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Enigma
Wolfgang Smith
SUMÁRIO
1. Redescobrindo o Mundo Corpóreo
É certo que a dicotomia tem a sua utilidade; pois de fato, ao relegar os chamados
atributos secundários para o segundo compartimento cartesiano, realizou-se de um só
golpe uma incalculável simplificação do primeiro. O que resta, na verdade, é
precisamente o tipo de “mundo externo” que a física matemática poderia em princípio
compreender “sem nenhum resíduo”. Há, contudo, um preço a ser pago: pois, uma vez
dividido o real em dois, aparentemente ninguém sabe como colocar as peças de volta.
Como, particularmente, a res cogitans adquire conhecimento da res extensa? Pela
percepção, com certeza; mas, então, o que é isso que percebemos? Ora, nos dias
pré-cartesianos em geral era pensado – tanto pelo filósofo quanto pelo não-filósofo –
que no ato da percepção visual, por exemplo, nós de fato “olhamos para sobre o
mundo exterior”. Não é assim que acontece, declara René Descartes; e o faz com
razão, uma vez aceita a dicotomia cartesiana. Pois se o que eu realmente percebo é,
digamos, um objeto vermelho, então ele deve ipso facto pertencer à res cogitans, pela
simples razão de que a res extensa não possui cor alguma. Assim, indo de acordo
com os seus pressupostos iniciais, não foi por escolha, mas por força de necessidade
lógica que Descartes viu-se levado a postular o que desde então ficou conhecido
como “bifurcação”: isto é, a tese de que o objeto perceptivo pertence exclusivamente à
res cogitans, ou de que, em outras palavras, qualquer coisa que realmente
percebemos é privada e subjetiva. Em crassa oposição à crença comum, o
cartesianismo insiste que não “olhamos para sobre o mundo externo”; de acordo com
esta filosofia, nós na realidade estamos presos, cada um em seu mundo privado, e o
que nós normalmente tomamos como uma parte do universo externo é na verdade
apenas um fantasma, um objeto mental – como um sonho – cuja existência não vai
além do ato perceptivo.
Mas essa posição é precária, para dizer o mínimo; pois se o ato da percepção na
verdade não cobre o abismo entre os mundos interno e externo – entre o res cogitans
e o res extensa – como então esse abismo é transposto? Como, em outras palavras, é
possível conhecer as coisas externas, ou mesmo conhecer que elas existem como um
mundo externo, em primeiro lugar? O próprio Descartes, como se recordará, teve
grande dificuldade em superar as suas célebres dúvidas, e só pôde fazê-lo através de
um tortuoso argumento que poucos hoje em dia achariam convicente. Não é estranho
que os práticos e críticos cientistas tenham tão prontamente e por tão longo tempo
defendido uma doutrina racionalista que põe em dúvida a própria possibilidade do
conhecimento empírico?
Mas, por outro lado, se alguém ignorar este impasse epistemológico – ou se fingir
que ele foi resolvido –, então é capaz de se satisfazer com o benefício aparente que o
cartesianismo de fato oferece: pois como eu já destaquei, a simplificação do mundo
externo que resulta da bifurcação torna pensável uma física matemática de alcance
ilimitado. Mas a questão, de qualquer forma, não é se a bifurcação é vantajosa em
algum sentido, mas simplesmente se ela é verdadeira e realmente sustentável. E esse
é o problema que precisa ser resolvido em primeiro lugar; todas as outras questões
que pertencem à interpretação da física são obviamente uma conseqüência disso, e,
portanto, devem esperar a sua vez.
Ora, essa investigação com certeza é realizada através dos nossos sentidos,
através da percepção; só que desde o início é preciso entender que percepção não é
sensação pura e simples, o que é o mesmo que dizer que ela não é só uma recepção
passiva de imagens ou um ato desprovido de inteligência humana. Mas, independente
de como o ato é consumado, segue o fato de que nós percebemos as coisas que nos
cercam; com a permissão das circunstâncias, nós podemos ver, tocar, ouvir, degustar
e cheirar as coisas, como todo mundo sabe muito bem. É, portanto, inútil e
perfeitamente vazio falar do mundo como algo que é em princípio impercebido e
imperceptível; e, mais, isso é uma ofensa contra a linguagem – como dizer que o
oceano é seco, ou que uma floresta é vazia. Pois o mundo é manifestamente
concebido como o lugar das coisas perceptíveis; ele consiste de coisas que, embora
possam não ser agora atualmente percebidas, poderiam entretanto ser percebidas sob
condições apropriadas: este é o cerne da questão. Por exemplo, eu agora percebo a
minha escrivaninha (através dos sentidos da visão e do tato); e quando eu deixo o
meu escritório, eu não irei mais percebê-la; mas o ponto, claro, é que, ao retornar, eu
posso novamente percebê-la. Como o bispo Berkeley bem observou, dizer que um
objeto corpóreo existe é dizer não que ele é percebido, mas que ele pode e será
percebido sob circunstâncias apropriadas.
É esta verdade vital e muito esquecida que permeia a sua máxima merecidamente
celébre: “Esse est percipi” (“Ser é ser percebido”), não obstante a possibilidade desta
afirmação altamente elíptica realmente ser interpretada no sentido de um idealismo
espúrio. Além disso, esse perigo – do qual o próprio bispo irlandês caiu vítima [1] –
surge principalmente em razão do percipi na fórmula de Berkeley poder facilmente ser
mal compreendido. Como eu já salientei, pode a percepção ser interpretada
erroneamente como uma mera sensação; e foi essencialmente assim que a maioria
dos filósofos a interpretou, desde a época de John Locke até o século XX, quando
aconteceu desta visão bruta e insuficiente ser sujeita ao escrutínio e descartada pelas
principais escolas.
Há, então, um sentido no qual se pode dizer que um universo repleto de atributos
qualitativos existe “na ausência de observadores humanos”; a verdadeira questão,
portanto, é se poderia ser afirmado mais do que isso com relação a um universo
imaginado do qual todas as qualidades tenham sido excluídas. Ora, é claro que
devemos conceder que os atributos quantitativos, como a massa, por exemplo,
referem-se de forma menos direta à percepção – seja ela visual, tátil, ou qualquer
outra – do que a cor; e essa, presume-se, é a razão porque pode ser mais fácil pensar
nos primeiros como os “atributos primários” no sentido cartesiano clássico. Mas não
podemos nos esquecer que os atributos quantitativos com os quais lida a física são no
fim das contas empiricamente definidos, o que quer dizer que a sua definição
realmente implica uma referência necessária à percepção sensível, por mais indireta
ou remota que a referência possa ser. É verdade que a massa de um corpo não é
diretamente percebida (embora o senso cinestésico em alguns casos possa nos dar
uma aproximação) e que, neste sentido, a massa difere da cor; mas também devemos
notar que a medição ou a “observação” da massa é realizada necessariamente por um
ato perceptivo. Assim, dizer que um corpo possui tal e tal massa é dizer que uma
medição da sua massa nos dará o valor em questão, o que significa, novamente, que
se nós executarmos uma certa operação, então se sucederá uma percepção sensível
correspondente (por exemplo, nós perceberemos este ou aquele número em uma
escala). O caso da massa, portanto, e dos outros chamados atributos primários não é
tão diferente do da cor, como os cartesianos podem pensar; pois em ambos os casos
a predicação do atributo (um tanto de massa, ou tal e tal cor) constitui uma afirmação
condicional exatamente da mesma forma lógica. Portanto, uma massa, não menos do
que uma cor, é, em um sentido, uma potência a ser atualizada através de um ato
inteligente envolvendo a percepção sensível. Mas, como uma potência, cada uma
existe no mundo externo, o que quer dizer que cada uma existe, visto que cada uma é
uma potência. Isso é tudo o que podemos exigir logicamente ou supor racionalmente
de um atributo: exigir mais equivaleria a exigir que ele seja e não seja atualizado ao
mesmo tempo.
(...)
A pergunta que se coloca é por que o pensamento ocidental deveria por tanto
tempo ter sido dominado pela filosofia cartesiana, uma doutrina especulativa que
contradiz as nossas intuições mais básicas e para a qual não pode haver a princípio
nenhuma evidência corroborativa. E por que logo o cientista deveria defender esse
ensinamento quimérico, que na verdade torna o mundo externo incognoscível por
meios empíricos? Seria de imaginar que ele desprezaria a especulação cartesiana
como o mais vão dos sonhos e, de todas as fantasias metafísicas, a maior inimiga do
seu propósito. E mesmo assim, desde o século XVII em diante, como sabemos, o
cartesianismo e a física têm estado intimamente unidos, ao ponto de poder parecer, ao
observador supercifial, que o dogma da bifurcação constitui de fato a doutrina
científica, apoiada por todo o enorme peso da descoberta científica. Foi, no fim das
contas, o próprio Newton quem amarrou o nó dessa curiosa combinação, e o fez tão
bem que até o presente dia a união se provou virtualmente indissolúvel. [3]
Porém, nem a premissa cartesiana, nem a sua associação com a física era de
fato algo de novo sob o sol, pois parece que o primeiro bifurcacionista declarado na
história do pensamento humano foi ninguém menos do que Demócrito de Abdera, o
reconhecido pai do atomismo. “De acordo com a crença vulgar”, declara Demócrito,
“existe a cor, o doce e o amargo; mas, na realidade, só os átomos e o vazio” 4 Além
disso, há uma conexão necessária entre as duas metades da doutrina, no ponto em
que ele que explicaria o universo em termos dos “átomos e do vazio” deve antes de
tudo negar a realidade objetiva das qualidades percebidas pelos sentidos. Pois como
Descartes observou com admirável clareza:
4. Hermann Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker (Dublin: Weidmann, 1969), p. 168.
5. Principia Philosophiae, in Oeuvres (Paris, 1824,) IV, 198; citado in E. A. Burtt, op. cit. , p.
112.
6. Encounters with Einstein (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1983), p. 81.
Alguém diria que o universo físico é simplesmente o mundo como concebido pelo
físico; mas, por outro lado, está longe de ser claro como exatamente o físico de fato
concebe o mundo. Devemos lembrar, em primeiro lugar, que a física passou por um
estupendo desenvolvimento e continua a progredir com uma rapidez espantosa. E,
além do mais, tem havido ultimamente pouco consenso entre os físicos sobre o que é
exatamente que a física está trazendo à luz. Como, então, podemos falar em um
“mundo concebido pelo físico”?
Podemos fazê-lo, até certo ponto, em virtude do fato da física possuir uma
metodologia própria, um modo distintivo de investigação. As teorias físicas particulares
podem ser substituídas, e as opiniões filosóficas podem ir e vir; mas os meios
cognitivos básicos pelo quais a física como tal é definida permanecem inalterados. E
esses meios cognitivos de uma forma geral determinam os seus objetos: este é o
ponto crucial. Digamos, então, que o universo físico seja o reino das coisas a princípio
cognoscíveis por esses meios particulares, e vamos ver aonde isso nos leva.
Vimos no capítulo anterior que o mundo corpóreo existe “para nós”: como o
domínio das coisas a serem conhecidas através da percepção sensível; e agora
descobrimos que o universo físico existe “para nós” quase no mesmo sentido. Só que
os respectivos meios de conhecimento são notoriamente diferentes. No primeiro caso,
nós conhecemos através da percepção direta, e, no segundo, através de um complexo
modus operandi fundado na medição – o que é uma coisa completamente diferente.
O que, então, tomamos dessa curiosa dualidade? Podemos dizer, por exemplo,
que um dos dois domínios é real e o outro subjetivo ou de alguma forma fictício? Na
verdade, parece que não há fundamentos convincentes para apoiar qualquer um
desses reducionismos. O que você vê depende das “lentes” pelas quais você olha:
esse é o âmago da questão.
(...)
2. Sob o risco de chover no molhado, o argumento poderia ser colocado assim: uma esfera
rígida de densidade constante é caracterizada inteiramente por duas constantes numéricas: o
seu raio R e densidade δ. Nem R nem δ, contudo, podem ser percebidas (essas quantidades
podem é claro ser medidas, mas como vimos antes, medir não é o mesmo que perceber). Mas,
visto que as quantidades pelas quais se define a esfera rígida são imperceptíveis, então
também o é a esfera rígida. Ou novamente: ninguém jamais percebeu (no sentido visual) um
objeto desprovido de toda cor. Mas a esfera rígida não possui cor (é caracterizada por R e δ,
como eu disse). Logo, é imperceptível.
Apesar disso, a distinção é vital para a economia da física. Pois fica claro, a
partir do que foi dito acima, que os instrumentos de medição devem ser corpóreos. O
processo de medição deve terminar, no fim das contas, no estado perceptível de um
objeto corpóreo. Mas isso significa, à luz das considerações anteriores, que o
instrumento físico é necessariamente subcorpóreo; para ser preciso, deve ser o SI de
um instrumento corpóreo I.
Ele se vale dela, por exemplo, quando trata um objeto corpóreo como um
sistema físico, ou quando emprega entidades corpóreas para “preparar” um sistema
físico de um tipo transcendental; e sem dúvidas vale-se dela quando mede ou exibe
um objeto físico.
Isso tudo se resume desta forma: Não pode haver o conhecimento do domínio
físico sem a apresentação – assim como não pode haver o conhecimento do mundo
corpóreo na ausência da percepção sensível. Não há maneira, é claro, de convencer o
cético obstinado de que o universo físico existe em primeiro lugar, muito menos de que
este pode ser conhecido; e certamente é sempre possível cair num reducionismo
positivista. Basta dizer, entretanto, que não podemos evitar a idéia de apresentação –
exceto ao custo do universo físico.
5 – O fato de que X e SX ocupem a mesma região no espaço não é nem um pouco paradoxal.
Em primeiro lugar, ele não contradiz a nossa experiência sensível, porque a percepção
pertence somente a X. Além disso, de um ponto de vista teorético, não há nada contraditório
na noção de duas entidades ocupando o mesmo espaço; isso acontece, por exemplo, no caso
dos campos. Um campo elétrico pode coexistir com um campo magnético, ou um gravitacional.
Mais uma vez, o que você vê depende de como você olha.
6 – Há também, é claro, uma “continuidade temporal” entre X e SX. Isso significa, em primeiro
lugar, que um objeto corpóreo X, considerado num instante particular do tempo, constitui uma
apresentação de SX no mesmo instante, e, em segundo lugar, que a noção de “distância
temporal” ou duração temporal, medida por relógios corpóreos, transfere-se para o reino
subcorpóreo.
Não se pode negar que a reificação foi comum em toda a era newtoniana.
Havia, primeiro de tudo, a mecânica dos corpos rígidos e não-rígidos, de objetos
subcorpóreos portanto, que sem dúvida eram rotineiramente reificados através da
identificação com as entidades corpóreas correspondentes. Havia também a
gravitação, é claro, que não podia ser tratada dessa forma; mas esse fato era
percebido como uma anomalia. O próprio Newton tentou (no Opticks) explicar a força
gravitacional em termos da pressão gradiente de um fluído interplanetário hipotético;
mas ele também reconhecia com admirável clareza que, n’um sentido técnico ou
computacional, a questão não tinha relação nenhuma com a física. Para calcular o
movimento dos corpos sob a ação da força gravitacional, a única coisa que importa é a
lei matemática que descreve como que uma “partícula de massa” afeta outra; e
Newton tinha boas razões para sustentar que sua própria lei da gravitação tinha
liquidado com esse assunto de uma vez por todas.
A ânsia por explicações mecanistas, contudo, não cedeu. Era uma época em
que os homens da ciência olhavam com expectativa para a Mecânica como a chave
para resolver praticamente todos os fenômenos; e essa Weltanschauung, como
sabemos, realmente obteve suas vitórias. Além de suas descobertas primárias – as
leis do movimento e da gravidade e a conseqüente explicação das órbitas planetárias
–, o próprio Newton foi pioneiro em uma acústica, que, com efeito, reduzia o som a um
fenômeno da mecânica contínua, e começou ao menos a especular – muito
corretamente – que a temperatura e o calor tinham a ver com a “agitação vibratória de
partículas”. É interessante notar que uma segunda teoria do calor, menos feliz, porém
não menos mecânica do que a de Newton, fez sua aparição aproximadamente na
mesma época e por cerca de duzentos anos foi amplamente aceita. De acordo com
esta visão, o calor era supostamente um fluído “sutil, invisível e sem peso” chamado
de phlogiston, o qual se pensava de alguma forma permear os corpos e fluir das
regiões quentes para as frias, tanto quanto os fluídos comuns fluem por um gradiente
de pressão. Somente em meados do século XIX é que a doutrina do phlogiston
finalmente foi abandonada em favor da teoria newtoniana, graças ao trabalho de Joule
e Helmholtz.
Havia também uma química rudimentar, à qual Newton, por exemplo, dedicava
um imenso esforço. Mas acontece que não havia a menor possibilidade na época de
se explicar os fenômenos químicos em termos matemáticos, que dirá mecânicos – o
que sem dúvida é a razão porque Newton nunca publicou um tratado separado sobre
esse assunto. Contudo, como é de se esperar, Newton e seus colegas inclinaram-se
fortemente a uma teoria mecanista dos átomos, que logo veio a ser considerada em
círculos mais amplos como um dogma incontrovertível da ciência. Como Voltaire
colocou, com seu aplomb de sempre:
Os mais duros corpos são vistos como repletos de furos, ao modo de peneiras,
e na verdade é isso o que são. Os átomos são reconhecidos, indivisíveis e imutáveis,
princípios aos quais se deve a permanência dos diferentes elementos e dos diferentes
tipos de coisass. [9]
Mas embora tenhamos nos livrado do éter e não mais ansiemos por modelos
mecanísticos, ainda temos a necessidade de suportes sensíveis. Assim, o campo
eletromagnético, não menos do que qualquer outro objeto físico, deve ser concebido –
não em termos mecânicos, claro – mas ainda em virtude das representações
adequadas de tipo visual. Como todo aluno sabe, o campo elétrico em um ponto é
dado por um vetor, uma entidade matemática que possui um comprimento e uma
direção e que pode, conseqüentemente, ser representada por uma seta – uma
pequena, de preferência, que possa convenientemente se localizar no ponto em
questão. Tendemos, na verdade, a posicionar a seta com a sua “cauda” exatamente
no ponto P. Com um pequeno esforço, podemos agora representar um campo elétrico
em um dado tempo como uma distribuição tridimensional contínua dessas setas, que
mudam seus comprimentos e direções de acordo com as necessidades da teoria
matemática. O mesmo pode ser feito com o campo magnético, e portanto com o
eletromagnético, que assim exige a adição de duas setas a cada ponto,
correspondendo com os componentes elétricos e magnéticos do campo. Para facilitar
mais a nossa compreensão, poderíamos até mesmo considerar os vetores elétricos
como vermelhos e os magnéticos como azuis, um artifício que permite reproduzir
representações impressionantes de uma onda eletromagnética [11]. Não estou
sugerindo, é claro, que qualquer um pudesse ser tão simples a tomar o valor nominal
da noção de “vetores vermelho e azul”; meu argumento, pelo contrário, é dividido em
dois. Primeiro, devemos admitir que pelo menos em um plano mental as
representações desse tipo geral são necessárias e realmente legítimas como suporte
sensível para o conceito de um campo eletromagnético. E, sendo assim, é em
princípio possível – e muito fácil, na verdade – reificar o campo eletromagnético; tudo
o que se precisa fazer a esse respeito é esquecer que um vetor elétrico ou magnético
em P não é na verdade uma seta, mas algo de um tipo totalmente diferente, que de
fato não pode ser “representado” de forma alguma – exceto, é claro, por meio de um
artifício, como o de uma seta. Em uma palavra, há um salto a ser feito - e pode não ser
fácil saber de fora se uma pessoa “está olhando para o dedo ou para a lua”.
O que aconteceu em nosso século é que a física foi em seu próprio terreno
levada a rejeitar as interpretações ingênuas e a manter uma postura rigorosamente
simbólica em relação às representações concretas. Ou, melhor dizendo, ela foi forçada
a manter tal postura no domínio das altas velocidades e, acima de tudo, no mundo
micro. Quando se trata do domínio físico macro comum, por outro lado, a tendência a
reificar ainda se manifesta, mesmo em autores que longamente se queixam sobre o
assunto “estranheza quântica” – como se 1024 átomos pudessem ser representados
mais facilmente do que um! Deve-se ainda reconhecer que há uma diferença
ontológica entre os domínios físico e corpóreo, e que o hiato não pode ser fechado
pela mera agregação das chamadas partículas.
Notas
10 – Não só Newton reconhecia a força gravitacional e eletromagnética como parece que ele
também antecipou as forças nucleares, conforme podemos tirar da seguinte afirmação na 31ª
Investigação do Opticks: “As atrações da gravidade, do magnetismo e da eletricidade alcançam
distâncias muito sensíveis, e logo foram observadas pelo olhar comum, e pode haver outras
que alcançam distâncias tão pequenas que até agora escaparam à observação.”
11 – Só precisamos, é claro, levar em consideração a dependência do tempo do campo. Isso
pode ser feito, por exemplo, através da exibição de um gráfico animado.
3. O Mundo Micro e a Indeterminância
Mas, seja como for, o que nos interessa agora é o seguinte fato geral: quer
lidemos com a partícula fundamental, quer com a mais simples entidade corpórea, não
podemos falar de um objeto físico X até que se tenha estabelecido um certo contato
observacional inicial com X. Os objetos físicos não “crescem em árvores”
simplesmente: eles precisam antes de tudo ser “especificados” no sentido técnico que
demos a este termo.
***
Por outro lado, quando lidamos com sistemas físicos de larga escala de um tipo
suficientemente simples, os efeitos dessa indeterminância residual podem não ser
mensuráveis, ou podem ser tão pequenos que não cumprem nenhum papel
significativo [2]. Em um sentido formal e aproximativo, portanto, podemos falar de um
sistema físico determinado; e esses, é claro, são precisamente os sistemas dos quais
trata a física clássica, e aos quais ela se aplica. Tal sistema pode então ser descrito ou
representado em termos de um conjunto completo de observáveis – um conjunto pelo
qual todos os observáveis possam ser expressos. E isso significa que não precisamos
mais distinguir entre o sistema como tal e os seus observáveis; o sistema agora pode
ser identificado, com efeito, a um conjunto completo de observáveis. O que, por
exemplo, é um campo elétrico, classicamente concebido? É uma distribuição contínua
de vetores elétricos: isto é, de observáveis! Além disso, essa redução do sistema a um
subconjunto dos seus observáveis é na verdade implicada pelo próprio formalismo da
física pré-quântica, que lida exclusivamente com as relações funcionais entre
quantidades observáveis. Assim, um sistema físico clássico não é nada mais do que
uma distribuição no espaço e no tempo de certas grandezas escalares ou tensoriais
observáveis. [3]
Notas
1 – Contudo, isso não significa necessariamente que um objeto físico específico não existisse
antes de sua especificação. Não estou sugerindo, por exemplo, que o planeta Júpiter se
materializou de alguma forma no momento em que foi pela primeira vez observado. O que
estou dizendo é que é preciso primeiro se especificar um objeto antes que se possa perguntar,
entre outras coisas, se o objeto existia, digamos, a mil anos. E no caso de Júpiter, é claro, a
resposta a essa questão acaba sendo afirmativa. Há outros tipos de objetos, como veremos
em breve, em que isso não acontece.
2 – Estritamente falando, não é apenas o número de átomos, digamos, que conta a esse
respeito, mas também o arranjo desses átomos. No caso dos chamados arranjos aperiódicos,
por exemplo, os efeitos quânticos podem entrar em jogo mesmo em conjuntos macroscópicos.
3 – É razoável supor que essa “passagem ao limite clássico” possa não ser legítima no caso
mesmo dos mais simples organismos vivos. Como alguns têm conjecturado, não é improvável
que a indeterminância quântica cumpra um papel vital nos fenômenos da biosfera.
Freqüentemente se diz que o mundo micro é indeterminístico [4], e
supostamente essa alegação se baseia no princípio da incerteza de Heisenberg, ou no
fenômeno da indeterminância, o que dá no mesmo. Fica a pergunta, contudo, sobre se
a incerteza – ou indeterminância – de Heisenberg implica em indeterminismo.
Mas enquanto o próprio formalismo da mecânica quântica alega que há esses dois
níves e clama, por assim dizer, pelo reconhecimento deste fato, a propensão
reducionista dominante tem impedido que se dê esse reconhecimento. Não é de se
admirar, portanto, que a interpretação ontológica da mecânica quântica não tenha ido
pra frente.
***
Para compreender isso mais claramente, precisamos olhar mais de perto o formalismo
da mecânica quântica. Notemos, antes de tudo, que todo observável admite um
conjunto de valores possíveis (seus chamados autovalores), e que em geral uma
medição de um determinado observável é capaz de produzir qualquer um desses
resultados admissíveis. Um sistema físico, entretanto, pode também estar n’um estado
no qual o valor do observável dado é determinado com certeza; e tais estados são
chamados de autoestados. Por exemplo, se uma medição do observável produz o
autovalor λ, então sabemos que o sistema está, naquele momento, em um autoestado
correspondente a λ [5].
Ora, lembremos que os vetores podem ser acrescentados, e também multiplicados por
um número (real ou complexo, conforme o caso); e isso significa que vetores podem
ser combinados para formar somas ponderadas. Desta forma, toda soma ponderada
de vetores de estado (contanto que não seja zero) define outro vetor de estado [7]. No
entanto, uma vez que os vetores de estado representam estados do sistema físico,
cada uma dessas somas ponderadas corresponde a um estado físico. Chega-se assim
ao chamado princípio da superposição, que afirma que as somas ponderadas de
vetores de estado correspondem a uma superposição real de estados. Em outras
palavras, acaba que as operações algébricas pelas quais formamos somas
ponderadas de vetores de estado (com coeficientes complexos, além disso) carregam
um significado físico. Existe, se preferir, uma “álgebra de estados”, que nos permite
representar os estados físicos de diversas formas como uma superposição de outros
estados [8].
Surge a pergunta sobre se, para um observável arbitrário, cada estado do sistema
pode ser representado como uma superposição de autoestados. Em outras palavras,
pode cada vetor de estado ser expresso como uma soma ponderada de autovetores
pertencentes ao observável dado? E enquanto esse não é o caso, em geral somos
capazes de obter uma representação análoga por meios matematicamente mais
sofisticados [9]. Contudo, para evitar complicações técnicas que não influem no
argumento, irei supor que todo observável realmente possui um conjunto “completo”
de autovetores: isto é, um conjunto pelo qual todo vetor de estado pode ser expresso
como uma soma ponderada.
Ora, o que tudo isso tem a ver com a discussão de Heisenberg sobre os sistemas
quânticos constituirem um tipo de potentia aristotélica? É isso que precisa ser
explicado. Considere a representação de um vetor de estado como uma soma
ponderada de autovetores pertencentes a um determinado observável. Cada autovetor
corresponde a um autoestado, e portanto a um possível resultado de um experimento
atual. Ele assim representa uma certa possibilidade empiricamente realizável, cuja
probabilidade é na verdade determinada pelo peso com o qual aquele autovetor ocorre
na soma dada [10]. O próprio estado de vetor, como uma soma ponderada de
autovetores, pode conseqüentemente ser visto como um conjunto ou síntese das
possibilidades em questão. E se supormos (como fizemos) que o vetor de estado pode
ser expresso como uma soma ponderada de autovetores para todo observável, ele
então constitui, pela mesma razão, uma síntese de todos os resultados possíveis para
cada medição concebível que possa ser realizada no sistema físico dado [11].
Notas
6 – É necessário dizer que um vetor de estado pode ser multiplicado por um número
complexo, e que a multiplicação por um fator não-zero não altera o estado físico
correspondente.
10 – Supondo que a soma dos valores quadráticos absolutos dos pesos seja igual a 1
(uma condição que pode sempre ser atingida multiplicando o vetor de estado por um
fator não-zero apropriado) e que não há múltiplos autovalores, a probabilidade de que
uma medição realizará a possibilidade correspondente a um autovalor particular é
dada pelo valor quadrático absoluto do peso correspondente.
Heisenberg, por outro lado, parece, com efeito, identificar SX e X. Além disso, de
acordo com a sua identificação, ele concebe o “ato físico de observação” realizado
sobre um microsistema como um tipo de tradução do estado micro em um estado
macro, como ocorre em um contador Geiger ou uma câmara de bolhas. Ora, de
acordo com minha visão, esse processo em si não nos retira do domínio potencial: por
exemplo, o estado macro de um contador Geiger, concebido como um sistema físico,
está situado ainda no plano físico. Portanto, a passagem da potência à atualidade é
realizada não simplesmente pelo processo em questão, mas pelo fato de que o próprio
contador Geiger é “mais” do que um sistema físico. Ele não é na verdade um processo
físico – um “ato físico de observação” – que atualiza o estado micro, mas a passagem
de SX para X (do contador Geiger potencial para o atual, se preferir).
Heisenberg, nesta parte, sustenta (como vimos) que a transição do “possível” para o
“atual” é realizada simplesmente pelo “ato físico de observação”. Ele é, contudo,
forçado a concluir que o ato físico não pode explicar o chamado colapso do vetor de
estado; para isso ele precisa passar a considerar a “mente do observador”: “A
mudança descontínua na função da probabilidade ocorre com o ato de registro; porque
é o ato descontínuo do nosso conhecimento no instante do registro que tem sua
imagem na mudança descontínua da função da probabilidade”[24].
Da minha parte, acho difícil entender como a onda de probabilidade possa ter um
conteúdo “completamente objetivo” se ela depende do resultado de um experimento
ter ou não ter sido mentalmente “registrado”. Se, digamos, a posição de um ponteiro
indica um certo estado objetivo de coisas após ter sido “lido”, por que não antes?
Parece que estamos de volta ao domínio mítico do gato de Schrödinger, onde os
vetores de estado colapsam ao se abrir uma tampa. Contudo, desde que não se
distinga categoricamente entre um sistema físico – seja ele macroscópico – e um
objeto corpóreo, não há na verdade nenhuma saída para esse dilema. Com efeito, é
um teorema da mecânica quântica o de que os sistemas físicos não fazem o vetor de
estado colapsar. Se supormos, desta forma, que há sistemas físicos e atos físicos – e
nada mais – então se segue que o colapso em questão deve ser causado por um ato
psíquico.
Notas
19 – Physics and Philosophy (New York: Harper & Row, 1962), p. 186.
20 – Ibid, p. 41.
21 – Ibid, p. 53.
22 – Ibid, p. 55.
23 – Ibid, p. 145.
24 – Ibid, p. 55.
25 – Ibid, p. 105
26 – Ibid, p. 84.
Devemos notar, além disso, que essa posição ontológica não é simplesmente uma
questão de especulação filosófica, mas que virtualmente se impõe sobre nós pelas
descobertas da física e, mais especialmente, pelos resultados da teoria quântica – é
claro, desde que abracemos uma postura realista. Como David Bohm ressaltou,
“Somos levados a uma nova noção de integridade contínua que nega a idéia clássica
da analisabilidade do mundo em partes separadas e independentes” [3]. Mas a
“integridade contínua” à qual Bohm alude claramente equivale à “natureza” de
Heisenberg: à realidade transcendente, podemos dizer, que se manifesta ou se revela
parcialmente na forma de objetos físicos. Estes, portanto, existem – não “por si
mesmos” – mas em virtude da realidade da qual eles constituem uma expressão
parcial. E enquanto essas manifestações são “separadas” e múltiplas, a realidade em
si permanece “contínua”.
À luz dessas considerações, parece agora que o chamado universo físico – o qual
tratamos nos capítulos 2 e 3 – não está isolado, mas aponta para além de si, por
assim dizer, para um nível mais profundo da realidade (que tentamos designar pelo
termo “natureza”). No decurso de nossas reflexões anteriores fomos levados a
distinguir entre os planos físico e corpóreo; e, agora aparentemente surge um terceiro
estrato ontológico – que na verdade parece ser mais fundamental, mais básico do que
os dois planos recém mencionados. Qual, então, é a natureza desse terceiro domínio?
***
Ora, todos sabem que a física como tal é necessariamente incapaz de reconhecer
adequadamente os seus próprios objetos como os efeitos ou manifestações de uma
realidade que a princípio se encontra além do seu alcance. Ou para colocar de outra
forma: nada no plano técnico impele o físico a postular tal realidade. E, contudo,
podemos dizer que as descobertas bona fide da física de fato apontam nessa direção.
Como expressou Henry Stapp, “Tudo que sabemos sobre a natureza está de acordo
com a idéia de que o processo fundamental da natureza se encontra fora do espaço-
tempo... mas gera eventos que podem ser localizados no espaço-tempo”[4].
Quais são, então, algumas das descobertas que apontam para além do contínuo
espaço-tempo? Talvez baste mencionar apenas uma – a mais incrível de todas, creio
eu: a saber, o teorema da interconectividade de Bell. Digamos que os fótons A e B
estejam viajando em direções opostas – à velocidade da luz! –, e, contudo, uma
observação realizada sobre o fóton A parece instantaneamente afetar o B. O que se
conclui disso? Ora, de acordo com a ontologia clássica das “partes separadas e
independentes”, somos evidentemente obrigados a postular algum tipo de transmissão
superluminal da influência de A a B. Porém, esse postulado problemático se torna
supérfluo no momento em que reconhecermos os fótons A e B como manifestações de
uma única realidade subjacente; pois de fato onde há unidade ou “integridade
contínua” não há necessidade de comunicar, de transmitir influência através do
espaço e do tempo. Assim, parece que o verdadeiro ponto do teorema de Bell, ou dos
fenômenos EPR em geral, é o de que as partículas gêmeas envolvidas nesses
fenômenos não são na verdade “partes separadas e independentes”.
Isso se resume assim: a natureza, ainda que não seja espaço-temporal em si mesma,
sob observação se apresenta como espaço-temporal. Porém, isso não deve ser
entendido n’um sentido kantiano, e sim realista. O ponto não é que as condições
espaço-temporais sejam superpostas à realidade noumênica pelo observador humano,
mas que as coisas e as relações que observamos – “matéria, espaço e tempo”, se
preferir – manifestam ou atualizam uma certa potência pré-existente, um potencial que
pertence à natureza como tal. Novamente, é o físico que “faz a pergunta”, mas a
própria natureza é que dá a resposta. E esta resposta – deixemos bem claro – é
indicativa não só da nossa constituição humana ou da disposição de nossos
instrumentos, mas antes de tudo da própria realidade. No fim das contas, o que se
apresenta para nós através das categorias do espaço e do tempo não é nada além da
realidade, que por si mesma não está sujeita a essas categorias. E deixe-me reiterar,
para a máxima clareza, que as condições do espaço e do tempo não são
simplesmente impostas de fora, de maneira kantiana, mas estão potencialmente
contidas na realidade como tal – assim como pontos e linhas estão potencialmente
contidos no plano euclideano.
O que é então o objeto físico? Nada mais nada menos do que uma manifestação
particular da realidade total, é o que somos obrigados a admitir. Qua objeto físico, é
claro, ele existe no espaço e no tempo, e exibe uma certa identidade fenomênica; e
contudo, em si mesmo, ele transcende esses limites e essa identidade aparente. A
noção de multiplicidade particular se aplica assim “próxima da superfície” – em
resposta às diferentes “perguntas” que fazemos, ou que somos capazes de fazer –
enquanto a “integridade contínua” reina nas insondáveis profundezas.
Notas
Mas mesmo que não haja nada na natureza – “coisa” alguma, em outras palavras –
que possamos conhecer, permanece o fato de que podemos e realmente conhecemos
a natureza através do universo espaço-temporal. E, no fim das contas, é disso que
trata a física: o físico conheceria “a estrutura da natureza”; só que nós somos
obrigados a ver aquela “estrutura” indiretamente, isto é, através das suas
manifestações físicas.
Mas então devemos notar que mesmo as estruturas familiares de um tipo geométrico
igualmente só podem ser conhecidas por meios indiretos. Como, por exemplo,
descrevemos ou axiomatizamos a estrutura do plano euclideano? Como todo
matemático sabe, isso pode ser feito de várias formas: à la Euclides, por exemplo,
pelas propriedades de certas figuras construídas de pontos, linhas e círculos; ou à la
Felix Klein, pelas invariantes de um grupo de transformação contínua. A própria
circunstância, contudo, de que essas várias caracterizações sejam incrivelmente
dissimilares já atesta o fato de que estamos abordando a estrutura do plano
euclideano através de um construto auxiliar, uma estrutura secundária de algum tipo,
que supostamente é mais concreta e mais acessível. Podemos dizer que a estrutura
primária é revelada através da secundária. Na abordagem clássica, por exemplo,
olhamos para as figuras construídas – mas não diretamente para o plano euclideano.
Pois no plano enquanto tal de fato não há nada para ser visto.
Pode-se levantar a objeção de que as leis da física envolvem – não a natureza como
tal – mas as “nossas relações com a natureza”, como disse Heisenberg. O ponto,
contudo, é que ela lida com ambos – assim como o teorema de Pitágoras, por
exemplo, lida não só com uma certa classe de figuras construídas, mas também com a
estrutura do plano euclideano. Por que um fato deveria excluir o outro?
Reconhecidamente, Eddington alegou que as leis fundamentais da física – incluindo
até as constantes adimensionais da natureza – podem ser deduzidas a priori do
modus operandi pelo qual as leis em questão podem ser postas à prova. A partir do
exame da rede de pesca, diz Eddignton, podemos eduzir certas conclusões a respeito
da natureza do peixe a ser pego com essa rede; por exemplo, o peixe deve ser maior
do que um certo comprimento, e assim por diante. Mas por mais fascinante que seja
essa filosofia da física, acontece que ninguém até agora teve sucesso nessa
empreitada kantiana, e poucos físicos hoje, se é que existem, seguiriam Eddington em
suas afirmações radicalmente subjetivistas. No final de tudo, parece que as leis da
física nos falam não só de “nossas relações com a natureza”, mas também, em última
análise, da natureza como tal.
***
A morphe, por sua vez, também não possui existência concreta, como notamos antes;
ela existe em conjunção com a hyle, por assim dizer – assim como a forma de Apolo
existe em conjunção com o seu suporte de mármore. A morphe, porém, não é
simplesmente “forma, formato ou figura” no sentido mais ou menos visual destes
termos – não devemos levar a metáfora escultural muito longe. O ponto é que a
morphe de uma entidade existente é precisamente o seu aspecto cognoscível. Em
resumo, uma coisa é inteligível em virtude da sua morphe – mas é existente em razão
de sua hyle. Ademais, não digo “sua hyle”, porque a hyle não pertence à coisa – não
mais do que se poderia dizer que o oceano pertence a uma onda particular. Por outro
lado, a morphe na verdade é própria à coisa: pois a morphe de uma entidade é
verdadeiramente a sua essência (<esse, “ser”) [5]. Ela é o que conhecemos e o que
podemos conhecer; e assim é o “o que” ou a quididade da coisa. Devemos ter em
mente, contudo, que a entidade existente não coincide simplesmente com a sua
quididade: ela também tem um aspecto hilético, que permanece ininteligível – um fato
da maior significância, é claro.
Devemos notar que, com a retomada da filosofia aristotélica durante a era escolástica,
o termo grego “morphe” veio a ser naturalmente substituído pela “forma” do latim, e
hyle tornou-se materia. E, além disso, devido a uma certa evolução, a “materia”
escolástica eventualmente se transformou na “matéria” da física newtoniana – cujo
exato significado, contudo, está longe de ser claro. Ontologicamente falando, esse
resquício da era newtoniana constitui de qualquer modo um híbrido confuso da materia
e da forma no sentido autêntico. E, diferente da “massa” – com a qual é às vezes
confundida –, ela não possui nenhum papel rigoroso na economia do pensamento
científico.
Há alguma confusão neste ponto a respeito da outrora ilustre filosofia conhecida como
materialismo, que pretende explicar todas as coisas apenas pela “matéria”
newtoniana. Ora, em primeiro lugar, é evidente, à luz do que foi dito acima, que a
existência corpórea implica necessariamente dois princípios: “só com dois para existir”,
se preferir. Se, apesar disso, buscar-se reduzir as coisas corpóreas a um único
princípio, a “matéria” newtoniana acaba por ser uma escolha especialmente pobre.
Pois, à parte da imprecisão desta noção e da sua inutilidade como um plano científico
rigoroso, o conceito resiste ainda predominante do lado da materia. Ela representa a
existência desnudada, por assim dizer, da maior parte de seu conteúdo formal, e
constitui por isso um tipo de quase-matéria ou quase-substância. O materialista,
portanto, olha em direção à materia em sua busca por um princípio único pelo qual
tudo possa ser compreendido – uma escolha infeliz, visto que a materia não só é cem
por cento ininteligível por si mesma, mas empresta a todas as coisas o seu aspecto de
ininteligibilidade, se pudermos colocar assim. Além disso, a mudança de uma
interpretação materialista da física para uma estruturalista, que veio na esteira da
relatividade de Einstein, sem dúvida representa uma virada na direção certa: da
materia ao aspecto inteligível da realidade.
O fato, contudo, de que as coisas sejam inteligíveis em virtude do seu aspecto formal
não implica que elas possam ser adequadamente concebidas pura e simplesmente
como formas, ou como estrutura no sentido físico. Assim, se o materialismo acaba
sendo insustentável, também o é enfim o estruturalismo; pois, eu sustento, com efeito,
que, no fim das contas, não pode haver ontologia viável que não invoque de uma
forma ou de outra o paradigma hilemórfico. A própria idéia de existência corpórea,
pode-se dizer, exige dois princípios complementares, que não podem senão responder
às concepções gêmeas de materia e forma. E isso explica porque noções
correspondentes a essa são encontradas nas grandes ontologias, desde a China e
Índia até a Grécia e a antiga Palestina [6].
Notas
5. A distinção tomista entre essência e forma não tem nenhuma influência particular
em nossas presentes considerações e pode, por isso, ser suprimida.
6. Isto sem dúvida é muito mais evidente no caso da China, da Índia e da Grécia do
que no caso da “antiga Palestina”. E, contudo, não se pode negar que a concepção
hilemórfica é igualmente bíblica. Mestre Eckhart, por exemplo, nos avisou deste fato:
“É preciso antes de tudo saber que matéria e forma não são dois tipos de entidades
existentes, mas dois princípios dos seres criados. É este o sentido das palavras: ‘No
princípio Deus criou o Céu e a Terra’ – a saber, forma e matéria, os dois princípios das
coisas”. Veja o Liber parabolarum Genesis, 1.28. O leitor interessado pode encontrar
esse texto na magnífica edição de Kohlhammer do Mestre Eckhart, que oferece a
tradução em latim em conjunto com a alemã. Veja Meister Eckhart: Die lateinischen
Werke, Vol. I (Stuttgart: Kohlhammer, 1937-65).
Ora, com certeza a física lida com os aspectos quantitativos da manifestação cósmica;
e isso obviamente é legítimo e informativo até certo ponto. Mas não podemos esperar
demais. Para toda sua afamada proeza, há limites no que a física é capaz de
compreender ou explicar, e acontece dessas limitações serem muito mais rigorosas do
que em geral tendemos a supor. Como observou o metafísico francês René Guénon:
Ora, admite-se que a frase “não explica nada” talvez seja excessiva; mas todavia ela
serve como um contrapeso a alegações não menos exorbitantes feitas por aqueles
que “tentam extrair a explicação deste mundo” dos dados da física.
Estritamente falando, a única coisa que podemos entender sobre um objeto corpóreo
nos termos da física são os seus atributos quantitativos; e além disso só podemos
fazê-lo em virtude do fato de que os atributos em questão são herdados, por assim
dizer, do objeto físico associado. Além deste ponto a física não tem mais nada a dizer.
Ela tem “olhos” apenas para o físico: SX é tudo o que ela percebe, tudo que sempre
aparece em seus gráficos. E essa é sem dúvida a razão porque os físicos têm
conseguido convencer a si mesmos (e o resto do mundo instruído!) de que o objeto
corpóreo como tal não existe; ou para colocar de outra forma: que X “não é nada
senão” SX. Esta é a razão porque se pensa que as entidades corpóreas são “feitas de”
átomos ou partículas subatômicas, e porque se defende que as qualidades são
“meramente subjetivas”.
Finalmente, é preciso observar que essa suposta redução do corpóreo ao físico tem
como efeito tornar ontologicamente incompreensível o próprio físico. podemos ainda, é
claro, fazer cálculos e predições quantitativas, mas isso é tudo. Podemos de fato
responder à pergunta “Quanto?” com incrível precisão; mas qualquer tentativa de
responder à dúvida “O quê?” leva necessariamente à contradição ou absurdidade.
Esta Weltanschauung (que na verdade não é uma Weltanschauung) não admite uma
ontologia. E não é essa a conclusão a ser tirada do interminável debate sobre a
“realidade quântica”? Ademais, é impossível sequer dar uma explicação não falsificada
da metodologia científica dentro do quadro da posição reducionista, pois na ausência
de qualidades não pode haver nenhuma percepção, e por isso também nenhuma
medição. Estritamente falando, não conhecemos nem o corpóreo nem o físico, nem
temos qualquer concepção clara do que é que a física trata. É de se admirar, então,
que os físicos devam ter (nas palavras do físico Nick Herbert) “perdido o controle da
realidade?” [14].
Notas
14. Os leitores de Eric Voegelin podem se recordar da sua terrível tese de que, devido
à dominação das “realidades segundas” nos tempos modernos, “desapareceu o
fundamento comum da existência na realidade”, e que, como resultado, “desmoronou
o universo do discurso racional”. (Veja “On Debate and Existence”, reimpresso no A
Public Philosophy Reader, Arlington House, 1978). Parece haver muito de verdade
neste argumento. Porém, Voegelin está pensando nas “realidades segundas” de um
tipo cultural e ideológico; aparentemente, não lhe ocorreu que a “realidade segunda”
mais importante – a que parece ser a base de todas as outras e que confundiu
praticamente a todos – não é outra senão o universo físico como geralmente
concebido. No momento em que se esquece que este chamado universo constitui
apenas um domínio sub-existencial – uma mera potência em relação ao corpóreo –,
cria-se um monstro. Pois de fato o domínio físico, assim “hipostasiado”, a partir daí se
torna o principal usurpador da realidade, a grande ilusão da qual brotam uma multidão
de erros maléficos. “Perder o controle da realidade” não é coisa pouca ou inofensiva!