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Quantum

Enigma
Wolfgang Smith
SUMÁRIO
1. Redescobrindo o Mundo Corpóreo

As dificuldades e certamente as perplexidades que nos afligem no momento em


que tentamos construir um sentido filosófico a partir das descobertas da teoria
quântica são causadas não só pela complexidade e sutileza do mundo micro, mas,
antes de tudo, por uma adesão a algumas falsas premissas metafísicas que têm
ocupado o posto de domínio intelectual desde a época de René Descartes.

Que premissas são essas? Para começar, há a concepção cartesiana de um


mundo externo constituído exclusivamente das chamadas res extensa ou “entidades
extensas”, as quais se assume serem desprovidas de todos os atributos qualitativos
ou “secundários”, como a cor, por exemplo. Todo o resto é relegado, de acordo com
essa filosofia, às res cogitans, ou “entidades pensantes”, cujo ato constitutivo, por
assim dizer, não é a extensão, mas o pensamento. Assim, de acordo com Descartes,
qualquer coisa no universo que não seja res extensa é, por isso, como diríamos, “um
objeto do pensamento”, ou, em outras palavras, uma coisa que não possui existência
fora de uma res cogitans particular ou fora da mente.

É certo que a dicotomia tem a sua utilidade; pois de fato, ao relegar os chamados
atributos secundários para o segundo compartimento cartesiano, realizou-se de um só
golpe uma incalculável simplificação do primeiro. O que resta, na verdade, é
precisamente o tipo de “mundo externo” que a física matemática poderia em princípio
compreender “sem nenhum resíduo”. Há, contudo, um preço a ser pago: pois, uma vez
dividido o real em dois, aparentemente ninguém sabe como colocar as peças de volta.
Como, particularmente, a res cogitans adquire conhecimento da res extensa? Pela
percepção, com certeza; mas, então, o que é isso que percebemos? Ora, nos dias
pré-cartesianos em geral era pensado – tanto pelo filósofo quanto pelo não-filósofo –
que no ato da percepção visual, por exemplo, nós de fato “olhamos para sobre o
mundo exterior”. Não é assim que acontece, declara René Descartes; e o faz com
razão, uma vez aceita a dicotomia cartesiana. Pois se o que eu realmente percebo é,
digamos, um objeto vermelho, então ele deve ipso facto pertencer à res cogitans, pela
simples razão de que a res extensa não possui cor alguma. Assim, indo de acordo
com os seus pressupostos iniciais, não foi por escolha, mas por força de necessidade
lógica que Descartes viu-se levado a postular o que desde então ficou conhecido
como “bifurcação”: isto é, a tese de que o objeto perceptivo pertence exclusivamente à
res cogitans, ou de que, em outras palavras, qualquer coisa que realmente
percebemos é privada e subjetiva. Em crassa oposição à crença comum, o
cartesianismo insiste que não “olhamos para sobre o mundo externo”; de acordo com
esta filosofia, nós na realidade estamos presos, cada um em seu mundo privado, e o
que nós normalmente tomamos como uma parte do universo externo é na verdade
apenas um fantasma, um objeto mental – como um sonho – cuja existência não vai
além do ato perceptivo.

Mas essa posição é precária, para dizer o mínimo; pois se o ato da percepção na
verdade não cobre o abismo entre os mundos interno e externo – entre o res cogitans
e o res extensa – como então esse abismo é transposto? Como, em outras palavras, é
possível conhecer as coisas externas, ou mesmo conhecer que elas existem como um
mundo externo, em primeiro lugar? O próprio Descartes, como se recordará, teve
grande dificuldade em superar as suas célebres dúvidas, e só pôde fazê-lo através de
um tortuoso argumento que poucos hoje em dia achariam convicente. Não é estranho
que os práticos e críticos cientistas tenham tão prontamente e por tão longo tempo
defendido uma doutrina racionalista que põe em dúvida a própria possibilidade do
conhecimento empírico?

Mas, por outro lado, se alguém ignorar este impasse epistemológico – ou se fingir
que ele foi resolvido –, então é capaz de se satisfazer com o benefício aparente que o
cartesianismo de fato oferece: pois como eu já destaquei, a simplificação do mundo
externo que resulta da bifurcação torna pensável uma física matemática de alcance
ilimitado. Mas a questão, de qualquer forma, não é se a bifurcação é vantajosa em
algum sentido, mas simplesmente se ela é verdadeira e realmente sustentável. E esse
é o problema que precisa ser resolvido em primeiro lugar; todas as outras questões
que pertencem à interpretação da física são obviamente uma conseqüência disso, e,
portanto, devem esperar a sua vez.

Antes da ciência, antes da filosofia, antes de toda investigação racional, o mundo


existe e é em parte conhecido. Ele existe não necessariamente no sentido específico
no qual alguns cientistas ou filósofos possam ter imaginado que exista ou não, mas
precisamente como algo que pode e deve vez ou outra se apresentar à nossa
investigação. Além disso, ele deve se apresentar por um tipo de necessidade lógica, já
que pertence à própria concepção de um mundo a ser conhecido parcialmente – da
mesma forma que pertence à natureza de um círculo encerrar alguma região do plano.
Ou, pra colocar de outra forma: se o mundo não fosse conhecido em parte, ele ipso
facto deixaria de ser o mundo – o “nosso” mundo, de qualquer maneira. Logo, em um
sentido – que pode, mesmo assim, ser facilmente mal compreendido! – o mundo
existe “para nós”; está aí “para a nossa investigação”, como eu disse.

Ora, essa investigação com certeza é realizada através dos nossos sentidos,
através da percepção; só que desde o início é preciso entender que percepção não é
sensação pura e simples, o que é o mesmo que dizer que ela não é só uma recepção
passiva de imagens ou um ato desprovido de inteligência humana. Mas, independente
de como o ato é consumado, segue o fato de que nós percebemos as coisas que nos
cercam; com a permissão das circunstâncias, nós podemos ver, tocar, ouvir, degustar
e cheirar as coisas, como todo mundo sabe muito bem. É, portanto, inútil e
perfeitamente vazio falar do mundo como algo que é em princípio impercebido e
imperceptível; e, mais, isso é uma ofensa contra a linguagem – como dizer que o
oceano é seco, ou que uma floresta é vazia. Pois o mundo é manifestamente
concebido como o lugar das coisas perceptíveis; ele consiste de coisas que, embora
possam não ser agora atualmente percebidas, poderiam entretanto ser percebidas sob
condições apropriadas: este é o cerne da questão. Por exemplo, eu agora percebo a
minha escrivaninha (através dos sentidos da visão e do tato); e quando eu deixo o
meu escritório, eu não irei mais percebê-la; mas o ponto, claro, é que, ao retornar, eu
posso novamente percebê-la. Como o bispo Berkeley bem observou, dizer que um
objeto corpóreo existe é dizer não que ele é percebido, mas que ele pode e será
percebido sob circunstâncias apropriadas.
É esta verdade vital e muito esquecida que permeia a sua máxima merecidamente
celébre: “Esse est percipi” (“Ser é ser percebido”), não obstante a possibilidade desta
afirmação altamente elíptica realmente ser interpretada no sentido de um idealismo
espúrio. Além disso, esse perigo – do qual o próprio bispo irlandês caiu vítima [1] –
surge principalmente em razão do percipi na fórmula de Berkeley poder facilmente ser
mal compreendido. Como eu já salientei, pode a percepção ser interpretada
erroneamente como uma mera sensação; e foi essencialmente assim que a maioria
dos filósofos a interpretou, desde a época de John Locke até o século XX, quando
aconteceu desta visão bruta e insuficiente ser sujeita ao escrutínio e descartada pelas
principais escolas.

1. Eu discuto as filosofias de Descartes, Berkeley e Kant a propósito da bifurcação em Cosmos


and Transcendence (La Salle, IL: Sherwood Sugden & Co., 1984), ch. 2.

Poderia ser levantada a objeção de que os atributos quantitativos, como a massa,


ainda que sejam contextuais, podem ser concebidos como existentes no mundo
exterior, enquanto esse não é o caso, supostamente, quando se trata da “qualidade
perceptiva”, como a vermelhidão. Pareceria, então, que um “universo puramente
objetivo” – um universo, digamos, no qual não haja nenhum observador – pode de fato
ser concebido, mas apenas com a condição de que ele não possua “atributos
secundários” (como a vermelhidão).

Examinemos essa linha de pensamento. Para começar, não podemos deixar de


concordar que a idéia de uma qualidade, como a vermelhidão, se dá com referência à
percepção, o que quer dizer que a vermelhidão é inevitavelmente algo que alguém
percebe. Mas isso não implica de forma nenhuma que uma coisa não possa ser
vermelha a menos que realmente percebida; pois nós obviamente falamos de coisas
não percebidas como sendo vermelhas, e isso significa que elas exibiriam o vermelho
se fossem percebidas (sempre, é claro, estipulando que elas sejam vistas sob uma luz
adequada e por um observador normal ou saudável). A afirmação de que um dado
objeto é vermelho é, assim, condicional, e é precisamente por virtude desta
condicionalidade que a sua verdade independe do objeto ter ou não ter sido de fato
percebido. Logo, podemos nos assegurar que uma maçã madura, por exemplo, é
vermelha mesmo se não houver ninguém no pomar para percebê-la; e se a vida na
Terra de repente desaparecesse, não há razão para duvidar que a maçã ainda seria
vermelha.

Há, então, um sentido no qual se pode dizer que um universo repleto de atributos
qualitativos existe “na ausência de observadores humanos”; a verdadeira questão,
portanto, é se poderia ser afirmado mais do que isso com relação a um universo
imaginado do qual todas as qualidades tenham sido excluídas. Ora, é claro que
devemos conceder que os atributos quantitativos, como a massa, por exemplo,
referem-se de forma menos direta à percepção – seja ela visual, tátil, ou qualquer
outra – do que a cor; e essa, presume-se, é a razão porque pode ser mais fácil pensar
nos primeiros como os “atributos primários” no sentido cartesiano clássico. Mas não
podemos nos esquecer que os atributos quantitativos com os quais lida a física são no
fim das contas empiricamente definidos, o que quer dizer que a sua definição
realmente implica uma referência necessária à percepção sensível, por mais indireta
ou remota que a referência possa ser. É verdade que a massa de um corpo não é
diretamente percebida (embora o senso cinestésico em alguns casos possa nos dar
uma aproximação) e que, neste sentido, a massa difere da cor; mas também devemos
notar que a medição ou a “observação” da massa é realizada necessariamente por um
ato perceptivo. Assim, dizer que um corpo possui tal e tal massa é dizer que uma
medição da sua massa nos dará o valor em questão, o que significa, novamente, que
se nós executarmos uma certa operação, então se sucederá uma percepção sensível
correspondente (por exemplo, nós perceberemos este ou aquele número em uma
escala). O caso da massa, portanto, e dos outros chamados atributos primários não é
tão diferente do da cor, como os cartesianos podem pensar; pois em ambos os casos
a predicação do atributo (um tanto de massa, ou tal e tal cor) constitui uma afirmação
condicional exatamente da mesma forma lógica. Portanto, uma massa, não menos do
que uma cor, é, em um sentido, uma potência a ser atualizada através de um ato
inteligente envolvendo a percepção sensível. Mas, como uma potência, cada uma
existe no mundo externo, o que quer dizer que cada uma existe, visto que cada uma é
uma potência. Isso é tudo o que podemos exigir logicamente ou supor racionalmente
de um atributo: exigir mais equivaleria a exigir que ele seja e não seja atualizado ao
mesmo tempo.

Até onde se trata da objetividade e da independência do observador, portanto, os


casos da massa e da cor se sustentam igualmente bem; ambos atributos são de fato
objetivos e independentes do observador no sentido mais forte concebível. É que, no
caso da massa e dos outros atributos “científicos”, a complexidade da definição torna
mais fácil – psicologicamente, alguém diria – exigir o impossível: esquecer, em outras
palavras, que o mundo está aí “para nós” – como um campo a ser explorado através
do exercício dos nossos sentidos.

(...)

A pergunta que se coloca é por que o pensamento ocidental deveria por tanto
tempo ter sido dominado pela filosofia cartesiana, uma doutrina especulativa que
contradiz as nossas intuições mais básicas e para a qual não pode haver a princípio
nenhuma evidência corroborativa. E por que logo o cientista deveria defender esse
ensinamento quimérico, que na verdade torna o mundo externo incognoscível por
meios empíricos? Seria de imaginar que ele desprezaria a especulação cartesiana
como o mais vão dos sonhos e, de todas as fantasias metafísicas, a maior inimiga do
seu propósito. E mesmo assim, desde o século XVII em diante, como sabemos, o
cartesianismo e a física têm estado intimamente unidos, ao ponto de poder parecer, ao
observador supercifial, que o dogma da bifurcação constitui de fato a doutrina
científica, apoiada por todo o enorme peso da descoberta científica. Foi, no fim das
contas, o próprio Newton quem amarrou o nó dessa curiosa combinação, e o fez tão
bem que até o presente dia a união se provou virtualmente indissolúvel. [3]

3. Ver especialmente E. A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modem Physical Sclence


(New York: Humanities Press, 1951).

Porém, nem a premissa cartesiana, nem a sua associação com a física era de
fato algo de novo sob o sol, pois parece que o primeiro bifurcacionista declarado na
história do pensamento humano foi ninguém menos do que Demócrito de Abdera, o
reconhecido pai do atomismo. “De acordo com a crença vulgar”, declara Demócrito,
“existe a cor, o doce e o amargo; mas, na realidade, só os átomos e o vazio” 4 Além
disso, há uma conexão necessária entre as duas metades da doutrina, no ponto em
que ele que explicaria o universo em termos dos “átomos e do vazio” deve antes de
tudo negar a realidade objetiva das qualidades percebidas pelos sentidos. Pois como
Descartes observou com admirável clareza:

4. Hermann Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker (Dublin: Weidmann, 1969), p. 168.

Podemos facilmente conceber como o movimento de um corpo pode ser


causado pelo de outro e diversificado pelo tamanho, figura e situação de suas partes,
mas nós somos totalmente incapazes de conceber como essas mesmas coisas
[tamanho, figura e movimento] podem produzir alguma outra coisa de natureza
inteiramente diferente de si próprias, como, por exemplo, aquelas formas substanciais
e qualidades reais que muitos filósofos supõe existirem nos corpos. [5]

5. Principia Philosophiae, in Oeuvres (Paris, 1824,) IV, 198; citado in E. A. Burtt, op. cit. , p.
112.

E acrescentemos que, embora Descartes não assuma um modelo atomista da


realidade externa, a diferença é muito imaterial quanto ao ponto em questão; pois se
se pensa em termos de res extensa ou em termos de átomos democriteanos, em
qualquer caso a passagem citada basta para explicar porque uma física totalista –
uma física que entenderia o universo “sem resíduos” – é obrigada a aceitar a
bifurcação, quase como um “mal necessário”, pode-se dizer.

Deve-se notar que os benefícios da bifurcação são mais aparentes do que


reais; pois de fato o cartesiano é forçado no fim das contas a admitir a própria coisa
que “nós somos totalmente incapazes de conceber”. Ele é forçado a admiti-la, a saber,
quando considera o processo de percepção, no qual as qualidades percebidas pelos
sentidos – sejam elas privadas ou “ilusórias” – são aparentemente causadas (pela
força de suas próprias suposições) por “partículas móveis”. Goste ou não, ele é
obrigado a explicar como “essas mesmas coisas podem produzir alguma outra coisa
de natureza inteiramente diferente de si próprias”, e deve por necessidade conceder
no fim que “nós somos totalmente incapazes de conceber” como tal coisa é possível.
Portanto, nenhuma real vantagem filosófica resulta do postulado da bifurcação, o que
significa que de qualquer forma as reinvidicações totalistas da física precisam ser
abandonadas: em uma palavra, nem tudo, sem exceção, pode ser compreendido ou
explicado em termos exclusivamente quantitativos.

Voltando a Demócrito, é de se notar que sua posição foi vigorosamente


contrariada por Platão e subsequentemente rejeitada pelas principais escolas
filosóficas até o advento da era moderna, o que significa que os dogmas gêmeos do
atomismo e da bifurcação podem de fato ser classificados como “heterodoxos”. Mas
como também se sabe, as velhas heresias não morrem – elas só aguardam a sua
hora certa, e, com o retorno das condições favoráveis à sua aceitação, são
invariavelmente redescobertas e entusiasticamente reafirmadas. No caso de
Demócrito, descobrimos que sua doutrina foi restaurada no século XVII, após um
lapso de cerca de dois mil anos; e é interessante notar que as duas partes da teoria
regressaram aproximadamente na mesma época. Galileu – que diferenciava entre os
chamados atributos primários e secundários e que tendia ao atomismo – foi talvez o
primeiro porta-voz da restauração. E, enquanto Descartes propunha a bifurcação mas
pensava primariamente em termos de matéria contínua, descobrimos que Newton já
se entrega livremente às especulações químicas de um tipo atomístico. Acontece que
naqueles primeiros dias faltavam aos físicos os meios de quantificar as suas
especulações atomísticas e pô-las para testar; na verdade, só no final do século XIX é
que os “átomos” começaram a adentrar o campo experimental. Mas durante todo o
tempo a concepção atomística da matéria exerceu um papel heurístico decisivo; como
Heisenberg destaca. “A maior influência na física e na química dos últimos séculos foi
sem dúvida exercida pelo atomismo de Demócrito”. [6]

6. Encounters with Einstein (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1983), p. 81.

No decorrer do século XX, entretanto, o quadro começou a mudar. Primeiro de


tudo, enfim apareceram em cena diversos filósofos poderosos e influentes – Husserl,
Whitehead, e Nicolai Hartmann, por exemplo – para desafiar e refutar as premissas
cartesianas; e, nesse meio tempo, outros tipos de filosofia também entraram em voga,
como o pragmatismo, o neopositivismo e o existencialismo, que menos desqualificam
do que põem de lado o axioma bifurcacionista. Assim, quer pela refutação, quer pela
negligência, em todo caso se pode dizer que agora o cartesianismo foi abandonado
pelas principais escolas filosóficas.

No mundo científico, por outro lado, é a doutrina democriteana do atomismo


que se encontrou sob ataque, enquanto a premissa bifurcacionista permaneceu
virtualmente inquestionável. E mesmo quando se trata do atomismo – o qual está em
claro desacordo com as últimas descobertas da física de partículas – ocorre que não
poucos dos físicos mais destacados permanecem tacitamente democriteanos em sua
Weltanschauung; precisamente a razão porque Heisenberg lamenta que “Hoje na
física das partículas elementares, a boa física está sendo inconscientemente
prejudicada pela má filosofia.” [7] Poucos, contudo, percebem que ambas as partes
dessa “má filosofia” ainda estão conosco e que devem ser abandonadas se
pretendemos que a física dos dias atuais faça sentido filosófico.

7. Op. cit., p. 82.

Entretanto, é o bifurcacionismo que coloca o problema maior. Em primeiro


lugar, a bifurcação é muito mais fundamental e, conseqüentemente, muito mais difícil
de compreender; mas, mais importante, ocorre dela ser a premissa sobre a qual se
baseiam as concepções totalistas da física. Os físicos podem se sair bem sem o
atomismo, mas em geral relutam em abandonar as reinvidicações totalistas; e assim
se comprometem, queiram ou não, com a hipótese cartesiana. [8]

8. Consequentemente, se acredita na bifurcação pela mesma razão que se acredita na


evolução darwiniana; pois, de fato, enquanto se insistir que cada fenômeno da natureza pode a
princípio ser compreendido apenas pelos métodos da física, ambos os dogmas provam-se
indispensáveis. Minhas opiniões sobre essa questão foram detalhadas in Cosmos and
Transcendence, ch. 4; Teilhardism and the Religion (Rockford, IL: TAN Books, 1988), ch. 1; e
in Cosmos, Bios, Theos, editado por Henry Margenau and Roy A. Varghese (Chicago: Open
Court, 1992 ).
2. O que é o Universo Físico?

Alguém diria que o universo físico é simplesmente o mundo como concebido pelo
físico; mas, por outro lado, está longe de ser claro como exatamente o físico de fato
concebe o mundo. Devemos lembrar, em primeiro lugar, que a física passou por um
estupendo desenvolvimento e continua a progredir com uma rapidez espantosa. E,
além do mais, tem havido ultimamente pouco consenso entre os físicos sobre o que é
exatamente que a física está trazendo à luz. Como, então, podemos falar em um
“mundo concebido pelo físico”?

Podemos fazê-lo, até certo ponto, em virtude do fato da física possuir uma
metodologia própria, um modo distintivo de investigação. As teorias físicas particulares
podem ser substituídas, e as opiniões filosóficas podem ir e vir; mas os meios
cognitivos básicos pelo quais a física como tal é definida permanecem inalterados. E
esses meios cognitivos de uma forma geral determinam os seus objetos: este é o
ponto crucial. Digamos, então, que o universo físico seja o reino das coisas a princípio
cognoscíveis por esses meios particulares, e vamos ver aonde isso nos leva.

Vimos no capítulo anterior que o mundo corpóreo existe “para nós”: como o
domínio das coisas a serem conhecidas através da percepção sensível; e agora
descobrimos que o universo físico existe “para nós” quase no mesmo sentido. Só que
os respectivos meios de conhecimento são notoriamente diferentes. No primeiro caso,
nós conhecemos através da percepção direta, e, no segundo, através de um complexo
modus operandi fundado na medição – o que é uma coisa completamente diferente.

Examinemos brevemente o ato da medição. A primeira coisa a ser notada é que


medimos não diretamente pela visão, ou por qualquer outro sentido, mas por meio de
um artefato: um instrumento apropriado. O que conta, na verdade, é a interação entre
objeto e instrumento: é isso que determina o estado final do instrumento, e, portanto,
do resultado da medição. E esse resultado, além disso, será uma quantidade; um
número, como queira. Ora, para ter certeza, o físico experimental lança mão dos seus
sentidos em cada etapa; e é particularmente por meio da percepção sensível que ele
corrige o estado final do instrumento. Mas isso não significa que ele perceba a
quantidade em questão. Sejamos claros sobre isso. Estritamente falando, não
percebemos uma coisa como o peso ou o diâmetro de um objeto familiar, não mais do
que somos capazes de perceber o momento magnético, digamos, do elétron. O que
percebemos são objetos corpóreos de vários tipos – incluindo instrumentos científicos.
E é claro que somos capazes de ler a posição de um ponteiro em uma escala. Mas
não percebemos quantidades mensuráveis. E essa é a razão porque precisamos de
instrumentos. O instrumento é exigido precisamente porque a quantidade em questão
não é perceptível. Logo, a função do instrumento é converter, por assim dizer, esta
última no estado perceptível de um objeto corpóreo, para que, por meio da percepção
sensível, possamos adquirir o conhecimento de algo que não é por si mesmo
perceptível.

Ora, o modus operandi da física se baseia na medição, como eu disse; logo, é


através de atos de medição que o universo físico vêm à tona. O físico olha para a
realidade – não com as faculdades humanas ordinárias da percepção – mas através
de instrumentos artificiais; e o que ele vê através destes “olhos” construídos pelo
homem é um estranho mundo novo composto de quantidades e de estrutura
matemática. Em uma palavra, ele contempla o universo físico distinto do mundo
corpóreo familiar.

O que, então, tomamos dessa curiosa dualidade? Podemos dizer, por exemplo,
que um dos dois domínios é real e o outro subjetivo ou de alguma forma fictício? Na
verdade, parece que não há fundamentos convincentes para apoiar qualquer um
desses reducionismos. O que você vê depende das “lentes” pelas quais você olha:
esse é o âmago da questão.

Surge a pergunta de como dois mundos aparentes – ou “cortes transversais da


realidade” – podem coexistir, ou se encaixar, como de fato eles devem. E basta dizer,
por agora, que esse é um assunto que não pode ser investigado ou compreendido
através dos meios cognitivos associados a cada reino. Nem através da percepção
sensível, nem pelos métodos da física pode o problema ser resolvido – pela simples
razão que cada um desses meios cognitivos se restringe à sua própria esfera.
Idealmente, o que precisamos é de uma ontologia integral, e também podemos deixar
sem solução, por ora, a questão sobre se tal empreitada é viável. O que importa, por
enquanto, é a compreensão de que cada um dos nossos dois domínios – o físico não
menos do que o corpóreo – é limitado em sua abrangência. Em cada caso, existem as
coisas que podem ser conhecidas através dos meios cognitivos dados, e existem as
coisas que não podem. Como um círculo, o conceito de cada domínio de uma só vez
inclui e exclui. E desde o início não deveria haver dúvida de que o que cada um exclui
precisa, na verdade, ser incomensuravelmente mais vasto do que a multidão – por
mais incrível que pareça – do seu conteúdo total.

(...)

Estritamente falando, ninguém jamais percebeu um objeto físico, e ninguém


jamais perceberá. As entidades que respondem ao modus operandi da física são, por
sua natureza, invisíveis, intangíveis, inaudíveis, desprovidas de sabor e cheiro. Esses
objetos imperceptíveis são concebidos através de modelos matemáticos e observados
por meio dos instrumentos apropriados. Há, contudo, entidades físicas que se
apresentam, por assim dizer, na forma de objetos corpóreos. Ou, colocando o inverso:
todo objeto corpóreo X pode por si mesmo ser sujeito a todos os tipos de medições, e,
dessa forma, determina um objeto físico associado SX. Se X é uma bola de bilhar, por
exemplo, nós podemos medir sua massa, seu raio e outros parâmetros físicos, e
podemos representar o objeto físico associado SX de várias formas: por exemplo,
como uma esfera rígida de densidade constante. O ponto crucial, de qualquer
maneira, é que X e SX não são a mesma coisa. Os dois são na verdade tão diferentes
quanto a noite e o dia: pois ocorre que X é perceptível, enquanto SX não.

Ora, a primeira dessas alegações é óbvia e incontrovertível. Todo mundo sabe


que uma coisa como um bola de bilhar é perceptível. Ou, melhor dizendo, todo mundo
sabe isso muito bem – contanto que não seja um bifurcacionista. Mas e sobre o SX:
por que este não é perceptível? Há aqueles, presumivelmente, que diriam que uma
esfera rígida, por exemplo, pode muito bem ser percebida. Mas, enquanto,
estritamente falando, esse acaba não sendo o caso, [2] a contestação é na verdade
irrelevante. Pois a pergunta diante de nós não é se coisas como esferas rígidas podem
ser percebidas, mas se SX pode ser, e essa é uma outra questão. Pois enquanto o
objeto físico associado SX do presente exemplo pode de fato ser representado (dentro
de certos limites de precisão) como uma esfera rígida, ele também pode ser
representado de muitas outras formas. Por exemplo, como uma esfera elástica – um
modelo que na verdade pode suscitar uma descrição mais precisa. O mais importante,
contudo, é que sabemos hoje que os objetos físicos são compostos de átomos – ou,
mais genericamente, de partículas subatômicas – e que todas as representações
contínuas ou “clássicas” transmitem não mais do que uma visão bruta e parcial da
entidade em questão. Mas, ora, se supormos que SX é de fato um conjunto de átomos
ou de partículas subatômicas, será ainda concebível que SX pode ser percebido?
Obviamente que não; pois está claro que o que percebemos não é uma coleção de
átomos, partículas atômicas ou ondas de Schrödinger, mas precisamente uma bola de
bilhar. Poderia, é claro, se alegar que o conjunto de átomos ou partículas suscitam de
alguma forma o objeto percebido ou perceptível – mas essa é uma questão
completamente diferente. O que nos preocupa no momento é a identidade desse
objeto percebido ou perceptível, não a sua causa conjecturada. E essa identidade é
indiscutível: o que percebemos é a bola de bilhar vermelha ou verde, para dizer mais
uma vez. Ninguém, repito, jamais percebeu um conjunto de partículas subatômicas ou
uma coleção de átomos.

2. Sob o risco de chover no molhado, o argumento poderia ser colocado assim: uma esfera
rígida de densidade constante é caracterizada inteiramente por duas constantes numéricas: o
seu raio R e densidade δ. Nem R nem δ, contudo, podem ser percebidas (essas quantidades
podem é claro ser medidas, mas como vimos antes, medir não é o mesmo que perceber). Mas,
visto que as quantidades pelas quais se define a esfera rígida são imperceptíveis, então
também o é a esfera rígida. Ou novamente: ninguém jamais percebeu (no sentido visual) um
objeto desprovido de toda cor. Mas a esfera rígida não possui cor (é caracterizada por R e δ,
como eu disse). Logo, é imperceptível.

Assim se chega a um reconhecimento básico que por muito tempo foi


obscurecido em razão da inclinação bifurcacionista: agora descobrimos que todo
objeto corpóreo X determina um objeto físico associado SX. Devemos a partir daqui
nos referir a X como a apresentação de SX. Nem todo objeto físico, é claro, possui
uma apresentação; o que quer dizer que nós podemos distinguir entre dois tipos ou
classes de entidades físicas: as que admitem apresentação e as que não admitem.
Subcorpóreos e transcorpóreos, digamos. Mas me apresso em destacar que essa
dicotomia envolve não o objeto físico como tal, e sim a sua relação com o domínio
corpóreo. O físico, em outros palavras, que investiga a estrutura ou as propriedades
físicas dos objetos em questão, não irá descobrir nenhum traço dessa dicotomia.
Conforme os átomos se congregam em moléculas, e as moléculas se unem em
agregados macroscópicos, não há nenhum ponto, nenhuma linha mágica de
demarcação que sinalize o começo do reino subcorpóreo. Pois, de fato, só com
referência ao plano corpóreo é que essa noção é definida. E, portanto, se tivéssemos
olhos somente para o mundo físico – e pudéssemos ver apenas átomos, etc – não
haveria maneira de podermos distinguir agregados subcorpóreos de agregados
transcorpóreos.

Apesar disso, a distinção é vital para a economia da física. Pois fica claro, a
partir do que foi dito acima, que os instrumentos de medição devem ser corpóreos. O
processo de medição deve terminar, no fim das contas, no estado perceptível de um
objeto corpóreo. Mas isso significa, à luz das considerações anteriores, que o
instrumento físico é necessariamente subcorpóreo; para ser preciso, deve ser o SI de
um instrumento corpóreo I.

Deve-se notar que toda forma de observação científica – seja um caso de


medição ou de exposição – depende da correspondência entre um objeto corpóreo X e
o objeto físico associado SX. Ela depende, em outras palavras, do ato de
apresentação (X sendo a apresentação de SX). Em geral, a transição do domínio
físico para o corpóreo, que consome o processo de observação, deve ser efetuada
precisamente por uma passagem de SX para X; pois, de fato, não sabemos de
nenhuma outra ligação ou nexo entre os níveis físicos e corpóreos da existência. Além
disso, é evidente que o próprio físico experimental vale-se dessa conexão o tempo
todo, como um procedimento de rotina.

Ele se vale dela, por exemplo, quando trata um objeto corpóreo como um
sistema físico, ou quando emprega entidades corpóreas para “preparar” um sistema
físico de um tipo transcendental; e sem dúvidas vale-se dela quando mede ou exibe
um objeto físico.

Acontece, contudo, que essa ligação crucial não é reconhecida em parte


alguma. Assim, em primeiro lugar, ela não aparece nos mapas dos físicos, pela
simples razão de que esses mapas se referem exclusivamente ao domínio físico (e
são por isso obrigados a excluir a ligação em questão). Nem há qualquer espaço para
ela na nossa imagem cientificista do mundo; pois essa Weltanschauung, como
sabemos, se baseia no postulado da bifurcação. Conseqüentemente, ela nega a
existência do domínio corpóreo e, portanto, também a existência de uma ligação.
Entretanto, reconhecida ou não, a ligação da apresentação está lá, e na verdade
parece ser de constante utilização científica. O fato de nós não entendermos esse
nexo – seja por meio da física ou da investigação filosófica – parece não importar, no
mínimo. Também não fazemos sempre amplo uso da percepção sensível – a qual se
revela não menos incompreensível?

Isso tudo se resume desta forma: Não pode haver o conhecimento do domínio
físico sem a apresentação – assim como não pode haver o conhecimento do mundo
corpóreo na ausência da percepção sensível. Não há maneira, é claro, de convencer o
cético obstinado de que o universo físico existe em primeiro lugar, muito menos de que
este pode ser conhecido; e certamente é sempre possível cair num reducionismo
positivista. Basta dizer, entretanto, que não podemos evitar a idéia de apresentação –
exceto ao custo do universo físico.

Surge agora a pergunta: O que podemos descobrir sobre um objeto físico a


partir de sua apresentação? Apesar do fato de X e SX serem tão diferentes quanto
poderiam – pense numa bola de bilhar vermelha, por exemplo, e numa nuvem de
átomos –, precisa haver ainda uma certa “semelhança” entre os dois, ou X não poderia
nos dizer nada sobre SX; o que, então, é essa “semelhança” ou conexão? Ora, a
primeira coisa a se notar quanto a isso é que X e SX ocupam exatamente a mesma
região do espaço – por mais estranho que isso pareça [5]. Pois, de fato, não faria
sentido algum distinguir entre um dito espaço corpóreo e um espaço físico – porque o
espaço físico não teria sentido a menos que pudéssemos relacioná-lo ao corpóreo, o
que só pode ser feito, contudo, através da apresentação. Mas isso equivaleria a uma
identificação de dois espaços, e, portanto, à concidência espacial de X e SX.

5 – O fato de que X e SX ocupem a mesma região no espaço não é nem um pouco paradoxal.
Em primeiro lugar, ele não contradiz a nossa experiência sensível, porque a percepção
pertence somente a X. Além disso, de um ponto de vista teorético, não há nada contraditório
na noção de duas entidades ocupando o mesmo espaço; isso acontece, por exemplo, no caso
dos campos. Um campo elétrico pode coexistir com um campo magnético, ou um gravitacional.
Mais uma vez, o que você vê depende de como você olha.

Mas esta coincidência espacial implica que as noções de distância e ângulo –


que podem ser definidas, como se sabe, em termos de operações envolvendo varetas
de medição – sejam levadas para o domínio subcorpóreo. Portanto, cada
decomposição de um objeto corpóreo X em suas partes corpóreas corresponde a uma
decomposição congruente ou geometricamente isomórfica de SX. Em uma palavra, há
uma “continuidade geométrica” entre X e SX [6]. E é precisamente em virtude dessa
continuidade geométrica que os objetos físicos podem ser observados. Graças a essa
continuidade, é possível, por exemplo, apurar o estado de um instrumento físico a
partir da posição de um ponteiro em uma escala (um ponteiro corpóreo em uma escala
corpórea, desnecessário dizer). Ou, para colocar em termos mais gerais: o estado de
um instrumento físico, conforme dado por sua geometria interna – ou, mais
exatamente, pelas posições relativas de suas partes subcorpóreas – é passado para o
plano corpóreo através da apresentação. Claramente toda medição e toda forma
concebível de exposição depende desse fato.

6 – Há também, é claro, uma “continuidade temporal” entre X e SX. Isso significa, em primeiro
lugar, que um objeto corpóreo X, considerado num instante particular do tempo, constitui uma
apresentação de SX no mesmo instante, e, em segundo lugar, que a noção de “distância
temporal” ou duração temporal, medida por relógios corpóreos, transfere-se para o reino
subcorpóreo.

Mais uma observação: em virtude da continuidade geométrica, a apresentação


constitui um modo de exibição. Ela constitui de fato o que se poderia chamar de modo
primário de observação, uma vez que todas as outras formas de observação
dependem da exibição de apresentação, como notamos antes.

A física lida, no fim das contas, com estruturas matemáticas existenciadas.


Deve-se admitir, contudo, que tanto o leigo como o especialista tendem
invariavelmente a cobrir essas entidades matemáticas com formas imaginativas mais
ou menos concretas derivadas certamente da experiência sensível. Ou, melhor
dizendo, é preciso na verdade cobrir essas entidades intangíveis com imagens
sensíveis de um tipo ou de outro para colocá-las ao alcance, por assim dizer, das
faculdades mentais. Além disso, no caso do matemático ou do físico instruído, esse
procedimento é perfeitamente seguro e tem realmente um papel vital na compreensão
das estruturas e relações de tipo matemático. Nas mãos do especialista, a forma
concreta se torna um símbolo – uma catalisadora da intelecção, se preferir. O teórico
competente sabe muito bem como extrair da imagem concreta uma forma abstrata que
possa conter uma analogia com a estrutura matemática que ele deseja compreender.
Ele aprendeu a captar o que é essencial e a descartar o restante. Essa é na verdade a
“arte oculta” que precisa ser dominada. Seguindo uma aprendizagem mais ou menos
extensiva, enfim nos tornamos proeficientes no uso mental do que poderia ser
denominado em geral como “auxílios visuais”, que podem variar desde as simples
imagens das entidades materiais até coisas como gráficos e diagramas, não
esquecendo que mesmo uma fórmula matemática necessariamente porta um aspecto
visual e sintático que também tem seu papel a cumprir [8]. Assim, pode-se dizer que,
com a matemática e a física, não menos do que com qualquer outro empreendimento
humano, “agora vemos como por espelho, em enigma”; falando em geral, as formas
sensíveis servem como um “espelho”.

O uso de imagens ou suportes sensíveis, contudo, pode facilmente se tornar


ilegítimo e se transformar n’um tipo de idolatria intelectual. Tudo depende de
entendermos a diferença entre uma representação visual – o que os escolásticos
chamariam de “fantasma” – e o objeto físico ou matemático que ela deve de alguma
forma representar. No momento em que se confunde imagem e objeto, acontece o
erro; quando os fantasmata são confundidos com a realidade, acontece a fantasia.
Mas, pra dizer a verdade, a linha é facilmente atravessada e re-atravessada, tantas
vezes que pode ser mais realista falar não de puro conhecimento contra a completa
fantasia, mas de graus. Porém, a distinção lógica entre um uso “simbólico” e um
“concreto” dos fantasmata mantém sua plena validez e seus direitos, apesar da
fraqueza humana.

Há, então, graus de compreensão, e mesmo os físicos não estão de forma


alguma isentos da tendência concretizante. Eles também, em outras palavras, tendem
vez ou outra a “reificar” o objeto físico (como veremos a partir de agora) através de
uma aceitação mais ou menos inocente dos suportes visuais; e até mesmo poderia se
discutir que, como regra geral, eles reificam, portanto, muito livremente, desde que os
fantasmata em questão não entrem em conflito muito patente com as necessidades
lógicas ou matemáticas de sua teoria. E, contudo, mesmo a reificação do tipo mais
inócuo é sempre ilegítima; em contraste com um uso genuinamente simbólico dos
suportes visuais, ela falsamente projeta qualidades sensíveis sobre um domínio onde
essas qualidades não têm lugar. Falando de outra maneira, a reificação “corporaliza” o
que é inerentemente incorpóreo e desta forma confunde o plano físico com o corpóreo.

Não se pode negar que a reificação foi comum em toda a era newtoniana.
Havia, primeiro de tudo, a mecânica dos corpos rígidos e não-rígidos, de objetos
subcorpóreos portanto, que sem dúvida eram rotineiramente reificados através da
identificação com as entidades corpóreas correspondentes. Havia também a
gravitação, é claro, que não podia ser tratada dessa forma; mas esse fato era
percebido como uma anomalia. O próprio Newton tentou (no Opticks) explicar a força
gravitacional em termos da pressão gradiente de um fluído interplanetário hipotético;
mas ele também reconhecia com admirável clareza que, n’um sentido técnico ou
computacional, a questão não tinha relação nenhuma com a física. Para calcular o
movimento dos corpos sob a ação da força gravitacional, a única coisa que importa é a
lei matemática que descreve como que uma “partícula de massa” afeta outra; e
Newton tinha boas razões para sustentar que sua própria lei da gravitação tinha
liquidado com esse assunto de uma vez por todas.
A ânsia por explicações mecanistas, contudo, não cedeu. Era uma época em
que os homens da ciência olhavam com expectativa para a Mecânica como a chave
para resolver praticamente todos os fenômenos; e essa Weltanschauung, como
sabemos, realmente obteve suas vitórias. Além de suas descobertas primárias – as
leis do movimento e da gravidade e a conseqüente explicação das órbitas planetárias
–, o próprio Newton foi pioneiro em uma acústica, que, com efeito, reduzia o som a um
fenômeno da mecânica contínua, e começou ao menos a especular – muito
corretamente – que a temperatura e o calor tinham a ver com a “agitação vibratória de
partículas”. É interessante notar que uma segunda teoria do calor, menos feliz, porém
não menos mecânica do que a de Newton, fez sua aparição aproximadamente na
mesma época e por cerca de duzentos anos foi amplamente aceita. De acordo com
esta visão, o calor era supostamente um fluído “sutil, invisível e sem peso” chamado
de phlogiston, o qual se pensava de alguma forma permear os corpos e fluir das
regiões quentes para as frias, tanto quanto os fluídos comuns fluem por um gradiente
de pressão. Somente em meados do século XIX é que a doutrina do phlogiston
finalmente foi abandonada em favor da teoria newtoniana, graças ao trabalho de Joule
e Helmholtz.

Além dos vários ramos da mecânica – incluindo a ainda problemática teoria do


calor – a física newtoniana também compreendia a ótica como um ramo de
investigação mais ou menos independente e bem sucedido. Ninguém tinha quaisquer
dúvidas sérias de que esse domínio também pudesse eventualmente ser
compreendido em termos mecânicos, e de fato existia dois modelos mecanistas – o
modelo de onda de Huygens e a teoria corpuscular de Newton – pretendendo explicar
o fenômeno da luz.

Havia também uma química rudimentar, à qual Newton, por exemplo, dedicava
um imenso esforço. Mas acontece que não havia a menor possibilidade na época de
se explicar os fenômenos químicos em termos matemáticos, que dirá mecânicos – o
que sem dúvida é a razão porque Newton nunca publicou um tratado separado sobre
esse assunto. Contudo, como é de se esperar, Newton e seus colegas inclinaram-se
fortemente a uma teoria mecanista dos átomos, que logo veio a ser considerada em
círculos mais amplos como um dogma incontrovertível da ciência. Como Voltaire
colocou, com seu aplomb de sempre:

Os mais duros corpos são vistos como repletos de furos, ao modo de peneiras,
e na verdade é isso o que são. Os átomos são reconhecidos, indivisíveis e imutáveis,
princípios aos quais se deve a permanência dos diferentes elementos e dos diferentes
tipos de coisass. [9]

Devemos notar, finalmente, que além da mecânica e da ótica – e de um


imaginado atomismo – os newtonianos também estavam familiarizados com os
fenômenos elétricos e magnéticos de um tipo rudimentar [10]. Por várias razões,
contudo, não se pôde fazer muito progresso nesse domínio até o século XIX, quando
os meios necessários tornaram-se disponíveis e a pesquisa prosperou, culminando na
magnífica teoria de Faraday e Maxwell. E, com a descoberta do campo
eletromagnético, a perspectiva mecanista enfim começou a minguar. O conceito de
pura estrutura, ou de forma matemática, estava prestes a suplantar as noções
mecânicas da época newtoniana. Mas a transição foi gradual. O próprio Maxwell
concebia o campo eletromagnético em linhas mecânicas com base em um éter – outro
fluído “sutil, invisível e sem peso”, indistinto do malfadado phlogiston – e essa visão foi
amplamente aceita por algumas décadas. Em retrospecto, é possível ver que ainda
havia dentro da comunidade científica, com efeito, uma poderosa inclinação em favor
das explicações mecanicistas e que aparentemente exigiu toda a força do experimento
apurado mais o gênio arrojado de Einstein para superar tal propensidade inveterada.
Entretanto, a transição se realizou, e agora, por exemplo, já nos reconciliamos com o
campo eletromagnético como uma entidade física por seu próprio direito, uma
“estrutura” que não pode ser reduzida a categorias mecânicas.

Mas embora tenhamos nos livrado do éter e não mais ansiemos por modelos
mecanísticos, ainda temos a necessidade de suportes sensíveis. Assim, o campo
eletromagnético, não menos do que qualquer outro objeto físico, deve ser concebido –
não em termos mecânicos, claro – mas ainda em virtude das representações
adequadas de tipo visual. Como todo aluno sabe, o campo elétrico em um ponto é
dado por um vetor, uma entidade matemática que possui um comprimento e uma
direção e que pode, conseqüentemente, ser representada por uma seta – uma
pequena, de preferência, que possa convenientemente se localizar no ponto em
questão. Tendemos, na verdade, a posicionar a seta com a sua “cauda” exatamente
no ponto P. Com um pequeno esforço, podemos agora representar um campo elétrico
em um dado tempo como uma distribuição tridimensional contínua dessas setas, que
mudam seus comprimentos e direções de acordo com as necessidades da teoria
matemática. O mesmo pode ser feito com o campo magnético, e portanto com o
eletromagnético, que assim exige a adição de duas setas a cada ponto,
correspondendo com os componentes elétricos e magnéticos do campo. Para facilitar
mais a nossa compreensão, poderíamos até mesmo considerar os vetores elétricos
como vermelhos e os magnéticos como azuis, um artifício que permite reproduzir
representações impressionantes de uma onda eletromagnética [11]. Não estou
sugerindo, é claro, que qualquer um pudesse ser tão simples a tomar o valor nominal
da noção de “vetores vermelho e azul”; meu argumento, pelo contrário, é dividido em
dois. Primeiro, devemos admitir que pelo menos em um plano mental as
representações desse tipo geral são necessárias e realmente legítimas como suporte
sensível para o conceito de um campo eletromagnético. E, sendo assim, é em
princípio possível – e muito fácil, na verdade – reificar o campo eletromagnético; tudo
o que se precisa fazer a esse respeito é esquecer que um vetor elétrico ou magnético
em P não é na verdade uma seta, mas algo de um tipo totalmente diferente, que de
fato não pode ser “representado” de forma alguma – exceto, é claro, por meio de um
artifício, como o de uma seta. Em uma palavra, há um salto a ser feito - e pode não ser
fácil saber de fora se uma pessoa “está olhando para o dedo ou para a lua”.

Poderíamos argumentar que de um ponto de vista suficientemente pragmático


isso pouco importa; e em geral é verdade. Porém, acontece que, nesse exemplo, a
reificação indicada do campo eletromagnético é inadmissível mesmo de um ponto de
vista técnico, devido ao fato de que os vetores elétricos e magnéticos não são
invariantes de Lorentz. A decomposição do campo eletromagnético em componentes
elétricos e magnéticos, em outras palavras, depende da escolha do quadro de
referência. E o que é por si só invariante e, portanto, objetivamente real, acaba por ser
não um par de vetores em um espaço tridimensional, mas uma chamada 2-forma
exterior em um espaço-tempo quadridimensional. Enquanto isso, nossos “vetores
vermelhos e azuis” mantém, apesar de tudo, sua validez e utilização como uma
representação do campo eletromagnético – contanto que se compreenda que tal
representação não deve ser tomada nominalmente, e que mesmo n’um sentido formal
ela se aplica apenas dentro de uma classe restrita de quadros de referência. Com
relação à 2-forma exterior, esta também se vê necessitada de suportes visuais; mas
não existe “representação” – nem uma única representação concreta no espaço e
tempo ordinários – com a qual esse objeto matemático possa ser identificado. Em uma
palavra, o campo eletromagnético não pode ser reificado em uma forma invariante de
Lorentz.

O mesmo se aplica na verdade a outras estruturas invariantes de Lorentz, e


portanto à física relativista como um todo. E essa é sem dúvida a principal razão da
relatividade nos parecer tão formidável: ela é “difícil” em virtude do fato de não poder
ser reificada impunemente. Além disso, quando se trata do mundo micro, o mesmo
ocorre até quando a exigência da invariância Lorentz é negligenciada, na medida em
que o dualismo onda-partícula evidentemente proíbe a reificação das chamadas
partículas. Pois, de fato, esses objetos não podem ser representados
consistentemente como partículas, porque no contexto de certos experimentos elas se
comportam como ondas; e pela mesma razão, elas não podem ser representadas
como ondas. Conseqüentemente, elas não podem ser representadas de forma alguma
– e é precisamente isso que nos deixa perplexos.

O que aconteceu em nosso século é que a física foi em seu próprio terreno
levada a rejeitar as interpretações ingênuas e a manter uma postura rigorosamente
simbólica em relação às representações concretas. Ou, melhor dizendo, ela foi forçada
a manter tal postura no domínio das altas velocidades e, acima de tudo, no mundo
micro. Quando se trata do domínio físico macro comum, por outro lado, a tendência a
reificar ainda se manifesta, mesmo em autores que longamente se queixam sobre o
assunto “estranheza quântica” – como se 1024 átomos pudessem ser representados
mais facilmente do que um! Deve-se ainda reconhecer que há uma diferença
ontológica entre os domínios físico e corpóreo, e que o hiato não pode ser fechado
pela mera agregação das chamadas partículas.

Notas

8 – Poderíamos destacar nessa conexão que a linguagem – e, portanto, o pensamento –


obviamente possui o seu suporte sensível, ainda que auditivo. Porém, quando se trata da
compreensão da estrutura matemática, sem dúvida os símbolos visuais é que cumprem o
papel principal.

9 – Veja W. C. Dampier, A History of Science (Cambridge: Cambridge University Press, 1948),


p. 167.

10 – Não só Newton reconhecia a força gravitacional e eletromagnética como parece que ele
também antecipou as forças nucleares, conforme podemos tirar da seguinte afirmação na 31ª
Investigação do Opticks: “As atrações da gravidade, do magnetismo e da eletricidade alcançam
distâncias muito sensíveis, e logo foram observadas pelo olhar comum, e pode haver outras
que alcançam distâncias tão pequenas que até agora escaparam à observação.”
11 – Só precisamos, é claro, levar em consideração a dependência do tempo do campo. Isso
pode ser feito, por exemplo, através da exibição de um gráfico animado.
3. O Mundo Micro e a Indeterminância

Uma coisa é falar de um objeto físico genérico – como o “campo eletromagnético”,


por exemplo – e bem outra falar de um objeto específico, do tipo que existe
concretamente e pode realmente ser observado. E a diferença é a seguinte: enquanto
o objeto genérico é determinado por um modelo matemático ou apenas por uma
representação, o segundo é também sujeito a determinações de um tipo empírico. Em
outras palavras, ele é um objeto com o qual já estabelecemos um certo contato
observacional. Por exemplo, podemos falar do planeta Júpiter porque ele realmente foi
visto ou detectado; e, ainda, pudemos procurar o planeta Plutão (descoberto em 1930)
porque ele também já havia sido observado, não diretamente, é óbvio, mas através
dos seus efeitos sobre outros planetas.

Há, é claro, graus de especificação; entretanto, a distinção entre o genérico e o


específico é, apesar disso, bem definida, e acaba por ser crucial. Pois ocorre que a
física lida, antes de tudo, com objetos físicos do tipo “específico”: estes são seus
objetos “verdadeiros”, podemos dizer, distintos das entidades (como o “campo
eletromagnético”) que existem em algum sentido abstrato, idealizado ou puramente
matemático. Os “verdadeiros” objetos da física, portanto, são entidades que não só
podem ser observadas em algum sentido apropriado, mas que na verdade já foram
observadas. Como Júpiter ou Plutão, elas foram especificadas até certo ponto por um
conjunto de observações. Usarei o termo “especificação” para me referir ao ato ou
atos empíricos pelos quais um objeto físico é especificado; e com esse entendimento
podemos realmente dizer que um objeto não é específico até que tenha sido
especificado [1].

Vamos agora considerar alguns exemplos de especificação. No caso dos objetos


subcorpóreos é normal ou natural especificar SX por meio do objeto corpóreo X
correspondente, isto é, por meio de apresentação. Por outro lado, é também possível
especificar um objeto subcorpóreo SX de forma mais indireta – como no caso
previamente citado de Plutão, por exemplo. Tendo sido especificado por quaisquer
meios, o objeto pode, é claro, ser ainda mais especificado por determinações
adicionais; a especificação, como já dissemos, é suscetível de gradação.

Enquanto os objetos subcorpóreos podem de fato ser especificados por meio da


apresentação (ou melhor dizendo, somente pela apresentação), esta opção não existe
no caso de um objeto transcorpóreo, como um átomo, por exemplo, ou uma partícula
elementar. Assim, quando se trata de objetos transcorpóreos, a especificação
necessariamente se dá em dois estágios: primeiro, o objeto deve interagir com uma
entidade subcorpórea, que por sua vez é observada (ou tornada observável) através
da apresentação. Considere, como exemplo, um campo eletromagnético produzido no
laboratório: em primeiro lugar, o campo interage com o aparato científico pelo qual ele
é gerado; e esse aparato (agora concebido como um objeto subcorpóreo) pode então
ser observado através da apresentação. Ou ainda; um contador Geiger registra a
presença (dentro da sua câmara) de uma partícula carregada. A partícula entra na
câmara e causa uma descarga elétrica, que então é registrada de algum modo no
nível corpóreo (talvez na forma de um click audível, ou uma leitura de um contador).
Ora, essa cadeia de eventos constitui, evidentemente, uma especificação da partícula.
Pode-se daí falar em “partícula X” – mesmo que nunca mais seja possível
reestabelecer o contato observacional com a partícula X. Por outro lado, com a ajuda
de uma instrumentação mais complicada, o experimentalista é capaz não só de
estabelecer um contato observacional inicial com uma partícula, como também pode
prosseguir com observações adicionais. Em outras palavras, tendo especificado a
“partícula X”, ele pode sujeitar esta partícula a mais medições – como foi feito, por
exemplo, por Hans Dehmelt, o recente vencedor do Nobel, que conseguiu “aprisionar”
um pósitron em uma chamada armadilha Penning por um período de cerca de três
meses, durante os quais a dada partícula (apelidada de “Priscilla”) pôde ser observada
com graus de precisão sem precedentes.

Mas, seja como for, o que nos interessa agora é o seguinte fato geral: quer
lidemos com a partícula fundamental, quer com a mais simples entidade corpórea, não
podemos falar de um objeto físico X até que se tenha estabelecido um certo contato
observacional inicial com X. Os objetos físicos não “crescem em árvores”
simplesmente: eles precisam antes de tudo ser “especificados” no sentido técnico que
demos a este termo.

***

A pergunta agora é se é possível especificar um objeto físico tão


completamente que o resultado de todas as observações adicionais possam ser
antecipados, ou se ele é de qualquer forma determinado com antecedência. Será
conveniente, contudo, reformular um pouco essa pergunta, após introduzir algumas
outras distinções. Em conformidade com o uso aceito, utilizarei o termo “sistema” para
designar uma representação abstrata ou matemática de um objeto físico. Um objeto
físico, concebido em termos de uma dada representação, pode então ser denominado
como um sistema físico. Além disso, ele é a representação ou sistema abstrato que
define os observáveis: as quantidades associadas com o sistema físico, que podem a
princípio ser determinadas por meios empíricos. O que for e o que não for observável,
em outras palavras, depende não apenas do objeto, mas da forma pela qual o objeto é
concebido. Uma bola de bilhar, por exemplo, tomada como uma esfera rígida, admite
um número indefinido de observáveis um tanto simples (começando com sua massa,
seu diâmetro e as suas coordenadas de posição e velocidade); concebido como um
conjunto de átomos, por outro lado, ele admite muitos outros observáveis. A
especificação se refere conseqüentemente ao sistema físico, distinto do objeto como
tal. Dado um sistema físico e um subconjunto dos seus observáveis, podemos dizer
que este subconjunto é especificável se for possível medir cada observável no
subconjunto (para que, ao término do experimento composto, os valores de todos
esses observáveis sejam conhecidos). A pergunta colocada acima pode, portanto, ser
reformulada desta forma: dado um sistema físico, existe um subconjunto especificável
de seus observáveis cuja determinação experimental determine os valores de todos os
outros observáveis do sistema? Em outras palavras, é possível tornar completamente
determinado um sistema físico por meio da especificação? Sabemos hoje, à luz da
teoria quântica, que essa pergunta deve ser respondida negativamente. Não há na
verdade uma coisa como um sistema físico completamente determinado (um cujos
valores exatos de todos os observáveis possam ser antecipados). E isso se dá não só
porque não somos capazes de controlar ou monitorar as forças externas com a
precisão necessária, mas também devido a uma certa indeterminância residual
intrínseca ao sistema físico em si, que nenhuma quantidade de especificação pode
dissipar.

Por outro lado, quando lidamos com sistemas físicos de larga escala de um tipo
suficientemente simples, os efeitos dessa indeterminância residual podem não ser
mensuráveis, ou podem ser tão pequenos que não cumprem nenhum papel
significativo [2]. Em um sentido formal e aproximativo, portanto, podemos falar de um
sistema físico determinado; e esses, é claro, são precisamente os sistemas dos quais
trata a física clássica, e aos quais ela se aplica. Tal sistema pode então ser descrito ou
representado em termos de um conjunto completo de observáveis – um conjunto pelo
qual todos os observáveis possam ser expressos. E isso significa que não precisamos
mais distinguir entre o sistema como tal e os seus observáveis; o sistema agora pode
ser identificado, com efeito, a um conjunto completo de observáveis. O que, por
exemplo, é um campo elétrico, classicamente concebido? É uma distribuição contínua
de vetores elétricos: isto é, de observáveis! Além disso, essa redução do sistema a um
subconjunto dos seus observáveis é na verdade implicada pelo próprio formalismo da
física pré-quântica, que lida exclusivamente com as relações funcionais entre
quantidades observáveis. Assim, um sistema físico clássico não é nada mais do que
uma distribuição no espaço e no tempo de certas grandezas escalares ou tensoriais
observáveis. [3]

Onde há indeterminância, por outro lado, o formalismo clássico se desfaz. É


preciso então distinguir categoricamente entre o sistema físico S e seus observáveis,
dos quais nem todos a princípio podem ser determinados pela especificação.
Conseqüentemente, a redução clássica (do sistema aos seus observáveis) é
admissível apenas no que se pode denominar como limite clássico: isto é, sob
condições que garantam que os efeitos da indeterminância não tenham nenhum papel
mensurável ou significativo. Fora desse limite, ou desse domínio restrito, a física exige
um formalismo não-clássico – uma necessidade que foi brilhantemente realizada em
1925 com a descoberta da mecânica quântica. O novo formalismo, como sabemos,
distingue entre sistema e observáveis, e sobre essa base podemos trabalhar com a
física em face da indeterminância.

Notas

1 – Contudo, isso não significa necessariamente que um objeto físico específico não existisse
antes de sua especificação. Não estou sugerindo, por exemplo, que o planeta Júpiter se
materializou de alguma forma no momento em que foi pela primeira vez observado. O que
estou dizendo é que é preciso primeiro se especificar um objeto antes que se possa perguntar,
entre outras coisas, se o objeto existia, digamos, a mil anos. E no caso de Júpiter, é claro, a
resposta a essa questão acaba sendo afirmativa. Há outros tipos de objetos, como veremos
em breve, em que isso não acontece.

2 – Estritamente falando, não é apenas o número de átomos, digamos, que conta a esse
respeito, mas também o arranjo desses átomos. No caso dos chamados arranjos aperiódicos,
por exemplo, os efeitos quânticos podem entrar em jogo mesmo em conjuntos macroscópicos.

3 – É razoável supor que essa “passagem ao limite clássico” possa não ser legítima no caso
mesmo dos mais simples organismos vivos. Como alguns têm conjecturado, não é improvável
que a indeterminância quântica cumpra um papel vital nos fenômenos da biosfera.
Freqüentemente se diz que o mundo micro é indeterminístico [4], e
supostamente essa alegação se baseia no princípio da incerteza de Heisenberg, ou no
fenômeno da indeterminância, o que dá no mesmo. Fica a pergunta, contudo, sobre se
a incerteza – ou indeterminância – de Heisenberg implica em indeterminismo.

Para começar, notemos que a incerteza de Heisenberg se refere não ao mundo


micro ou ao universo físico como tal, mas aos resultados de medições, e portanto a
uma transição do plano físico para o corpóreo. Por outro lado, no plano do mundo
micro em si não existe algo como a incerteza de Heisenberg. Não podemos dizer, por
exemplo, que a posição ou o momento de um elétron é incerta ou indeterminada, pela
simples razão de que um elétron – em si e por si mesmo – não possui posição e nem
momento. Em linguajar técnico, ele é descrito por um vetor de estado, que, como
regra, não será um autovetor de nenhum observável.

O que, então, o chamado vetor de estado de um sistema físico nos diz em


geral sobre um observável? Ele nos diz primeiramente duas coisas, ambas as quais
são probabilísticas e conseqüentemente estatísticas em seu conteúdo empírico.
Assim, em primeiro lugar, o vetor de estado determina um valor esperado, isto é, o
valor médio do observável em um número suficientemente grande de observações –
um conceito que pode realmente ser interpretado em termos precisos. E, em segundo
lugar, o vetor de estado determina um chamado desvio padrão, outra quantidade
probabilística, que nos diz, grosso modo, quão próximos, em média, os valores
observados serão dos esperados. E esta noção, desnecessário dizer, pode novamente
receber um preciso sentido estatístico.

Agora, recordaremos que o princípio da incerteza de Heisenberg envolve os


desvios padrões Δp e Δq associados com os observáveis conjugados p e q. O que o
princípio afirma, na verdade, é que Δp Δq ≥ h/2π onde h é a constante de Planck. E
isso constitui um enunciado matemático preciso, que pode ser derivado dos axiomas
da teoria quântica e interpretado empiricamente por conjuntos estatísticos.

A teoria quântica depende é do fato de que o vetor de estado – ou, de forma


equivalente, o sistema físico –, ainda que em geral não determine os resultados das
medições individuais, determine em qualquer evento a sua distribuição estatística. Ao
mesmo tempo, porém, não há absolutamente nada “incerto” a respeito do sistema
físico como tal. O caso é na verdade análogo ao de uma moeda, que pode dar “cara”
ou “coroa” quando jogada. Aqui, também, o fato de não podermos dizer de antemão
que lado da moeda dará não significa que a moeda em si seja de algum modo
“indeterminada”; em outras palavras, a chamada incerteza obviamente pertence ao
arremesso, e não à moeda. E acrescentemos que esta última – não menos do que um
sistema da mecânica quântica – determina a distribuição da probabilidade de seus
“observáveis”. Ela determina a distribuição (e por conseguinte o valor esperado e o
desvio padrão), por exemplo, do número de “caras” em n tentativas – como lembrará
qualquer aluno de teoria da probabilidade.

Se, então, os sistemas mecânicos quânticos não são em si mesmos “incertos”,


não seriam, por outro lado, indeterminísticos? Ora, dizer que um sistema físico é
determinístico é afirmar, supõe-se, que a evolução do sistema é unicamente
determinada por seu estado inicial (presumindo, é claro, que saibamos as forças
externas que influenciam o sistema). Mas é precisamente isto que a célebre equação
de Schrödinger implica! O mundo micro, portanto, é realmente determinístico, mesmo
que os sistemas físicos sejam indeterminados. Podemos colocar assim: O estado
inicial de um sistema físico isolado (ou de uma sistema físico sujeito a forças externas
conhecidas) de fato determina os seus estados futuros; mas acontece que o estado de
um sistema em geral não determina os valores de seus observáveis. Não há, assim,
nenhum conflito entre o determinismo e o indeterminismo; e na verdade a teoria
quântica exige ambos. Para sermos precisos, é a equação de Schrödinger que
garante o determinismo, assim como o princípio de Heisenberg garante o
indeterminismo.

Pode-se levantar a objeção de que a medição destrói o determinismo; pois,


como sabemos, uma medição realizada em um sistema físico pode causar o chamado
colapso do vetor de estado, um evento que viola a equação de Schrödinger. Seria
possível dizer que a medição acaba com o determinismo ao interromper a evolução
“normal” do sistema físico. Devemos lembrar, contudo, que os sistemas físicos são
especificados através da medição. Logo, na medida em que uma medição colapsa o
vetor de estado, ela constitui um ato de especificação que altera o estado e por
conseguinte o sistema físico “real”. O sistema físico X com o qual nos preocupamos
antes da medição não será em geral o mesmo que o sistema Y resultante dessa
especificação adicional. Enquanto lidamos com sistemas físicos determinados, é claro,
o sistema pode ser especificado de uma só vez. Não há então nenhum colapso do
vetor de estado e nenhuma mudança de especificação – ou “perda de identidade” –
resultante dos atos subseqüentes de medição. Quando se trata de sistemas
indeterminados, por outro lado, as medições subseqüentes resultarão em geral na
especificação de um novo sistema físico. Poderíamos dizer que o sistema físico
original é terminado – ou metamorfoseado – pelo colapso de seu vetor de estado. Com
certeza os sistemas mecânicos quânticos não são permanentes, nem são “absolutos”
– mas existem “para nós”, como objetos de intencionalidade. Esses fatos básicos,
contudo, não impedem o determinismo, uma vez que um sistema da mecânica
quântica se comporta de uma forma determinística (contanto que exista).

Obviamente, esse determinismo mecânico quântico é muito diferente do clássico.


Contudo, o que se perdeu não foi tanto o determinismo, mas o reducionismo: isto é, a
suposição clássica de que o mundo corpóreo não é “nada exceto” o físico. Com efeito,
foi este axioma que saiu de moda pela separação da mecânica quântica do sistema
físico e seus observáveis. A física quântica, como vimos, opera necessariamente em
dois planos: o físico e o empírico; ou, melhor dizendo, o físico e o corpóreo, pois
devemos lembrar que a medição e a exibição terminam necessariamente no plano
corpóreo. Há, então, esses dois planos ontológicos, e há uma transição do físico para
o corpóreo que resulta no colapso do vetor de estado. Poderíamos dizer que o colapso
denota – não um indeterminismo no nível físico – mas precisamente uma
descontinuidade entre os planos físico e corpóreo.

Mas enquanto o próprio formalismo da mecânica quântica alega que há esses dois
níves e clama, por assim dizer, pelo reconhecimento deste fato, a propensão
reducionista dominante tem impedido que se dê esse reconhecimento. Não é de se
admirar, portanto, que a interpretação ontológica da mecânica quântica não tenha ido
pra frente.

***

A mecânica quântica sugere que os sistemas microfísicos constituem um tipo de


potência em relação ao mundo atual. Como mostra Heisenberg, eles ocupam, com
efeito, uma posição intermediária entre a não-existência e a atualidade, e nesse
respeito lembram a chamada potentia aristotélica.

Para compreender isso mais claramente, precisamos olhar mais de perto o formalismo
da mecânica quântica. Notemos, antes de tudo, que todo observável admite um
conjunto de valores possíveis (seus chamados autovalores), e que em geral uma
medição de um determinado observável é capaz de produzir qualquer um desses
resultados admissíveis. Um sistema físico, entretanto, pode também estar n’um estado
no qual o valor do observável dado é determinado com certeza; e tais estados são
chamados de autoestados. Por exemplo, se uma medição do observável produz o
autovalor λ, então sabemos que o sistema está, naquele momento, em um autoestado
correspondente a λ [5].

Já aludi ao fato de que um sistema físico, como concebido na mecânica quântica, é


representado por um chamado vetor de estado. Mais precisamente, vetores de estado
representavam estados de um sistema físico [6]. E isso evidentemente explica a noção
de autovetores à qual eu também me referi (na discussão da indeterminância): assim,
um autovetor é um vetor de estado correspondente a um autoestado.

Ora, lembremos que os vetores podem ser acrescentados, e também multiplicados por
um número (real ou complexo, conforme o caso); e isso significa que vetores podem
ser combinados para formar somas ponderadas. Desta forma, toda soma ponderada
de vetores de estado (contanto que não seja zero) define outro vetor de estado [7]. No
entanto, uma vez que os vetores de estado representam estados do sistema físico,
cada uma dessas somas ponderadas corresponde a um estado físico. Chega-se assim
ao chamado princípio da superposição, que afirma que as somas ponderadas de
vetores de estado correspondem a uma superposição real de estados. Em outras
palavras, acaba que as operações algébricas pelas quais formamos somas
ponderadas de vetores de estado (com coeficientes complexos, além disso) carregam
um significado físico. Existe, se preferir, uma “álgebra de estados”, que nos permite
representar os estados físicos de diversas formas como uma superposição de outros
estados [8].
Surge a pergunta sobre se, para um observável arbitrário, cada estado do sistema
pode ser representado como uma superposição de autoestados. Em outras palavras,
pode cada vetor de estado ser expresso como uma soma ponderada de autovetores
pertencentes ao observável dado? E enquanto esse não é o caso, em geral somos
capazes de obter uma representação análoga por meios matematicamente mais
sofisticados [9]. Contudo, para evitar complicações técnicas que não influem no
argumento, irei supor que todo observável realmente possui um conjunto “completo”
de autovetores: isto é, um conjunto pelo qual todo vetor de estado pode ser expresso
como uma soma ponderada.

Ora, o que tudo isso tem a ver com a discussão de Heisenberg sobre os sistemas
quânticos constituirem um tipo de potentia aristotélica? É isso que precisa ser
explicado. Considere a representação de um vetor de estado como uma soma
ponderada de autovetores pertencentes a um determinado observável. Cada autovetor
corresponde a um autoestado, e portanto a um possível resultado de um experimento
atual. Ele assim representa uma certa possibilidade empiricamente realizável, cuja
probabilidade é na verdade determinada pelo peso com o qual aquele autovetor ocorre
na soma dada [10]. O próprio estado de vetor, como uma soma ponderada de
autovetores, pode conseqüentemente ser visto como um conjunto ou síntese das
possibilidades em questão. E se supormos (como fizemos) que o vetor de estado pode
ser expresso como uma soma ponderada de autovetores para todo observável, ele
então constitui, pela mesma razão, uma síntese de todos os resultados possíveis para
cada medição concebível que possa ser realizada no sistema físico dado [11].

Por outro lado, ao término de uma medição, o sistema estará em um autoestado


pertencente ao observável dado. Se o vetor de estado, antes da medição, era uma
soma ponderada de autovetores, ele agora é um autovetor particular, e, por
conseguinte, se preferir, uma soma ponderada de autovetores na qual todos os
coeficientes, exceto um, são zero. O vetor de estado colapsou, dizemos; em um
instante ele foi reduzido a um único autovetor do observável dado: uma possibilidade
única, isto é, cuja probabilidade agora saltou para o valor 1 (indicativo de certeza).
Pelo ato da medição, um elemento particular do conjunto dado de possibilidades foi
discriminado e realizado no nível empírico, ou seja, corpóreo. O sistema físico, como
um conjunto de possibilidades, foi assim “atualizado”. Mas só em parte! Pois enquanto
o valor de um observável particular foi agora determinado, o sistema permanece em
uma superposição de autoestados para a maioria dos outros observáveis. E, assim,
apesar das atualizações parciais efetuadas pela medição, o sistema é e permanece
sendo um conjunto ou síntese de possibilidades. Nas palavras de Heisenberg, ele não
é na verdade uma “coisa ou fato”, mas uma potência, um tipo de potentia.

Como a própria terminologia aristotélica sugere, a concepção de sistemas físicos e do


colapso de vetor de estado à qual chegamos é de uma certa forma clássica, e pode de
fato ser compreendida de um ponto de vista metafísico tradicional. Por muito tempo se
soube que a transição do possível para o atual – ou da potência para a manifestação –
implica invariavelmente um ato de determinação: uma escolha de um resultado
particular a partir de um conjunto de possibilidades. Além disso, a geometria
euclideana exemplifica muito claramente esse processo – mas desde que a disciplina
seja entendida da forma antiga. Devemos lembrar que antes de Descartes o
continuum geométrico – o plano euclideano, por exemplo – era concebido como uma
entidade por seu próprio direito, e não simplesmente como a totalidade de seus
pontos. De acordo com a visão pré-cartesiana, não há na verdade pontos no plano –
isto é, até que eles sejam trazidos à existência através da construção geométrica.
Concebido classicamente, o plano como tal não contém nada; em si mesmo constitui
um tipo de vazio, uma mera potência, na qual nada foi ainda atualizado. E então
construímos um ponto ou uma linha, seguida por outros elementos geométricos, até
que se obtenha uma certa figura. Devemos notar que essas determinações não
podem realmente ser feitas em fundamentos racionais, ou na base de alguma regra
prescrita, um fato que tende a embaraçar a mente analítica. O ato determinativo, além
disso, é na verdade mais do que uma mera escolha, uma mera seleção de um
elemento em um dado conjunto: pois ele leva à existência – ex nihilo, por assim dizer –
algo que antes não existia como uma entidade atual. Desta forma, a construção
geométrica, concebida classicamente, evoca a cosmogênese. Podemos dizer que ela
imita ou exemplifica o próprio ato criativo dentro do domínio da matemática.

Voltando à mecânica quântica e, em particular, ao ato de medição, agora notamos que


isso pode de fato ser interpretado em termos ontológicos tradicionais. A medição,
portanto, é a atualização de uma certa potência. Ora, a potência em questão é
representada pelo vetor de estado (não colapsado), que contém dentro de si, como
vimos, todo o espectro de possibilidades a serem realizadas pela medição. Medir é,
assim, determinar; e esta determinação, além disso, é realizada no plano corpóreo: no
estado de um instrumento corpóreo, para ser mais exato. Abaixo do nível corpóreo,
lidamos com possibilidades ou potentia, enquanto a atualização destas potentia é
realizada no plano corpóreo. Não sabemos como esta transição acontece [12]. De
alguma forma uma determinação – uma escolha de um resultado particular em um
espectro de possibilidades – é efetuada. Não sabemos se isso ocorre por acaso ou por
desígnio; o que sabemos é que de alguma forma o dado é jogado. E esse “jogar do
dado” constitui de fato o ato decisivo: é assim que o sistema físico cumpre o seu papel
como uma potência em relação ao domínio corpóreo.

Notas

4 – Há, é claro, o determinismo clássico para ser explicado, mas o problema é


facilmente resolvido com base no fato de que as leis clássicas que permitem predizer
a evolução de um sistema físico são inerentemente probabilísticas, e aplicáveis
apenas ao mundo macro.

5 – Estamos supondo que a medição é realizada por um experimento “do primeiro


tipo”. Há também experimentos “do segundo tipo” que não deixam o sistema em um
autoestado correspondente.

6 – É necessário dizer que um vetor de estado pode ser multiplicado por um número
complexo, e que a multiplicação por um fator não-zero não altera o estado físico
correspondente.

7 – Os pesos dos coeficientes nessas somas ponderadas são em geral números


complexos, e este fato é vital à teoria quântica. Se não tivéssemos números
complexos à disposição (números que envolvem a raiz quadrada “imaginária” de –1),
não seríamos capazes de entender o mundo micro.

8 – A superposição de estados da mecânica quântica pode ser compreendida por


analogia à superposição de ondas sonoras. Considere um tom produzido por um
instrumento musical: um violino, um oboé, um órgão, etc. Cada um desses tons possui
sua própria característica, seu próprio timbre, como é chamado; e é por isso que
podemos reconhecer o instrumento a partir de seu tom. Cada tom, no entanto, pode
ser representado como uma superposição dos chamados tons puros, isto é, cuja onda
sonora é um sinusóide simples. E é isso que faz um sintetizador eletrônico: ele produz
o som de uma flauta, por exemplo, misturando diversos tons puros nas proporções
certas. Outro exemplo de superposição é fornecido pelo fato de que uma cor arbitrária
pode ser obtida pela superposição de três cores primárias. Ou, ainda: a luz branca,
quando passada através de um prisma, se divide em luz de várias cores (um processo
que pode ser revertido). Devemos notar, além disso, que em todos esses exemplos de
superposição estamos lidando ostensivamente com o movimento de onda de um tipo
ou de outro. Ora, na medida em que a superposição é fundamental à mecânica
quântica e parece ser um fenômeno de onda, somos levados a supor que as entidades
quânticas podem realmente ser ondas; e esta idéia foi de fato acolhida por muitos
físicos, começando por Erwin Schrödinger (um dos fundadores da teoria quântica). O
leitor pode lembrar que o termo “mecânica de onda” tem sido freqüentemente usado
como um sinônimo da teoria quântica. Deve-se entender, contudo, que, se as
entidades quânticas são de fato “ondas”, elas necessariamente são ondas “sub-
empíricas”: ondas que a princípio não podem ser observadas. Pois, como sabemos, a
teoria quântica insiste que o sistema físico é uma coisa e os seus observáveis outra.
Portanto, não está claro se realmente se ganha algo falando de sistemas quânticos
como “ondas”. No fim das contas, parece que o princípio da superposição nos diz tudo
que pode e que deve ser dito sobre o assunto. Ele afirma, se preferir, que as entidades
quânticas podem ser superpostas “como se fossem ondas de algum tipo”. E
acrescentemos, para os leitores com alguma exposição à matemática da teoria
quântica, que o fator de fase ubíquo exp(-2πiEt/h) no nível dos vetores de estado
realmente atesta a “natureza de onda” dos estados quânticos. Podemos dizer que a
teoria quântica, com efeito, resolveu o dilema onda-partícula ao relegar os dois
conceitos mutuamente contraditórios a planos ontológicos distintos: ondas ao físico, e
partículas ao empírico, isto é, o plano corpóreo. De qualquer forma, isso é o que a
separação mecânica quântica do sistema e seus observáveis realiza de jure, mesmo
que as pessoas de facto continuem a se embaraçar com o problema ao confundir o
domínio físico com o corpóreo.

9 – No lugar de autovetores devemos usar o que Dirac chama de “eigenbras”; e no


lugar de somas finitas ou infinitas, exigem-se integrais de um tipo apropriado.

10 – Supondo que a soma dos valores quadráticos absolutos dos pesos seja igual a 1
(uma condição que pode sempre ser atingida multiplicando o vetor de estado por um
fator não-zero apropriado) e que não há múltiplos autovalores, a probabilidade de que
uma medição realizará a possibilidade correspondente a um autovalor particular é
dada pelo valor quadrático absoluto do peso correspondente.

11 – Quando falo de um vetor de estado como “um conjunto de possibilidades”, eu na


verdade identifico o vetor de estado com o estado físico correspondente. Estritamente
falando, é claro que o sistema físico em um determinado estado (e não a sua
representação matemática!) é que é “um conjunto ou síntese de possibilidades
empiricamente realizáveis”.

12 – Voltaremos a essa questão nos capítulos 5 e 6.

Entre as muitas e variadas filosofias contemporâneas da física, de longe a mais


próxima à posição desenvolvida nesta monografia é a filosofia de Werner Heisenberg.
Talvez seja interessante agora comparar as duas doutrinas.
Como se sabe, Heisenberg se considerava um membro da escola de Copenhagen.
Nas suas mãos, contudo, a chamada interpretação de Copenhagen assumiu uma
forma distinta, cujo aspecto de destaque se encontra em uma visão realista do mundo
micro, baseada na concepção aristotélica de potência. De acordo com Heisenberg,
existem dois domínios ontológicos: “Nos experimentos sobre eventos atômicos
lidamos com coisas e fatos, com fenômenos que são tão reais quanto quaisquer
fenômenos da vida cotidiana. Mas os próprios átomos ou partículas elementares não
são reais; eles formam um mundo de potencialidades ou possibilidades, ao invés de
coisas e fatos” [19]. Além disso, para lidar com esses dois domínios diversos, a física
precisa de duas linguagens: em primeiro lugar a linguagem da física clássica, que se
aplica ao mundo dos “fatos e coisas” – e aos instrumentos científicos que são uma
parte desse mundo factual – e a linguagem da mecânica quântica, que se aplica ao
domínio das potencialidades. No vetor de estado, interpretado à la Born como um tipo
de onda de probabilidade, Heisenberg percebe assim “uma versão quantitativa do
velho conceito de ‘potentia’ na filosofia aristotélica” [20]. Não se pode negar, é claro,
que uma onda de probabilidade envolve elementos subjetivos; o aspecto de destaque
da filosofia de Heisenberg, por outro lado, é a sua insistência sobre essa onda de
probabilidade implicar também um conteúdo “completamente objetivo” – precisamente
na forma dos enunciados sobre a potentia [21].

A teoria quântica, portanto, lida necessariamente com dois domínios ontológicos; e o


hiato é transposto pela medição ou observação:

A transição do “possível” para o “atual” ocorre durante o ato de observação. Se


quisermos descrever o que acontece no evento atômico, temos de perceber que a
palavra “acontece” pode se aplicar apenas à observação, não ao estado de coisas
entre duas observações. Ela se aplica ao ato físico de observação, e podemos dizer
que a transição do “possível” para o “atual” ocorre assim que a interação do objeto
com o aparelho de medição, e por isso com o resto do mundo, tiver entrado em jogo;
ela não se conecta ao ato do registro do resultado pela mente do observador [22].

Até aqui a posição de Heisenberg e a minha parecem de fato muito próximas – ao


ponto de serem indistinguíveis. O “mundo da potentia” de Heisenberg não equivale ao
mundo micro, como eu o concebi? E o seu reino de “coisas e fatos” ao que chamo de
mundo corpóreo? À primeira vista, parece que sim. Mas ao olhar mais de perto, surge
uma grande diferença. O centro da questão é o seguinte: na filosofia de Heisenberg
não encontramos nenhuma distinção nítida entre o universo físico em uma escala
macroscópica e o mundo corpóreo, assim propriamente chamado.
Conseqüentemente, a distinção entre o mundo da potência e o mundo atual deve ser
entendido em termos apenas de tamanho ou escala – como se a passagem da
potência à atualidade pudesse ser efetuada simplesmente unindo um número
suficiente de átomos. Considere, por exemplo, a seguinte afirmação: “A ontologia do
materialismo apoiava-se na ilusão de que o tipo da existência, a ‘atualidade’ direta do
mundo à nossa volta, pode ser extrapolado até o limite atômico. Contudo, essa
extrapolação é impossível” [23]. Não podemos senão concordar que “essa
extrapolação é impossível”; mas a questão é se a física alcança “a ‘atualidade’ direta
do mundo à nossa volta” mesmo em uma escala macroscópica. De qualquer forma, a
minha posição é inteiramente clara a esse respeito. Eu sustento que a descida da
atualidade à potência ocorre já em um nível macroscópico: ela ocorre no momento em
que passamos do objeto corpóreo X ao seu objeto subcorpóreo associado SX. Além
disso, o fato de que SX possa ser descrito (até certo ponto) pela física clássica não
altera o caso, como não o faz o fato de que esses termos sejam derivados de algum
modo da experiência comum.

Meu ponto, então, é o seguinte: os objetos macroscópicos da física clássica são


exatamente tão “potenciais” quanto os átomos e as partículas subatômicas. Eu levo a
sério a alegação do físico atômico de que esses objetos de grande escala sejam na
verdade compostos de átomos. O fato, contudo, de que SX seja redutível a átomos
não implica que X seja redutível desta mesma forma; pois X e SX na verdade não
estão situados no mesmo plano ontológico. Esse é justamente o ponto crucial, para
dizer mais uma vez: SX existe como uma potência, enquanto X existe como uma
“coisa ou fato”.

Heisenberg, por outro lado, parece, com efeito, identificar SX e X. Além disso, de
acordo com a sua identificação, ele concebe o “ato físico de observação” realizado
sobre um microsistema como um tipo de tradução do estado micro em um estado
macro, como ocorre em um contador Geiger ou uma câmara de bolhas. Ora, de
acordo com minha visão, esse processo em si não nos retira do domínio potencial: por
exemplo, o estado macro de um contador Geiger, concebido como um sistema físico,
está situado ainda no plano físico. Portanto, a passagem da potência à atualidade é
realizada não simplesmente pelo processo em questão, mas pelo fato de que o próprio
contador Geiger é “mais” do que um sistema físico. Ele não é na verdade um processo
físico – um “ato físico de observação” – que atualiza o estado micro, mas a passagem
de SX para X (do contador Geiger potencial para o atual, se preferir).

Heisenberg, nesta parte, sustenta (como vimos) que a transição do “possível” para o
“atual” é realizada simplesmente pelo “ato físico de observação”. Ele é, contudo,
forçado a concluir que o ato físico não pode explicar o chamado colapso do vetor de
estado; para isso ele precisa passar a considerar a “mente do observador”: “A
mudança descontínua na função da probabilidade ocorre com o ato de registro; porque
é o ato descontínuo do nosso conhecimento no instante do registro que tem sua
imagem na mudança descontínua da função da probabilidade”[24].

Da minha parte, acho difícil entender como a onda de probabilidade possa ter um
conteúdo “completamente objetivo” se ela depende do resultado de um experimento
ter ou não ter sido mentalmente “registrado”. Se, digamos, a posição de um ponteiro
indica um certo estado objetivo de coisas após ter sido “lido”, por que não antes?
Parece que estamos de volta ao domínio mítico do gato de Schrödinger, onde os
vetores de estado colapsam ao se abrir uma tampa. Contudo, desde que não se
distinga categoricamente entre um sistema físico – seja ele macroscópico – e um
objeto corpóreo, não há na verdade nenhuma saída para esse dilema. Com efeito, é
um teorema da mecânica quântica o de que os sistemas físicos não fazem o vetor de
estado colapsar. Se supormos, desta forma, que há sistemas físicos e atos físicos – e
nada mais – então se segue que o colapso em questão deve ser causado por um ato
psíquico.

Estranhamente, contudo, o próprio Heisenberg parece não se satisfazer com a


dicotomia dos “sistemas físicos e atos psíquicos”. Com freqüência ele se insurge
contra “a repartição cartesiana”; ele a chama de uma “simplificação excessiva e
perigosa” [25]. E em certos momentos parece quase reconhecer o domínio corpóreo.
“Nossas percepções”, escreve ele em uma de suas passagens não-cartesianas, “não
são primariamente feixes de cores e sons; o que percebemos já é percebido como
alguma coisa, destacando-se aqui a palavra ‘coisa’, e, portanto, é questionável que
tenhamos algum proveito ao tomar as percepções, e não as coisas, como os últimos
elementos da realidade” [26]. Em outras palavras, o que percebemos pode não ser
apenas “feixes de cores” mas “coisas”: objetos corpóreos, como dizemos. Mesmo
assim, Heisenberg parece não ter percebido que a alternativa cartesiana – isto é, a
visão bifurcacionista da percepção – não possui uma vantagem só “questionável”, mas
na verdade insustentável. Nem supôs ele, aparentemente, que uma visão não-
bifurcacionista da percepção, levada até sua conclusão lógica, pudesse libertar a sua
filosofia da premissa mais embaraçosa: ou seja, a noção de que o colapso do vetor de
estado é o resultado do “registro”.

Assim, a filosofia de Heisenberg e a minha própria não coincidem. Claro, há um


elemento de mistério em ambas: em uma é o enigma do colapso do vetor de estado –
do gato de Schrödinger, podemos dizer – e na outra é o milagre do domínio corpóreo,
antes de tudo – o milagre deste mundo visível e tangível –, e por isso do próprio Ato
criativo.

Notas

19 – Physics and Philosophy (New York: Harper & Row, 1962), p. 186.

20 – Ibid, p. 41.

21 – Ibid, p. 53.

22 – Ibid, p. 55.
23 – Ibid, p. 145.

24 – Ibid, p. 55.

25 – Ibid, p. 105

26 – Ibid, p. 84.

Falamos de muitos objetos físicos diferentes: de estrelas e galáxias, de campos


eletromagnéticos e de radiação, e finalmente de moléculas, átomos e partículas
fundamentais. Devemos lembrar, contudo, que cada tipo de objeto é concebido em
relação ao procedimento observacional correspondente, e que, por isso, os objetos
físicos são menos “coisas em si” do que coisas em relação a modos específicos de
investigação empírica. Como Heisenberg ressaltou, a física não lida simplesmente
com a Natureza, mas com o que ele chama de “nossas relações com a Natureza”[1].
Podemos colocar assim: é o próprio pesquisador que “interroga” o que Heisenberg
chama de Natureza [2] – a realidade externa, se preferir; pelo tipo e pela disposição de
sua instrumentação ele formula a pergunta, e obviamente é a dúvida que elicita a
solução, a resposta. A diversidade dos objetos físicos – das “respostas” que a
Natureza dá – é provocada, assim, pela diversidade das perguntas que nós mesmos
tenhamos feito. Mas não há razão para supor que esta diversidade de “perguntas” e
“respostas” transfira-se para a realidade, para a natureza como tal. Portanto, em
contraste ao que chamamos de universo físico, a natureza de que falamos não deve
ser concebida como um domínio ou conjunto feito de objetos físicos. Claro, os objetos
físicos existem; o ponto, contudo, é que esses objetos de alguma forma participam da
relatividade, e não devem ser vistos como tantas entidades independentes, mas como
manifestações diversas de uma única e contínua realidade.

Devemos notar, além disso, que essa posição ontológica não é simplesmente uma
questão de especulação filosófica, mas que virtualmente se impõe sobre nós pelas
descobertas da física e, mais especialmente, pelos resultados da teoria quântica – é
claro, desde que abracemos uma postura realista. Como David Bohm ressaltou,
“Somos levados a uma nova noção de integridade contínua que nega a idéia clássica
da analisabilidade do mundo em partes separadas e independentes” [3]. Mas a
“integridade contínua” à qual Bohm alude claramente equivale à “natureza” de
Heisenberg: à realidade transcendente, podemos dizer, que se manifesta ou se revela
parcialmente na forma de objetos físicos. Estes, portanto, existem – não “por si
mesmos” – mas em virtude da realidade da qual eles constituem uma expressão
parcial. E enquanto essas manifestações são “separadas” e múltiplas, a realidade em
si permanece “contínua”.

À luz dessas considerações, parece agora que o chamado universo físico – o qual
tratamos nos capítulos 2 e 3 – não está isolado, mas aponta para além de si, por
assim dizer, para um nível mais profundo da realidade (que tentamos designar pelo
termo “natureza”). No decurso de nossas reflexões anteriores fomos levados a
distinguir entre os planos físico e corpóreo; e, agora aparentemente surge um terceiro
estrato ontológico – que na verdade parece ser mais fundamental, mais básico do que
os dois planos recém mencionados. Qual, então, é a natureza desse terceiro domínio?

***

Falamos da realidade profunda como uma “integridade contínua”; mas o que


exatamente isso significa? Como começamos a conceber um reino externo que não é
na verdade feito de “partes separadas e independentes”? Para começar, convém
considerar se a realidade em questão está ainda sujeita à condição espaço-temporal.
Acharíamos difícil, é claro, conceber uma natureza que não se propague no espaço e
no tempo; mas não será talvez isso o exigido pela noção de integridade contínua?

Examinemos o problema. Na época newtoniana, como sabemos, pensava-se que o


espaço e o tempo “existissem” independentemente das entidades materiais. O espaço,
em particular, era concebido como um tipo de receptáculo absoluto no qual se podia
de algum modo colocar pedaços de matéria e onde, assim colocados, eles poderiam
mover-se livremente. Entretanto, com o advento da relatividade de Einstein, o quadro
mudou. De acordo com a teoria geral, o contínuo espaço-tempo carrega uma estrutura
geométrica que tanto afeta quanto é afetada pela distribuição da matéria que se diz
conter. Portanto, o espaço e o tempo mostram-se indissociavelmente conectados com
as entidades materiais e os eventos que formam o universo físico; em suma, o
conteúdo e o recipiente perderam o seu status independente, e agora parece que o
espaço, o tempo e a matéria – muito longe de serem princípios independentes –
constituem apenas aspectos distinguíveis de uma mesma realidade. Segue-se, além
disso, que a realidade como tal não é nem espaço, nem tempo, nem matéria, nem
pode na verdade ser contida no espaço ou no tempo; pois no fim das contas é a
própria realidade que em um certo sentido “contém” o espaço-tempo – assim como se
diz que uma causa “contém” seus efeitos.

Ora, todos sabem que a física como tal é necessariamente incapaz de reconhecer
adequadamente os seus próprios objetos como os efeitos ou manifestações de uma
realidade que a princípio se encontra além do seu alcance. Ou para colocar de outra
forma: nada no plano técnico impele o físico a postular tal realidade. E, contudo,
podemos dizer que as descobertas bona fide da física de fato apontam nessa direção.
Como expressou Henry Stapp, “Tudo que sabemos sobre a natureza está de acordo
com a idéia de que o processo fundamental da natureza se encontra fora do espaço-
tempo... mas gera eventos que podem ser localizados no espaço-tempo”[4].

Quais são, então, algumas das descobertas que apontam para além do contínuo
espaço-tempo? Talvez baste mencionar apenas uma – a mais incrível de todas, creio
eu: a saber, o teorema da interconectividade de Bell. Digamos que os fótons A e B
estejam viajando em direções opostas – à velocidade da luz! –, e, contudo, uma
observação realizada sobre o fóton A parece instantaneamente afetar o B. O que se
conclui disso? Ora, de acordo com a ontologia clássica das “partes separadas e
independentes”, somos evidentemente obrigados a postular algum tipo de transmissão
superluminal da influência de A a B. Porém, esse postulado problemático se torna
supérfluo no momento em que reconhecermos os fótons A e B como manifestações de
uma única realidade subjacente; pois de fato onde há unidade ou “integridade
contínua” não há necessidade de comunicar, de transmitir influência através do
espaço e do tempo. Assim, parece que o verdadeiro ponto do teorema de Bell, ou dos
fenômenos EPR em geral, é o de que as partículas gêmeas envolvidas nesses
fenômenos não são na verdade “partes separadas e independentes”.

É claro, elas estão “separadas” na medida em que estão contidas em diferentes


regiões do espaço-tempo; e assim o estão notoriamente na medida em que somos
capazes de observar quaisquer dessas partículas. Mas então tudo aponta para o fato
de que uma partícula não pode ser completamente conhecida por meios empíricos; e
se for verdade – como temos todo o direito de supor – que “agora conhecemos em
parte”, então se torna facilmente concebível que uma partícula possa transcender o
seu local manifestado, e, por conseguinte, também a sua identidade fenomênica. Em
uma palavra, é possível realmente haver na partícula mais do que os olhos científicos
podem ver – e, da mesma forma, mais do que cabe em um contínuo
quadridimensional. Devo esclarecer, contudo, que o que segue em questão aqui não é
a dimensionalidade da multiplicidade abarcante, mas a incondicionalidade ou a
relatividade do próprio abarcar. Desta forma, meu ponto não é que a partícula se
“projeta em outra dimensão”, mas que, além do seu aspecto empírico, ela tem uma
natureza não sujeita de forma alguma ao “abarcar”.

Isso se resume assim: a natureza, ainda que não seja espaço-temporal em si mesma,
sob observação se apresenta como espaço-temporal. Porém, isso não deve ser
entendido n’um sentido kantiano, e sim realista. O ponto não é que as condições
espaço-temporais sejam superpostas à realidade noumênica pelo observador humano,
mas que as coisas e as relações que observamos – “matéria, espaço e tempo”, se
preferir – manifestam ou atualizam uma certa potência pré-existente, um potencial que
pertence à natureza como tal. Novamente, é o físico que “faz a pergunta”, mas a
própria natureza é que dá a resposta. E esta resposta – deixemos bem claro – é
indicativa não só da nossa constituição humana ou da disposição de nossos
instrumentos, mas antes de tudo da própria realidade. No fim das contas, o que se
apresenta para nós através das categorias do espaço e do tempo não é nada além da
realidade, que por si mesma não está sujeita a essas categorias. E deixe-me reiterar,
para a máxima clareza, que as condições do espaço e do tempo não são
simplesmente impostas de fora, de maneira kantiana, mas estão potencialmente
contidas na realidade como tal – assim como pontos e linhas estão potencialmente
contidos no plano euclideano.
O que é então o objeto físico? Nada mais nada menos do que uma manifestação
particular da realidade total, é o que somos obrigados a admitir. Qua objeto físico, é
claro, ele existe no espaço e no tempo, e exibe uma certa identidade fenomênica; e
contudo, em si mesmo, ele transcende esses limites e essa identidade aparente. A
noção de multiplicidade particular se aplica assim “próxima da superfície” – em
resposta às diferentes “perguntas” que fazemos, ou que somos capazes de fazer –
enquanto a “integridade contínua” reina nas insondáveis profundezas.

É sempre possível, claro, nos atermos à crença generalizada de que a realidade


coincide com o contínuo espaço-tempo e com os seus múltiplos conteúdos; mas
parece que esta redução habitual do real ao manifestado está se tornando cada vez
mais forçada e precária à luz dos correntes desenvolvimentos científicos. A física hoje
milita contra essa Weltanschauung constritiva: “Tudo que sabemos sobre a natureza”,
diz Stapp, “está de acordo com a idéia de que o processo fundamental da natureza se
encontra fora do espaço-tempo...”. E acrescentemos que certamente nem um único
resultado é mais sugestivo dessa nova idéia do que o teorema da interconectividade
de Bell. De fato, pode-se bem dizer que o teorema de Bell talvez seja o mais próximo
concebível que a física é capaz de chegar do reconhecimento formal da ontologia
revisada que tentei delinear: isto é, a visão de que não há só um contínuo espaço-
tempo abarcando diversas entidades, mas também – em um nível mais fundamental –
uma potência ora indiferenciada, que não está nem no espaço nem no tempo, e sobre
a qual não podemos afirmar nada de específico. “A realidade é não-local”; isto talvez
seja o mais próximo a que podemos chegar.

Notas

1. Das Naturbild der heutigen Physik (Hamburg: Rowohlt, 1955), p. 21.

2. Um termo que se mostra de alguma forma equivocado, como veremos em breve.

3. D. Bohm e B. Hiley, “On the Intuitive Understanding of Nonlocality as Implied by


Quantum Theory.” Foundation of Physics, vol. 5 (1975), p. 96.

4. “Are Superluminal Cconnections Necessary?”, Nuovo Cimento, vol. 40B (1977), p.


191.

V. A Materia Quantitate Signata

Mas mesmo que não haja nada na natureza – “coisa” alguma, em outras palavras –
que possamos conhecer, permanece o fato de que podemos e realmente conhecemos
a natureza através do universo espaço-temporal. E, no fim das contas, é disso que
trata a física: o físico conheceria “a estrutura da natureza”; só que nós somos
obrigados a ver aquela “estrutura” indiretamente, isto é, através das suas
manifestações físicas.

Mas então devemos notar que mesmo as estruturas familiares de um tipo geométrico
igualmente só podem ser conhecidas por meios indiretos. Como, por exemplo,
descrevemos ou axiomatizamos a estrutura do plano euclideano? Como todo
matemático sabe, isso pode ser feito de várias formas: à la Euclides, por exemplo,
pelas propriedades de certas figuras construídas de pontos, linhas e círculos; ou à la
Felix Klein, pelas invariantes de um grupo de transformação contínua. A própria
circunstância, contudo, de que essas várias caracterizações sejam incrivelmente
dissimilares já atesta o fato de que estamos abordando a estrutura do plano
euclideano através de um construto auxiliar, uma estrutura secundária de algum tipo,
que supostamente é mais concreta e mais acessível. Podemos dizer que a estrutura
primária é revelada através da secundária. Na abordagem clássica, por exemplo,
olhamos para as figuras construídas – mas não diretamente para o plano euclideano.
Pois no plano enquanto tal de fato não há nada para ser visto.

Agora substitua-se a natureza pelo plano euclideano, e os sistemas físicas pelas


figuras da geometria clássica – e poderemos ter um vislumbre do que a física trata.
Pois pela analogia geométrica somos capazes de compreender como a estrutura da
natureza – apesar de oculta – pode se manifestar nas leis fundamentais da física: ou
seja, nas leis que se aplicam em todo tempo e em todo lugar sobre os sistemas físicos
a que se referem. Um exemplo esplêndido seriam as equações de Maxwell, que se
aplicam a todo campo eletromagnético – assim como, digamos, o teorema de
Pitágoras se aplica a todo triângulo reto. A grande diferença, contudo, entre a
geometria euclideana e a física em seu estado atual é que a última ainda não dispõe
um único conjunto coerente de princípios que se aplique a tudo. É como se o físico
tivesse um conjunto de leis para “triângulos” e outro para “círculos” – mas nem uma
única lei que se aplique tanto a “círculos” quanto “triângulos”, e, pelo menos a
princípio, a todas as outras figuras possíveis de se construir. Poderíamos dizer que a
física, em seu estado atual, está familiarizada com os “teoremas” mas ainda não
descobriu um único conjunto de axiomas a partir do qual todo o resto possa derivar. E
é claro que este é o objetivo final da busca do físico: ele procura por uma única lei
básica – supõe-se que na forma de algum tipo de teoria de campo quântico
relativistíco – que descreverá corretamente todos os sistemas físicos concebíveis. E
parece que ele pode realmente estar se aproximando da realização desse objetivo. De
qualquer maneira, tal conquista realizaria para a física o que a axiomatização do plano
euclideano realizou para a geometria clássica: ela nos daria uma representação fiel,
podemos dizer assim, da estrutura primária.

Pode-se levantar a objeção de que as leis da física envolvem – não a natureza como
tal – mas as “nossas relações com a natureza”, como disse Heisenberg. O ponto,
contudo, é que ela lida com ambos – assim como o teorema de Pitágoras, por
exemplo, lida não só com uma certa classe de figuras construídas, mas também com a
estrutura do plano euclideano. Por que um fato deveria excluir o outro?
Reconhecidamente, Eddington alegou que as leis fundamentais da física – incluindo
até as constantes adimensionais da natureza – podem ser deduzidas a priori do
modus operandi pelo qual as leis em questão podem ser postas à prova. A partir do
exame da rede de pesca, diz Eddignton, podemos eduzir certas conclusões a respeito
da natureza do peixe a ser pego com essa rede; por exemplo, o peixe deve ser maior
do que um certo comprimento, e assim por diante. Mas por mais fascinante que seja
essa filosofia da física, acontece que ninguém até agora teve sucesso nessa
empreitada kantiana, e poucos físicos hoje, se é que existem, seguiriam Eddington em
suas afirmações radicalmente subjetivistas. No final de tudo, parece que as leis da
física nos falam não só de “nossas relações com a natureza”, mas também, em última
análise, da natureza como tal.

***

A natureza, contudo, se mostra altamente recôndita e, na verdade, meta-física. Ora,


com certeza não é fácil conceber realidades metafísicas, e é claro que é impossível
representar ou imaginar coisas desse tipo. Porém, como o físico sabe muito bem,
podemos de fato conceber coisas inimagináveis, e além disso o fazemos com máxima
clareza e exatidão. Portanto, não se trata de forma alguma do conhecimento humano
se restringir à ordem sensível, como alegam alguns céticos. E se é possível conceber
o físico (que, como vimos, se encontra fora do domínio sensível), então por que
também não o metafísico: as coisas que transcendem os limites do espaço e do
tempo? Por isso, apesar dos receios dos filósofos ocidentais, começando por Locke,
Hume e Kant, parece que a metafísica, assim compreendida, não é no fim das contas
um empreitada vã e inviável.

Porém, precisamos, como sempre, do suporte de imagens sensíveis, de uma metáfora


apropriada (<metapherein, “transferir”) ou paradigma corpóreo.

Perguntemos, então: qual é uma metáfora apropriada para o conceito de natureza a


que chegamos? Qual é de fato o paradigma que esteve o tempo todo no fundo das
nossas mentes? Nós respondemos que ele não é outro senão o hilemórfico ou
escultural, sobre o qual se baseia em um certo sentido a metafísica de Aristóteles. Isto
pode ser ou não ser evidente, mas de qualquer forma merece ser explicado com o
devido cuidado.

Pense num pedaço de madeira (hyle em grego) ou de mármore recebendo a forma


(morphe) de Apolo ou Sócrates. A coisa concreta – a estátua – é, assim, em um certo
sentido, composta de dois fatores: hyle e morphe. É evidente contudo que a morphe
não possui existência concreta por si mesma, à parte da madeira ou do mármore na
qual foi cortada. Mas e quanto à hyle? Desde que tomemos o termo no sentido literal,
é claro que ela possui uma existência, devido ao fato de que o pedaço de madeira
original por si mesmo possui uma morphe. A hyle no sentido aristotélico, por outro
lado, é simplesmente o recipiente da morphe, e nada mais. Conseqüentemente, a hyle
aristotélica é concebida como um substrato puro que se encontra, figurativamente
falando, abaixo do nível da existência concreta. Ela é assim literalmente uma não-
entidade, e apesar disso, como o zero da matemática, esse “nada” – por mais
estranho que pareça – cumpre um papel crucial. Ademais, é em virtude deste papel
que podemos conceber a hyle aristotélica em primeiro lugar; pois em si mesma, como
eu disse, ela não é “nada”. O que é, então, que a hyle faz? se assim podemos colocar.
Ela recebe a morphe, recebe conteúdo – recebe ser, na verdade; e ela pode fazer isso
precisamente porque, em si mesma, é amorfa, vazia, e de fato não-existente.

A morphe, por sua vez, também não possui existência concreta, como notamos antes;
ela existe em conjunção com a hyle, por assim dizer – assim como a forma de Apolo
existe em conjunção com o seu suporte de mármore. A morphe, porém, não é
simplesmente “forma, formato ou figura” no sentido mais ou menos visual destes
termos – não devemos levar a metáfora escultural muito longe. O ponto é que a
morphe de uma entidade existente é precisamente o seu aspecto cognoscível. Em
resumo, uma coisa é inteligível em virtude da sua morphe – mas é existente em razão
de sua hyle. Ademais, não digo “sua hyle”, porque a hyle não pertence à coisa – não
mais do que se poderia dizer que o oceano pertence a uma onda particular. Por outro
lado, a morphe na verdade é própria à coisa: pois a morphe de uma entidade é
verdadeiramente a sua essência (<esse, “ser”) [5]. Ela é o que conhecemos e o que
podemos conhecer; e assim é o “o que” ou a quididade da coisa. Devemos ter em
mente, contudo, que a entidade existente não coincide simplesmente com a sua
quididade: ela também tem um aspecto hilético, que permanece ininteligível – um fato
da maior significância, é claro.

Devemos notar que, com a retomada da filosofia aristotélica durante a era escolástica,
o termo grego “morphe” veio a ser naturalmente substituído pela “forma” do latim, e
hyle tornou-se materia. E, além disso, devido a uma certa evolução, a “materia”
escolástica eventualmente se transformou na “matéria” da física newtoniana – cujo
exato significado, contudo, está longe de ser claro. Ontologicamente falando, esse
resquício da era newtoniana constitui de qualquer modo um híbrido confuso da materia
e da forma no sentido autêntico. E, diferente da “massa” – com a qual é às vezes
confundida –, ela não possui nenhum papel rigoroso na economia do pensamento
científico.

O mais próximo que a “matéria” newtoniana estava destinada a chegar da autêntica


materia era sem dúvida o malfadado éter, cuja função pretendida era a de sustentar o
campo eletromagnético. Porém, apesar da sua homogeneidade, extrema atenuação e
outras características “etéreas”, aquele éter era ainda concebido como uma
“substância” no sentido contemporâneo. A autêntica materia, por outro lado, é uma
coisa de um tipo muito diferente. Antes de tudo, devemos entender que a materia não
ocupa espaço – como é evidente no momento em que lembramos que o espaço tem a
ver com relações geométricas entre entidades existentes. Ontologicamente falando,
portanto, o espaço é posterior à materia; e o mesmo por ventura se aplica ao tempo. E
ainda assim poderíamos dizer que o espaço, concebido como um receptáculo vazio ou
recipiente universal, constitui um tipo de símbolo natural ou imagem cósmica do
substrato material. Por isso, a autêntica materia, tão longe de ser caracterizada por
uma extensão como a “matéria” newtoniana, ao contrário, alia-se ao recipiente, ao
receptáculo puro.

Há alguma confusão neste ponto a respeito da outrora ilustre filosofia conhecida como
materialismo, que pretende explicar todas as coisas apenas pela “matéria”
newtoniana. Ora, em primeiro lugar, é evidente, à luz do que foi dito acima, que a
existência corpórea implica necessariamente dois princípios: “só com dois para existir”,
se preferir. Se, apesar disso, buscar-se reduzir as coisas corpóreas a um único
princípio, a “matéria” newtoniana acaba por ser uma escolha especialmente pobre.
Pois, à parte da imprecisão desta noção e da sua inutilidade como um plano científico
rigoroso, o conceito resiste ainda predominante do lado da materia. Ela representa a
existência desnudada, por assim dizer, da maior parte de seu conteúdo formal, e
constitui por isso um tipo de quase-matéria ou quase-substância. O materialista,
portanto, olha em direção à materia em sua busca por um princípio único pelo qual
tudo possa ser compreendido – uma escolha infeliz, visto que a materia não só é cem
por cento ininteligível por si mesma, mas empresta a todas as coisas o seu aspecto de
ininteligibilidade, se pudermos colocar assim. Além disso, a mudança de uma
interpretação materialista da física para uma estruturalista, que veio na esteira da
relatividade de Einstein, sem dúvida representa uma virada na direção certa: da
materia ao aspecto inteligível da realidade.

O fato, contudo, de que as coisas sejam inteligíveis em virtude do seu aspecto formal
não implica que elas possam ser adequadamente concebidas pura e simplesmente
como formas, ou como estrutura no sentido físico. Assim, se o materialismo acaba
sendo insustentável, também o é enfim o estruturalismo; pois, eu sustento, com efeito,
que, no fim das contas, não pode haver ontologia viável que não invoque de uma
forma ou de outra o paradigma hilemórfico. A própria idéia de existência corpórea,
pode-se dizer, exige dois princípios complementares, que não podem senão responder
às concepções gêmeas de materia e forma. E isso explica porque noções
correspondentes a essa são encontradas nas grandes ontologias, desde a China e
Índia até a Grécia e a antiga Palestina [6].

Notas
5. A distinção tomista entre essência e forma não tem nenhuma influência particular
em nossas presentes considerações e pode, por isso, ser suprimida.

6. Isto sem dúvida é muito mais evidente no caso da China, da Índia e da Grécia do
que no caso da “antiga Palestina”. E, contudo, não se pode negar que a concepção
hilemórfica é igualmente bíblica. Mestre Eckhart, por exemplo, nos avisou deste fato:
“É preciso antes de tudo saber que matéria e forma não são dois tipos de entidades
existentes, mas dois princípios dos seres criados. É este o sentido das palavras: ‘No
princípio Deus criou o Céu e a Terra’ – a saber, forma e matéria, os dois princípios das
coisas”. Veja o Liber parabolarum Genesis, 1.28. O leitor interessado pode encontrar
esse texto na magnífica edição de Kohlhammer do Mestre Eckhart, que oferece a
tradução em latim em conjunto com a alemã. Veja Meister Eckhart: Die lateinischen
Werke, Vol. I (Stuttgart: Kohlhammer, 1937-65).

À luz dessas considerações podemos enfim perceber toda a magnitude do desvio


cartesiano. Pois parece que ao rejeitar as qualidades dos chamados atributos
“secundários”, Galileu e Descartes eliminaram o que é na verdade primário: a própria
essência das coisas corpóreas [12].

Ora, com certeza a física lida com os aspectos quantitativos da manifestação cósmica;
e isso obviamente é legítimo e informativo até certo ponto. Mas não podemos esperar
demais. Para toda sua afamada proeza, há limites no que a física é capaz de
compreender ou explicar, e acontece dessas limitações serem muito mais rigorosas do
que em geral tendemos a supor. Como observou o metafísico francês René Guénon:

Pode-se dizer que a quantidade, enquanto constituinte do lado substancial do mundo,


é como se fosse uma condição “básica” ou fundamental: mas deve-se ter cuidado em
não ir muito longe a ponto de atribuir-lhe uma importância de ordem maior do que é
justificável, e mais particularmente não tentar extrair dela a explicação deste mundo. O
fundamento de uma edificação não deve ser confundido com a sua superestrutura:
enquanto há apenas uma fundação ainda não há a edificação, embora a fundação
seja indispensável à edificação; da mesma forma, enquanto há apenas quantidade
não há ainda manifestação sensível, embora a manifestação sensível seja radicada na
quantidade. A quantidade, considerada em si mesma, é só uma “pressuposição”
necessária, mas ela não explica nada; é na verdade uma base, e nada mais, e não se
deve esquecer que a base é por definição aquilo situado no mais baixo nível. [13]

Ora, admite-se que a frase “não explica nada” talvez seja excessiva; mas todavia ela
serve como um contrapeso a alegações não menos exorbitantes feitas por aqueles
que “tentam extrair a explicação deste mundo” dos dados da física.

Estritamente falando, a única coisa que podemos entender sobre um objeto corpóreo
nos termos da física são os seus atributos quantitativos; e além disso só podemos
fazê-lo em virtude do fato de que os atributos em questão são herdados, por assim
dizer, do objeto físico associado. Além deste ponto a física não tem mais nada a dizer.
Ela tem “olhos” apenas para o físico: SX é tudo o que ela percebe, tudo que sempre
aparece em seus gráficos. E essa é sem dúvida a razão porque os físicos têm
conseguido convencer a si mesmos (e o resto do mundo instruído!) de que o objeto
corpóreo como tal não existe; ou para colocar de outra forma: que X “não é nada
senão” SX. Esta é a razão porque se pensa que as entidades corpóreas são “feitas de”
átomos ou partículas subatômicas, e porque se defende que as qualidades são
“meramente subjetivas”.

Finalmente, é preciso observar que essa suposta redução do corpóreo ao físico tem
como efeito tornar ontologicamente incompreensível o próprio físico. podemos ainda, é
claro, fazer cálculos e predições quantitativas, mas isso é tudo. Podemos de fato
responder à pergunta “Quanto?” com incrível precisão; mas qualquer tentativa de
responder à dúvida “O quê?” leva necessariamente à contradição ou absurdidade.
Esta Weltanschauung (que na verdade não é uma Weltanschauung) não admite uma
ontologia. E não é essa a conclusão a ser tirada do interminável debate sobre a
“realidade quântica”? Ademais, é impossível sequer dar uma explicação não falsificada
da metodologia científica dentro do quadro da posição reducionista, pois na ausência
de qualidades não pode haver nenhuma percepção, e por isso também nenhuma
medição. Estritamente falando, não conhecemos nem o corpóreo nem o físico, nem
temos qualquer concepção clara do que é que a física trata. É de se admirar, então,
que os físicos devam ter (nas palavras do físico Nick Herbert) “perdido o controle da
realidade?” [14].

Notas

12. Para colocar em termos escolásticos: eles eliminaram precisamente as formas


substanciais. Porém, na ausência das formas substanciais, o mundo corpóreo deixa
de existir.

13. The Reign of Quantity (London: Luzac, 1953), p. 29.

14. Os leitores de Eric Voegelin podem se recordar da sua terrível tese de que, devido
à dominação das “realidades segundas” nos tempos modernos, “desapareceu o
fundamento comum da existência na realidade”, e que, como resultado, “desmoronou
o universo do discurso racional”. (Veja “On Debate and Existence”, reimpresso no A
Public Philosophy Reader, Arlington House, 1978). Parece haver muito de verdade
neste argumento. Porém, Voegelin está pensando nas “realidades segundas” de um
tipo cultural e ideológico; aparentemente, não lhe ocorreu que a “realidade segunda”
mais importante – a que parece ser a base de todas as outras e que confundiu
praticamente a todos – não é outra senão o universo físico como geralmente
concebido. No momento em que se esquece que este chamado universo constitui
apenas um domínio sub-existencial – uma mera potência em relação ao corpóreo –,
cria-se um monstro. Pois de fato o domínio físico, assim “hipostasiado”, a partir daí se
torna o principal usurpador da realidade, a grande ilusão da qual brotam uma multidão
de erros maléficos. “Perder o controle da realidade” não é coisa pouca ou inofensiva!

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