1. Introdução
A
racionalismo dogmático e o empirismo
metafísica, que no passado fora céptico. Essas correntes discutiam a
considerada a rainha de todas as origem do conhecimento, porém o rigor
ciências, no mundo moderno era igualmente válido em ambas as ar-
precisou de um novo conceito para se gumentações.
sustentar. Daí resulta a importância de
Kant, pois foi ele quem dividiu o mundo O racionalismo dogmático visava a co-
filosófico em fenômeno e nôumeno. Na nhecer seus objetos absolutamente a
visão kantiana, o fenômeno é possível priori, defendia com rigor a origem do
de ser conhecido, quando se encontra conhecimento pela razão, fundamentado
sujeito às formas a priori da sensibilida- no princípio das idéias inatas e no méto-
de, do entendimento e da razão; o nôu- do dedutivo-matemático. Os dogmáticos
meno, Kant denomina coisa em si, não acreditavam no poder exclusivo da razão
podendo, em hipótese alguma, ser co- e apoiavam-se nos domínios dos juízos
nhecido, mas somente pensado. Não é analíticos de explicação. Assim, através
dada, ao homem, a capacidade de co- do princípio de identidade, que apre-
nhecer o nôumeno, portanto, fica impos- senta universalidade e necessidade rigo-
sibilitado o conhecimento acerca dos rosas, pretendiam os racionalistas de-
diversos enunciados metafísicos: a per- monstrar a validade e a verdade acerca
manência da alma, o mundo como tota- dos seus pressupostos científicos. Nos
lidade e a existência de um ser originá- juízos analíticos, pela simples análise do
rio. Kant não tem como finalidade negar conceito, podemos determinar, anterior-
a metafísica mas, sim, discutir a sua mente a qualquer experiência, o valor de
impossibilidade como ciência puramente verdade de uma proposição. Com isso,
teórica que visa a alcançar o incondicio- ao dizer que “o predicado B pertence ao
nado. Além disso, Kant tem o mérito de sujeito A como algo que está implicita-
ter realizado uma síntese entre o racio- mente contido nesse conceito A” [KANT,
nalismo dogmático e o empirismo cépti- 1994, p. 42], formulamos um juízo de
co, demonstrando que tanto a razão explicação que possui uma verdade
como a experiência possuem limites. De objetiva. Entretanto, os juízos de expli-
acordo com a sua filosofia crítica, aquilo cação dizem apenas o óbvio e nada
que se encontra para além do mundo acrescentam ao nosso conhecimento. Na
dos fenômenos, do universo da experi- proposição “a bola é redonda”, poder-se-
ência possível, não pode, de modo al- á considerar que o predicado ‘redonda’
gum, ser conhecido por meio das facul- está contido no conceito do sujeito ‘bola’.
dades cognitivas do homem. Portanto, tal proposição é um juízo ana-
lítico, pois podemos saber a priori a ver-
dade desse juízo sem recorrer à experi-
2. A Descoberta de Kant ência. Todo o problema, segundo Kant,
reside no fato dos juízos de explicação
No tempo de Kant, o mundo do conhe- serem estéreis, isto é nada acrescentam
cimento encontrava-se diante de duas ao nosso conhecimento, por afirmarem
correntes de considerável destaque: o algo que já é essencial ao sujeito, provo-
na que Kant entende o sujeito como objeto; ela é, unicamente, uma primeira
elemento unificador de todo o conteúdo fase do processo cognitivo. É da noção
fornecido pelos sentidos. “Ao invés de de espaço e de tempo que verificamos a
fazer o espírito gravitar em torno das possibilidade de se aplicarem os juízos
coisas, Kant mostrou que as coisas gi- sintéticos a priori à matemática.
ram em torno do espírito. A natureza é,
em parte, obra do homem, de sua sensi- Quando pensamos a proposição
bilidade e do seu pensamento”2. É fun- “7+5=12”, à primeira vista iludidos pela
damentado nesse princípio que Kant faz garantia da sua universalidade e neces-
uso do termo “transcendental” e não do sidade poderíamos pensar que ela é
“transcendente”. O transcendental são as analítica a priori. Porém, por mais que
condições do sujeito e as suas faculda- analisemos o conceito da soma desses
des a priori que possibilitam toda a rela- fatores, jamais encontraremos o seu
ção de conhecimento. O elemento trans- produto. Portanto, “temos que superar
cendente, por sua vez, é incondicionado, estes conceitos, procurando a ajuda da
não pode ser objeto de conhecimento, intuição correspondente a um deles, por
pois ele transcende, de maneira a ultra- exemplo os cinco dedos da mão” [KANT,
passar, as faculdades de conhecimento 1994, p. 47]. Poder-se-á considerar que
do homem. A consciência do homem o espaço e o tempo que permitem a
permite a ele próprio estabelecer a uni- matemática são a priori, mas os mesmos
dade na multiplicidade fornecida pelo sem as coisas não fazem sentido. O
mundo sensível. espaço sem os objetos é vazio de conte-
údo, o tempo sem a seqüência sucessiva
Kant pergunta se os juízos sintéticos a dos dados não é capaz de fazer nenhu-
priori são possíveis na matemática e na ma síntese. Segundo Kant, as intuições
física. No primeiro caso, temos a estéti- puras da sensibilidade, o espaço e o
ca transcendental que verifica se pode- tempo, possuem uma realidade empírica
mos aplicar os mesmos juízos à Mate- quando se referem aos fenômenos e
mática pelas formas da sensibilidade. No uma idealidade transcendental por existi-
segundo momento, na analítica trans- rem no homem como formas da sua
cendental, Kant investiga se é possível sensibilidade independentemente das
aplicar os juízos sintéticos a priori à físi- coisas exteriores. Com isso, podemos
ca, por meio das formas do entendi- concluir que é possível a Matemática
mento. como ciência, pois ela admite que lhe
Na estética transcendental, Kant trata da sejam aplicados, com rigorosa validade,
sensibilidade enquanto faculdade que os juízos sintéticos a priori através das
possibilita as intuições dos objetos. As intuições puras da sensibilidade, o espa-
formas a priori da sensibilidade são o ço e o tempo.
espaço e o tempo existentes no sujeito.
O espaço existe objetivamente para Na analítica transcendental, Kant trata
ordenar as coisas existentes fora do do entendimento enquanto faculdade
sujeito. O espaço não existe nas coisas e que possibilita a formação dos conceitos.
sim no homem. O tempo, da mesma O entendimento representa uma segun-
maneira, existe no sujeito e tem como da fase na marcha do conhecimento.
função ordenar internamente as intui- Existe a sensibilidade que pode intuir
ções. O mundo exterior é caótico e as mas que não é capaz de conceituar. Há
formas a priori da sensibilidade, o espa- o entendimento que é capaz de concei-
ço e o tempo são, portanto, a condição tuar mas que não é capaz de intuir. No
para a realização de qualquer experiên- entanto, para que haja conhecimento,
cia. Assim, “as sensações podem ser conceitos e intuições não podem sepa-
intuídas uma ao lado de outra (espaço) rar-se de modo algum.
ou uma colocada antes ou depois de
uma outra (tempo). Fora destas duas O Mito da Caverna de Platão propõe a
formas a priori universais e necessárias existência de dois mundos, o sensível e
da sensibilidade não é possível conceber o inteligível, entretanto, na concepção de
nenhuma experiência”3. Portanto, para Georges Pascal, em Kant, não existe
Kant, a intuição empírica “é a apreensão “outro mundo que não seja o sensível; e
imediata das sensações ordenadas nas é isto, precisamente, o que toda a análi-
formas a priori do espaço e do tempo. se do entendimento irá demonstrar”5.
Na intuição do espaço podemos dese- Através do entendimento, Kant deseja
nhar as figuras da geometria, como na explicar como seriam possíveis os juízos
intuição do tempo podemos construir os sintéticos a priori na Física, ou seja,
números 4com a adição de sucessivas como é possível a Física como ciência,
unidades” . O que é importante notar é o como síntese a priori. Ao estabelecer as
fato de que a intuição não conceitua o relações acerca das doze categorias,
(totalidade, pluralidade, unidade, afirma-
ção, negação, limitação, substancialida-
2 de, causalidade, ação recíproca, realida-
CHALLAYE, 1966, p. 196.
3
SCIACCA, 1968, p.189-90.
4 5
Idem. PASCAL, 1996, p. 61.
ência” [KANT, 1994, p. 7]. Ora, a nature- a metafísica deve ter algum significado
za humana é constituída de tal modo para o universo da ética, mas seus seres
que não nos permite conhecer os objetos de pensamento não podem ser, de modo
noumênicos da razão especulativa. algum, objetos de conhecimento.
Referências Bibliográficas
BONACCINI, Juan Adolfo. Acerca da Segunda Versão dos Paralogismos da Razão Pura. Anais de
Filosofia, São João del-Rei : FUNREI, n. 3, p. 59 - 66, Jun. 1996.
CHALLAYE, Félicien. Pequena História das Grandes Filosofias. Tradução e notas de Luiz Damasco
Penna e J. B. Damasco Penna. Rio de Janeiro : Nacional, 1966
DELEUZE, Gilles. Para Ler Kant. Tradução de Sônia Dantas Pinto Guimarães. Rio de Janeiro : Francisco
Alves, 1976.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão; Introdução e Notas de Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gul-
benkian, 1994.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura: outros Textos Filosóficos. Tradução de Valério Rohden e
Udo Baldur Moosburger. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1987 - V. II (In: Coleção - Os Pensadores
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PASCAL, Georges. O Pensamento de Kant. Introdução e tradução de Raimundo Vier. 5. ed. Petrópolis:
Vozes, 1996.
SCIACCA, Michele Frederico. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. Tradução de Luís Washin-
gton Vita. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968.