperar as controvérsias, essas situag6es configuram pro- cessos que desestabilizam as definigics socialmente accitas, explicitando Latika LOWENKRON. (MENOR)IDADE £ CONSENTIMENTO SEXUAL... seu cardter fabricado € provisério, O intuito deste artigo nao é tanto questionar ou relativizar a eepulss que existe em torno dessas relagées, mas mostrar como as categorias de idade sao socialmente construfdas manipuladas e como as fronteiras entre accitavel ¢ o inaceitével séo permanentemente redefinidas, negociadas ¢ deslocadas. Neste artigo, apresento o principal modo juridico de regular a con- duta sexual de acordo com a idade ao analisar a manipulagao de normas legais que definem aquilo que optei por denominar menoridade sexual, também chamada de idade do consentimento, No entanto, vale destacar que existe uma série de outros mecanismos reguladores que servem de suporte para controlar ¢ condenar relagées sexuais intergeracionais en- volvendo menores — patologizacio, espetacularizacao, jogos morais acusatérios ~, dentre os quis, a judicializagao ¢ uma das alternativas.” Optei por apresentar a questic com base no campo judicial por iden- tificar nessa abordagem uma zona cinzenta de problematizagao. As con- trovérsias aparecem, como serd analisado, em fungao da dificuldade de se definir uma idade especifica a partir da qual o sujeito & considerado legalmente capaz de consentir livemente uma relacdo sexual, tomando ‘como modelo uma nogao de sujeito racional pleno, com controle abso- luto sobre seus atos. Essa abordagem pareceu-me interessante também porque, dentre as diferentes formas de regulacao da vida social, as leis apresentam-se como aparato oficial do Estado moderno para definigao ¢ imposigio de nor- mas. Apesar de as leis nao determinarem as condutas sexuais, segundo ‘Waites (2005), clas desempenham um papel significativo, ainda que li- mitado, na constituiggo de normas sociais para o julgamento moral do comportamento sexual na sociedade e, principalmente, facilitam 2 in- rervengio de agéncias estatais em casos particulares.. Entendo a nogao de menoridade de acordo com a definigéo de Vian- na (1999, p. 168): “nfo como um atriburo relativo & idade, mas sim 714+ Revista be ANTHOROLOGI, SH0 PAULO, USH, 2007, v.50 2, como instrumento hierarquizador de direitos”, como categoria relacio- nal de subordinasio que evoca a “maioridade” enquanto contraponto € enfatiza a posigao desses individuos em termos legais ou de autori- dade (id., 2002), Menores sio aquelas pessoas compreendidas como incapazes (ou re- lativamente incapazes) de responderem legalmente por seus atos de for- ‘ma integral. Segundo Vianna (id.), trabalhar com 2 nogio de menorida- de & interessante em tetmos cpistemoldgicos, pois permite um maior afastamento de categorias muito naturalizadas, como infincia ou crian- 625, imediatamente associadas a um dado periodo de vida ou a um con- junto de representacées. Se, por um lado, a menoridade nio pode ser identificada exclusi- vamente com a nogio de infancia, por outro, ¢ imposstvel desconhecer a estrcita relagéo entre as duas nogées, pois “a menoridade encontra na infincia sua reptesentagio contemporinea mais eficaz” (id., p. 8). Isso se dd gracas & pressuposigao da incapacidade “natural” de dis- cernimento — concebido como ainda em fase de (con)formagao nesse periodo da vida, sendo, portanto, uma incapacidade transitéria —, baseada na qual se naturalizae legitima a dimensio tutelar da menorida- de, “seja pela idéia de que € necesséria a demarcagio de alguém que res- ponda por esses individuos incompletos, seja pela idéia de que a tran- sigio da menoridade & maioridade deve cortesponder 2 um perfodo de (trans)formacio” (id. p. 9). No caso da menoridade sexual, como vercmos, as discusses procu- ram justamente estabelecer critérios sobre as condigGes que definem a capacidade de discernimento necesséria para que alguém tenha o reco- nhecimento de autonomia para consentir, de maneira considerada vili- da, uma relagZo sexual. A categoria nacuralizada de “idade”, eraduzida em termos de “matutidade” biolégica e social, é um critério central para a definigio da capacidade de consentimento. -715- Laura LOwENKRON. (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL... E importante destacar que meu objetivo neste artigo nio ¢ discutir 0 tema da menoridade legal de maneira mais ampla, tampouco sugerir que, no Brasil, a menoridade sexual seja uma problemética que esteja na pau- ta de discussdo das agendas politicas atuais, de modo como ocorre com a menoridade penal por excmplo. No ambito legislativo e politico na- ional, a menoridade sexual nao € sequer uma expressio que costuma ser acionada. Nao pretendo também realizar um mapeamento mais amplo sobre a discussio politica internacional sobre 0 tema, como fez Waites (2005), ou transplantar o debate que existe em outros paises para 0 con- texto nacional. Meu esforco se limica & andlise de normas legais ¢ préti- as judiciais no ambito nacional que possam iluminar os ctuzamentos centre sexualidade e menoridade. No encanto, antes de analisar de que modo o tema se insere no con- texto legal brasileiro, ¢ importante mostrar como as problemiticas sio construidas em um cenério mais abrangente, que nao determina as ma- nifestagbes locais do debate, mas, de algum modo, as influenciam. Para isso, farei uma breve introducéo sobre como o tema esté situado em uma discussio internacional mais ampla, sobre aquilo que Waites (id.) deno- mina de leis da idade do consentimenio. (A seguir, apresento as normas juridicas que regulam as condutas se xuais de acordo com a idade em nosso contexto legal. Mas nao me tes- trinjo 3 andlise da menoridade sexual definida pelo texto da lei ~relativa- mente estivel, centralizado e generalizante -; procuro refletir sobre as préticas discursivas ~ mais flextveis ¢ dispersas - que disputam, diante de casos concretos, acerca da definigao dos limites entre 0 moralmente aceitavel ¢ o inaceitavel. Para isso, analiso uma decis4o judicial do Su- premo Tiibunal Federal (STF) que apresenta controvérsias em torn da definigio da menoridade sexual com base em um caso concreto.* Por fim, proponho um conjunto de questées que, 2 meu ver, servem de fio condutor para examinar 0s pressupostos centrais que fundamen- -716 - Revista ne ANTROPOLOGIA, S80 PauLo, USP, 2007, v. 50 N° 2. tam a regulaglo social e juridica da sexualidade de acotdo com a idade no mundo ocidental contemporanco: o que sexo tem a ver com consen- timento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser defini- da? E quem € considerado capaz para consentir? As leis da idade do consentimento no debate politico internacional A comparagdo internacional e hist6rica revela uma enorme diversidade de estrucuras legais nas quais as chamadas leis da idade do cansentimento se inserem, até mesmo dificultando a andlise comparativa.® Segundo Waites, “the phrase is generally absent from the law in many different states, ‘yet is fiequently invoked to describe and constest laws, and i: increasingly used to compare laws between different states with consrasting legal frame- works” (Waites, 2005, p. 2) As diferentes maneiras de regular juridicamente a atividade sexual de acordo com a idade podem ser sistematizadas com base nos trés princi pais tipos de previsdes legais: (i) leis que estabelecem limite de idade m{nima: quando a atividade sexual envolvendo pessoas abaixo de uma certa idade é considerada crime; (ii) previsbes de sedugdo: teferem-se a situagdes nas quais a legalidade do comportamento sexual em uma dada faixa de idade é definida pela caracteristica da interagio e/ou da motiva- 40 do participante mais velho; (ili) previsoes legais sobre contato sexual ‘em relag6es de autoridade: envolvem restrigées adicionais sobre o com- portamento sexual quando existe uma desigualdade de poder particu- lar, por exemplo, entre professor ¢ aluno. Além disso, as leis podem va- rat de acordo com o género e a orientagio sexual (cf. Waites, 2005). Nas décadas de 1960 € 1970, dois movimentos sociais e politicos ti- veram influéncia especial sobre o debate internacional em corno das leis -717- Laurs LOWENKRON. (MENOR)IDADE £ CONSENTIMENTO SEXUAL, da idade do consentimento: 0 movimento ferninista ¢ 0 movimento gay. ptimeiro incluiu o tema nas agendas de lua contra “abuso” sexual ligado a formas de dominagio masculina, de modo que essas leis eram vistas como parte de uma estratégia mais ampla de demandas por prote- sao legal de sujeitos em situacao de vulnerabilidade. Essa perspectiva ganha forga no final do século XX, por meio da proliferagzo de campa- thas mididticas de dentincia de eurismo sexual, pedofilia e prosticuigio infantil, © movimento homossexual, por sua ver, incluiu o tema em agendas liberacionistas que lutavam por direitos de eqitidade, critican- do, portanto, leis da idade do consentimento diferenciadas para a pritica homossexual, como acontecia em legislagoes de muitos paises ociden- tais ~ Portugal, por exemple. Como movimento homossexual, surgiram os questionamentos mais radicais sobre as eis da idade do consentimento, Questdes eram colocadas sobre se a lei tinha aplicagao pratica, quem teria acesso a ela ¢ seus efei- tos nos jovens, a quem ela supostamente protegeria (id., p. 128). A par- tir dos anos 70, surgem organizagées, como a associagao americana Man-Boy Love (NAMBLA) e, no Reino Unido, a Pacdophile Informa- tion Exchange (PIE), que demandam dircitos de aceitabilidade da ativi- dade sexual consensual entre adultos e criancas, reivindicando a descri- minalizaggo desse tipo de pritica, a despatologizagao da pedofilia ¢ a aboligéo das leis da idade do consentimento (id., p. 25). Tais grupos pro- péem uma nova linguagem de “direitos da crianca e do adolescente”, reivindicando maior poder ¢ autonomia para os jovens, até mesmo maior autonomia sexual, de mado que estes possam tomar decisdes sobre as préprias vidas ¢ seus corpos. Porém, o proprio movimento homossexual (Iésbico e gay) baralhou para se distinguir dos grupos pedéfilos, por meio da expulsio do NAMBLA da International Lesbian and Gay Association (ILGA), @ fim de garantir reconhecimento pelas Nac6es Unidas. Mais recentemente, -718- Revista DF ANTROPOLOGIA, S40 PAULO, USP, 2007, v, 50 N° 2. em 2006, na Holanda foi criado um partido politico, o NDV (carida- de, liberdade e diversidade), cujas principais reivindicagdes sfo a redu- fo da menoridade sexual de 16 para 12 anos e a legalizagao da porno- grafia infantil, No entanto, as reivindicagées dessas organizagées nunca conquistaram muito espaco ou simpatia de outros movimentos ou da sociedade mais ampla, por isso elas tem tido pouco sucesso em cumprir seus objetivos.§ Por outro lado, desde a metade da década de 1990, 6 tema da “vio- Tencia sexual contra criangas e adolescentes”” tornou-se um problema piiblico central ¢ vem cada vez mais sendo aprescntado e discutido em relagio ao conceito de “pedofilia”, Vale destacar que a “pedofilia” nao é uma categoria juridica, mas, sim, uma categoria clinica.' definida por fantasias e desejos que nao se atualizam, necessariamente, em condutas sexuais.” No entanto, enquanto categoria social, o termo “pedofilia” tem se disseminado com sentidos diversos e tem sido associado a crimes en- volvendo sexo com menores, como estupro, pornografia e prostituicio. Nesse sentido, a “idade do consentimento” funciona como parimetro, nos debates piblicos e politicos, para definir nao apenas o que é consi derado criminoso, mas igualmente patoldgico. Depois de realizar uma breve incursao na discussio internacional so- bre as chamadas leis da idade do consentimento, passo para a andlise mais especifica do contexto legal brasileiro contemporanco. As leis da idade do consentimento na legislagao penal brasileira Na legislagéo penal brasileira contemporinea, 0 que poderiamos ver como lei da idade do consentimento toma forma, de maneira mais restita, na alinea “a” do artigo 224 do Cédigo Penal, que presume a violencia se = 719 - LAURA LOWENKRON. (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL + a vicima de estupro ou de atentado violento ao pudor for menor de 14 anos. Ou seja, qualquer relacao sexual com pessoa abaixo de 14 anos, ainda que consentida, ¢ considerada crime de estupro (se o ato for “con- jungio camal”” ea vitima for do sexo feminino) ou de atentado violen- to a0 pudor (se for qualquer outra forma de “ato libidinoso”" diverso da conjungdo carnal, seja a vitima do sexo masculino ou feminino). De uma maneira mais amp'a, pode-se dizer que o delito de “cor- rupgo de menores”! (art. 218 do Cédigo Penal de 1940) bem como o revogado delito de “seducio de menores" (art. 217 do Cédigo Penal de 1940) também constituem leis da idade do consentimento, pois sio dispositivos que, apesar de nao proibirem de uma maneira ample ¢ irres- trita a atividade sexual nessa faixa etéria ~ entre 14 ¢ 18 anos regulam a atividade sexual entre jovens eadultos, protegendo a inocéncia daque- les considerados sexualmente inexperientes."* Todos esses artigos se inserem no Titulo VI do Cédigo Penal deno- minado “Dos Crimes Contra os Costumes’."’ Alm disso, 0 Estatuto da Crianga e do Adolescente (ECA/1990) acrescentou, em 2003, no capitulo que dispée sobre crimes praticados contra a crianga ¢ 0 adoles- cente, os artigos 240 ¢ 241, quectiminalizam a produgio e a divulgagao de pornografia infanto-juvenil. Deixarei de lado a andlise mais deralha- da dos crimes de pornografia infanto-juvenil e de corrupgao de meno- rina que fundamenta e discute a tes ¢ me concentrarei na andliseda doutr presungio da violéncia por mensridade, prevista no artigo 224 do Cédi- go Penal de 1940, referente aos delitos de “estupro”"® ¢ de “atentado violento 20 pudor”” quando a vitima é menor de 14 anos, pois éa que melhor expée os prineipios que fundamentam a tutela legal de menores em relagao & atividade sexual. De acordo com 0 Manual de Direito Penal brasileiro, de auroria do penalista Luiz Regis Prado, “a presungao da violencia nos delitos se- xuais, também conhecida por violéncia ficta, estd prevista na maioria dos -720- Revista DE ANTROPOLOGIA, SAO PAULO, USP, 2007, v. 50 n° 2. Cédigos Penais, em face da excepcional preocupagio do legislador com detetminadas pessoas que so incapazes de consencit ou de manifescar validamente o seu dissenso” (Prado, 2006, p. 244). Arrazio da tutela do menor de 14 anos, segundo o manual, reside na innocentia consilli do sujeivo passivo, ou seja, a sua completa insciéncia em telago aos fatos sexuais, 0 que invalida o seu consentimento. Em nota de pé de pagina, Prado (ibid.) acrescenta a seguinte citagéo para justificar a lei de violéncia ficta: “E preciso recordar também que 0 exer- clcio da sexualidade com 0 menor ‘pode afetar a evolugao ¢ desenvolvi- mento de sua personalidade e produzir nela alteragées importantes que inciditéo em sua vida ou em seu equilibrio psiquico no futuro”. Julio Pabbrini Mirabete, em seu Cédigo Penal interprevado, destaca que, “em- bora seja certo que alguns menores, com essa idade, jé tenham maturi- dade sexual, na verdade mio ocorre o mesmo com o desenvolvimerto psicolégico” (Mirabete, 2001, p. 1.511). Até a década de 1990, a maioria dos doutrinadores entendia que a presungéo da violencia por menoridadeera absoluta. No entanto, segun- do Regis Prado, “passou a entender a melhor doutrina que a presungio da notma em epigrafe é relativa” (Prado, 2006, p. 245). Segundo o au- tor, tal entendimento ¢ hoje predominante na doutrina, de modo que, se a vitima, apesar de contar com menos de 14 anos, € experiente em assuntos sexuais, ou se jé atingiu maturidade suficiente para discernirse lhe € convenient ou nao praticar 0 ato libidinoso, descaracteriza-se 0 delito."* Mas, analisando a jurisprudéncia recente, vé-se que a relativi dade ou nao da presungio de violéncia continua a ser questio contro- versa entre os juizes. -721- Laura LOWENKRON. (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL. Menina ou moga: (des)construgao social da idade do consentimento em uma deciséo do STF Um caso exemplar para ilustrar as controvérsias em torno da idade do consentimento ou, mais especificamente, em torno do estupro com vio- léncia presumida por menoridade — tanto pela riqueza dos argumentos quanto pela inovagao da decisio na mais alta instancia do Jadicidrio bra- sileiro ~ ¢ um habeas corpus julgado pelo STR, em 1996, de relatoria do ministro Marco Aurélio de Mello, Trata-se de um processo cujo réu é ‘um homem de 24 anos, que fora condenado ~ na primeira ena segunda instancias do Tribunal de Justia de Minas Gerais — por estupro com violéncia ficta por manter relagées sexuais com uma menina de 12 anos. No entanto, anos depois da condenacao, os juizes do STF concederam habeas corpus” ao capaz. em decisio hist6rica ¢ polémica, vencida por trés votos a dois. Vale dlestacar que as decis6es do STF servem de referéncia funda- mental para o entendimento das leis ¢ a conversio destas em tomadas de decisio pelos juizes em todas as demais instincias do Judi Se, por um lado, no sistema juridico brasileiro (Civil Law, centrado no cédigo), a jurisprudéncia nao possui a mesma importancia decisiva para fucuras tomadas de decisio como ocorre no sistema juridico da Common Law, bascado nos costumes (como nos Estados Unidos e na Inglaterra), por outro, nao se pode menosprezar o papel interpretativo dos opera- i020 dores do direito e sua importancia crucial para a continua elaboracio, reformulagio ou reiteracio da ordem legal. Como enfatiza Moore (1978), a ordem legal deve ser vista como um processo ativo e nao como um sistema fixo. Segundo a autora, as ordens existentes so continuamente refeitas e transformadas, de modo que mesmo manté-las ou reproduzi-las deve ser visto como proceso (id. -p2- Revista DE ANTRUPULDGIA, SAU PALLY, USP, 2007; v. 50 Nv 2. p- 6). Sendo assim, observar as controvérsias e as disputas no amago de uma decisio do STF ajuda a perceber as leis como proceso, conforme propée a autora. © caso em anilise foi julgado pela segunda turma do STF, constitut- da pelos ministros Marco Aurélio de Mello (relator do caso), Francisco Rezek, Mauricio Corréa, Carlos Velloso e Néri da Silveira (presidente da sesso). O STF é composto de 11 ministros, sendo um responsdvel, pela Presidéncia do drgio ¢ os demais agrupados em duas curmas com cinco integrantes cada, Os processos que chegam ao STF dividem-se entre as duas turmas para serem julgados. Em casos particulares, pode ser convocado o Plenitio (os 11 Ministros) para julgamento, Os documentos nos quais minha andlise bascia-se consistem no rela- {ério e nos votos, com a argumentagao de cada um dos cinco ministros do STF que participaram do julgamento do habeas corpus e 0 acérdao desse julgamento, com a decisio final. O relator, ministro Marco Auré- lio de Mello, votou pela concessio da ordem de habeas corpus, para a absolvicio do “paciente” (denominacio equivalente a “réu” em habeas corpus) pela pritica do crime de estupro. Dois ministros, Francisco Rezek © Mauricio Corréa, 0 acompanharam no voto; € 0s outros dois, Carlos Velloso ¢ Néri da Silveira, indeferiram © pedido. No entanto, para mi- nha andlise, importa menos o resultado do julgamento do que 0s mo- dos pelos quais os discursos dos juizes constroem ou desconstroem a menoridade sexual. Os argumentos dos ministros constroem-se e dividem-se, basicamen- te, em torno da questio de se a presungao de violéncia a que se refere a alinea “a’ do artigo 224 do Cédigo Penal ¢ relativa ou absoluta e das respectivas razées que fundamentam cada uma das posigdes. Portanto, trata-se de uma discussio juridica. Mas, como em todo qualquer em- bate de idéias, os argumentos sio entremeados por visdes de mundo. Sendo assim, nesse caso, por meio da discussio sobre o ‘problema’ da -73- Laura LOWENKRON. (MENOR)IDADE F CONSENTIMENTO SEXUAL relagio sexual entre um “adulto jovem” € uma “menina’, emergem dife- rentes concepgées culturais sobre o papel das leis na protegao aos jovens caeextensdo dessa protesdo, a construgio social da capacidade de discer- nimento (e da divisio entre “capazes” ¢ “incapazes”), portanto, do sujei- to racional completo, a relacio entre adolescéncia e sexualidade no mun- do contemporiineo, € 0s ctitérios que definem os limites da menoridade além da idade. ‘Antes de apresentat os argumentos especificos de cada ministro que participou do julgamento do habeas corpus, descrevo a seqtiéncia de “fa- tos” no processo tal qual construida por meio de depoimentos ¢ provas. Como nio tive acesso 20s autos, senao por ttechos difusos citados pelos ministros nos documentos que analisei, € nesses fragmentos que me baseio para relatar aqui, brevemente, os acontecimentos que servem de base para a avaliagéo dos jutzes. ( relacionamento entre 0 paciente ~ 0 encanador Marcio Luiz de Carvalho, com 24 anos & época - e a menor ~ Maria Adelaide Noro- nha, entéo, com 12 anos — teria ocorrido em novembro de 1991, na cidade de Carmo (MG). Pela narrativa nos autos, a menina conheceu 0 rapaz.numa noite enquanto estavana praga da matrz, & qual costumava it com as amigas ¢ por onde ele passou de moto, A menina contou que vinha saindo de motocicleta com o rapaz, sempre indo a lugar deserto para troca de beijos ¢ caricias. Declarou que ji fizera 0 mesmo com outros rapazes. Logo no primeizo encontro, 0 rapaz ¢ a menina monta- ram na motocicleta, ditigiram-se a Cachoeira da Barra, pararam, pas- saram a trocar beijos, eo rapaz comegou a passar a mao em seu corpo. ‘A menina relata que o parceiro pedira gentilmente para que mantivesse consigo conjungao carnal e que clase recusara de inicio, mas cedera dian- cedas caricias. O tiltimo encontro aconteceu em 13 de dezembro de 1991, quando ‘sbém mantiveram relagées sexuais. Na volta, Maria pedira a Marcio -724- REVISTA ve ANI KUFOLUGIA, SAL PAULO, USP, 2007, v. 50 NP 2. que a deixasse longe de casa, visando fugir & fiscalizacéo do pai, que, “por falta de sorte”, a viu descer da motocicleta e, ao que tudo indica, foi quem tomou a iniciativa de entrar com a acao penal. Em depoimen- to, a vitima diz que se relacionou sexualmente com 0 réu por trés vezes e quena iltima “seu pai pegou”, que ela mantivera rclagGes sexuais com o réu na primeira vex que 0 encontrou, que tal relagao nao foi forcada e que assim agiu porque “pintou vontade”. Os votos dos ministros que participaram do julgamento nao se limi- tam a definir uma posigéo a favor ou contra o habeas corpus. Os argu- mentos dos magistrados refletem, problematizam e participam do pro- cesso de construgao (e desconstrugao) de concepgées culturais importantes que esto em jogo nas discussGes sobre as leit da idade do consentimento, Estas incluem nogées sobre sexo, idades da vida ¢ os fun- damentos para a tutcla legal de menores. Para desclassificar o estupro, absolvendo o rapaz desses “fatos” que comprovam a autoria materialidade do crime pelo qual o jovem fora condenado, 0 argumento legal do relator, ministro Marco Aurélio de Mello, ¢ que teria ocotrido, no caso, “erro de tipo”, ou seja, dado que a relagao fora consentida ¢ que 0 acusado nao tinha como saber que a menina era menor de 14 anos, ele nao poderia prever que estava come- tendo um crime, entio, nZo houve crime. Mas, se 0 “erro de tipo” é a rario legal para a concessio do habeas corpus, inocentando o rapaz pelo fato de nfo ter tido condig6es de reconhecer que a menina era menor de 14 anos, os argumentos morais utilizados pelos juizes para funda- mentar o “erro de tipo” buscam desconstruir a menoridade da vitima, primeiro tipo de argumentaggo que inocenta 0 rapaz, no caso em andlise, € 0 que defende que ele nao poderia prever a menoridade da vi- tima, porque ela tinha aparéncia ¢ conduta de pessoa madura, nao era mais virgem ou inocente, mas experiente e promiscua. = 75- LAURA LOWENKRON. (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL [A partir do exame da prova coligida, sustenta-se que ndo houve estupro em si jf. que a vitima se passara por pessoa com idade superior & teal, quer sob 0 aspectofisico, quer sob axpecto mental, tendo confessado em Juizo {que mantivera relagio sexual com o Paciente por vortade prépria. (Marco Aurélio de Mello) O ministro acrescenta ainda trecho dos autos que apresenta depoi- mento de testemunha que confirma que a menira aparentava ter 15 ou 16 anos ¢ sala com outros rapazes, que chegou a vé-la saindo 2 noite com outras pessoas de moto, que a menor anda muito pela noite fican- do até a madrugada na rua ¢ que a considera uma “prostiturazinha”, Diante disso, argumenta Marco Aurélio que: [A pouca idade da vtima nio é de molde a afsscar 0 qe confessou em Jutzo, ‘ou seja, haver mantido relagdes com o Pacience por live e espontinea von- cade [.J. © quadro revela-se realmente estartecedor, porquanto se consta- a que a menor, contando apenas com 12 anos, levava vida promiscua, ‘tudo conduzindo & procedéncia do que articulado pila defesa sobre a apa- réncia de idade superior aos citados 12 anos. © reconhecimento de ‘precocidade” na aparéncia fisica e na condu- ta seguido de uma pressuposigio de “precocidade” no desenvolvimen- to psicolégico. Trata-se de uma concepgdo de que a pessoa se desenvol- ve de um modo integrado e coerente em todas os aspectos. Por esst perspectiva, madura fisicamente, experiente sexualmente, supde-se que a menina tenha atingido também maturidade intelectual ¢ moral para consentir. Para os ministros que validaram seu consentimento, a apa- réncia ea conduta da menina foram consideradas mais importantes do que a idade bioldgica para descaracterizar a sua menoridade, ao Ihe reti- rar o dircito de tutela legal para consentir em uma telagio sexual. 726 - Revista pe ANTROPOLOGIA, SAO PAULO, USP, 2007, v. 50 Ne 2, Outra argumentacdo que fundamenta a decisio em favor do habeas corpus éa de que 0 constrangimento seria o principal elemento para ca- racterizar 0 estupro, ¢ este nao é reconhecido no caso em fungéo da ex- periéncia anterior da menina e da auséncia de outras assimettias além da diferenga de idade. A presuncio de violencia depende de uma premissa, que & saber se houve ‘constrangimento |... Padcria, numa situagio diversa desta dos autos, en- tender que houve algum constrangimento, e que por isso, em rerio da ida- de da vicina, presumiremos violéncia, se qualquer elemento circunseancial contribuisse nesse sentido, Por exemplo, se nao fasseo réu um jovern ope écio, to simples quanto a dima sob todas os aspectos, exceto a menori- dade dela; se houvesse uma relacio hierérquica qualquer se fosse ele 0 che- fe, 0 rutos o parente, o empregador, o profeser,oflko do pattéo, © guru, © astro pop, o lider da bands... Nada disso. O que temos aqui é uma hipé- tese de sexo entte dois jovens (ela joven demais) inculados por ne- nnhum fator que padesse, de algum modo, contaminar a vontade de umn dele, significando uma forma, ainda que incomum, de consteangimento. (Francisco Reaek) Observa-se que 0 ministro Francisco Rezek enfatiza a dimenséo relacional da presungéo de violéncia por menoridade ao sublinhar a importincia das assimetrias pata a configurasio de “constrangimento”. lera a diferenga de idade um critétio absoluto ou suficiente de assimerria para caracterizar constrangimento no ato sexual. Ao menos no caso, ele privilegia outras formas de desigualdade, como classe e siaius social. Como a situacio em andlise nio é marcada Por nenhuma dessas outras assimetrias, Rezek considera que “0 caso é de sexo precoce, mediante consentimento expresso”. Na opiniso do ‘ministto, ao manter relagdes sexuais com uma menina de 12 anos, 0 No entanto, ele nao co1 -77- LAURA LOwENKRON. (MENOR)IDADE £ CONSENTIMENTO SEXUAL jovem cometeu um gesto socialmente reprovével, mas que nao faz. dele tum criminoso hediondo que oferece perigo & sociedade, Portanto, con- sidera que seria injusto condend-lo e puni-lo como tal. Falta em nossa {ci penal uma figure mais flexivel e abrangente, que engua- drasse conduras reproviveis (J, como 0 envalvimento consentido com menor de 14 anos; condutas que nao tém, contudo, a gravidade do estu- pro, nem se ajustam ao molde legal da sedugio e da corrupgio de meno- res. (Francisco Rezck) Um terceiro fundamento para a relativizacéo da presungio da vio- lencia e a conseqiiente defesa da inocéncia do rapax é a acelerada mu- danga dos costumes e a revolucio comportamental no mundo contem- poriineo, com o conseqiiente anacronismo do Cédigo Penal na defini da idade que se supée a innocentia consilii para o engajamento na relagi0 sexual. Destacando a influéncia dos meios de comunicagao na socializa- 640 dos jovens, o ministro Marco Aurélio de Mello afirma que “nos nos- sos dias nao hé criangas, mas mogas de 12 anos. Precocemente amadu- recidas, a maioria delas jé conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades”. Articulada a esse argumento esté a con- cepgfo de que “a maquina judicidria nio pode se abster de raciocinar”, ou seja, de que cabe aos jufzes 0 papel de flexibilizar as leis, por meio da atividade interpretativa, para acompanhar a mudanga dos costumes. ‘Também vorou pelo deferimento do pedido de habeas corpus 0 mi- nistro Mauricio Corréa, defendendo o papel do magi por meio da atividade interpretativa, o descompasso entre a acelerada transformagio da realidade ¢ a lenta mudanga da legislagao penal. Ao defender, no caso, a relativizagio da presungio de violencia a que se refere a alinea “a” do artigo 224 do Cédigo Penal, validando 0 consen- timento da menor, Corréa enfatiza scu comportamento “promiscuo”, rado em corsigi, “78 REVISTA DE ANTROFOLOGIA, SAO PAULO, USP, 2007, v. 50 N° 2. sua experiéncia anterior com outros rapazes e também sua mé relagio como pai. Prefiro entender, a meu ver, a exata exegese do artigo 213 do Cédigo Penal, quando admite que o estupro se d4 quando ha violencia ou grave ameaga, no na hipétese desses autos, em que tas circunseanciasinexistem, sobe- jamente comprovado que a relagio foi consentida, que a jover jd nfo exa mais virgem e que jé havia mantido relagbes sexuais com outros parceiros, além de outros elementos informativos sobre a sua vida pregressa, ¢ ade- mais que nao conseguia ser contida sequer pelo pai. de quem no gostava (Mauricio Corréa) Seja enfatizando a aparéncia ea conduta pregressas, seja enfatizando a auséncia de outras assimettias além da idade, os discursos dos minis- tros que votaram pelo deferimento da ordem de habeas corpus des- constroem a menoridade da menina ao descaractetizar, no caso, a pure- za, a inocéncia e a vulnerabilidade associadas @ imagem infantil, I6cus privilegiado da menoridade. Os dois votos seguintes, que indeferem 0 pedido de habeas corpus, vio, ao contririo, procurar garantit o direito de protegio legal da menina, reconstruindo a sua menoridade para con- sentir relagio sexual. Os argumentos procuram fundamentar a invalida- 0 do consentimento da “adolescente” ao enfatizat a sus essencial vulne- rabilidade, inocéncia ¢ imatutidade, apesar de sua experincia sexual anterior ¢ aparéncia fisica precoce. (Os ministros que voraram pela denegacio da ordem de habeas corpus defendem que 0 critério de idade para a definigao legal da menoridade é absoluto. Argumenta 0 ministro Carlos Velloso que “o que deve ser con- siderado é que uma menina de 12 anos nao possti suficiente capacida- de para consentir livremente na pritica do coito”. © primeiro argumento que fundamenta essa posigio ¢ bascado na psicogénese da crianga ‘al -79- ‘Laura LOWENKRON, (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL. qual concebida pela psicologia do desenvolvimento, ou seja, de que 0 amadurecimento cognitivo é um proceso biolégico, portanto, a idade € um fator determinante para avaliar o desenvolvimento da crianga. Citando jurisprudéncia do Tribunal de Justia de Sao Paulo, Velloso des- taca que “nao hé davida de que o legislador, ao fixar o limite de 14 anos, teve em mente a psicogénese da crianga [...]. E evidente que um ser que se metamorfoseia dessa forma, até atingir o seu grau normal de maturi- dade, nao sabe querer" Para justificar a tutela, ou seja, o impedimento legal de autogestio da sexualidade, ele enfatiza dois aspectos que fundamentam a pressupo- sigéo de incapacidade de “autocontrole” em relagdo a jovens da faixa ctéria da vitima: a natureza biolégica dos “instintos sexuais”, que afloram na adolescéncia, tornando as meninas piiberes mais vulnerdveis; ea ig- norancia sobre as conseqtiéncias dos atos. A tutela é portanto, consi- derada nao como uma opressao & vontade, mas como um governo dace que controla os incontroléveis e/ox incompletos ~ sejam criangas, mu- Iheres, indios, escravos etc. — para protegé-los. O fenémeno bioldgico cenfatizado nessa argumentagio € a “puberdade”, que estaria associada a um perfodo de perturbagao psiquica que, somada & pouca experiéncia, tomatia frégil a vontade do “adolescente”. Nas palavras do ministro Carlos Velloso: E que uma menina de 12 anos, j se tomando mulher, 0 instin.o sexual comando conta do seu compo, cede, com mais facilidade, aos apelos amo- rosos, £ precdria a sua resisténcia, natural mesmo a sua inseguransa, dado que nao tem ela, ainds, condigées de avaliar as conseqtiéncias do ato, O iinstinto sexual tende a prevalecer(... A menor afirmou que “pintou vontade” de realizar 0 coito. Quando, entretanto, teria “pintado essa von- sade"? Montaram na motocicleta, pararam, passaram a trocar beijos, 0 ora paciente a passar a mio no seu corpo. Ora, menina-mosa, de 12 anos, = 730 - REVISTA DE ANTHOPOLOGIA, SAO PAULO, USP, 2007, v. 50 n°. pois disso, teria que ter vontade de realizar ato sexual. Nao “pintasse vontade” se cla néo fosse humana, quase mulher, O paciente & que, com 24 anos de idade, deveria ter pensado duas veres antes de realizar 0 coito, de indui-la 20 coito, Ao que leio das declaragdes, foi ela induzida, levada& consumasio do ato sexual, mediante beijos, abragos e outras caricias. Assim, emerge 0 segundo argumento de improcedéncia do pedido de habeas corpus: o de que a cutela legal em relacio & atividade sexual se justifica pela vulnerabilidade dos jovens. A condicio de menoridade & justficada por serem considerados os “adolescentes” individuos incom- pletos e de personalidade indefinida, ou seja, néo tendo desenvolvido ainda a capacidade de auocontrole de seus instintos, os “adolescentes” sao considerados incapazes para o exercicio pleno da liberdade sexual. Exatamente por serem as jovens menores de 14 anos mais sujeitas, por sa inexperiéncia, a ceder as primeiros impactos amorosos, é que 2 lei maior protegio. A sua deficiemte resisténcia & caracterfstica normal da inseguran- «a de sua idade, em que o psiquismo se acha alterado ante as razdes biol6- gicas que o impulsionam [..]. Nesseestado de meramorfismo, a person: dade esti por se definir, endo a menor presaficil, um joguete na mio do adulto, (Néri das Weira) Segundo essa visio, a lei deve proteger “criangas” e “adolescentes” independente de suas condutas. Segundo o ministro Néri da Silveira, a teleologia da norma penal é a defesa do menor, de modo que, “mesmo que leviana, ainda que apresente liberdade de costumes, essa menor merece toda a protecio legal”. Citando jurisprudéncia do proprio STE, Iveira defende que “o fato de, eventualmente, antes de alcangar a ida- de de 12 anos, ter sido ela vitima de outro ou outros estupros em nada o beneficia [o réul”. Nos termos do ministro Carlos Velloso: “a afirmativa pe Laura LowENKRON. (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL no sentido de que a menor era leviana néo me parece suficiente para lhe retirar a protesio da lei penal. Leviana, talvez seja, porque imavura, nao tem, ainda, condigées de discernir livremente”. Segundo Néri da Silveira, a abstengio seria, entéo, 0 melhor meio para precaver os riscos: A lei nega validade do consentimento, firmando em rclacio a0 menor um ever absoluro de abstenglo, sendo irtelevante até mesmo a iniciativa ou provocagdo da vitima para ato sexual, assim como o estado de corrupgao ‘ou de virgindade da menor (..J. A leviandade de uma menor de 14 anos, no autoriza ninguém 2 aproveitar,saisfazendo seus instintos sexuais. (Neti a Silveira) Um terceiro argumento contra a absolvicéo do rapaz é que o que determina o estupro nao éa inocéncia, mas a auséncia de consentimento, € que este, no caso da menor, é invalid, tanto pelos argumentos jé cita- dos como também por uma visio de que nao cabe 20 magistrado subs- tituir o papel do legislador para acompanhar a mudanga dos costumes. A consideragao de que a daboragao da lei penal haja tomado como Funda- ‘mento da flogao lega! de violencia, no caso dos adolescentes a innacentia consili (.], nfo autoriza o magjstrado a substitu a atividade do legisla- dor na avaliagdo desse pressuposto. Assim é, porque 0 cédigo fixou, ele proprio, aidade ¢ de modo algum deixou, a0 crtério do aplicador, a afer ‘0, em cada caso, da maturidade da menor. (Néri da Silveira) Contrapondo-se 20 argumento do ministro Marco Aurélio de Mello, que destaca a influéncia dos meios de comunicagio na socializagio dos jovens ¢ na mudanca dos costumes, Néri da Silveira argumenta que “aos ainda nao é dado o poder de revogar as leis do pals” e que “o Poder Judiciério é co-responsdvel nessa obra da nacionali- meios de comunicas -732- Revista De ANTROROLOGIA, SAO Pauto, USP, 2007, v. 50 N° 2 dade", Sendo assim, 0 magistrado diverge do relator e de outros colegas quanto ao papel do Poder Judicitrio que, para Silveira, deve ser menos o de intérprere que flexibiliza as normas de acordo com 0 contexto cul- tural do que de aplicador de leis que atua como guardizo e defensor da moralidade ¢ dos costumes. Menoridade ¢ consentimento sexual A nogao central que permeia os argumentos dos magistrados é a de con- sentimento, Para definir se houve ou nao estupro, 0 que se discute é a validade ou nao do consentimento da menina ou, em outros termos, a sua condicao de menoridade. Vale destacat que o conceito idade do con- sentimento ~ muitas vezes tomado como um dado nos debates puiblicos € politicos, que ignoram as transformagoes histéricas e as variagbes cul- turais—“é em si mesmo significante como forma de representacio que influencia a compreensio da lei” (Waites, 2005, p. 1). Sendo assim, para concluir este trabalho, retomo as questées apresentadas no inicio do ar- tigo: 0 que sexo tem a ver com consentimento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser definida? E quem é considerado capaz para consentir? A nogao de consentimento é fundamental para uma concepgéo de sexualidade marcada, simultaneamente, pela polaridade de género (mas- culino/ativo e feminino/passivo) ¢ por uma “estética dos prazeres com- Partilhados” (Foucault, 1985). O consentimento é, portanto, uma no- so que permite melhor conceitualizar a diferenga entre agéncia da alma edo corpo na relagao sexual. Apesar da polatidade atividade/passividade do ato sexual, cada um deve ser sujito ativo do ponto de vista do desejo. Vale destacar que 0 consentimento nem sempre foi um elemento fundamental ou suficiente na definigéo da legalidade da relagao sexual. -733- Laura LoweNERON. (MENOR)IDADE E CONSENEIMENTO SEXUAL Segundo Vigarello, a propria particularizasao da nogéo de “violencia sexual”, que, “atingindo o corpo. atinge a parte mais incorporal da pes- soa” (Vigarello, 1998, p. 9), estéassociada & nogio moderna de sujeito, otado de uma interioridade. Além disso, proponho que a historia da “violencia sexual” encontra-se também com a histéria de uma concep- cao individualista de sociedade, que se pode definir como “era moder- Fe’. “Sua premisa é 2 de que cabe aos individuos um conjunco de dire dual” tos inaliendveis, centrados, sobretudo, na sua liberdade indi (Vianna & Lacerda, 2004, p. 15). No entanto, como destaca Waites (2005), a distribuicio social de direitos e iberdades nas sociedades ditas ocidentais, incluindo direitos ide consentimento — nas atividades sexuais ou em outras atividades — foi historicamente estruturada de maneira hierérquica. Desde o Ilumi- nismo, formas particulares de competéncia associadas 2 capacidade in- Telectual de razao ¢ exercicio do livre-arbftrio foram valorizadas. Segun- ‘do Waites, “this context implies that the characteristics attributed to certain social groups have been systematically linked to the kind af action which consent has been imagined to be” (id. p. 19). ‘Desse modo, a apreciagao das transformagdes hist6ricas nas desigual- dades de género ¢ vital para a andlise dos debates em torno do signifcar tle da nocio de “consentimento” no contexte do.comportamento sexual. im especial, é importante notar a passager de um contexto patragcal hierirquico para um contexto marcado por ideais igualitétios. No Bra- Gil, essa mudanga pode ser observada, em parte, por meio da compara: cao dos Cédigos Penais de 1890 ¢ 1940. No primeiro, as ofensas sexuais eram reunidas no titulo “Dos crimes contra a seguranca da honra ¢ honestidade das familias ¢ do ultraje piihlico ao pudor". © estupro era entendido como um roubo ou us ultraje (adultério ou roubo da castidade, ambos ameagando & honra da familia), €0 status social da vitima podia aumentar ou diminuir a gravi- “74> Revista DE AvtRonoLoGia, SAO PAULO, USP, 2007, v. 50 N* 2, dade do crime de acordo com a vergonha ¢ o prejutzo social produzi- / dos. O estupro contra uma mulher publica ou uma prostituta, por exemplo, era considerado menos grave do que atentar contra uma “mu- Iher honesta’. No Cédigo Penal brasileiro de 1940, os delivos sexuais passaram a ser agtupados sob o titulo “Dos crimes contra os costumes”, no capitulo “Dos crimes contraa liberdade sexual”. O bem juridico protegido nao é mais a “honra das familias”, mas, sim, a “liberdade sexual”, definida como “a capacidade do sujeito [...] de dispor livremente de seu proprio compo a pritica sexual, ou seja, a faculdade de se comportar no plano sexual segundo seus préprios desejos” (Prado, 2006, p. 194). A ofensa sexual étransformada em uma ameaga contra o corpo intimo e privado, 0 “consentimento” passa a ter uma importincia maior do que o status social da pessoa ofendida. A nogao de consentimento pode ser definida como uma decisio de concordincia voluntésia tomada por um sujeito dotado de capacidade de agéncia e livre-arbitrio, Algumas campanhas feministas enfatizaram a clateza de distingio entre consentimento e nio-consentimento, como em alguns usos do slogan antiestupro “yes means yes and no means ns”. Outra corrente do feminismo conceitualizou a existéncia de um conti- ‘uum encre o intercutso sexual heterossexual plenamente consentido ¢ © estupro. “The notion of a continuum more adequatately describes the experiences of women who may submit to ex without giving a more ‘active consent, implying greater agency. This is useful in conceptualising forms and degrees of consent in sexual behavior involving children” (Waites, 2005, p-21). Vale destacar que os conflitos contemporineos sobre as les da idade do consentimento sto localizados em um contexto no qual criangas ¢ ado- lescentes passaram de um estado de total subordinasio a familia ou aos tutores para se tornarem “sujeitos de direitos” — com a aprovacéo da -735- Laura LowENKRON. (MENOR)IDADE £ CONSENTIMENTO SEXUAL. Convengéo Universal de Direitos da Crianga pela Organizacéo das Na- Ges Unidas (1989), no plano internacional, ¢ do Estatuto da Crianga e do Adolescente (1990), no plano nacional. Surge, entio, a necessidade de encontrar formas de conciliar a com- preensio de criangas e jovens como sujeitos especiais, ou seja, tendo de ser protegidos e formados, com 0 entendimento de que eles séo indi- viduos portadores de direitos. Esse é um dos dilemas, que esté em jogo nos debates em torno das les da idade do consentimento nos dias atuais, que discutem formas apropriadas de direitos de criangas e adolescentes cem relacio & sexualidade (id., p. 218). Como resposta a esse dilema en- tre 08 direitos de liberdade ¢ de protesio, entendeu-se que as criangas e ‘0s adolescentes como grupos minoritarios devem, por suas caracter/ cas, receber tratamento desigual em favor da igualdade de condigoes (Vianna, 2002). Nas leis da idade do consentimento, a nocio de consentimento pode ser entendida como um tipo particular de competéncia que € conside- rada fundamental para o exercicia do direito de liberdade sexual. O jul- gamento de quem é capaz.de dar consentimento significativo para o ato sexual depende dos tipos de competéncia que se consideram relevantes. ‘A competéncia considerada relevante para a tomada de deciséo na ativi- dade sexual é multidimensional, sendo concebida como uma combina- <4o entre competéncia intelectual (habilidade para processar informa- fo relevante), competéncia moral (capacidade para avaliar 0 valor social do gesto) e competéncia emocional (entendida como habilidade para expressar € manejar emogdes). Por vezes, uma ou outta competéncia pode ser mais valorizada. O principio que fundamenta a menoridade sexual no é qualquer su- posiggo de que o jovem abaixo da idade definida legalmente nao tenha desejo ou prazer sexual, mas, sim, que ele no desenvolveu ainda as com- peténcias consideradas relevantes para consentir em uma relagio sexual. -736- rROFOLOGIA, $40 Pauto, USP, 2007, v. 50 x° 2. Supse-se que a competéncia para a tomada de decisées vem com o tem- po, por meio de um processo de socializacio no qual o sujeito racional completo ¢ (con}formado. Como é possivel notar nos argumentos dos ministros que votaram contra 0 pedido de habeas corpus no caso analisa- do, até uma certa idade, 0 menor é considerado incompleto, portanto, incapaz. ou relativamente incapaz para essa tomada de decisfio, Sendo assim, o exercicio de sua vontade deve ser tutelado pela lei até que ele ou cla tenha se tornado um sujeito pleno para consentir livremente a relacio sexual. No entanto, é importante destacar que, por um lado, se a periodiza~ io da vida € um modo de institucionalizar as cransigdes das pessoas, estabelecendo idades ideais para cada coisa (Souza, 2005), por outro, para compreender as formas de regulacio da conduta sexual, nao se pode tomar a “idade” como ctitério tinico ¢ absoluto. A “idade” esta associa- da a moralidades diferenciadas de acordo com 0 género. Além disso, por vezes, as assimetrias de “idade” so articuladas a outras assimetrias, como aquclas relativas as posigées sociais e & classe, Sendo assim, a and- lise dos entrecruzamentos de categorias parece set 0 melhor meio para entender os processos de regulagao social e juridico da sexualidade. Nota-se, por exemplo, que o ministro Francisco Rezek privilegia as desigualdades de classe e de status em detrimento das diferengas de ida- de, o que, de certo modo, indica que ele “infantiliza” 0 réu em funcio de sua classe social. © ministro reconheceria 0 “abuso” se houvesse, no caso, outros elementos de desigualdade além da idade que pudessem configurar alguma forma de constrangimento, ou seja, de contamina- ‘gio da vontade. Nos termos de Rezck: “poderia, numa situagio diversa desta dos autos, entender que houve algum constrangimento[...] eno fosse 0 réu um jovem operério, tao simples quanto a vitima sob todos os aspectos, exceto a menoridade dela” ~737- LAURA LOWENKRON. (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL, ‘Outro ponto que merece ser destacado é que, em nenhum momen- to, a sexualidade do rapaz € problematizada pelos ministros, mas tio- somentea da menina. Inclusive, o exame psicolégico s6 ¢ realizado para determinar 0 equilfbrio mental e emocional da vitima ¢ nao do agressor, ‘Um dos magistrados, Néri da Silveira, recorre ao laudo psicolégico que consta nos autos para afirmar que, apesar de nao apresentar problemas mentais, a vitima tinha distirbios psicolégicos.”* Uma hipérese para jus- tificar essa auséncia de preocupacio dos magistrados para com o estado mental do rapaz é que a “doenga mental”, em geral, ¢ a “pedofilia’, em particular, séo utilizadas, principalmente, para “explicar” crimes come- tidos por “homens cultos” (recorte de classe), o que, como vimos, nao é © caso. E importante salientar também carter generificado dos argumen- tos dos ministros do STE E latente nesses discursos a questéo da “hon- ra” da familia baseada no controle da sexualidade feminina, tanto que foi o “pai” quem protagonizou a dentincia. Sendo assim, ainda que a “violéncia sexual” contra a crianga tenha ganhado contornos especificos € uma gravidade dramtica a partir do final do século XX, (Landini, 2006), a figura da “menina” — duplamente vulnerével, pela idade e pelo genero - é considerada a principal vitima de “abuso sexual”, nogéo marcada pela idéia de assimetria e nao apenas de auséncia de consenti- mento. Com base na andlise dos argumentos dos magistrados, é possi- vel sugerir que a antiga exiggncia de “honestidade” ferninina para ga- rantia de protecio ¢ transfigurada em exigéncia de “pureza” infantil. Nesse sentido, a dimensao performativa da categoria parece funda- mental, 0 que pode ser percebido nos argumentos dos ministros que se baseiam na aparéncia e na conduta para desconstruir a menoridade (no sentido de incapacidade legal de autogestéo) da ‘menina’, ou melhor, daquela que, considerada destituida de inocéncia, passou, entio, a ser ca como “moga” de 12 anos. Portanto, é posstvel sugerir que, assim -738- Revista De ANtKOPOLOGIA, SAO Pavto, USP, 2007, v. 50 n° 2. como o género, as categorias de idade nio devem ser entendidas como uma propriedade essencial dos sujeitos, mas como um efeito perfor- mativo ¢ uma performance, ou seja, como algo que 0s sujeitos devem se rornar continuamente por meio da estilizacio repetida de atos (Butler, 2003). Em oustos termos, para ser menor, nao basta ter uma certa idade, € preciso parecer que a tem. Essa constatagio nos leva a um dos pontos cruciais deste trabalho: a “infincia’ como categoria cultural associada & nogio de “vulnerabili- dade”, “inocéncia” e “incapacidade de autocontrole”, e como categoria social utilizada para classificar sujeitos especificos. A associagéo de um decerminado sujeito & nogao de “infincia” implica que cle scja conside- rado alguém que precisa ser protegido e controlado em nome de seu “melhor interesse”, como propée a doutrina que fundamenta as legisla- des modemas voltadas para “criangas” ¢ “adolescentes”, representada no Brasil pelo ECA. Sendo assim, a incapacidade legal de autogestio que define a dimensao tutelar da menoridade apsia-se na idéia de uma incapacidade “natural” que define uma “fase da vida”, No entanto, dife- rentes atividades sio associadas a diferentes menoridades, ce modo que a questao crucial nao € tanto saber se determinado sujeito é considerado “crianga” ou nao, mas, sim, considerado “crianga” para qué. No que se refere & menoridade sexual, como vimos, a definigéo de uma idade especifica a partir da qual 0 sujeito € considerado capaz de consentir livremente uma relacio sexual ¢ objeto de controvérsias, tanto ial como na vida social. Porém, o que é objeto de con- trovérsias € negociagio nao € a possibilidade de aceitagio moral e/ou legal do sexo entre “adulto” e “crianga’, mas a clasificagio de sujeitos especificos como “erianga”. Observa-se, assim, que a menoridade sexual niio depende apenas da ‘dade cronoldgica, baseada em um sistema de datagao (Debert, 1998), para ser construida e desconeruida, mas, sim, esté associada a um com- no universo ji ~739- Lavra LOwENKRON. (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL. plexo de fatores que se combinam, dentre eles, 0 exame do comporta- mento ¢ da personalidade dos atores, a avaliacio do tipo de relacao e das distancias sociais entre o “menor” ¢ o “maior” que se relacionaram sexual- mente, ea andlise do contexto no qual a relacéo aconteceu. ‘Notas 1 Trabalho apresentado no GT “Sesualidades, culruras émicas/raciais e ide coordenado por Laura Moutinko e Fabiano Gontijo, na 26* Reunio Brasileira de Antropologia, realizada em junho de 2008, em Porto Seguro (BA). 2. Essas diferentes estratégias de controle social que tém os cruramentos entre meno- vidade ¢ secualidade como alvo foram tomadas como objeto de investigagio em minha dissertacio de mestrado (Lowenkron, 2008). 3. Um projeco de lei para a redugio da maioridade penal esté em votagio no Con stesso Nacional, alm de ser uma temnica que esté na ordem do dia das discusses na mila, especialmente, por meio de casos draméticos que envolvem crimes vio- lentos praticados por menores 4 Vale salientar que, apesar de nfo ter redizado uma pesquisa de jurisprudéncia sufi- cientemente extensiva para generalizar 0 cariter exemplar do caso analisado, na aioria das decisbes que observei sobt: 0 tema, as mesinas controvérsiasrepetem- sc-em diversos acérdaos. Observei que as argumentayérs ¢ as decisées dos magis- trados de outras instincias aproximamse a uma ou a outra tendéncia de entendi- mento dos diferentes ministtos do STE. Além disso, importante destacar que © «aso analisado é considerado no meio juridico como um leading cae, ou sje, como uma decisio inovadora que funda jurispradéncia e que passa a servir de referéncia para tomadas de decisio posterioes sobre 0 mesmo assunto. 5 No Tra, por exemplo, a legalidade da atividade sexual é inscparivel do seats do matrimdnio, Ou seja, nlo existe dade minima para atividade sexual em si, visto que a atividade sexual sé é legal no interior de um easamento hetcrossexusl. Para uma perspectiva comparativa global da cis da idade do consentimento, ver Waites (2005, pp. 40-59). 6 Ver hupil/ptwikipedia org/wiki/Movinento pi%C39%B3-pedofila -740- Revista DE AntRorotocia, S40 Pauto, USP, 2007, v, 50 5° 2. 7 Avioléncia nao deve ser pensada como um dado em si, que se possa analisar ape- nas com base em critérios estatisticos, mas como uma nogio que esté articulada « sistemas de classificagdes e padres de sensibilidade hist6ricos, como sugere Vigarello (1998). Sendo assim, proponho pensar a “violencia sexual” como um ‘emaranhado, ou soja, “como um complexo de atos e classificagies, um tertitério dinmico de sobreposig6es e deslizamentos contextuais € histéricos” (Lowenkron, 2008, p. 9). 8 Deacordo com DSM IV (2002), a “pedofli éclasificada ~a0 lado do fetichismo, voyerismo, exibicionismo, masoquismo, sadismo ¢ travestismo — como uma mo- dlalidade de “parailia", que faz parte do capitulo “Tianstornos sexuais ¢ da ident dade de género", Segundo 0 manual, a pedofilia € caracterizada pelo foco do inte- case sexual em eriangas pré pueres (geralmente, com 13 anos ou menos) por parte de individuos com 16 anos ou mais, € que sejam ao menos cinco anos mais velhos, _quea crianga, ao longo de um periodo minimo de seis meses, 9) O diagnéstico de pedofilia pode ser feito, segundo o DSM IV (2002), se pessoa realizou esses desejos ou se 0s desejos ou as Fantasias sexuiais causaram acentuado softimento ou dificuldades interpessoais. 10. Na linguagem juridica, entende-se por “conjungao carnal” apenas a cépula hete- rossexual vaginica, ou seja ainttodugio do pénis na cavidade vaginal. 1 “Ato libidinoso [...] é toda condura perpetrada pelo sujeito ative que se consubs: tancia numa manifestegio de sua concupiscéncia. Deve restar excluida a conjungao carnal, que é clemento constitutive do delito do estupro" (Prado, 2006, p. 204), Exemplos: sexo oral, masturbagio, coito anal, toques e apalpadelas do pudendo ¢ ddos membros inferiores, contemplagao lascva, contatos volupruosos etc. 12 Act. 218 —Corromper ou fcilitar a corrupsio de pessoa maior de 14 e menor de 18 anos, com ela praticendo ato de libidinagem, ow induzindo-a a praticé-lo ou presencit-lo, Pena ~ reclusio de 1 a4 anos. 13. Art, 217 —Sedusir mulber virgem, menor de 18 anos ¢ maior de 14, ¢ ter com ela conjungio carnal, aproveitando-se de sua inexperiéncia ou justficdvel confianca: Tena ~ reelusio de 2 (dois) a4 (quatro) anos (revogado pela Lei 11.106, de 28 de marco de 2005). A punibilidade por esse delito podia ser extinta por meio do casamento da vitima com o agente ou terceito (Cédigo Penal, at. 107, Vite VI). 14 “Quando a vitima j for pessoa corrompida, nio se configura o delto de corrupsa0 de menores, jd que nio se pode corromper quem jf mantém comportamento to- -741- Laura LOwENERON. (MENOR)IDADE £ CONSENTIMENTO SEXUAL... talmente dissoluto (delito impossivel). Contudo, como a corrupgio admite graus, E possivel a caracterizagao do delito quando a vitima, apesar de apresentar alguma cortupgio, é levada ao extremo da degradacio por obra do agente” (Prado, 2006, pp. 235). “E corrupto quem jd conhece os praveres da carne, quem jé perdeu a ingenuidade sexual. E corrupto inclusive o menor que sejaexperimentado apenas nos prazeres sexusis normals, eis que representam jé corrupgao em face da preco- cidade” (Eragoso, p. 26 in Prado, 2006, 235, n. 8). 15. O titulo “Dos Crimes Conera os Costumes” & subdividido em cinco capitulos e seus respectivos artigos: (1) crimes contraaliberdade sexual (i estupros ii. atenta- do violento 20 pudor; ili, posse sexual mediance fraude; iv. atentado ao pudor mediante fraude; v assédio sexual); (2) corrupgao de menotes (3) disposig&es co- ‘muns aos crimes conta a liberdade sexual e cortupgao de menores (¢ aqui que se incluem as formas qualificadas, presungéo de violéncia ¢ causas do aumento da pena); (4) lenocinio e erifico de pessoas (i. mediagao para se trem: i, favorecimento da prostituigao: ii. casa de prostituigdos iv. rufianismos v trifico internacional de pessoas; vi. trifico interno de pessoas); (5) ultra piblico 0 pudor (i ato obsceno: i. escrito ou objeto obsceno} 16. Art. 213 (Cédigo Penal de 1940) — Constranger mulher & conjungéo carnal, me- diance violencia ou grave ameaga. Pena —reclusio de 6 a 10 anos, 17 Art. 214 (Cédigo Penal de 1940) ~ Constranger alguém, mediante violéncia ou ‘gfave ameaga, a praticar ou permite que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjungio carnal. Pena ~ recluséo de 6 a 10 anos. 18 Contudo, nesses casos, considera o jurista que hé de se ter maior rigor na avalia- fo, “pois a infincia ea pré-adolescéncia slo fases da vida em que o ser humano cencontra-se vulnerivel e suscetivel de abuso, engodo, manipulagio ¢ autoritars- mos" (Prado, 2006, p. 246), de modo que qualquer dissenso do menor, ainda que rio se trate de uma resistencia militante, &suficiente para configuraro estupro 19 Na época, 1996, todo pedido de habeas corpus era julgado pelo STE 20 A hierarquia do sistema judiciério brasileiro pode ser resumida em primeira tincia, segunda instancia (tibunais de justiga estaduais), Superior Tribunal de Jus- tiga (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF). 21. Principalmente, a partir da emenda constitucional n* 45 (2004), que instivuiu a reforma do Judiciério, com base na qual foram criadas as chamadas “simulas vinculances”, ou scja, es decisées reiteradas do STF sio sumuladas como padrio a lasefvia de ou- -742- Revista oF AnTROPOLOGIA, SAO PAULO, USP, 2007, v. 50 Ne 2. de entendimento que vincula a apreciagio de causas semelhantes por jutzes de hiterarquti 22 Os juizes do Supremo Tribunal Federal, bem como os dos Tiibunais Superiores, tém status de ministro, por serem representantes da mais alta corte de um dos Trés Poderes, no caso, 0 Judicitio. 23. Dio laudo: “seu comporramento ¢ instével, com falta de perseveranga nas ativi- dades, reagindo de forma imatura 3s estimulagdes ambientais. Percebe-se também seu nareisismo ¢ exibicionismo, com fantasias no campo sexual. Encontra-se emo- cionalmente perturbads, esforcando-se para manter a integridade do ego". inferior. Bibliografia BUTLER, Judith 2003 Problemas de génere: feminioma e subverso da identidade, ad. Renato Aguiat, Rio de Janciro, Civilzagio Brasileira. a Grin ‘A antropologia eo estado dos grupos ¢ das categorias de idade”, in BARROS, Myriam Moares Lins (org), Vlhice ou tecera idade? Extudos aneropoligicesso- bre identidade, memriae politica, Rio de Janeiro, Fundacio Genilio Vargas. DsMIv 2002 Manual diagnistico ¢ estatistico de ranstornes mentais, &.ed., trad. Cliudia Dornelles, Porto Alegee, Armed FOUCAULT, Michel 985, Hisvvia da sceualidade so exidad de i, ead, Maria Thetena da Costa Albu- queue eJ. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal LANDINI, Tatiana Savoia 2006 "Violénciasewal conta erancas na midi impress: nero egeragio", Cader. es Pau, vol. 26. ~743~ Laura LoweNKRON. 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ABSTRACT: The objective of this paper is to de-naturalize che premises underlying the social and legal regulations on sexuality according to age, giving emphasis to the social and performative dimension of this category 4s well as to its differentiated intersection when it comes to gender and s0- cial class, For this, legal devices thar define sexual minority or the age of ‘consent, as well as the manipulation of such devices in a judicial decision taken by the Brazilian Federal Supreme Court (STF) that explicits contro- verses on the subject wil be analyzed. Finally, I consider questions that may help to examine the preconceptions subjacent to social and legal regulation of sexuality in relation to age: what does sex have to do with consent? How can the capacity of sexual consent be defined? Who is considered ca- pable of consent? KEY-WORDS: minority, sexual consent, laws. Recebido em junho de 2008, Aceito em agosto de 2008. -745~ ISSN 0034-7701 Revista de Antropologia Volume 50 n° 2 SAO PAULO julho-dezembro 2007

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