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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE

PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 22
Maio/Ago 2007

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe Quadrimestral


História da Educação Pelotas n. 22 p. 1-282 Maio/Ago 2007
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
ASPHE
Presidente: Maria Helena Câmara Bastos
Vice-Presidente: Maria Stephanou
Secretário: Claudemir de Quadros

Conselho Editorial Nacional Conselho Editorial Internacional


Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Alain Choppin
Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) (INRP, França)
Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dr. Antonio Castillo Gómez
Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) (Univer. de Alcalá – Espanha)
Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luís Miguel Carvalho
Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) (Univer. Técnica de Lisboa)
Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Rogério Fernandes
Dr. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) (Univer. de Lisboa)
Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS)
Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Comissão Executiva Editoração eletrônica e capa


Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Flávia Guidotti
Profa. Dra. Eliane Teresinha Peres flaviaguidotti@hotmail.com

Consultores Ad-hoc Imagem da capa


Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Deux mères de famille
Dra. Giana Lange do Amaral (UFPel) Elizabeth Gardner
Dra. Berenice Corsetti (UNISINOS) Le Salon de 1888
Dr. Claudemir de Quadros (UNIFRA) Paris

História da Educação
Número avulso: R$ 15,00
Single Number: U$ 10,00 (postage included).
História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense
de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 22
(Maio/Ago 2007) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral.
ISSN 1414-3518
v. 1 n. 1 Abril, 1997

1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel

CDD: 370-5

Indexação:
CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades)
Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC
EDUBASE (FE/UNICAMP)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................5

CRIAÇÃO E REINVENÇÃO DOS LICEUS: 1802-1902


LYCÉE(S) CREATION AND RECREATION: 1802 – 1902
Philippe Savoie; Tradução de Eduardo Arriada e Maria Helena Camara
Bastos.............................................................................................................9

UMA NOVA FORMA DE ENSINO DE DESENHO NA FRANÇA


NO INÍCIO DO SÉCULO XIX: O DESENHO LINEAR
THE LINEAR DRAWING AS A NEW DRAWING TEACHING
METHOD IN FRANCE IN THE BEGINNING OF NINETEENTH
CENTURY
Renaud d’Enfert; Tradução de Maria Helena Camara Bastos..........................31

A CO-EDUCAÇÃO DOS SEXOS: APONTAMENTOS PARA


UMA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA
THE CO-EDUCATION OF THE SEXES: NOTES FOR AN
HISTORICAL INTERPRETATION
Jane Soares de Almeida .................................................................................61

ESCOLAS ANARCO-SINDICALISTAS NO BRASIL: ALGUNS


PRINCÍPIOS, MÉTODOS E ORGANIZAÇÃO CURRICULAR
ANARCHO-SYNDICALIST SCHOOLS IN BRAZIL: SOME
PRINCIPLES, METHODS AND CURRICULAR ORGANIZATION
Dagoberto Buim Arena .................................................................................87

A PUC-CAMPINAS: AS MUDANÇAS INSTITUCIONAIS


NARRADAS POR SEUS DOCENTES MAIS VELHOS
PUC – UNIVERSITY OF CAMPINAS (BRAZIL): THE
INSTITUTIONAL CHANGES NARRATED BY ITS OLDEST
TEACHERS
Rogério Canciam; Vera Lúcia de Carvalho Machado (co-autora).................. 109
JOHN DEWEY NA ARGUMENTAÇÃO DE AUTORES
CATÓLICOS
THE WAY JOHN DEWEY’S IDEAS ARE USED BY CATHOLIC
AUTHORS
Viviane da Costa.........................................................................................121

EDUCAÇÃO E FILANTROPIA NA CIDADE DE SÃO PAULO,


NO FINAL DO SÉCULO XIX E PRIMEIRAS DÉCADAS DO
SÉCULO XX: UM ESTUDO DA OBRA DO CONDE JOSÉ
VICENTE DE AZEVEDO NO BAIRRO DO IPIRANGA
EDUCATION AND PHILANTHROPY IN THE CITY OF SÃO
PAULO, IN THE END OF THE NINETEENTH CENTURY AND
FIRST DECADES OF THE TWENTIETH CENTURY: A STUDY OF
THE WORKMANSHIP OF THE COUNT JOSÉ VICENTE DE
AZEVEDO IN THE SUBURB OF IPIRANGA
Lincoln Etchebèhére Júnior; Leonel Mazzali; Rosemari Fagá Viegas ............155

ENTRE O CURA E O MÉDICO: HIGIENE, DOCÊNCIA E


ESCOLARIZAÇÃO NO BRASIL IMPERIAL
BETWEEN THE CURI AND THE PHYSICIAN: HYGIENE,
TEACHING AND SCHOLARSHIP IN IMPERIAL BRASIL
José Gonçalves Gondra................................................................................183

RESENHA
AGÊNCIAS MULTILATERAIS E A EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL BRASILEIRA
Manoel José Porto Júnior; Giana Lange do Amaral......................................207

DOCUMENTO
REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.1, janeiro de 1884, p.1-30)...........217
REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.3, março de 1884, p.57 a p. 84) ...235

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES.........................................281


APRESENTAÇÃO

A revista História da Educação cumprindo seu


compromisso editorial, em seu número 22, apresenta a seus
leitores uma série de artigos que, sem dúvida, reafirmam sua
missão que é a de colaborar para o desenvolvimento da área
da história da educação.
Abrimos nossa revista com dois artigos de
pesquisadores franceses Philippe Savoie e Renaud d’Enfert
que com seus textos “Criação e reinvenção dos Liceus (1802-
1902)” e “Uma nova forma de ensino de desenho na França
no início do Século XIX: o desenho linear” nos trazem preciosa
contribuição à investigação da história da educação do século
XIX. È sabido de todos os estudiosos da área de educação a
contribuição da França para a constituição do sistema de
ensino brasileiro, portanto estes trabalhos trazem novas luzes
no sentido de melhor conhecermos a gênese do estrutura
educacional do século XIX.
Com o texto “A co-educação dos sexos: apontamentos
para uma interpretação histórica” a renomada pesquisadora
Jane Soares de Almeida nos brinda com um trabalho de
excepcional qualidade e que contribui para uma melhor
compreensão da questão da coeducação.
O professor Dagoberto Buim Arena retoma uma
questão relacionada aos movimentos anarquistas e que tem
ocupado a atenção de vários estudiosos na área da História
da Educação. “Escolas anarco-sindicalistas no Brasil: alguns
princípios, métodos e organização curricular” é mais uma
contribuição para a a construção de um bom entendimento
da atuação deste movimento ideológico na área da educação.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 5-7, Maio/Ago 2007


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
No trabalho “Puc-Campinas: as mudanças
institucionais narradas por seus docentes mais velhos” os
professores Rogério Canciam; Vera Lúcia de Carvalho
Machado retomam com propriedade e competência uma
questão teórico-metodológica muito investigada na área de
História da Educação que é a memória como fonte de
investigação.
A professora Viviane da Costa no texto “John
Dewey na argumentação de autores católicos” trabalha um
autor de significativa importância no Brasil, mormente no
que diz respeito ao movimento da Escola Nova, que é
Dewey. Seu trabalho investiga a influência deste teórico
norte americano na constituição teórico-ideológica de
autores católicos.
“Educação e filantropia na cidade de São Paulo, no
final do Século XIX e primeiras décadas do Século XX: um
estudo da obra do conde José Vicente de Azevedo no bairro do
Ipiranga” é outro texto que explora em termos metodológicos
a técnica de história de vida. Lincoln Etchebèhére Júnior;
Leonel Mazzali; Rosemari Fagá Viegas exploram aspectos
importantes da constituição do sistema educacional em São
Paulo principalmente nas primeiras décadas do século XX.
O renomado pesquisador da área da educação José
Gonçalves Gondra analisa em seu trabalho “Entre o cura e o
médico: Higiene, docência e escolarização no Brasil Imperial”
aspectos fundamentais para a compreensão da constituição
do movimento higienista na área da educação no Brasil
Imperial.
Na tradicional secção “Documentos”
complementamos o documento iniciado no número anterior
“A revista da Liga de Ensino” que, temos a convicção, muito

6
contribuirá como fonte para futuras investigações na área da
história da educação brasileira.
Esperamos que os leitores façam bom proveito deste
conteúdo configurando à revista História da Educação um
papel importante em suas vidas de investigadores na área da
educação e particularmente na de história da educação.

A comissão executiva

7
.
CRIAÇÃO E REINVENÇÃO DOS LICEUS:
1802-19021
Philippe Savoie
Tradução: Eduardo Arriada e
Maria Helena Camara Bastos

Resumo
Este artigo analisa a trajetória percorrida desde o liceu criado por
Bonaparte em 1802 até o liceu moderno, que resulta da grande
reforma de 1902. A questão fundamenta-se, primeiramente, no que
aconteceu ao papel atribuído aos liceus na construção de uma
instrução pública dominada pelo Estado, e de um ensino secundário
em que eles devem coexistir com estabelecimentos municipais e
particulares. A segunda parte da análise fundamenta-se na tensão
entre uma lógica do estabelecimento, arraigada na tradição
humanista, e uma lógica da cátedra professoral, perceptível na
mobilidade dos professores e na especialização dos ensinos. O
decréscimo do número de alunos internos dos liceus precipita a crise
do ensino secundário e conduz à reforma de 1902, que cria o liceu
moderno e marca o fim do modelo humanista.
Palavras-chave: França, século XIX, liceus, ensino secundário

LYCÉE(S) CREATION AND RECREATION: 1802 – 1902


Abstract
This article analyzes the lycée trajectory since the one created by
Bonaparte in 1802 to the modern lycée resulted from the 1902 big
Reform. Firstly, the question is about what occurred to the lycée
ascribed role, concerning to the construction of a public instruction
dominated by the state. Also, the text mentions secondary
instruction and its coexistence with private and municipal
institutions; secondly, the analysis is based on the tension between a
logic deep-rooted institution based on a humanist tradition, and a
logic of the professoral cathedra, perceptible in teachers’mobility and
in teaching specialization. The internal lycée students decreased in
number. This fact caused to happen the secondary teaching crisis and

1
Título original «Création et réinvention des lycées (1802-1902)», in Pierre
Caspard, Jean-Noël Luc, Philippe Savoie (dir.), Lycées, lycéens, lycéennes. Deux
siècles d’histoire, Paris, INRP, 2005. Publicação autorizada pelo autor.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 9-30, Maio/Ago 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
leaded to the 1902 Reform that created the modern lycée and
marked the humanist model end.
Keywords: France; XIX century; lyceum; secondary school

CREACIÓN Y REINVENCIÓN DE LOS LICEOS: 1802-


1902
Resumen
Este artículo analiza el camino recorrido desde el liceo creado por
Bonaparte en 1802 hasta el liceo moderno, que resulta de la grande
reforma de 1902. La cuestión está fundamentada, primeramente, en
lo que ha pasado al rol atribuido a los liceos en la construcción de
una instrucción pública dominada por el Estado, y de una enseñanza
secundaria en que ellos deben coexistir con establecimientos
municipales y particulares. La segunda parte del análisis se
fundamenta en la tensión entre una lógica del establecimiento,
arraigada en la tradición humanista, y una lógica de la cátedra
profesoral, perceptible en la movilidad de los profesores y en la
especialización de la enseñanza. El decrecido del número de alumnos
internos de los liceos precipita la crisis de la enseñanza secundaria y
conduje a la reforma de 1902, que crea el liceo moderno y marca el
fin del modelo humanista.
Palabras-clave: Francia, siglo XIX, liceos, enseñanza secundaria

10
O nascimento e os primeiros anos dos liceus coincidem
com o apogeu e mais tarde com o desmoronamento do sistema
político napoleônico. Esse impactante contexto incita a privilegiar,
na análise da sua criação e na da instauração do monopólio
universitário, a dimensão política e os aspectos conjunturais e
táticos2. Contudo, longe de se reduzir a essas evidentes
preocupações externas, a criação dos liceus e da Universidade
inscreve-se em um projeto conjunto que permanece
fundamentalmente o mesmo3. Gostaríamos de tentar recolocar
essa criação dentro da história de longa duração das instituições
escolares, esboçando a trajetória que conduz do liceu arcaico da
época consular ao liceu moderno e examinando as conseqüências
do projeto e do dispositivo de 1802, bem como as contradições e
as tensões que o caracterizavam. Fazemos uma análise, de forma
evidentemente muito breve, do período de um século, já que,
acertadamente, o começo do liceu moderno é considerado como
tendo ocorrido em 1902, ano do centenário dos liceus, mas
também de uma profunda reforma do ensino secundário que
marca, de muitas formas, a inclinação decisiva em direção ao novo
modelo.
A lei do 11 floreal do ano X (1º de maio de 1802)4, cujo
objeto é o de organizar a instrução pública na França, cria o liceu
e lhe confere um lugar bastante central no embrião do sistema
educacional. Com o liceu se pretende, devido à sua fama e à sua
influência, transformar toda a oferta educacional, ao menos no

2
Ver o trabalho sempre útil de Alphonse Aulard, Napoléon I et le monopole
universitaire. Origines et fonctionnement de l’Université impèriale, Paris, 1911,
385 p.
3
Philippe Savoie, « Construire un système d’instruction publique. De la création
des lycées au monopole renforcé (1802-1814) », in Jean-François Boudon (dir.),
Napoléon et les lycées. Enseignement et société en Europe au début du XIX
siècle, Paris, Nouveau Monde Éditions, 2004, pp. 39-55.
4
Recueil des lois et règlements concernant l’instruction publique (RLR), t. 2, pp.
43-54.

11
que se refere à formação das elites. Quanto à sua organização, o
liceu distingue-se radicalmente das escolas centrais que substitui,
aproximando-se do modelo dos colégios de humanidades dos
séculos anteriores no sentido de que constitui um verdadeiro
estabelecimento escolar e não um simples somatório de cátedras
professorais5. A vocação que tem o liceu para agir sobre o conjunto
da instituição escolar, pública e privada, a construção de um
estabelecimento estruturado conforme um modelo já
experimentado: essas duas características centrais fornecerão os
dois eixos principais desta reflexão. Examinamos, portanto, após
termos apontado os aspectos principais do liceu de 1802 e
definido seu lugar no sistema da instrução pública, como esse
lugar evoluiu com as profundas modificações institucionais,
pedagógicas e também financeiras que a instrução pública
atravessou. Vemos, depois, como a lógica do estabelecimento pode
coabitar com uma outra lógica que surgiu com o desaparecimento
das escolas centrais: a da cátedra de ensino como centro da
organização escolar.

A criação dos liceus: inspirar-se no passado para inovar

A lei da instrução pública substitui através dos liceus as


escolas centrais criadas, em 1795, pela Convenção termidoriana.
Sob vários pontos de vista, os novos estabelecimentos opõem-se as
escolas centrais. A criação dos liceus marca, primeiramente, o
retorno a um tipo de organização escolar: a dos colégios do Antigo
Regime. Tal organização escolar caracteriza-se pela divisão dos
alunos em classes sucessivas correspondendo cada uma a um nível
de estudos e, ao percorrê-las, a um curso traçado anteriormente

5
Marie-Madeleine Compère, Philippe Savoie, « L’établissement secondaire et
l’histoire de l’éducation », in : M-M. Compère, Ph. Savoie (dir.), L’établissement
scolaire. Des collèges d’humanités à l’enseignement secondaire, XVI-XX siècles,
numéro spécial d’Histoire de l’éducation, n° 90, mai 2001, pp. 5-20.

12
dentro de um campo determinado de estudos. Essa forma de
organização, que parece hoje em dia perfeitamente natural, teve
sua origem histórica nos Países Baixos, no fim da Idade Média,
nas escolas dos Irmãos da Vida Comum. Ela se impõe à toda a
Europa com a difusão, no que se refere aos países católicos, do
modelo dos colégios de ensino constituídos pela Universidade de
Paris, no início do século XVI6. Foi esse o sistema que permitiu a
aplicação da pedagogia simultânea segundo a qual o mestre pode
fazer trabalhar conjuntamente todos os alunos. As escolas centrais
tinham abandonado esse modelo por um funcionamento muito
mais aberto, oferecendo uma grande variedade de cursos possíveis.
A criação dos liceus marca também o retorno do
internato, enquanto que as escolas centrais eram externatos7. O
retorno ao internato, inspirado ainda nos modelos dos antigos
colégios, permite que coexistam as duas partes indissociáveis da
pedagogia humanista: de um lado, a aula, ou seja, duas seções
quotidianas de duas horas aproximadamente cada, onde o
professor ministra seu ensinamento e distribui abundante trabalho
pessoal aos alunos; do outro lado, o estudo, onde os alunos
efetuam seu trabalho pessoal sob o olhar dos mestres de estudos
(denominados repetidores, a partir de 1853) que os vigiam,
verificam seus deveres e devem ajudá-los na assimilação das lições.
Outros tipos de atividades e de cursos extras (desenho, exercícios,
cursos de línguas vivas ou de história, artes recreativas) têm lugar
no tempo intermediário entre as aulas, sempre sob a vigilância dos

6
Marie-Madeleine Compère, Du collège au lycée (1500-1850), Paris,
Gallimard-Julliard, 1985, pp. 19-62.
7
Dois dos quatro primeiros liceus parisienses, os da rua Antoine (Charlemagne) e
da Chaussée d’Antin (Bonaparte sob o Império, Condorcet, hoje) são externatos,
situação provisória tornada definitiva, mas a associação de pensões particulares
lhes substitui o pensionato. O acórdão de 22 messidor ano 12 (1° de julho de
1804) reúne cinqüenta alunos nacionais em cada um, «repartidos entre as escolas
secundárias circundantes, com a condição de que todos os alunos das ditas escolas
irão à aula no liceu» (Archives nationales [AN], F17 9195).

13
mestres de estudo8. Os liceus recebem também os externos, mas
muitos deles são de fato alunos de uma pensão privada na qual se
beneficiam de serviços análogos, enquanto que outros moram na
casa de um professor.
A criação dos liceus marca ainda – mas de maneira
equilibrada em 18029 – o retorno às humanidades clássicas e ao
reino do latim, que as escolas centrais haviam substituído em prol
de um ensino de inspiração enciclopedista, dando mais interesse às
ciências, ao desenho e às matérias modernas em geral. Entretanto,
nas escolas centrais, assim como nos primeiros liceus, a realidade
afasta-se às vezes bastante das prescrições regulamentares e a
continuidade parcial do corpo de professores matiza as rupturas10.
Enfim, essa criação inscreve-se em um projeto global de
fundação de uma instrução pública controlada pelo Estado. Tal

8
Marie-Madeleine Compère, Philippe Savoie, «Temps scolaire et condition des
enseignants en France depuis deux siècles», in: M-M. Compère (dir.), Histoire
du temps scolaire en Europe, Paris, INRP – Economica, 1997, pp. 267-312;
Antoine Prost, Histoire de l’enseignement en France, 1800-1967, Paris,
Armand Colin, 1968, pp. 50-58; André Chervel, «Les travaux écrits des élèves
dans l’enseignement secondaire du XIX siècle», in Pierre Caspard (dir.). Travaux
d’élèves, XIX-XX siècles. Pour une histoires des performances scolaires et de leur
évaluation, numéro spécial d’histoire de l’éducation, nº 54, mai 1992, pp. 13-
38. (conforme A. Chervel, La culture scolaire. Une approche historique, Paris,
Belin, l998, pp. 57-75).
9
Desde o segundo ano de estudos, os professores de matemática dividem o
horário de aula com os de latim e de letras (acórdão de 19 frimaire ano XI – 10
de dezembro 1802) Philippe Savoie, Les enseignants du secondaire. Le corps, les
carrières. Textes officiels. Tome 1 : 1802-1914, Paris, INRP – Economica,
2000, pp. 96-99). A partir de 1809, o ensino das ciências é dirigido às altas
classes, até se encontrar reduzido aos dois anos de filosofia em 1821 (ibid, pp.
184-185). A seguir encontra um lugar menos marginal.
10
Marie-Madeleine Compère, «Les professeurs de la République. Rupture et
continuité dans le personnel enseignant des écoles centrales», Annales historiques
de la Révolution française, janvier-mars 1981, n° 243, pp. 39-60; Paul
Courteauld, Les origines du lycée de Bordeau. Le lycée de l’an XI, Bordeaux,
1905, pp. 95-112; A. Aulard, op.cit, pp. 111-114.

14
projeto, longe de ser dirigista e monopolista, como se tornará mais
adiante, é de inspiração semi-liberal. De fato, aos olhos dos
criadores dos liceus, e especialmente para Fourcroy, que apresenta
seu projeto diante do Corpo Legislativo11, o dispositivo das escolas
centrais cometeu o erro de dispersar os recursos muito limitados
de que dispunha o Estado – recursos humanos e recursos
financeiros –, além de multiplicar as escolas quando teria sido
preciso concentrar as forças. O projeto de 1802 não pretende
ganhar terreno nem oferecer para todos uma instrução garantida
pelo Estado. Pretende, sim, fazer escolas suficientemente bem
cotadas por seus professores, seus alunos e a força de seu ensino,
para que possam impor seu modelo a todas aquelas que propõem
estudos da mesma ordem. Pretende, aliás, criar um laço entre as
outras escolas e os liceus, recrutando nelas os futuros alunos do
governo, isto é, os bolsistas nacionais que fornecem a cada liceu
sua clientela fundamental.
Em 1802, contava-se com uma centena de escolas
centrais. A lógica que tinha presidido a construção desse mapa
escolar novo era a da repartição homogênea sobre todo o território
nacional. Após se ter dado a essa repartição uma base demográfica,
voltou-se a um princípio mais simples e não limitador: uma escola
central por departamento, geralmente na capital da comarca, mas
nem sempre12. A lei do 11 floreal do ano X prevê limitar os
estabelecimentos do Estado a um número ainda mais restrito. A
alçada dos tribunais de recursos faz doravante referência ao lugar
dos departamentos. Em 1811, nos limites políticos da França de

11
Discours de Fourcroy devant le Corps législatif, du 30 germinal an X (20 abril
1802), RLR, t. 2, pp. 55-84.
12
Décrets des 7 ventôse et 18 germinal an III (25 de fevereiro e 7 de abril de
1795), et loi du 3 brumaire an IV (25 de outubro de 1795), RLR, t. 1, Paris,
1814, pp. 37-49. Cf. Dominique Julia (dir.), L’enseignement, 1760-1815, t. 2
de Serge Bonin, Claude Langlois (dir.), Atlas de la Révolution française, Paris,
EHESS, 1987, p. 40. Paris faz exceção, com suas três escolas centrais (eram
previstas cinco, inicialmente).

15
1789, cada liceu substitui aproximadamente três velhas escolas
centrais. O princípio de igualdade territorial não desaparece,
contudo é encontrado no modo de recrutamento dos alunos do
governo, cada departamento deve fornecer um contingente
proporcional a sua população. Tais alunos são recrutados
essencialmente nos estabelecimentos que a lei qualifica como
escolas secundárias. São considerados como tais os
estabelecimentos com status comunal ou privado onde se ensinam
“as línguas latina e francesa, os primeiros princípios da geografia,
da história e da matemática”. A definição é suficientemente frouxa
para que o inspetor geral e o comissário do Instituto encarregados
da criação do liceu de Moulins emitam reservas sobre a
classificação efetuada pelos serviços da prefeitura13. Tais escolas
são antigos colégios, pensões que sobreviveram à Revolução e
estabelecimentos que floresceram desde então, aproveitando-se da
desconfiança de várias famílias em relação às escolas centrais.
Habituados a uma arquitetura institucional mais
simples, temos hoje uma certa dificuldade para conceber a
articulação entre as escolas secundárias e os liceus. Os liceus
situam-se no mesmo plano ou por sobre as escolas secundárias? A
denominação “escolas secundárias”, por si só, parece indicar que a
lei de floreal instaura uma ordem de ensino secundário do qual os
liceus seriam parte importante. Isso constituiria uma extrapolação
prematura, bem como um anacronismo. De fato, embora os liceus
e as escolas secundárias tenham em comum o fato de ensinarem
letras e ciências e de recrutarem alunos da mesma idade, não são
pensados como estabelecimentos do mesmo nível14. Os liceus têm

13
Correspondência de Delambre e Villar, em missão no outono de 1802 em
Cantal e Allier para selecionar os alunos nacionais, com Fourcroy, diretor da
instrução pública. (AN, F17 7886). A qualidade da escola secundária é
reconhecida pelo governo conforme o relatório dos prefeitos e sub-prefeitos.
(Acórdão de 4 messidor ano X, RLR, t. 2, pp. 271-273).
14
Pretendeu-se, com as escolas secundárias, preencher o espaço, demasiado
grande, deixado pela lei Daunou de 1795 entre as escolas primárias e as escolas
centrais, os liceus ocupando, aproximadamente, o lugar destas últimas. Ver as

16
aulas de gramática, como as escolas secundárias, mas o que é
significativo na sua inscrição na hierarquia escolar, é a existência e
o nível de suas aulas superiores. Assim como os primeiros colégios
de humanidades, os da Universidade de Paris no século XVI,
davam em suas aulas superiores um ensino dependente da
faculdade de artes e acolhiam alunos versados em gramática - tal
mistura é uma das características do modelo parisiense15, os
primeiros liceus associam o alto nível de ensino ao da gramática
latina (e aos elementos de aritmética). Esse paralelo torna-se
explícito, a partir de 1808, com a criação da Universidade
imperial, cuja ação estende-se a todo o território nacional: os
bacharelados em letras e em ciências, primeiros graus das
faculdades acadêmicas, preparam-se nos liceus e certas cátedras
dessa faculdade de letras e de ciências são ocupadas pelos
professores das classes superiores dos liceus. É preciso esperar os
anos 1830 para que a noção de ensino secundário se imponha no
vocabulário administrativo16.
As relações entre os liceus e as escolas secundárias
colocam-se, então, sob o signo de uma desigualdade de princípio.
Tal desigualdade existe também entre os próprios liceus. Fourcroy
reivindica tal princípio no seu discurso de apresentação, opondo-o
a uma uniformidade inacessível e estéril. A hierarquia dos
estabelecimentos constitui de fato uma das ações com a qual a lei
de instrução pública pretende jogar para melhorar quantitativa e
qualitativamente a oferta do ensino com poucos meios. Recebendo
os melhores alunos das escolas secundárias, na qualidade de

precisões enunciados por Fourcroy em seu discurso diante do Corpo legislativo de


20 floréal ano X (30 de abril de 1802), RLR, t. 2, pp. 235-247.
15
M-M Compère, op. cit., 19-30.
16
André Chervel, «De quand date l’enseignement ‘secondaire’ ?», in: Claire
Blanche-Benveniste, André Chervel, Maurice Gross (dir.), Grammaire et
Histoire de la grammaire. Hommage à la mémoire de Jean Stéfanini,
Publications-diffusion de l’Université de Provence, 1988, pp. 105-118
(conforme A. Chervel, La culture scolaire..., op. cit., pp. 149-159).

17
bolsistas, especialmente, os liceus devem, ao mesmo tempo,
suscitar a emulação, servir de modelo e assegurar a promoção de
uma elite escolar nacional, ainda que os serviços prestados à pátria
e ao regime sejam o primeiro critério na distribuição das bolsas.
Fourcroy, que foi um dos criadores da Escola politécnica, pode
observar como a organização de concursos descentralizados de
recrutamento tinham causado, por toda parte, o florescimento de
escolas ou aulas preparatórias, inclusive nas escolas centrais. Esse
é o fenômeno que ele afirma querer reproduzir com os liceus e, ao
fazer isso, põe o dedo em uma ação essencial na dinâmica de
desenvolvimento e de evolução da instituição escolar: a atração do
nível escolar superior ou do exame de saída, que puxa e modela o
nível inferior17.

A emergência do ensino secundário:


um resultado do projeto de 1802?

Os limites do dispositivo concebido em 1802 aparecem


logo. Os liceus têm dificuldades para recrutar sua clientela pagante
e, até mesmo, para alguns, como o liceu de Bruxelas, para
encontrar candidatos bolsistas18. Sua suposta superioridade sobre
os estabelecimentos privados revela-se mais difícil de demonstrar
do que se previa. Tais dificuldades originam, por um lado, uma

17
Bruno Belhoste, «Les caractères généraux de l’enseignement secondaire
scientifique de la fin de l’Ancien Régime à la Première Guerre mondiale»,
Histoire de l’éducation, n° 41, janvier 1989, pp. 3-45. Um mecanismo do
mesmo gênero – que intervém nas escolas de artes e ofícios, instituições criadas
após os liceus e segundo o mesmo modelo de organização – determinou a
evolução do ensino técnico industrial na França. Cf. Philippe Savoie,
«L’enseignement technique industriel en France : l’influence des écoles d’arts et
métiers», in: Gérard Bodé, Philippe Marchand (dir.), Formation professionnelle
et apprentissage (XVIII-XX siècles), Villeneuve-d’Ascq-Paris, Revue du Nord-
INRP, 2003, pp. 129-141.
18
AN, F17 2484 (inspection générale de 1809).

18
revisão do regime disciplinar dos liceus e, por outro, a criação da
Universidade imperial. Quando da criação dos liceus, a antiga
Universidade de Paris tinha manifestamente constituído um
modelo de referência para a concepção do quadro institucional.
Com a Universidade imperial, decretada em 1806 e organizada
em 180819, recria-se, por analogia, tal quadro para estendê-lo a
toda a França. Mesmo permanecendo dentro de uma lógica
globalmente semelhante – trata-se ainda de organizar a dominação
de uma rede de estabelecimentos do Estado sobre uma massa de
estabelecimentos municipais e privados -, a criação da
Universidade imperial marca a passagem de um regime semiliberal
a um regime autoritário e monopolizador em seu princípio,
embora mais leve em sua aplicação.
Como as universidades medievais, a Universidade
imperial é uma instituição corporativa. No nível ideal, a
Universidade é o governo do corpo docente por si mesmo. No
nível da realidade, tem-se uma instituição estreitamente
controlada pelo poder político. Ela toma a forma antiga da
corporação, com sua hierarquia própria, seus mecanismos de
ascensão interna, seus tribunais e as garantias e privilégios
conferidos por pertencer ao corpo. Esse sistema permite ligar todos
aqueles que contam dentro da instituição escolar, incluindo os
chefes de instituições e de pensões privadas, pela pertença comum
ao corpo e pela submissão a seu sistema de graus e diplomas20. De
fato, o princípio do monopólio exerce-se de forma muito diversa
segundo os setores: praticamente nenhum no primário e de forma
absoluta nos graus universitários. No ensino secundário, modifica
as relações dos liceus com o que se chamava até então de escolas
secundárias. Os estabelecimentos municipais tornam-se colégios
comunais, cujos docentes são progressivamente integrados ao

19
Loi du 10 mai 1806 et décret impérial du 17 mars 1808, RLR, t. 3, p. 144-
145 et t. 4, pp. 1-30.
20
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire... op. cit., pp. 31-36.

19
corpo universitário21. Os estabelecimentos privados, denominados
de pensões ou instituições, segundo o nível de estudos que
propõem, submetem-se, por sua parte, a um controle estrito e a
taxas que alimentam as caixas da Universidade.
O regime universitário conhece, por sua vez, um
endurecimento a partir de 1811 decorente de um contexto político
tenso. As pensões e instituições devem doravante enviar seus
alunos às aulas do liceu ou às do colégio vizinho. É, de fato, o
retorno a uma prática que vigorava nas antigas universidades.
Como naquela época, salvo os estabelecimentos autorizados a
existir fora das cidades, o setor privado pode viver apenas, ao
menos nas classes superiores, como um complemento aos
estabelecimentos públicos. Ele apresenta, então, uma tendência
para executar os mesmos serviços que o internato dos liceus. É
pelo conforto da acolhida, pela disciplina menos rude, pela
qualidade do ambiente, pelas repetições, pelas interrogações, pelas
lições particulares que os professores dos liceus ministravam
seguidamente, tais estabelecimentos podem se distinguir e atrair a
clientela. Alguns o conseguem admiravelmente, em especial
aqueles na área da preparação para os concursos das escolas
especiais do governo, como o da escola politécnica.22
Quanto ao setor público, o governo pretende nessa época
desenvolvê-lo à força, abandonando o modelo pragmático da época
consular. O objetivo do decreto do 15 de novembro de 181123 é o
de elevar o número de liceus a cem em todo o Império, ou seja, a
mais do dobro do que havia. Mas os estudos feitos no fim do
regime imperial para levar a cabo tal objetivo, especialmente

21
Mas é preciso criar um fundo particular para conferir a essas pessoas o direito à
aposentadoria, que marca a pertinência ao pleno direito à corporação. (ordem de
25 de junho 1823, ibid, pp. 188-191).
22
Bruno Belhoste, «La préparation aux grandes écoles scientifiques au XIX
siècle: établissements publics et institutions privées», in: M-M. Compère, Ph.
Savoie, L’établissement scolaire... op. cit., pp. 101-130.
23
RLR, t. 4, pp. 298-305.

20
através da transformação de colégios comunais e da aquisição de
estabelecimentos tão prestigiados como os pensionatos de Juilly,
Sorrèze ou Pontlevoy, concluem, na maioria dos casos, pela
viabilidade duvidosa dos estabelecimentos projetados. Cada qual
permanecerá igual24. O decreto de novembro de 1811 pretende
também regulamentar o funcionamento muito diverso dos colégios
comunais. Nesse ponto, também se fica na letra morta: não
podendo se comprometer financeiramente, o Estado é obrigado a
fechar os olhos quanto aos tratamentos miseráveis dados à maioria
dos regentes e quanto às mudanças na regulamentação25. A partir
do fim da monarquia de Julho, o aumento da modesta subvenção
do Estado aos colégios26 permite criar algumas novas cátedras para
que estes possam seguir, na medida do possível, a evolução dos
planos de estudos e a especialização disciplinar em curso, embora
sem modificar profundamente a situação.
A lei Falloux de 185027 põe fim ao regime universitário
e ao que resta do monopólio após dois regimes, a Restauração e a
monarquia de Julho, hostis a priori ao princípio, ainda que bem
diferentes em seus comportamentos no relativo à Universidade. As
conseqüências da lei Falloux são bem conhecidas no que se refere
às relações do ensino privado com os liceus e colégios, colocados
sob o signo da livre concorrência e não mais na
complementaridade imposta. Doravante, não há mais ligação entre
o ensino secundário público e privado a não ser a sua comum

24
AN, F17 9105.
25
Muitos pequenos colégios reagrupam as classes em duas, sob os mesmos
regentes, preferentemente para reduzir seu currículo às aulas de gramática, como
o impõe a regulamentação. Cf. O relatório Villemain que descreve uma realidade
sem relação com os textos oficiais.. (Rapport au roi sur l’instruction secondaire,
du 3 mars 1843, Bulletin universitaire, t. 13, pp. 52-57).
26
Charles Jourdain, Le budget de l’instruction publique et des établissements
scientifiques et littéraires, Paris, 1857, p. 158.
27
Loi du 15 mars 1850, Bulletin administratif de l’instruction publique, t. 1,
pp. 57-80.

21
submissão ao monopólio dos graus universitários. Apenas os
colégios comunais permanecem na órbita dos liceus. O artigo 74
da lei Falloux aplica-lhes um regime contratual que condiciona a
ajuda do Estado a um compromisso das municipalidades em pagar
o corpo docente e em assegurar a manutenção dos
estabelecimentos por cinco anos. A primeira conseqüência deste
novo regime é uma dolorosa clarificação. Muitos colégios fecham
ou se tornam estabelecimentos confessionais. A longo prazo, o
regime contratual vai constituir, para a instrução pública, um
instrumento de nivelamento dos colégios. Mas para isso é preciso
que o Estado se decida a engajar-se com mais rigor.
Liceus e colégios são de fato estabelecimentos pagantes,
supostamente devem se sustentar por si mesmos com os meios que
lhes dão o Estado e as municipalidades. No início, tais meios
consistem em prédios, em despesas subsidiárias e no pagamento de
bolsas. A partir de 1817, uma parte dos liceus depende de uma
subvenção permanente do Estado para pagar a totalidade das
despesas com os professores28. Mas há dificuldades para se obterem
créditos. Em 1853, uma ampla reforma do regime financeiro dos
liceus tem por resultado o aumento do encargo das famílias,
repartindo-se os gastos de forma mais eqüitativa29. Quanto aos
colégios, raramente as municipalidades aceitam sacrifícios para
manter uma estrutura escolar rica demais para os recursos do
estabelecimento. Na realidade, elas o fazem essencialmente nos
casos dos grandes colégios urbanos e para conseguir que se
transformem em liceus, o que representa um grande empenho da
população e aumenta o prestígio da cidade, ao mesmo tempo que
transfere a responsabilidade do estabelecimento ao Estado. No fim

28
Ch. Jourdain, op. cit., pp. 146-147.
29
Décret du 16 avril 1853 (Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire... op. cit.,
pp. 322-331).

22
do século XIX, essa perspectiva motiva os esforços de muitas
municipalidades30.
Para que o Estado se decida a abandonar o dogma do
autofinanciamento dos estabelecimentos secundários e a se
comprometer significativamente, é preciso esperar a Terceira
República31. Tal compromisso financeiro implica, nos liceus, um
formidável progresso nos vencimentos e nas carreiras, assim como
a chegada de professores especializados aos pequenos
estabelecimentos que não os tinham há décadas. Nos colégios,
permite construir e fazer respeitar uma grade de vencimentos do
corpo docente e valorizar a questão pedagógica. Mediante um
sistema de assimilações, os vencimentos do corpo docente dos
colégios se definem pouco a pouco em relação aos dos docentes
dos liceus. Isso permite criar uma circulação de docentes entre os
liceus e os colégios, tornada necessária pelo progresso no nível
geral de formação e pelo bloqueio recorrente das carreiras32. Desde
então, os liceus e colégios tendem a formar uma única rede,
embora as diferenças continuem sendo consideráveis. Ocorre o
mesmo no interior do recente ensino secundário feminino que
está, naquela época, separado de seu homólogo masculino33.
Esses progressos e a organização num sistema
constituem, um século depois, um elemento importante para a
realização do projeto de 1802, mas ao preço de um compromisso
financeiro do Estado, que estava antes excluído. Graças a tal

30
AN, F17 14088-14145. Le nombre des lycées de garçons est de 110 à la fin
du XIX siècle.
31
Ph. Savoie, «Autonomie et personnalité des lycées: la réforme administrative
de 1902 et ses origines», in: M-M. Compère, Ph. Savoie, L’établissement
scolaire... op. cit., pp. 169-204.
32
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire...op. cit., pp. 61-85.
33
Ibid., pp. 73-85; Françoise Mayeur, L’enseignement secondaire des jeune
filles sous la Troisième République, Paris, Presses de la Fondation nationale des
sciences politiques, 1977, 488 p.

23
esforço, o ensino secundário público começa enfim, embora
modestamente, a se homogeneizar. No ensino privado, os
estabelecimentos confessionais tinham se tornado preponderantes
e o peso do bacharelado e dos outros graus universitários –
vestígios muito significativos do regime de monopólio –, além dos
concursos de admissão às grandes escolas públicas, atenuam o
efeito centrífugo das leis que instauram a liberdade do ensino
secundário e superior34. Mas, na construção desse ensino
secundário relativamente coerente, a influência do liceu e de sua
superestrutura institucional sobre os estabelecimentos municipais
e privados não foi uma via de mão única. A criação oficial do
ensino secundário especial em 1865, por exemplo, consagra os
ensinamentos modernos e utilitários que se tinham desenvolvido
muito cedo, ao lado ou no lugar do ensino clássico, nos colégios
comunais ou nas pensões privadas. E, sob o Segundo Império, os
maiores liceus inspiram-se nas instituições privadas em seus
métodos de preparação para as grandes escolas35.
Além disso, o ensino secundário público, do fim do
século XIX, sofre uma crise de recrutamento – especialmente de
alunos internos, o que é muito prejudicial financeiramente –, ao
passo que os pensionatos confessionais não apresentam ainda
problemas. Tal situação origina a convocação, em 1898, da
comissão parlamentar presidida por Alexandre Ribot e da reforma
de 1902, inspirada pelo que foi concluído na comissão. Ora, uma
das conclusões mais importantes do relatório Ribot é a de que é
preciso desenvolver a personalidade dos estabelecimentos e, para
isso, restaurar sua autonomia, que o engajamento financeiro do
Estado tinha contribuído para sufocar36. Na passagem do século

34
Loi relative à la liberté de l’enseignement supérieur, du 12 juillet 1875,
Bulletin administratif du ministère de l’instruction publique, t. 18, pp. 430-438.
35
B. Belhoste, «La préparation aux grandes écoles...», op. cit., pp. 125-128.
36
Ph. Savoie, «Autonomie et personnalité des lycées...», op. cit., pp. 170-171 et
pp. 185-188.

24
XIX para o século XX, é o próprio modelo do liceu que está em
questão na crise do ensino secundário.

A tensão entre o estabelecimento e a cátedra


professoral

Descrevemos acima a oposição fundamental que existe


entre o modelo dos colégios de humanidades, protótipos do
estabelecimento escolar, e o das escolas centrais, que não são nada
mais do que a justaposição das cátedras professorais que as
compõem. O nascimento do liceu constitui, evidentemente, um
retorno ao primeiro dos modelos. Contudo, uma lógica da cátedra
concorre com a do estabelecimento de modo muito mais nítido do
que nos antigos colégios. Ela se integra tanto às características da
carreira professoral quanto à evolução pedagógica.
Durante meio século (1803-1853), os professores de
liceu estão em uma situação que evoca os titulares de benefícios ou
de ofícios sob o Antigo Regime: sua remuneração é determinada,
não pelo seu trabalho, mas pela cátedra que ocupam37. Os liceus
repartem-se em três classes às quais se sobrepõe a categoria
superior dos liceus de Paris. As classes determinam o montante
das pensões, o da retribuição paga pelos externos e os vencimentos
dos diretores, dos censores, dos procuradores, dos professores e dos
mestres de estudos. As cátedras professorais são elas próprias
classificadas em três ordens. No total, o leque de vencimentos
fixos dos professores vai do simples ao triplo. Ao vencimento fixo
acrescenta-se um vencimento eventual, que consiste em uma parte
da renda adiantada das famílias (retribuições e pensões) e que
aumenta as diferenças38. É interessante notar que, na primeira
regulamentação, esse vencimento eventual é calculado por aula, e
37
M.-M. Compère, Ph. Savoie, «Temps scolaire et condition des enseignants...»,
op. cit., pp. 286-291.
38
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire...op. cit., pp. 29-30.

25
o número de alunos próprios influencia a remuneração de cada
professor. Tudo ocorre como se fosse considerado que é o renome
pessoal do mestre que faz vir os alunos. Tal concepção tem raízes
muito antigas, mas tampouco é estranha aos modelos das escolas
centrais onde cada cátedra existia quase que por si mesma. Nos
primeiros anos da existência dos liceus, há um afastamento dessa
lógica de individualização das cátedras. A personalidade do
professor continua a orientar a escolha de um estabelecimento em
certos casos, especialmente para a preparação dos concursos, mas é
o estabelecimento como um todo que se torna normalmente o
objeto de atração ou de repulsa. E é sobre o estabelecimento e
sobre a disciplina interna que as autoridades escolares aplicam seus
esforços, a partir de 1805, para ganhar a confiança das famílias.
Em 1805, com efeito, a fraca reputação dos liceus em
matéria de educação moral e religiosa é considerada como uma das
causas da desafeição de que sofrem39. Desde então, tudo se faz
para elevar sua reputação. O fechamento dos estabelecimentos, a
segregação por idades e por sexos, a repressão das leituras proibidas
e a regularidade da prática religiosa tornam-se objeto de vigilância
minuciosa e ostensiva. Para seduzir as famílias, as autoridades
escolares sonham com ancorar os professores em seus
estabelecimentos e se esforçam, para tal, em reativar o espírito,
suposto e idealizado, das comunidades educacionais dos antigos
colégios congregacionistas. Mas a secularização do corpo
professoral, iniciada com a Revolução, prossegue a despeito dos
sonhos nostálgicos de seus chefes e acelera a dissolução das
comunidades educacionais40. Um indício, entre outros, dessa
evolução: vários professores casados ocupam, apesar dos
regulamentos, apartamentos dos liceus com suas famílias,
deixando seus colegas solteiros alojar-se na cidade e arriscar a

39
A. Aulard, op. cit., pp 148-150. Entretanto, um capelão católico já está
encarregado dos exercícios religiosos em cada liceu.
40
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire...op. cit., pp. 41-43.

26
reputação do estabelecimento. Aliás, o projeto de enraizamento
local do corpo docente opõe-se ao interesse de carreira dos
funcionários, que lhes recomenda exatamente o contrário.
Em síntese, o sistema de remuneração faz com que a
única forma de progredir na carreira seja a de subir na hierarquia
das cátedras e na dos liceus. Ao organizar a Universidade imperial,
Napoleão aproximou-a da carreira militar. A incitação à
mobilidade provoca a cada ano em Paris a corrida dos funcionários
que vêm solicitar uma boa promoção. Tenta-se, a partir dos anos
1820, estabelecer complementos de vencimentos que
recompensem a estabilidade do cargo; mas não se pode manter de
forma duradoura os sistemas que penalizam a mobilidade, os quais
permanecem como o modo essencial de avanço. A reforma do
regime financeiro de 1853 começa a destruir essa fatalidade ao
individualizar os vencimentos fixos. Será preciso, no entanto,
esperar 1887 para que se estabeleça um regime salarial que não
comporte nem vencimento eventual nem classificação dos
estabelecimentos, embora os estabelecimentos parisienses fiquem
acima dos outros. Contudo, como a hierarquia das cátedras e dos
estabelecimentos guardam uma grande força simbólica, a
mobilidade segue sendo um trunfo na carreira41.
Uma outra dimensão do desenvolvimento de uma lógica
da cátedra professoral é a diferenciação disciplinar que começa
muito cedo no século XIX mediante a especialização dos ensinos -
a história desligando-se das letras e as ciências físicas, das
matemáticas – ou pela promoção de matérias acessórias como as
línguas vivas. Desde a criação dos liceus, a presença de professores
de matemática tinha rompido o regime do mestre único que era o
dos antigos colégios. A Restauração concilia o retorno
momentâneo à arquitetura de estudos do Antigo Regime e o
começo da diferenciação disciplinar. Hippolyte Fortoul, decidido a
voltar atrás no que diz respeito a essa especialização, somente
41
Sobre esta contradição entre enraizamento e mobilidade, cf. Ph. Savoie,
«Autonomie et personnalité des lycées...», op. cit., pp. 171-177.

27
consegue suspendê-la entre 1851 e 185642. A diferenciação
disciplinar constitui o retorno do espírito enciclopédico a um
ensino secundário dominado pelas humanidades clássicas. Tal
retorno traz consigo uma contestação ao modelo pedagógico em
vigor. Fundado sobre a memória, a imitação e a repetição, implica
um uso intensivo do exercício escrito. A multiplicação das
matérias acomoda-se há muito a esse modelo, mas não é estranha
à evolução das práticas pedagógicas. O curso magistral, inspirado
no ensino das faculdades, que visa a transmitir conhecimentos
através da palavra, concorre com a aula tradicional, que é
organizada em torno do trabalho pessoal dos alunos. Uma
pedagogia da observação, da experimentação e da reflexão opõe-se
aos métodos antigos43. Nesse novo quadro pedagógico, a divisão do
tempo escolar entre a aula e o estudo perde o caráter de
necessidade funcional.
É, então, a própria organização do estabelecimento
herdado dos antigos colégios que está em questão quando, a partir
de 1880, os modernizadores do ensino começam a impor-se sobre
os defensores das humanidades clássicas. Tal mutação coincide
com a crise do internato, evocada anteriormente, que acentua seus
efeitos. A crise do internato acaba por destruir o modelo segundo
o qual o liceu vivera durante um século. Os repetidores, que foram
por muito tempo um proletariado superexplorado, aproveitam a
conjuntura para conquistar um status mais invejável. Com a
reforma de 1902, sua função desliga-se do serviço noturno e horas
de ensino completam os serviços de vigilância daqueles que dentre
eles tomam o título de professores adjuntos. Mas tal promoção
apenas acelera o declínio da função de repetidor, função essa que

42
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire...op. cit., pp. 36-56.
43
Antoine Prost, Histoire de l’enseignement en France, 1800-1967, Paris,
Armand Colin, 1968, pp. 50-58 et 246-252.

28
correspondia a um tipo de estabelecimento e a uma organização
pedagógica ultrapassada e logo abandonada44

*************************
Com a reforma de 1902, o liceu inclina-se para um
modelo de organização que corresponde à dominação de um novo
modelo pedagógico, com finalidades novas, menos voltadas para a
aquisição de uma cultura que marque a pertença a uma elite e, de
forma geral, a um desejo por parte das famílias de não mais
confiarem a educação e a instrução de seus filhos apenas aos
estabelecimentos escolares. Não é a primeira vez que o liceu é mais
ou menos profundamente reformado – o que lhe permitiu
atravessar os regimes políticos e se adaptar às desordens
institucionais -, mas a reinvenção de 1902 marca o desgaste de
uma velha formula escolar de quatro séculos fundada sobre o
primado do latim e da cultura clássica, sobre uma pedagogia do
exercício, sobre o enquadramento do trabalho pessoal dos alunos e
sobre o pensionato. Entretanto, não se pode dizer que o
apagamento do velho modelo aponte para uma alternativa mais
definida. O liceu de 1902 está à procura de sua identidade e seu
corpo docente, desestabilizado pela nova pedagogia e pela
promoção dos repetidores, está tomado pela obsessão da
desqualificação45. O liceu está mais aberto ao mundo do que

44
Os adjuntos de ensino, categoria criada pelo decreto de 22 de dezembro de
1945 e hoje em via de extinção, foram os últimos representantes da função. A
penúria dos professores dos anos 1960 levou-os a desviar de sua missão primeira,
de responsáveis pelo estudo, para consagrá-los ao ensino magistral.
45
Ph. Savoie, «Autonomie et personnalité des lycées...», op. cit., pp. 199-201.
Essas dificuldades não parecem ter sido superadas. Cf. Antoine Prost,
Éducations, politiques et sociétés. Une histoire de l’enseignement de 1945 à nos
jours, Paris, Éditions du Seuil, 1997 (2° édition), pp. 156-184 et pp. 204-221.
Os relatórios oficiais dos últimos trinta anos testemunham sua persistência. Cf.
Philippe Savoie, «Éléments d’analyse historique de la littérature officielle sur les
enseignants du secondaire», annexe n° 1 de Jean-Pierre Obin, Enseigner um

29
aquele de 1802, mas ao acentuar a desembaraço intelectual do
aluno mais do que seu trabalho, a evolução pedagógica torna o
acesso talvez ainda mais difícil às crianças dos novos meios sociais
e culturais. O liceu moderno continua sendo o liceu de uma elite

Philippe Savoie, PhD, é diretor adjunto do Service d’histoire de


l’éducation (Institut national de recherche pédagogique – École
normale supérieure) em Paris. Estuda história da educação
francesa do século XIX e XX. Suas pesquisas e publicações são
sobre professores de escolas secundárias, história da educação
secundária, o desenvolvimento da educação técnica e outros tipos
de educação pós-elementar. Bem como a relação entre os níveis
nacional e local na história da educação. Foi presidente do Comitê
organizador do XXIV ISCHE. Suas publicações incluem : Les
Enseignants du secondaire. Le corps, le métier, les carrières. XIXe-
Xxe siècles. Tome l : 1802-1914 (2000); L’établissement scolaire.
Des collèges d’humanités à l’enseignement secondaire, XVIe-XXe
siècles, número especial da Histoire de l’éducation, 90, maio de
2001 ( ed. Com M.-M. Compère); L’Offre locale d’enseignement.
Les Formations techniques et intermédiaires, XIXe-Xxe siècles,
número especial da Histoire de l’éducation, 66, maio de 1995 (ed.
com G. Bodé). É membro do comitê executivo da Conferência
Internacional para a História da Educação (ISCHE), responsável
tanto pelos membership (associação) quanto pelo website.

Recebido em: 12/04/2007


Aceito em: 20/07/2007

métier por demain, rapport au ministre de l’Éducation nationale, Paris, La


Documentation française, 2003, pp. 119-135.

30
UMA NOVA FORMA DE ENSINO DE DESENHO
NA FRANÇA NO INÍCIO DO SÉCULO XIX:
O DESENHO LINEAR 1
Renaud d’Enfert
Tradução: Maria Helena Camara Bastos

Resumo
Inventado para as escolas mútuas, que se desenvolveram na França a
partir de 1815, institucionalizado, mais tarde, na instrução primária,
o “desenho linear” é uma forma alternativa de ensino do desenho que
se distingue da tradição acadêmica. Este artigo coloca em evidência
as condições e pretensões da popularização desse novo ensino que
amplia, além do tradicional “ler, escrever, contar”, a gama de
conhecimentos ensinados aos alunos. Procura também descrever as
principais características desse novo modelo didático que se constitui
e depois se normaliza no seio da instituição escolar em função das
exigências pedagógicas e das finalidades que lhe são próprias.
Palavras-chave: ensino primário; disciplina escolar; desenho;
geometria; século XIX.

THE LINEAR DRAWING AS A NEW DRAWING


TEACHING METHOD IN FRANCE IN THE BEGINNING
OF NINETEENTH CENTURY
Abstract
Linear drawing is an alternative drawing teaching method which is
different from the one of academical tradition. It was created for
mutual schools developed in France since 1815. Later, it was
institutionalized in Elementary education. This article discusses
popularization of this new teaching model’s conditions and
intentions which enlarge students’learning, beyond to the traditional
“read, write and count”. This work also seeks for describing this new

1
Originalmente esse artigo foi publicado em M. Grandière et A. Lahalle,
L'innovation dans l'enseignement français, XVIe-XXe siècle, INRP/CRDP des Pays
de Loire, 2004, pp. 77-98, com o título “Une nouvelle forme d’enseignemet du
dessin en France au XIX e siècle: le dessin linéaire”. Artigo autorizado para
tradução e publicação pelo autor e pelo Service des publications do Institutut
National de Recherche Pédagogique. As figuras foram cedidas pela Bibliothèque
Nationale de France (BNF) e autorizadas para publicação, pois são de domínio
público.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 31-60, Maio/Ago 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
didactic model main characteristics which become usual in the school
institution as a result of its pedagogical requirements and peculiar
ends.
Keywords: Primary school; school subjects; drawing; geometry; XIX
century

UNA NUEVA FORMA DE ENSEÑANZA DE DIBUJO EN


FRANCIA EN EL INICIO DEL SIGLO XIX: EL DIBUJO
LINEAR
Resumen
Creado para las escuelas mutuas, que se desarrollaron en Francia a
partir de 1815, institucionalizado, más tarde, en la instrucción
primaria, el “dibujo linear” es una forma alternativa de enseñanza del
dibujo que se distingue de la tradición académica. Este artículo pone
en evidencia las condiciones y pretensiones de la popularización de
esa nueva enseñanza que amplia, más allá del tradicional “leer,
escribir, contar”, la gama de conocimientos enseñados a los alumnos.
Busca también describir las principales características de ese nuevo
modelo didáctico que se constituye y luego se normaliza en el seno de
la institución escolar en función de las exigencias pedagógicas y de as
finalidades que le son propias.
Palabras-clave: enseñanza primaria; disciplina escolar; dibujo;
geometría; siglo XIX.

32
Inventado para as escolas mútuas da Restauração, o
desenho linear é descrito por um dos seus primeiros promotores
como “a arte de imitar contornos dos corpos e de suas partes com
a ajuda de linhas simples, e sem o recurso de sombras nem de
cores2”. Sua difusão, no campo da instrução primária, marca uma
etapa importante na história do ensino de desenho, mas também
na história da escola. Por um lado, coloca um fim ao monopólio
exercido pelos artistas sobre o ensino elementar do desenho,
rompendo radicalmente com as modalidades acadêmicas baseadas
no estudo do corpo humano, em vigor nas escolas de desenho, a
aprendizagem do desenho linear tem fundamento no traçado das
figuras geométricas, sendo o desenho da arquitetura ou do
ornamento sua principal aplicação. Por outro lado, opera uma
mudança decisiva no cursus dos jovens estudantes que se
dedicavam até então ao tradicional “ler, escrever, contar”. Chaptal
afirma, em 1819, que a educação das crianças não “poderia se
limitar a aprender a ler e a escrever, a conhecer as principais regras
da aritmética, e a estudar o desenho linear”?3.

O desenho linear: um ensino para o povo

Enquanto o Império se desinteressa da instrução


primária para se consagrar à fundação da Universidade, assistimos
sob a Restauração a uma renovação de interesse pela educação das
“classes inferiores”. Essa renovação se traduz pelo desenvolvimento
do ensino mútuo, promovido pela Société pour l’instruction
Élémentaire (SIE) criada em 1815, por iniciativa de um grupo de
filantropos liberais. Após a queda do Império, esses desejavam

2
Louis-Benjamin Francœur, L'enseignement du dessin linéaire d'après une
méthode applicable à toutes les écoles primaires quel que soit le mode d'instruction
qu'on y suit, Paris, L. Colas et Bachelier, 1827, p. 9.
3
Jean-Antoine Chaptal, De l'industrie française. Présentation de Louis Bergeron,
Paris, Imprimerie nationale, 1993, p. 418 (1re éd. 1819).

33
conciliar uma ordem social e política estável com os princípios de
liberdade herdados da Revolução. Considerando a educação e a
instrução públicas como um meio de regeneração política e social,
sustentam a idéia que se pode instruir todas as camadas da
sociedade, mesmo as mais pobres, sem risco de desordem social.
Bem mais que um sistema de instrução, o ensino mútuo, que
consiste, segundo um dos seus promotores, “na reciprocidade do
ensino entre os alunos, o mais capaz servindo de mestre àquele
menos capaz”4, aparece como um verdadeiro instrumento de
educação política e moral fundado sobre a razão, visando a
aprendizagem dos deveres futuros de homem e de cidadão.
Essa ação recebe a adesão da grande maioria das elites
intelectuais e políticas da Restauração. Particularmente, entre
1815 e 1820, os ministros do Interior, Lainé e sobretudo
Decazes, dão seu apoio favorecendo a implantação de escolas
mútuas na província mediante subvenções e envio de circulares aos
prefeitos de departamento. O esforço fornecido pelo poder
constituído assegurado pela SIE e suas filiais provinciais é
importante, pois até fevereiro de 1820 pode-se contar (talvez de
forma exagerada) em torno de 1.300 escolas mútuas, na França,
atendendo 150.000 alunos5.

Uma “extensão razoável” dos estudos primários


A vontade de esclarecer os meios populares se traduz por
um aumento do número de matérias além do tradicional “ler,
escrever, contar”, que caracterizava até então a instrução primária.
Novas matérias surgem nas escolas mútuas: a geografia, a
gramática, mas também a ginástica e o canto. Mas é, sobretudo,

4
Joseph Hamel, L'enseignement mutuel, Paris, 1818. Citado por Octave Gréard,
no artigo «Mutuel (enseignement)», in: Ferdinand Buisson (dir.), Dictionnaire de
pédagogie et d'instruction primaire, Paris, Hachette, 1887, 1re partie, tome 2, p.
1998.
5
Journal d'éducation, tome 9, 1820, p. 219.

34
com a introdução do “desenho linear” nas escolas que a SIE se
mobiliza desde 1818. Julgado indispensável à maioria das
profissões, este é considerado como o “quarto ramo dos
conhecimentos primários”6, equivalente à leitura, à escrita e à
aritmética. De fato, o desenho linear vai simbolizar por muito
tempo a “extensão razoável”7 que é possível atribuir aos primeiros
estudos. Regenerar e moralizar as classes pobres, favorecer o
progresso industrial e a prosperidade da nação, são os dois temas
indissociavelmente ligados em torno dos quais se desenvolve a
argumentação dos promotores do desenho linear.
A moralização da classe operária é um argumento de
peso. O ensino de desenho linear deve dar hábitos de ordem e de
disciplina, o gosto pelo trabalho bem feito: tantas qualidades que
fazem com que os antigos alunos das escolas mútuas sejam
procurados pelos mestres-artesãos. Talvez estes promotores
tenham em vista concorrer com as escolas de desenho, que
oferecem somente um ensino em tempo parcial, seguido
paralelamente da aprendizagem. Oferecer lições de desenho linear
na escola mútua é, graças a um ensino reputado “útil”, prolongar
uma educação moral iniciada desde as primeiras aprendizagens da
leitura e da escrita, que as escolas de desenho não ofereciam
realmente. Embrião da formação profissional, o desenho linear é
igualmente visto como uma alternativa à aprendizagem precoce
em ateliê onde os jovens correm os riscos de conviver com os
operários cujas qualidades morais não são sempre comprovadas.
Mantendo por mais tempo os alunos na escola primária, o ensino
do desenho linear aparece conseqüentemente como uma forma
“conservadora” ou de “regulação” social que responde plenamente
ao projeto político da monarquia constitucional. Mas essa vontade
conservadora não deve esconder as possibilidades de promoção

6
Ibid., p. 315.
7
Charles Boutereau, Géométrie usuelle, dessin géométrique et dessin linéaire sans
instrumens, en cent vingt tableaux, Beauvais, Tremblay jeune, 1832, p. 1.

35
social: o conhecimento do desenho, mas também mais geralmente
a instrução, deve permitir a cada um revelar seus talentos e obter
uma posição social em relação as suas competências.
Além da moralização das “classes inferiores”, espera-se a
popularização do desenho linear efeitos positivos para a indústria.
Essa argumentação não evoluiu desde o Antigo Regime, defendido
pelas mesmas fórmulas retóricas empregadas no século XVIII para
mostrar a utilidade do desenho: o desenho linear contribui ao
progresso das artes e da indústria, aperfeiçoa o “gosto” e a
habilidade dos operários, conduzindo à prosperidade do país como
de seus habitantes. Além de um discurso que pode parecer clássico,
é preciso vincular as ambições industriais dos promotores do
desenho linear às evoluções técnicas do momento. Impróprias para
uma verdadeira educação moral dos operários, as escolas de
desenho são igualmente desqualificadas quanto a sua capacidade de
formar operários para a indústria, seu ensino é julgado muito
“artístico”. Apesar de muitos autores insistirem sobre a educação
estética inerente ao ensino do desenho linear, esse aparece
sobretudo como a disciplina específica das artes mecânicas.
Mesmo se o vocabulário da época não está claramente definido,
seus promotores contribuem, às vezes apesar deles, para confrontar
a figura do operário-técnico (o desenho linear) à do artesão-artista
(as escolas de desenho).
Esta especificidade ao mesmo tempo operária e técnica
do desenho linear remete à precisão do grafismo, que se inscreve
menos na perspectiva estética que caracterizava a segunda metade
do século XVIII, com o combate contra o estilo rococó, do que em
uma vontade de recuperar o atraso técnico em relação à Inglaterra
na indústria do ferro como na construção mecânica. O desenho
linear é interpretado como uma transposição, à escala do operário,
da geometria descritiva de Gaspard Monge. Por detrás da
linguagem gráfica elaborada por Monge, é o conjunto das relações
entre os diferentes atores do processo de produção que está em
jogo. Desde a Revolução, a geometria descritiva é o meio de
comunicação das novas elites técnicas formadas na Escola
36
Politécnica. Os engenheiros, mas também os chefes de ateliês,
devem se fazer compreender por seus operários: o desenho linear
pode habituar esses últimos à linguagem das projeções, precisa e
rigorosa. A partir do momento em que, desde 1825, Charles
Dupin populariza seus cursos de geometria e de mecânica
aplicados às artes, numerosos são os autores que não hesitarão
mais em colocar o ensino do desenho sob a égide da ciência – uma
ciência sinônimo de progresso técnico – e em dar exclusividade à
geometria e ao desenho exato.

A popularização do desenho linear


Segundo o Journal d’éducation, órgão do SIE, a
iniciativa da introdução do desenho linear nas escolas mútuas
francesas deve-se ao ministro do Interior Decazes. No início de
1818, ele solicita à SIE a elaboração de um método de desenho
que habilite os alunos a “copiar ou mesmo traçar de memória ou
imaginando, as figuras e os ornamentos que são usados nas artes
mecânicas, em arquitetura e nas construções”8. Uma comissão de
cinco membros é logo reunida, cujos trabalhos levam à elaboração
de um método de “desenho linear” por um de seus membros, o
matemático e politécnico Louis-Benjamin Francoeur. Após testes
conclusivos na escola mútua de Libourne (fundada por Decazes),
depois na escola parisiense da rua Popincourt, a SIE decide sua
generalização em Paris e na província. O método é publicado em
1819 com o título Le dessin linéaire d’après la méthode de
l’enseignement mutuel9. Além do seu financiamento, o ministro
Decazes assegura a sua promoção enviando uma circular aos
prefeitos10. Le Dessin linéaire de Francoeur figura assim como

8
Louis-Benjamin Francœur, «Rapport sur le dessin linéaire, fait à la séance
générale du 3 février 1820», Journal d'éducation, tome 9, 1820, p. 282.
9
Louis-Benjamin Francœur, Le dessin linéaire d'après la méthode de
l'enseignement mutuel, Paris, Colas, 1819.
10
Circular de 8 de agosto 1819. Esta circular está publicada em Renaud
d’Enfert, L’enseignement mathématique à l’école primaire, de la Révolution à nos

37
manual oficial, apesar da publicação no mesmo ano pelo pedagogo
Alexandre Boniface do Cours élémentaire et pratique de dessin que
apresenta inúmeros pontos comuns11. A SIE e suas filiais
provinciais se mobilizam igualmente, organizando formações
aceleradas para os monitores das escolas mútuas, cujos alunos são
escolhidos entre os mais avançados a fim de ensinar os seus
condiscípulos repartidos em pequenos grupos. Desde o final de
1820, uma centena de escolas mútuas, número ao menos
equivalente ao das escolas de desenho do país, oferecem um ensino
de desenho linear12. Principalmente urbanas, elas atendem um
público masculino ligado ao mundo do artesanato. Para as moças,
ao contrário, os trabalhos de costura, que oferecem uma iniciação
às futuras tarefas femininas, tanto profissionais (atividade têxtil)
que familiares (coser ou consertar roupas), são geralmente
preferidas ao desenho linear.
A SIE tenta igualmente exportar o método de
Francoeur. Considerado como uma inovação tipicamente
francesa, o desenho linear deve participar da expansão
internacional do ensino mútuo. Vários países europeus são de
acordo, como os Países Baixos (Bruxelas), a Dinamarca, a Suécia,
ou a Suíça. Em contrapartida, sua adoção na Grã-Bretanha,
pátria do sistema monitorial, se faz com dificuldade13. O manual de
Francoeur foi traduzido para o inglês em 1825, mas com a
finalidade de introduzir o desenho linear nos estabelecimentos de

jours. Textes officiels. Tome 1: 1791-1914, Paris, INRP, 2003, pp. 61-62. Afim
de facilitar as notas, remetemos o leitor para essa obra, onde estão publicados a
maioria dos textos oficiais citados nesse artigo e onde se encontram referências
mais precisas.
11
Alexandre Boniface, Cours élémentaire et pratique de dessin, d'après les principes
de Pestalozzi, suivi à Yverdun, sous les principes de M. J. Ramsauer, et publié avec
de nombreuses modifications, Paris, Baudoin fils, 1819.
12
Journal d'éducation, tome 11, 1821, p. 269.
13
Journal d’éducation, tome 12, 1821, p. 34 et tome 13, 1821, p. 30.

38
ensino mútuo da cidade de Boston nos Estados Unidos14. Enfim,
a popularização do desenho linear aproveita o apoio da SIE aos
países recentemente independentes, lhes fornecendo manuais e
material escolar para que possam abrir escolas mútuas. Em 1824,
decidem enviar um exemplar do Dessin linéaire de Francoeur para
a escola mútua que foi aberta recentemente no Rio de
Janeiro/Brasil. No ano seguinte, é a vez da Grécia, em luta contra
a dominação do Império Otomano, de receber quatro manuais
bem como instrumentos de desenho15. Além dessas indicações
concernentes somente aos anos de 1820, é necessário realizar um
estudo mais completo a fim de avaliar o verdadeiro impacto da
difusão do desenho linear no estrangeiro e suas conseqüências
sobre o ensino do desenho nos diferentes países.
Após o período de reação ultra, entre 1820 e 1828,
pouco benevolente em relação ao ensino mútuo, o retorno ao
poder dos liberais abre um período favorável à consolidação da
instituição primária, com o desenvolvimento, notadamente desde
1828, das escolas normais primárias (professores primários) e a
criação em 1833 do ensino primário superior. Instituído pela lei
Guizot de 28 de junho de 1833, que divide a instrução primária
em dois graus – elementar e superior, a instrução primária
superior deve ser, ao mesmo tempo, o prolongamento da escola
elementar e uma preparação à vida profissional, oferecendo “a uma
parte significativa da população uma cultura um pouco mais

14
L.-B. Francœur, An Introduction to Linear Drawing, Boston, Cummings,
Hilliard and C. A obra traduzida por William Bentley Fowle, foi reeditada em
1828 et 1830. O ensino de desenho nos Estados Unidos da América foi
estudado por Peter C. Marzio, The Art Crusade. An Analysis of American
Drawing Manuals, 1820-1860, Washington, Smithsonian Institution Press,
1976. Ver igualmente Arthur D. Efland, A History of Art Education. Intellectual
and Social Currents in Teaching the Visual Arts, Teachers College, Columbia
University, New York and London, 1990. Essa última obra dá (p. 75) detalhes
sobre o envolvimento de Fowle no ensino mútuo em Boston.
15
Journal d’éducation, tome 16, 1824, p.74 et tome18, 1825, p. 15.

39
relevante que aquela dada pela instrução primária” 16. A lei Guizot
torna obrigatório o desenho linear nas escolas primárias superiores
(mas não nas escolas elementares), ao mesmo tempo em que
institui o ensino de geometria compreendendo um componente
prático, voltaremos a falar sobre isso. Uma extensão decorrente
das formações gráficas será em seguida autorizada, com “a
geometria descritiva e prática; o desenho aplicado a todas as
profissões; a perspectiva; os elementos de mecânica; o traçado de
plantas; o corte de pedras e carpintaria17”.
A lei Guizot refere-se somente às escolas de meninos.
Foi preciso aguardar um decreto de 28 de dezembro de 1836 para
que fosse estendida ao ensino feminino. Mas enquanto o desenho
linear é facultativo nas escolas primárias elementares de meninos,
ele faz parte das matérias obrigatórias das escolas primárias
femininas, sejam elas elementares ou superiores. Essa medida pode
surpreender quando se sabe que o desenho linear é uma disciplina
essencialmente masculina. Fazendo parte dos ‘trabalhos de
agulha”, o desenho linear não é considerado como uma arte
recreativa, mas visa sobretudo oferecer às moças modelos de
referência em bordado e em confecção. Com a lei Falloux de 15
de março de 1850, que suprime a existência legal do ensino
primário superior, o desenho linear fará parte das várias matérias
facultativas do ensino primário masculino e feminino.
As escolas normais de professores primários ocupam
uma posição estratégica no seio da instituição primária.
Assegurando a formação de mestres, elas permitem agir sobre o
conjunto do sistema, e se constituem assim como uma alavanca
essencial da política oficial. O regulamento de 14 de dezembro de
1832 obriga a ensinar aos alunos-mestres “o desenho linear, a

16
Exposé des motifs du projet de loi sur l'instruction primaire, présenté à la
Chambre des députés par M. le ministre secrétaire d'état de l'Instruction
publique, 2 janvier 1833, Bulletin universitaire, tome 3, p. 249.
17
Circulaire du 28 décembre 1838.

40
agrimensura e as outras aplicações da geometria”. Ratifica, em
grande parte, um estado de fato, um grande número desses
estabelecimentos oferecem há muitos anos esse ensino, articulando
geralmente desenho linear e geometria prática. Dois diplomas de
capacitação, elementar e superior, qualificam para ensinar em cada
um dos graus de instrução primária: num primeiro momento, só
os candidatos portadores de um diploma superior devem conhecer
o desenho linear, assim como a geometria e suas aplicações usuais,
tais como medida, agrimensura, traçado de plantas. Em 1841, o
desenho linear faz parte finalmente das provas de capacitação
elementar, favorecendo assim sua divulgação no primeiro grau da
instrução primária18. Além da formação dos futuros mestres da
instrução primária, as escolas normais se destinam igualmente aos
professores em exercício organizando conferências pedagógicas.
Elas desempenham um papel determinante na generalização do
ensino de desenho na instrução primária. De mais a mais, no
início dos anos de 1830, já existem em torno de 2.000 escolas
primárias que oferecem lições de desenho linear19, e não mais uma
centena como em 1820. É então nas escolas normais que o
Ministério de Instrução Pública vai, com toda lógica, dirigir seus
esforços até o final dos anos de 1840, a fim de uniformizar as
práticas pedagógicas dos professores primários.
Os manuais escolares representam igualmente um meio
de tornar mais eficiente, mas também mais homogêneo, o ensino
de desenho. Mas se os ministros Montalivet e Guizot mandam
redigir uma série de cinco manuais elementares destinados à
distribuição nas escolas primárias, o desenho linear não é levado
em conta. Igualmente, sobre um total de mais de 700.000 livros

18
Règlement du 19 juillet 1833; arrêté du 23 juillet 1841 et circulaire du 12
août 1841. O conhecimento do desenho linear é exigido para as futuras
professoras primárias obterem o diploma elementar depois de 1836.
19
Segundo Alexandre de Laborde, in: Jérôme Madival et Émile Laurent,
Archives parlementaires de 1787 à 1860, 2e série, tome 93, Paris, Paul Dupont,
1892, p. 245.

41
distribuídos pelo ministério em 1832, somente 120 manuais de
desenho linear são enviados às escolas francesas (talvez às escolas
normais?), em partes iguais entre o manual de Francoeur e o de
Louis Lamotte20. Sob a Monarquia de Juillet, todavia, um certo
número de obras são oficializadas pelo Conselho Real de Instrução
Pública. Uma primeira lista dos manuais autorizados é assim
publicada em 1836, que divulga os “valores seguros” do desenho
linear (Francoeur, Boniface, Lamotte, Bergery21) aos olhos da
administração primária, e atesta sua vontade de introduzir este
ensino a todas as séries da instrução primária não somente no
nível das escolas normais ou primárias superiores22.
O esforço empreendido em favor da formação dos
mestres como a divulgação crescente dos manuais não deve
mascarar a relativa lentidão com a qual se populariza o desenho
linear nas escolas elementares. Sob a Monarquia de Juillet, a
situação não evolui em relação aos resultados da enquête Guizot
de 1833. Em seus relatórios, os inspetores primários raramente os
mencionam, salvo para constatar a sua fraca implantação nas
escolas elementares23. Os professores primários destacam as
disciplinas obrigatórias – leitura e escrita, ortografia, cálculo -, ao
passo que os inspetores incentivam o estudo da língua francesa e

20
Louis Lamotte, Cours méthodique de dessin linéaire et de géométrie usuelle
applicable à tous les modes d'enseignement; ouvrage destiné aux collèges, aux
pensions et aux écoles primaires, Paris, Hachette, 1832 (2e éd.). Sobre isso, ver
manuais, cf. Alain Choppin, Le pouvoir et les livres scolaires au XIXe siècle. Les
commissions d'examen des livres élémentaires et classiques 1802-1875, Thèse de
doctorat de 3e cycle de l’Université Paris I, 1989, p. 92.
Claude-Lucien Bergery, Dessin linéaire à vue pour les écoles primaires, 1re partie,
21

Metz, Paris, Thiel, Bachelier et Chamerot, 1835.


22
Liste des ouvrages dont l'usage a été et demeure autorisé dans les
établissements d'instruction primaire, 30 décembre 1836. (Lista das obras cuja
utilização foi e permanece autorizada nos estabelecimentos de instrução primária)
23
AN/F/17/9306, 9307 et 9311. Rapports des inspecteurs primaires sur les
écoles primaires, 1837-1838 ; 1839-1840 et 1845-1846).

42
do sistema métrico, prioritários no quadro da unificação nacional:
o desenho linear permanece acessório. Se juntarmos a isso a falta
de formação dos mestres nessa área, veremos como foi difícil sua
implantação nas escolas, sobretudo no meio rural: por um lado, as
escolas normais não formam mestres em número suficiente e
ninguém é obrigado a passar por elas para se tornar professor
primário; por outro lado, a grande maioria dos professores é titular
de um diploma elementar, para o qual o desenho linear não é
exigido, lembremos, será exigido a partir de 1841. Quanto às
escolas de meninas, o desenho não aparece realmente como uma
prioridade. De fato, são sobretudo as escolas mútuas das grandes
cidades que representam, tanto para as meninas quanto para os
meninos, o lugar privilegiado do ensino de desenho linear no nível
elementar.

O desenho linear, disciplina escolar?

A historiografia assinala seguidamente o desenho linear


ao desenho técnico porque emprega formas gráficas simples
resultado das configurações geométricas regulares e representa
“horizontalmente” produtos da arquitetura ou da indústria. Na
realidade, o desenho linear engloba sobretudo um método de
ensino elementar do desenho, isto é, um conjunto de
procedimentos didáticos que fornece os “elementos”. Mas se, sob a
Restauração, o desenho linear aparece como uma inovação, se
distinguindo das modalidades acadêmicas em vigor nas escolas de
desenho, o terreno já está bem preparado, não somente pela
geometria descritiva de Gaspard Monge, mas também pelos
métodos geométricos preconizados, no fim do século XVIII, por
alguns artistas-professores que desejavam garantir, em uma
perspectiva neoclássica, a predominância do contorno e do traço24.

24
Cf. Renaud d’Enfert, «L'enseignement du dessin dans les écoles centrales
(1795-1802)», Paedagogica Historica, volume 36, n° 2, 2000, pp. 601-629.

43
É preciso igualmente contar com os métodos criados pelo
pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi no seu Instituto de
Yverdon, nas margens do lago de Neuchâtel, que são também
muito representativos.

Aperfeiçoar o olho e a mão


As concepções de Pestalozzi, expostas em 1801 no livro
“Como Gertrudes educa seus filhos”, inserem uma visão global da
educação das crianças25. Para Pestalozzi, o conhecimento tem
fundamento na percepção sensível da natureza, e, mais
particularmente, nas sensações visuais. Mas o conhecimento dos
objetos não deve resultar somente das impressões produzidas pelos
sentidos. Ele repousa sobre um ABC da intuição ou ABC da
percepção que, para uma “arte da medida”, leva à observação das
formas e a sua comparação com as figuras geométricas
elementares, e depois à sua representação através do desenho26.
Para o autor, o estudo do desenho, e mais particularmente do
desenho linear («Linearzeichnungkunst27»), não é senãoa
realização dessa aptidão para perceber as relações que se adquire
pela observação e identificação do nome e dos objetos. Consiste
em exercícios de aplicação das formas geométricas a motivos de
ornamento, de dificuldade graduada, inicialmente na lousa, o que

25
J.-H. Pestalozzi, Comment Gertrude instruit ses enfants. Un essai pour introduire
les mères à l’art d’enseigner elles-mêmes, traduction, introduction et notes de
Michel Soëtard, Albeuve, Castella, 1985; Wie Gertrude ihre Kinder lehrt; ein
Versuch, den Müttern Anleitung zu geben, ihre Kinder selbst zu unterrichten, in
Briefen. Herasugegeben von Prof. Dr. Albert Reble, Bad Heilbrunn/Obb,
Klinkhardt, 1983 (1ère éd., Bern und Zürich, 1801).
26
Johann Heinrich Pestalozzi, ABC der Anschauung, Zürich, H. Gessner, 1803.
27
J.-H., Wie Gertrude…, op. cit., 1983, p. 88. Segundo Pestalozzi, op. cit.,
1985, p. 154, a escrita não é “que um exemplo de desenho linear particular”
(«eine eigentliche Art Linearzeichnung», na edição alemã de 1983, op. cit., p.
90). É o que salientamos.

44
constitui uma diferença notável com o ensino acadêmico, e em
seguida no papel.
Particularmente sensível às concepções de Pestalozzi, a
SIE faz da prfeição do gesto a primeira das qualidades que permite
desenvolver o desenho linear. Os exercícios sistemáticos de
desenho geométrico à mão livre elaborados como uma ferramenta
destinada a afinar os sentidos, levaando-os até mesmo ao mais alto
ponto da perfeição, fazendo do corpo um instrumento próprio para
traçar as figuras. O sucesso do novo ensino é avaliado
especialmente pela destreza adquirida pelos jovens alunos, a custa
de inúmeros exercícios, destreza que surpreende o público quando
da entrega de prêmios de fim de ano. Mas o que encanta, não é
tanto a qualidade estética dos desenhos realizados pelos alunos,
mas a virtuosidade desses. Além do seu aspecto sensacional, esses
exercícios de destreza não são desprovidos intenções educativas,
bem ao contrário. Insistir sobre a habilidade manual equivale a
eclipsar o aspecto “liberal” do desenho em proveito de uma visão
mais utilitária, mas também à disciplinar o gesto e os
comportamentos.
Trata-se igualmente de aprender a ver bem. Em seu
Cours élémentaire et pratique de dessin linéaire, Alexandre Boniface,
discípulo de Pestalozzi, alterna assim os capítulos destinados à
“formação do olhar” e aqueles verdadeiramente dedicados ao
desenho, começando pela classificação de linhas de comprimento
desiguais ou de inclinações diferentes, a fim de exercitar o
julgamento dos alunos que, pouco a pouco, aprendem a reconhecer
e a nomear as principais figuras geométricas. Tanto quanto a
destreza manual, se a precisão do olhar é um elemento importante
de qualificação profissional, o alcance pedagógico desses exercícios
que servem para “formar, desenvolver, e exercer uma avaliação28”

28
Journal d'éducation, tome 7, 1818, p. 174 ; Alexandre Boniface, Cours
élémentaire et pratique de dessin linéaire appliqué à l'enseignement individuel, à
l'enseignement simultané et à l'enseignement mutuel, Paris, Ferra jeune et Aimé
André, 1823 (2e éd.).

45
toma um grande sentido no contexto político da monarquia
constitucional.
Destinado a exercitar a visão e as mãos dos alunos, o
ensino do desenho linear se desenvolve por meio de um método
progressivo, analítico, retomando para isso os grandes princípios
dos métodos de desenho em uso no século anterior. Mas,
enquanto que os artistas do fim do século XVIII não detinham
seus alunos nas preliminares geométricas, passando rapidamente
ao estudo da figura humana, a pedagogia pestalozziana favorecia
ao contrário sua sistematização, institutindo a graduação das
aprendizagens em um corpo de doutrina. O caráter progressivo dos
métodos aparece particularmente na organização dos exercícios de
desenho geométrico. Geralmente, os alunos estudam o traçado (à
mão livre) das linhas retas e das linhas retilíneas, antes de abordar
as linhas curvas e as figuras curvilíneas, para chegar finalmente ao
traçado de molduras e de ornamentos de arquitetura, que
combinam as diferentes formas estudadas. Alguns autores inserem
também representações em perspectiva de sólidos geométricos.
Para Francoeur, por exemplo, o estudo dos poliedros dá
continuidade ao dos polígonos ao passo que o desenho dos corpos
redondos sucede o das linhas circulares. Outros autores
desenvolvem sucessivamente o plano e depois o espaço: o desenho
dos sólidos geométricos começa somente depois que os alunos
estudaram o conjunto das linhas retas e curvas29.
Cada aprendizagem é subdividida em exercícios
elementares. Por exemplo, os primeiros exercícios de Dessin
linéaire de Francœur consistem em fazer os alunos traçarem linhas
retas distinguindo direção e tamanho, depois dividi-las a olho em
duas, três, quatro partes iguais. Ele fornece uma formula
“simplificada” do método empregado por Pestalozzi, cujos alunos

29
Jean-Baptiste Henry (des Vosges), Cours élémentaire de dessin linéaire,
d'arpentage et d'architecture, adapté à tous les modes d'enseignement, destiné aux
maisons d'éducation des deux sexes, aux écoles primaires des villes et des campagnes
et aux personnes qui s'occupent du dessin, Paris, Isidore Pesron, 1843 (3e éd.).

46
deviam dividir as linhas até dez partes iguais30. O Cours élémentaire
et pratique de Alexandre Boniface é particularmente
exemplificativo dessa decomposição ao extremo inspirada nos
procedimentos de Pestalozzi. Tomemos o exemplo do traçado de
um semi-círculo à mão livre (fig.1): o autor manda construir
inicialmente um ângulo reto de lados iguais que o aluno deve
dividir em dois, depois em quatro ângulos adjacentes isométricos.
Ligando para as extremidades, obtém-se assim um quarto de
círculo. A reunião dos dois quartos de círculo, traçados segundo o
mesmo procedimento, forma um semi-círculo. O aluno se
exercita, em seguida, a traçar um semi-círculo, somente a partir de
um diâmetro e de um raio perpendicular, depois a partir de um
único diâmetro, após de um só raio e, enfim, unicamente do
centro.

30
Amaury-Duval, Précis de la nouvelle méthode d'éducation de M. Pestalozzi, Paris,
Panckoucke, an XII, 1804, p.44. Contra as divisões excessivas do método de
Pestalozzi, Francœur afirma: «A metade, o terço, o quarto, são sá as frações as
quais nossa visão pode se acostumar: não a mais que confusão, porque não
podemos mais julgar as proporçõesLa moitié, le tiers, le quart, sont à peu près les
seules fractions auxquelles notre œil puisse s'accoutumer : au-delà il n'y a plus
que confusion, parce que nous ne pouvons plus juger des proportions» (L.-B.
Francœur, op. cit., 1819, p. 69)

47
Figura. 1. Formação de um quarto de círculo e de um semi-círculo, in Alexandre
Boniface, Cours élémentaire et pratique de dessin linéaire appliqué à l’enseignement
mutuel, à l’enseignement individuel et à l’enseignement simultané, d’après d
d ncipes de Pestalozzi; suivi d’un traité élémentaire de perspective linéaire, Paris,
Ferra, 1847 (4e d.), pl. 12. (Cote BNF: V32602 + atlas V 32603) O traçado
do semi-círculo ilustra bem o caminho analítico que sustenta a progressão da
aprendizagem.

Esse recurso sistemático ao desenho das figuras


geométricas impõe uma nova progressão didática, já esboçada pelo
matemático Lacroix no seu Essais sur l’enseignement 31. Nada
mais natural do que, após esses numerosos exercícios
preparatórios, desenhar entrelaçamentos ou um perfil de moldura
compostos unicamente de linhas retas ou circulares, ao invés de
iniciar imediatamente o estudo da figura humana. De fato, o
desenho linear recompõe a aprendizagem do desenho segundo uma
progressão que vai das figuras simples da geometria até as mais
complexas da arquitetura e do ornamento (fig.2), conduzindo

31
Sylvestre-François Lacroix, Essais sur l'enseignement en général et sur celui des
mathématiques en particulier, Paris, Courcier, 1805.

48
depois eventualmente à figura humana (fig.3). Essa constitui
então a última etapa do estudo de desenho cujas dificuldades
foram contornadas graças ao estudo prévio do desenho linear. Bem
mais que os temas da arquitetura, o desenho de ornamento,
considerado como uma aplicação da combinação e da junção das
linhas retas e curvas, é revestido de uma importância particular na
medida em que permite prolongar o princípio de progressão dos
exercícios levando os alunos “insensívelmente e com prazer a
copiar as formas as mais complicadas32”.

Figura 2. Louis-Benjamin Francœur, L’enseignement du dessin linéaire d’après


une méthode applicable à toutes les écoles primaires quel que soit le mode d’instruction
qu’on y suit, Paris, L. Colas et Bachelier, 1827, cinquième tableau (par Achille
Leclère) (Cote BNF: V2403 + atlas in folio V 4144). O desenho de molduras e
de vasos, muito inspirado na arte antiga, combina linhas retas e curvas
previamente estudadas.

32
F.PB. (Frère Philippe Bransiet), Abrégé de géométrie appliquée au dessin
linéaire, à l'arpentage, au nivellement et au lever des plans, suivi des principes de
l'architecture et de la perspective, Tours, Paris, Mame et Poussielgue-Rusand,
1854, p. 267.

49
Figura 3. Aplicação do desenho linear. Traçado de uma cabeça de perfil, in
Bruno Renard, Cours de dessin linéaire à l’usage des écoles d’arts et métiers, des
écoles de dessin et des écoles primaires, Paris, Lithographie d’Engelmann et Cie,
1828. (Cote BNF: V240) O desenho linear pode constituir uma preparação ao
estudo da figura humana.

O primeiro método de Francoeur e seus limites


Publicado em 1819, revisado em 1827 e depois em
1832, o método de Francoeur é um modelo para vários autores de
manuais. Destinado primordialmente ao ensino mútuo, o autor o
adequou à organização e às regras deste sistema de ensino, dando
uma descrição minuciosa das modalidades didáticas e do material
pedagógico necessário. A utilização do quadro negro e das lousas,
mais econômicas que o papel, é privilegiada. Os alunos desenham
com giz, só os mais avançados estão autorizados a desenhar no
papel. Cada lição de acordo com os procedimentos habituais do
método mútuo, como para a escrita e o cálculo. Sentados a sua
mesa e munidos de suas lousas ou reunidos em semi-círculo em
torno de um quadro negro, os alunos desenham seguindo um
modelo ou conforme os “comandos” dados pelo monitor que os

50
corrigirá em seguida (fig.4)33: “Tracem uma linha reta e dividam
em três partes iguais” (primeira classe); “dividam um círculo em
oito partes iguais” (terceira classe); “desenhem um talão34, com
filetes” (quinta classe). Se réguas de madeira são fixadas no alto
dos quadros negros a fim de “fixar a vista”, a utilização de
instrumentos matemáticos (réguas, esquadros, transferidores,
compassos) é proibida, salvo para os monitores que os utilizam
para verificar a exaditão dos traços realizados pelos seus alunos35.
Antes da aula, o professor explica aos monitores, em uma sessão
particular, a construção de cada uma das figuras e os
conhecimentos teóricos correspondentes.

Figura 4. Louis-Benjamin Francœur, L’enseignement du dessin linéaire d’après


une méthode applicable à toutes les écoles primaires quel que soit le mode d’instruction
qu’on y suit, Paris, L. Colas et Bachelier, 1827, premier tableau. (Cote BNF:
V2403 + atlas in folio V 4144) «Dividir um ângulo obtuso em seis partes
iguais, fig. 28”: fig. 28»: na escola mútua, o desenho de cada figura corresponde
a um “comando” particular.

33
Louis-Benjamin Francœur, op. cit., 1819, livret des moniteurs.
34
Moldura côncava (NT)
35
Ibid., p. 5 et 14; Alexandre Boniface propõe uso similar dos instrumentos de
matemática.

51
Desde meados dos anos de 1820 se expressa a
necessidade de publicar novos manuais de desenho linear. Além da
vontade de propor aos alunos um maior número de modelos (a
primeira edição do manual de Francoeur comporta somente 5
gravuras), trata-se de desprender-se demasiadamente dos rígidos
procedimentos do ensino mútuo e de propor um método que
convenha a todos os métodos de ensino e, mais particularmente,
ao ensino simultâneo. Inspirado na pedagogia dos Irmãos das
Escolas Cristãs, o ensino simultâneo consiste em dividir os alunos
em várias classes de nível graduado, cada uma sob a
responsabilidade de um professor. Assim, a segunda edição do
Cours élémentaire et pratique de Boniface (1823) se aplica “ao
ensino individual, ao ensino simultâneo e ao ensino mútuo”, com
um texto diferenciado segundo a prática do professor de um ou
outro método de ensino. Do mesmo modo, a edição de 1827 do
manual de Francoeur é “aplicável a todas as escolas primárias seja
qual for o método adotado”. O jogo é tanto político quanto
simplesmente pedagógico, pois as congregações ensinantes são
favorecidas pelo poder depois de 1821. Por outro lado, alguns
autores consideram importante fornecer uma certa dose de
“verdade” geométrica no ensino de desenho linear. Os cursos de
geometria e de mecânica, promovidos por Charles Dupin, não são
estranhos a essa evolução: a partir do fim dos anos de 1820,
alguns autores publicaram manuais excluindo pura e simplesmente
o desenho à mão livre em favor dos traçados geométricos
empregando a régua e o compasso. Eles questionam até mesmo o
princípio dos primeiros métodos, os de Francoeur e de Boniface, e
abrem o debate sobre a pertinência do desenho à mão livre quando
se trata de formar simples operários, bem como sobre as relações
mútuas entre geometria e desenho linear.

Uma “aplicação usual” da geometria


Pelas formas que são desenhadas e pelo vocabulário
empregado, o desenho constitui uma introdução à geometria. Para

52
vários autores da época, que põem em destaque as afinidades
naturais, a aproximação entre os dois ensinos parece quase
evidente. Algumas escolas mútuas acrescentam ao desenho linear
um ensino de geometria prática, agrimensura ou medição. Os
manuais testemunham igualmente essa proximidade como o
Dessin linéaire et géométrie pratique de Lancelot, 36 ou ainda o
manual de Francoeur que compreende, e isso desde a primeira
edição de 1819, uma série de problemas de geometria e de
aritmética. Mas nesse ponto, as interações entre o desenho linear e
a geometria são ainda fracas: trata-se unicamente de uma
justaposição de conhecimentos com um certo número de pontos
comuns.
Assinalamos a mais alta importância da lei Guizot que,
criando um ensino primário superior, inscreve o desenho linear
junto às matérias da instrução primária. Na realidade, essa
disposição se faz acompanhar de uma medida com alcance
decisivo: no final de um intenso debate na Câmara dos Deputados,
opondo membros da SIE e personalidades ligadas de perto ou de
longe à Escola Politécnica37, um verdadeiro ensino de geometria,
disciplina reservada até então ao ensino secundário, é instituído ao
nível das escolas primárias superiores. Nessas escolas, o ensino
deve compreender “os elementos de geometria e suas aplicações
usuais, especialmente o desenho linear e a agrimensura38”. A
contrapartida dessa extensão do campo matemático, próprio à
instrução primária, é a perda da autonomia do desenho linear,
doravante dependente da geometria, constituindo uma “aplicação
usual”. A partir desse momento, a maioria dos autores não cessará
de dizer, seja de forma explícita, seja pela organização interna das

36
Lancelot, Dessin linéaire et géométrie pratique, suivi d'un tarif de réduction du bois
carré et en grume, et de la concordance des calendriers grégoriens et républicains,
Châlons, Boniez-Lambert, 1827.
37
J. Madival et É. Laurent, op. cit., pp. 244-250.
38
Loi sur l'instruction primaire du 28 août 1833.

53
obras que publicam, que o desenho linear exige conhecimentos
prévios de geometria. Igualmente, numerosos manuais tratam as
noções de geometria necessárias para abordar em seguida o
desenho à mão livre ou o traçado geométrico.
Assim, a predominância da geometria sobre o desenho
linear modifica as relações entre as duas disciplinas. À concepção
defendida por Francoeur, que privilegia a dificuldade do desenho
mais que a ordem dos teoremas, opõe-se uma maneira de
exposição do tipo euclidiano, fundado sobre um encadeamento
coerente de proposições matemáticas. Mas, embora alguns
manuais se pareçam a ponto de se confundirem com os tratados de
geometria, os autores se defendem de qualquer teorização
excessiva: “Um curso de desenho linear não é um curso de
geometria39”. A questão das finalidades então é colocada: trata-se
de aprender a desenhar ou de bem compreender, mesmo
intuitivamente, a geometria? Em todo caso, se o ensino de
geometria deve ser precedido do desenho linear, deve ser por meio
de noções úteis e diretamente aplicáveis, tanto na área da
arquitetura ou da ornamentação quanto da representação dos
objetos usuais. Várias vezes, as autoridades ministeriais marcaram
sua vontade de conservar essa especificidade “primária”, a fim de
evitar as rivalidades possíveis com o ensino secundário dos colégios
que privilegiam estudos matemáticos mais teóricos e mais
abstratos40. Os exercícios gráficos são destinados a simplificar a
exposição teórica, mas também para gravar nos alunos os
principais teoremas. Se o raciocínio não é totalmente excluído, a
descrição das figuras e as aplicações práticas necessitam de
desenhos rigorosos que levam vantagem sobre a demonstração.

39
A. Bardon aîné, Cours élémentaire, pratique et normal de dessin linéaire, avec un
atlas sur grand-raisin à plat, à l'usage des écoles primaires, Paris, Paul Dupont,
1838, p. vi.
40
Instruction du 8 décembre 1843. Cf. Igualmente Ambroise Rendu,
Considérations sur les écoles normales primaires en France, Paris, Paul Dupont,
1838, p. 62.

54
Aplicação “usual” da geometria, o desenho linear oferece
um exemplo de ensino em que a prática, precedendo a teoria, deve
esclarecê-la. Assim, na escola primária superior de Cherbourg,
onde “o desenho linear, que no segundo ano deve se tornar uma
aplicação usual da geometria, serve-lhe de preparação no primeiro
ano41”. A afirmação do caráter indissociável das duas disciplinas,
chamadas a se apoiar mutuamente, será um dos eixos do projeto
de reforma do plano de estudos das escolas normais apresentado
por Ambroise Rendu em 1847: no primeiro ano, o ensino da
matemática compreenderia “ noções muito elementares de
geometria, como preparação ao ensino do desenho linear”,
compreendendo “o que é importante de ensinar a todos os alunos
das escolas primárias” ao passo que os exercícios de desenho
instrumental [...] seriam ligados ao ensino mais desenvolvido da
geometria42” desde o segundo ano. Mas a lei Falloux, de 15 de
março de 1850, que suprime todo o ensino de geometria no
ensino primário, põe um fim a esta vontade de dar coerência as
duas disciplinas, até mesmo de estabelecer entre elas uma união
íntima.

Desenho à mão livre ou traçado geométrico?


Colocando o desenho linear no campo das aplicações
geométricas, a lei Guizot impõe implicitamente o uso da régua e
do compasso. Uso que pode parecer natural tendo em vista que se
trata, para os escolares, de dominar os principais modos de
representação em uso no ofício que terão. À visão pestalozziana,
que caracteriza o ensino mútuo, opõe-se pois uma abordagem mais
“politécnica”, que só vê no desenho linear uma forma de geometria

41
AN/F/17/9821. Rapport du directeur de l'école primaire supérieure annexée
au collège de Cherbourg pour l'année scolaire 1840-1841.
42
Ambroise Rendu, «Enseignement dans les écoles normales primaires. Rapport
adressé au Ministre par M. Rendu, au nom de la commission chargée de la
révision des programmes», Manuel général de l'instruction primaire, 2e série, tome
7, 1847, p. 238.

55
descritiva elementar. Mas esse predomínio da régua e do compasso
vai ao encontro das modalidades tradicionais do ensino de desenho
herdadas do século XVIII, e dos fundamentos mesmo do desenho
linear tais como foram estabelecidos sob a Restauração. Reduzindo
o desenho à mão livre, não corremos o risco de perder um dos
principais objetivos do ensino do desenho linear, que é o de educar
o olho e a mão?
Melhor que o afrontamento de duas concepções já bem
instaladas, uma certa complementaridade vai se instalar entre um
desenho linear à mão livre (ou desenho linear a olho, ou desenho
linear sem instrumentos) e um desenho linear que se apóia no
emprego da régua e do compasso (falamos então de traço
geométrico com Francoeur, ou de desenho linear gráfico, ou
desenho geométrico). Desde 1827, Francoeur esboça uma via
intermediária que será seguida por numerosos autores: depois de
ter desenhado à mão livre o conjunto de figuras geométricas, os
alunos repetem, empregando a régua e o compasso. Se há
complementaridade entre desenho à mão livre, de uma parte, e o
desenho geométrico, de outra, são as primeiras finalidades do
ensino do desenho linear que predominam, isto é, a aquisição de
uma certa habilidade manual e visual através do desenho à mão
livre. Apesar de ir ao encontro do espírito da lei Guizot, é essa
posição que será adotada pelas autoridades ministeriais, exigindo
das escolas normais o ensino do desenho linear a olho antes do
desenho com a régua e o compasso43.
Mesmo assim, não há unanimidade sobre a
preeminência do desenho à mão livre. Encontram-se, em toda a
parte, opositores, autores de manuais ou pedagogos, que são
favoráveis a uma inversão da ordem das aprendizagens, até mesmo
ao emprego exclusivo dos instrumentos de desenho.
Particularmente, os Irmãos das Escolas Cristãs colocam o desenho
com a régua e o compasso antes do desenho à mão livre, e dão

43
Décision du 28 juin 1839.

56
assim prioridade à geometria. Mas o seu ponto de vista é
fortemente contestado pelas instâncias encarregadas do controle
pedagógico de seus estabelecimentos: em Paris, a municipalidade
convida a congregação a seguir bem mais as práticas em curso nas
escolas mútuas, e os obriga não somente a completar o manual
com noções de desenho linear à mão livre, mas também a
generalizar o desenho no quadro negro ou na lousa44.
Podemos nos perguntar, aliás, se o antagonismo que
reina no período entre o ensino mútuo propagado pela SIE, por
um lado, e o ensino simultâneo, que caracteriza a pedagogia dos
Irmãos das Escolas Cristãs, por outro lado, não se prolonga em
uma oposição recorrente entre o desenho linear à mão livre e o
traçado geométrico. Em outros termos, podemos proceder a uma
identificação entre os métodos de ensino (mútuo ou simultâneo) e
os procedimentos criados pelo ensino do desenho (mão livre depois
instrumentos ou o inverso)? Um primeiro ponto se destaca, é que
durante os anos 1830-1840, o ensino mútuo está em declínio ao
passo que o ensino simultâneo, que Guizot e seus colegas
promovem, tende a se desenvolver. Mas essa situação não parece
ter conseqüência sobre a política oficial, pois o ministério é mais
favorável ao desenho à mão livre. Além disso, alguns partidários do
ensino mútuo invertem a ordem de aprendizagem preconizada por
Francoeur e privilegiam o uso dos instrumentos de desenho. É o
caso das escolas mútuas de Metz, no início dos anos 183045, ou
ainda da Escola Primária Superior aberta em Paris, em 1839,
onde o curso de desenho vai ao encontro das concepções da
administração municipal46.

44
Journal d'éducation populaire, tome 9, 1837, p. 306 et 2e série, tome 2, 1843,
pp. 342-345. Cf. igualmente AN/F/17/9372. Rapport général de M. Lamotte
sur l'état de l'instruction primaire dans le département de la Seine, janvier 1837.
45
Société d'encouragement de l'enseignement élémentaire suivant la méthode
d'enseignement mutuel, Sommaire des leçons de dessin linéaire et de géométrie
pratique, de l'école gratuite des garçons, Metz, Ch. Dosquet, 1832.
46
Bulletin de la Société pour l'instruction élémentaire, tome 12, 1840, p. 413.

57
Mais que a oposição mútuo/simultâneo, levar em conta a
idade dos alunos pode explicar as diferenças de enfoques. O que se
critica aos pelos Irmãos das Escolas Cristãs, é de não oferecerem
um ensino adaptado aos alunos das escolas elementares:
negligenciar o desenho à mão livre e, portanto, o desenvolvimento
da percepção visual e da mão, é perder de vista o aspecto educativo
do ensino de desenho. No caso de um curso para operários
adultos, ao contrário, a formação profissional prima pelo aspecto
educativo e é aconselhado aos professores “colocar imediatamente
os instrumentos em suas mãos, pois o que é importante mostrar-
lhes é o traçado geométrico, que para eles é uma necessidade
indispensável”47. A diferenciação se opera então primordialmente
segundo a idade dos alunos ou segundo o grau de ensino. Mas isso
corresponde exatamente ao mesmo, pois podemos encontrar
alunos relativamente mais velhos na escola elementar, segundo o
grau de ensino. Para os alunos mais jovens da escola elementar, o
desenho à mão livre ensinado sem teoria explícita é privilegiado, a
fim de exercer os sentidos e de se iniciá-los na geometria; para os
alunos mais velhos, das escolas primárias superiores ou dos cursos
de adultos, a ênfase é colocada no desenho linear “exato” e no uso
dos instrumentos, às vezes, paralelamente ao curso de geometria.
A lista de manuais autorizados pelo Conselho Real de Instrução
Pública, tanto para o desenho linear quanto para a “geometria e
suas aplicações usuais”, é particularmente revelador a esse respeito,
evidencia a correlação entre os graus de ensino e o caráter
“instrumental” e/ou “geométrico” das obras48.

47
Louis Lamotte, Alexandre Meissas et Auguste Michelot, Manuel des aspirants
aux brevets de capacité pour l'enseignement primaire élémentaire et l'enseignement
primaire supérieur, Paris, Hachette, 1842 (5e éd.), p. 312.
48
Liste des ouvrages…, 30 décembre 1836.

58
Conclusão

No decurso da primeira metade do século XIX, a escola


primária constitui-se, portanto, em um lugar privilegiado da
elaboração de uma nova forma de ensino do desenho. O desenho
linear é “inventado” para a escola, e é na escola que as práticas se
definem e se normalizam, com suas regras e suas convenções, seus
exercícios específicos por vezes desconectados das realidades
profissionais. O sucesso dessa ação reside no fato que o ensino do
desenho linear repousa quase que exclusivamente sobre uma
aplicação rigorosa de um conjunto de procedimentos definidos
previamente: a geometria oferece princípios seguros e modelos
uniformes e o professor pode retrair-se detrás de um método que
teoricamente pode ser ensinado da mesma maneira não importa
em que escola. A uniformização dos métodos, conseqüência do
desenvolvimento da formação de professores e uma certa
estandardização dos manuais escolares, conduz a uma pedagogia
onde as especificidades dos alunos contam menos que as do grupo,
onde o coletivo sobrepuja o individual. Inaugurado por Francoeur,
o princípio dos “comandos”, que permite realizar simultaneamente
os mesmos traçados aos alunos de uma mesma “classe”, é talvez o
indício o mais visível. Favorecendo a supressão da personalidade
do professor em proveito do método que ele emprega, permitindo a
passagem de um ensino fortemente individualizado para um
ensino mais coletivo, a geometria assim participou de maneira
substancial para a “disciplinarização” do desenho no século XIX.

Renaud d’Enfert – Maître de conférences à l’IUFM de


l’académie de Versailles, membre du Groupe d’histoire et diffusion
des sciences d’Orsay (GHDSO-Université Paris XI), chercheur
associé au Service d’histoire de l’éducation de l’INRP. Page
personnelle: http://www.inrp.fr/she/pages_pro/d_enfert.htm.
Adresse mail: denfert@inrp.fr

59
Recebido em: 20/05/2007
Aceito em: 20/07/2007

60
A CO-EDUCAÇÃO DOS SEXOS:
APONTAMENTOS PARA
UMA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA1
Jane Soares de Almeida

Resumo
O artigo analisa documentos publicados no Congresso da Instrução
Pública do Rio de Janeiro em 1884, nas discussões levadas a efeito
por alguns congressistas sobre a co-educação dos sexos. Geralmente
confundido com o ensino nas classes mistas, desde os anos iniciais do
século XX, o sistema co-educativo sempre foi acentuadamente
debatido pelas feministas européias e norte-americanas como uma
forma de conseguir maiores igualdades sociais às mulheres, por
intermédio de educar conjuntamente meninos e meninas. No Brasil
a prática foi severamente combatida pela Igreja Católica que via no
sistema um sério risco aos costumes morais vigentes. Porém,
intelectuais que participaram do Congresso, defenderam a co-
educação e seus princípios, enumerando seus benefícios para a
educação das crianças no País.
Palavras-chave: co-educação, classes mistas, feminismo.

THE CO-EDUCATION OF THE SEXES: NOTES FOR


AN HISTORICAL INTERPRETATION
Abstract
The article analyzes documents published at the Congress of the
Public Instruction of Rio de Janeiro in 1884, in the discussions
developed by some congressmen on the co-education of the sexes.
Generally confused with education in the mixing classrooms, since
the initial years of the XX century, the co-educative system always
was hardly debated by the European and North American feminists
as a form to obtain greater social equalities to the women, educating
jointly boys and girls. In Brazil the practice was severely fought by
the Catholic Church who saw in the system a serious risk to the
effective moral customs. However, intellectuals who had participated
in the Congress had defended the co-education and its principles,
pointing its benefits for the education of the children in the Country.
Keywords: co-education, mixing classrooms, feminism

1
Artigo resultante de pesquisa financiada pelo CNPq na modalidade Bolsa de
Produtividade em Pesquisa.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 61-86, Maio/Ago 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
LA COEDUCACIÓN DE LOS SEXOS: APUNTES PARA
UNA INTERPRETACIÓN HISTÓRICA
Resumen
El artículo analiza documentos publicados en el Congreso de la
Instrucción Pública del Rio de Janeiro en 1884, en las discusiones
llevadas a efecto por algunos congresistas sobre la coeducación de los
sexos. En general confundiendo con la enseñanza en los grupos
mixtos, desde los años iniciales del siglo XX, el sistema coeducativo
siempre ha sido acentuadamente debatido por las feministas europeas
y estadounidenses como una forma de lograr igualdades sociales a las
mujeres, por medio de educar conjuntamente niños y niñas. En
Brasil la práctica fue severamente combatida por la Iglesia Católica
que percibía en el sistema un alto riesgo a las costumbres morales
vigentes. Sin embargo, intelectuales que participaron del Congreso,
defendieron la coeducación y sus principios, enumerando sus
beneficios para la educación de los niños en Brasil.
Palabras-clave: coeducación, grupos mixtos, feminismo.

62
Introdução

À exigüidade de fontes históricas sobre o regime co-


educativo no Brasil se contrapõe o significativo número de fontes
primárias e demais documentos sobre o assunto nos Estados
Unidos e Europa onde existe vasta produção sobre o tema, tanto
na área de História da Educação como na de estudos de gênero.
Nesses países, pesquisadores de gênero e educação têm voltado sua
atenção para o sistema escolar buscando construir vertentes
interpretativas, elucidar práticas não sexistas, denunciar a
discriminação sexual nas escolas e verificar o funcionamento das
classes mistas. Com isso objetivam verificar se realmente existe
uma educação escolar isenta de práticas que perpetuam os
mecanismos de discriminação sexual existente na sociedade. Tal
postura está alinhada com a incorporação do conceito de mulheres
como sujeitos silenciosos na História e do gênero como construção
social e cultural, além de considerar que sem a interrogação ao
passado não se poderá compreender e explicar o presente, assim
como projetar o futuro.
A co-educação é, portanto, um tema que fala de perto
aos estudos de gênero e sobre mulheres. Porém, antes de nos
adentrarmos no temário da co-educação dos sexos do ponto de
vista histórico e a forma como era definido no século XIX e anos
iniciais do século XX, torna-se necessário clarificar esse conceito.
No Brasil, obras que tratem da co-educação especificamente são
difíceis de serem encontradas, tanto hoje como no passado
histórico. Há algumas referências nos pareceres de Rui Barbosa
(1947) sobre educação e o assunto foi abordado, embora não fosse
o tema principal, nas Conferências Populares da Freguesia da
Glória no Rio de Janeiro em 1883 e nas Atas e Pareceres do
Congresso da Instrução do Rio de Janeiro em 1884. Na pesquisa
realizada em 2000, em dois importantes periódicos nacionais
indexados e de circulação nacional, os Cadernos de Pesquisa da

63
Fundação Carlos Chagas e a Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos do INEP, não apontaram artigos que abordassem o
assunto, embora se acredite que até momento devem ter surgido
publicações sobre o tema e que uma nova revisão abrangendo
maior número de periódicos se faz necessária. Pode-se, inclusive,
considerar que muitos pós-graduandos e mesmo professores
desconhecem o tema e seu significado histórico no panorama
educacional brasileiro. Na internet como sistema de busca
bastante utilizado há também poucas obras registradas. No
entanto, a co-educação dos sexos e as classes mistas são
importantes aspectos a serem estudados na área de História da
Educação e Estudos de Gênero, principalmente, além de poderem
ser também utilizados nas pesquisas em Sociologia, Antropologia,
Demografia, entre outras.

O modelo co-educativo na perspectiva histórica

Na primeira década republicana, a necessidade de formar


professores para lecionar nas escolas que se expandiam nos maiores
centros urbanos e no interior do território nacional exigiu que os
liberais republicanos voltassem seus olhos para uma instituição
capaz de fornecer os profissionais que o regime precisava. Assim, a
escola normal surgiu como uma iniciativa onde a questão da
educação conjunta deveria ser amplamente debatida. Nesse nível
de ensino não mais se discutiria apenas a educação de crianças,
mas de jovens em idade de contrair matrimônio, o que duplicava o
perigo moral e higiênico. Mesmo aqueles que militavam em favor
da escola pública não viam com bons olhos um sistema único de
ensino para moças e rapazes :

O conselheiro João Alfredo é contrário à reunião dos dois


sexos na organização da Escola Normal. Não está de
acordo com os nossos costumes e tem acarretado
dificuldades para a boa ordem e disciplina escolar. Em
notável documento do presidente ao inspetor geral há

64
sugestões não levantadas ainda em relatórios oficiais; e
entre elas a participação larga da mulher no ensino, e um
verdadeiro programa de escolas-modelo abrangendo o
jardim de crianças. (MOACYR, P. 1942, p. 60).

Posicionar-se contra as classes mistas não tinha origem


apenas na orientação religiosa, era também uma questão de
costumes e disciplina escolar. A reforma do ensino de 1886,
mesmo propondo uma educação religiosa facultativa, coerente com
os princípios da não ingerência da Igreja nos assuntos do Estado,
revelava que a mentalidade vigente sobre as expectativas sociais
quanto ao sexo feminino continuava atrelada às fronteiras do
universo doméstico: “nas escolas do sexo feminino haverá mais: no
primeiro grau, costura simples; no segundo grau, costura, crochet,
corte sobre moldes e trabalhos diversos sobre agulha, bordados
úteis e economia doméstica”. (MOACYR, 1942, p.61).
Esperava-se, portanto, que as futuras professoras
aprendessem aquilo que iriam desempenhar no lar, as prendas
domésticas, o que impunha um paradoxo: se, de acordo com a
ideologia de destinar as mulheres ao ensino de crianças, essas
professoras fossem lecionar em classes mistas, haveria um
problema de difícil solução sobre o que ensinar para os meninos,
embora posteriormente isso fosse revisto.
A co-educação nas escolas normais permitiria que as
jovens aprendessem os mesmos conteúdos destinados aos rapazes
já que também iriam ensinar em classes masculinas, defendiam os
defensores do sistema co-educativo nesse nível de ensino,
contrapondo-se e minimizando, em nome da necessidade de
formar quadros profissionais para a educação escolar que se
expandia, a nocividade dessa prática anunciada pelos defensores
dos costumes tradicionais.
No Estado de São Paulo, a idéia de formar professores e
professoras pela Escola Normal fez que, além das escolas normais
oficiais, surgissem estabelecimentos com essa finalidade depois que
a Lei n. 130 de 25 de abril de 1880 exigiu a obrigatoriedade do

65
diploma de normalista para poder lecionar, exceção feita aos
bacharéis em letras, direito e sacerdotes autorizados. No
Seminário das Educandas, instituição destinada a educar órfãs
sem dote, se abriu um curso de formação de professoras que foi
fechado várias vezes por falta de verbas. Alguns anos depois se
instituíram classes mistas, com bancos separados para alunos e
alunas por uma divisão. Mas no curso preparatório anexo havia
duas seções, masculina e feminina e na classe das meninas
somente poderiam lecionar professoras. (RODRIGUES, 1962,
p.158).
A escola-modelo anexa à Escola Normal, após a
Reforma Da Instrução Pública instituída em 1890 por Caetano
de Campos, seria o reduto onde os futuros professores fariam seus
exercícios práticos de ensino. Foi, portanto, dividida em seções
feminina e masculina: “a escola de aplicação foi estabelecida para
esse fim em um largo plano. Em primeiro lugar foram contratadas
duas professoras largamente reputadas nas práticas de ensino
elementar do primeiro grau, as quais haviam adquirido longa
prática do magistério nos Estados Unidos. Sendo dupla a escola
de aplicação em virtude da separação dos sexos, cada uma dessas
professoras dirige uma escola”.(REIS FILHO, 1981, p.80).
Essas escolas, criadas como pilares para o
desenvolvimento de um ensino de qualidade funcionavam em
turmas separadas por sexo. Se pensarmos que Caetano de
Campos, e Rangel Pestana, o mentor intelectual da reforma de
1890, eram grandes admiradores dos norte-americanos e do seu
sistema educacional e que este último reconhecia a igualdade
intelectual entre os sexos, é de se admirar que tivessem mantido
salas de aula separadas nas escolas normais e escolas-modelo.
Porém, é possível que tivessem as mesmas dúvidas de Rui Barbosa
quanto à aplicabilidade da co-educação no sistema de ensino
brasileiro em vista dos costumes morais da população, em especial
da oligarquia paulistana. Ambos liberais convictos não se aliavam
nem se curvavam aos ditames da Igreja Católica, mas não se
eximiram de manter as turmas separadas nos cursos de formação
66
de professores e mesmo de recomendar essa prática nas escolas
primárias, o que evidencia a força ideológica da moral e da
religiosidade se imiscuindo nas questões estatais.

A educação feminina e o sistema co-educativo

Apesar de nas primeiras décadas do século XX as


mulheres terem conseguido um maior acesso à instrução e,
posteriormente, o direito ao voto e o ingresso no ensino superior,
os ideais católicos e positivistas do século XIX continuaram a
impregnar a mentalidade brasileira durante muito tempo. Mesmo
com as inovações trazidas pelos missionários protestantes, essa
mentalidade tinha a força das tradições longamente herdadas e não
mudaria assim tão facilmente. Quando, pelas mudanças sociais, as
classes mistas se tornaram uma realidade nas escolas públicas
brasileiras, a maioria dos colégios católicos continuou com a
tradição de educar os sexos em separado.
A co-educação dos sexos, com seus princípios de
propiciar a igualdade entre homens e mulheres num meio sócio-
cultural, no qual as relações de alteridade não eram isentas de
conflitos, iria estabelecer um paradoxo com a destinação feminina,
erigida no culto à domesticidade. Não é demais lembrar mais uma
vez que a cultura portuguesa foi determinante para esculpir na
sociedade brasileira os contornos definidos para o desempenho dos
papéis sexuais, sendo também eficiente em construir uma
mentalidade na qual o espaço feminino por excelência era o
recesso do lar. Para a nação lusitana, tradicional e conservadora, a
responsabilidade feminina nunca deveria transpor as fronteiras do
lar, nem ser objeto de trabalho assalariado. A independência
econômica das mulheres, obtida através do desempenho de uma
profissão e sua autonomia intelectual representada por uma
educação igual à dos homens, significava a ruptura com acordos
estabelecidos desde outros tempos e poderia ocasionar desordem
social. Mantida dentro de certos limites, a instrução feminina não

67
ameaçaria os lares, a família e o homem. Demasiados
conhecimentos, de acordo com a imagética portuguesa, eram
desnecessários, pois poderiam prejudicar a sua frágil constituição
física e emocional, além de serem menores suas capacidades
intelectuais. Nisso concordavam católicos brasileiros, não católicos
e até mesmo as próprias mulheres em vista da força desse
imaginário no mundo social em que viviam. A população seguia as
regras ditadas pelas elites, aprofundando o fosso que separava
homens e mulheres.
Nos tempos pós-republicanos os discursos positivista e
eugênico veiculariam a necessidade da educação feminina como
forma de se manter a família e a pátria dentro de cânones
desejáveis para o desenvolvimento. A corrente higiênica já havia
plantado a idéia da mulher ser a principal responsável pela saúde
de seu corpo e dos filhos. Os homens, por sua vez, eram os
provedores da família e os guardiões da mulher. Portanto, a
educação deveria encaminhar-se para os objetivos definidos quanto
aos papéis sexuais: às mulheres, a reprodução; aos homens, a
proteção. Esses valores se estenderiam a todas as áreas: no lar, na
política, na economia, na sociabilidade, na religiosidade, nos
hábitos e costumes, enfim na própria cultura do período,
instalando uma imagética resistente a mudanças que se estendeu
mesmo aos tempos atuais.
A visão positivista de nomear as diferenças, sem atentar
para as relações entre os sexos, impediu os educadores da época de
captar o verdadeiro sentido da co-educação. Esse sentido definia-se
por uma visão que não poderia ser excludente, pela qual as
mulheres teriam o direito de obter conhecimentos próprios do
mundo público, ou seja, acerca da política, das esferas produtivas,
do trabalho e da ciência, normalmente transmitidos apenas aos
homens. A cultura e as normas vigentes desenvolviam
determinados tipos de homens e mulheres segundo sua natureza
biológica, fazendo-os intérpretes dessa natureza e a transferindo
para o social. Não se considerava a maleabilidade humana, as
relações de poder, as relações de gênero, nem que o meio sócio-
68
cultural é o fator mais decisivamente determinante acerca das
diferenças sexuais. Instalava-se assim uma ambigüidade de ordem
moral e de fundo religioso que determinava ao sexo feminino as
funções sociais relacionadas ao ato biológico da reprodução. As
mulheres eram incentivadas a serem mães e para isso convergia
sua educação. Porém, deveriam manter a pureza do corpo e da
alma. Essa pureza estava essencialmente ligada à sexualidade, o
que reprimia e canalizava o desejo feminino apenas para a
procriação.
Na esfera educativa, as propostas de ensino diferenciado
para os dois sexos traduziam-se numa duplicidade segundo a qual,
se expressava a aspiração social de se juntar homens e mulheres
por toda a vida através do matrimônio, compartilharem os espaços
da sociabilidade e do lazer, mas não poderiam ficar juntos nas salas
de aula. As propostas co-educativas visavam manter meninos e
meninas juntos desde a escola para poderem construir futuramente
um destino em comum. Porém esse mesmo destino implicaria em
diferentes atuações sociais, mantendo-se, pois a mesma ordem
vigente.

A rainha do lar e a professora: destinos cruzados

Dos finais do século XIX até a metade do século XX, a


vida em sociedade, as expectativas sobre os papéis sexuais, as
doutrinações da Igreja Católica, as implicações na sexualidade, o
controle dos corpos e da mente, a inculcação moral, mostravam
um país preocupado em construir uma sociedade que deveria se
expandir sem perder valores tradicionais. As mulheres eram as
principais destinatárias de uma ideologia que se centrava na
vigilância e na profecia de destinos para cada sexo: ao homem, o
espaço público, a política, a gerência de recursos, a liberdade; para
a mulher, o espaço privado, a dependência financeira e emocional,
a castidade. Nesse contexto, mesmo a educação na mais tenra
idade deveria ser regulamentada para não pôr em risco o

69
desempenho dos papéis reservados a cada sexo. Conscientes dos
receios da sociedade de que a mulher educada abandonasse a
sagrada missão a ela confiada, a de dar filhos fortes para a Nação,
e que isso interferisse na sua saúde e na da prole, mesmo as
pioneiras feministas compartilhavam com os homens o ideal de
manter a mulher no espaço que lhe foi reservado, o mundo da
casa. Portanto, durante todo o tempo, o discurso social
caracterizou-se dentro dos princípios da ideologia masculina,
numa sociedade que se assumia androcêntrica e orientada no plano
da religiosidade pelo catolicismo.
Os movimentos feministas que se iniciaram desde os
finais do século XIX abalaram parcialmente a visão medieval sobre
a educação das mulheres contaminar sua consciência e
comprometer a sanidade de seu corpo e de sua alma. As mulheres
do período, oriundas de parcelas mais esclarecidas da população,
mostraram que a saída para romper com os mecanismos que as
aprisionavam no determinismo dos papéis sexuais seria uma
educação qualitativamente igual à dos homens, compartilhando os
mesmos espaços, iguais professores e conteúdos, apesar de não
negarem que as noções essenciais para a domesticidade deveriam
continuar sendo transmitidas.
O regime republicano brasileiro instituiu um código civil
em 1916, no qual o homem chefiava a família, administrava os
bens, e autorizava o estudo e o trabalho feminino. O amparo legal
era o que menos pesava nos comportamentos ditados pela herança
portuguesa e derivados das tradições imutáveis desde os tempos da
Colônia e que colocavam o homem no centro do universo social e
doméstico. No século XIX, em São Paulo, o processo de
urbanização promoveria alterações na posição social feminina, mas
o domínio masculino continuou sendo determinante na
organização vigente. Isso porque, apesar de ser considerada
superior do ponto de vista moral, era natural que as mulheres que
ocupassem um lugar inferior na escala social por conta das
diferenças entre os sexos e que os homens detivessem as rédeas do
poder. Na organização das escolas públicas, essa ideologia, ao não
70
atingir uniformemente toda a população, dado que se aceitava a
não separação dos sexos também por medidas de economia,
demonstra que por trás disso existia um problema de classe social,
ou seja, o que é bom para o povo não o é para as elites.
As idéias co-educativas no cenário da educação pública
paulista acompanharam, com alguns anos de atraso, o debate
norte-americano do século XIX acerca de meninos e meninas
receberem a mesma educação. Porém, a insistência da Igreja em se
opor ao sistema e o conservadorismo das elites impuseram a
separação dos sexos nas escolas privadas de orientação católica e
nas públicas, sempre que isso fosse possível.
O ideal feminista norte-americano trazido pelas
missionárias pelo qual ao se proporcionar idêntica educação para
os dois sexos, se atingiria a igualdade social e familiar, caiu no
vazio e as escolas públicas, apesar de estabelecerem meninas e
meninos estudando juntos numa mesma sala de aula, separava
alguns conteúdos e atividades por conta de raciocínios sexistas,
mantendo-se assim a ordem vigente na sociedade. Também há que
se considerar que os protestantes também não deviam estar assim
tão convencidos da prudência de se implantar a co-educação num
país com idéias tão arraigadas quanto à separação dos sexos.
Muitas vezes, durante os primeiros anos da criação dos colégios e
das escolas junto às igrejas, as classes mistas significavam um
momento transitório enquanto não recebiam verbas para
construção de classes separadas ou se aguardavam novas
professoras.
Nas escolas normais podemos supor que a introdução
das classes mistas não foi um ato pensado para promover a
igualdade, mas uma atitude movida pela necessidade de economia
de recursos humanos e materiais. Juntar os dois sexos nas mesmas
classes, aprendendo os mesmos conteúdos desafiava valores
solidamente arraigados, pois o mesmo não aconteceria na
sociedade e as mulheres continuaram destinadas ao lar e à
maternidade enquanto os homens se ocupavam das lides do espaço
público. A cultura lusitana tinha deixado raízes na sociedade
71
brasileira na definição dos papéis sexuais e em limitar a
responsabilidade feminina às fronteiras domésticas. As idéias
progressistas e libertárias dos protestantes norte-americanos,
comungadas pelos republicanos não conseguiram romper com esse
padrão. As complexidades inseridas nos debates co-educativos
fizeram que essa discussão não ultrapassasse o espaço da
instituição escolar – as propostas co-educativas eram republicanas
e por conseqüência, de cunho liberal – e a intolerância religiosa
com as teses do liberalismo colocariam a co-educação e religião
católica como antípodas e até a metade do século XX a militância
católica impôs sua vontade no cenário social e educacional.
Se no século XIX havia na cultura brasileira alguns
sinais favoráveis à disseminação dos ideais protestantes como uma
alternativa ao catolicismo, em relação ao sexo feminino não houve
avanços significativos. Não se pode esquecer também que a
modéstia de recursos das Igrejas Presbiterianas dos Estados
Unidos fez com que os missionários compartilhassem os mesmos
problemas de verbas das escolas brasileiras. No país de origem dos
missionários, a ideologia de delimitar espaços para cada sexo
também era uma realidade. Com a posterior ofensiva católica,
muitas escolas protestantes fecharam suas portas e a proposta de se
estender uma educação igual para os dois sexos limitou-se a
colocá-los em classes onde assistiam aulas juntos, com os mesmos
professores, os mesmos métodos, sob a mesma direção.
Quanto à projeção da futura vida social para cada sexo,
não havia discordância entre católicos e protestantes. Fora da
escola tudo permaneceu como antes: o homem mandava, a mulher
obedecia. O homem cuidava, a mulher pertencia. Mediando essa
relação, a educação escolar prosseguiria como uma forma de
controle social e controle de gênero, mesmo embutindo em seu
discurso a perspectiva da igualdade, da liberdade e da cidadania.
Num país que durante décadas acreditou na superioridade
masculina sobre a feminina, não seria assim tão fácil romper com
essa pretensa supremacia.

72
As propostas co-educativas

Nos finais do século XIX as propostas co-educativas


surgidas no meio intelectual brasileiro, principalmente nos núcleos
de maior desenvolvimento, como São Paulo e Rio de Janeiro,
buscavam atender ao ideal de igualdade social pela via escolar por
parte dos segmentos progressistas, além de medida de economia do
Estado quanto à educação popular. Os positivistas e católicos se
aliavam ao atribuir aos homens e às mulheres características
físicas, psicológicas, intelectuais e emocionais diferenciadas. No
entanto, apesar da propalada necessidade de se introduzir o
sistema de classes mistas nas escolas, o que era defendido pelos
liberais republicanos, essas diferenças naturais eram, em última
análise, impeditivas para a implantação do regime co-educativo.
Isso porque, juntar os sexos nas escolas se configura num
procedimento que possuía prioritariamente um fundo moral, o que
era reforçado pelo ponto de vista da Igreja católica.
Nas escolas públicas paulistas e nas escolas protestantes,
meninos e meninas às vezes se reuniam para instrução conjunta.
Mesmo assim havia posturas diversas quanto aos fins últimos da
tarefa educativa em razão dos diferentes destinos que eram
reservados para homens e mulheres no mundo social e familiar, no
espaço público e privado. Mesmo as escolas protestantes, com seus
objetivos igualitários e democráticos, defensoras do sistema co-
educativo, não se afastavam desse ideário, pois a sociedade
brasileira não apresentava condições para implantar mudanças que
realmente alterassem as expectativas sociais para ambos os sexos e
os papéis que deveriam representar na vida adulta.
A visão positivista de nomear as diferenças, sem atentar
para as relações entre os sexos, impedia os educadores da época de
captar o verdadeiro sentido da co-educação. Esse sentido definia-se
por uma visão que não poderia ser excludente. Nesta, as mulheres
teriam o direito de obter conhecimentos próprios do mundo
público, representado pela política, as esferas produtivas, o
trabalho, a ciência, normalmente transmitidos apenas aos homens.

73
A cultura e as normas vigentes desenvolviam determinados tipos
de homens e mulheres segundo sua natureza biológica, fazendo-os
intérpretes dessa natureza e a transferindo para o social. Não se
considerava a maleabilidade humana, as relações de poder que se
edificam nas relações de gênero, nem que o meio sócio-cultural é o
fator mais decisivamente determinante acerca das diferenças
sexuais. Instalava-se assim uma ambigüidade de ordem moral e de
fundo religioso que determinava ao sexo feminino as funções
sociais relacionadas ao ato biológico da reprodução. As mulheres
eram incentivadas a serem mães e para isso convergia sua
educação. Porém, deveriam manter a pureza do corpo e da alma.
Essa pureza estava essencialmente ligada à sexualidade, o que
reprimia e canalizava o desejo feminino apenas para a procriação.
Na esfera educativa, as propostas de se diferenciar o
ensino para os dois sexos traduzia uma duplicidade: expressava a
aspiração social de manter unidos homens e mulheres por toda
vida, pelos rituais do matrimônio, e compartilharem os espaços da
sociabilidade e do lazer, mas não poderiam ficar juntos nas escolas.
Em contraponto, as propostas co-educativas visavam mantê-los
em contato direto desde a escola para poderem construir
futuramente um destino em comum. Porém, esse mesmo destino
implicaria em diferentes atuações sociais e se mantinha a mesma
ordem vigente.
Com a proximidade da República e a intensa
disseminação dos ideais igualitários, o velho conceito de mundos
separados para os dois sexos ainda vigorava no panorama
educacional. Nisso a influência da Igreja católica, mais a
mentalidade herdada desde os tempos coloniais e ancorada na
tradição portuguesa de separar os sexos desde a infância para
depois juntá-los na vida adulta, após o sacramento do matrimônio,
contribuíram para que houvesse entre as oligarquias e nas famílias
tradicionais, uma grande resistência à co-educação.
As elites brasileiras, embora ainda atreladas ao modelo
cultural europeu, mostravam uma certa tendência em adotar o
estilo de vida e pensamento norte-americano, o que se acentuou
74
nas décadas seguintes. Os adeptos da co-educação dos sexos,
inspirados no ideal americano, acreditavam que meninos e
meninas estudando juntos nas escolas seria benéfico e acentuaria
seus pontos positivos, preparando-os mais eficazmente para a
futura vida em comum. Os defensores da educação pública
insistiam na sua aplicação nas escolas primárias, secundárias e
normais, apontando seus méritos e conveniências. Essas
conveniências seriam em relação ao Estado, aos pais e aos próprios
alunos, pela razão de que a freqüência nas escolas mistas produzia
um estímulo apreciável para a convivência entre os sexos quanto
aos costumes e maneiras, contribuindo decisivamente para
amenizá-los. Isso foi defendido nas Conferências Populares da
Freguesia da Glória no Rio de Janeiro em 1883 e nas Atas e
Pareceres do Congresso da Instrução do Rio de Janeiro, em
1884. 2

Defensores e detratores da co-educação

A co-educação dos sexos foi a 12 ª questão a ser


abordada no congresso. O conferencista Dr. João Barbalho Uchôa

2
O Congresso da Instrução do Rio de Janeiro havia sido convocado pelo
conselheiro Leão Velloso, ministro do Império em 1882, o qual teria como
Presidente o Conde d’Eu,. Em março de 1881, havia sido realizada uma
conferência num salão de escola pública na Freguesia da Glória, onde se discutiu
a vantagem de se reunir um congresso de instrução e uma exposição pedagógica
de vários países. No entanto, o governo da província decidiu adiar a realização de
ambos. Como essa atitude poderia ameaçar as relações com os países já
convidados a participar, os organizadores do congresso ofereceram-se para fazer
acontecer a exposição pedagógica por meio de donativos, o que foi aceito. As
conferências que deveriam ser apresentadas no Congresso de Instrução foram
traduzidas em Atas e Pareceres em 1884. O tema da co-educação era o de
número 12. Os conferencistas citados Cavalcanti e Leão encontram-se nos
registros, portanto abstive-me de cita-los nominalmente na bibliografia por não
ser citação específica. (I Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883, p. 7 a
28).

75
Cavalcanti, inspetor da Instrução Pública, se posicionou muito
favoravelmente ao sistema ao demonstrar várias razões para que
esta fosse implantada nas escolas públicas do período. Atendo-se a
razões de natureza psicológica defendia que a presença dos sexos
nas escolas seria um excelente estímulo para a aprendizagem:

Com a freqüência mixta, a emulação por mais que cresça


não pode chegar à odiosidade, pelo influxo benéfico que
se estabelece naturalmente entre as duas divisões d’aula.
Naturalmente, digo, porque, como passo a mostrar, sem
esforço, sem trabalho do professor, os alumnos do sexo
masculino aprendem a ter pelas alumnas uma certa
deferencia e attenções de que é digno o sexo a que ellas
pertencem. E nisso assignalo o como aproveita o ensino
mixto á amenidade dos costumes (CAVALCANTI,
1884, p.3).3

Além das razões psicológicas que justificavam a


introdução das classes mistas, o inspetor realizou uma ampla
incursão à possibilidade de serem atribuídas exclusivamente às
mulheres as aulas nas escolas primárias. Afinal, estas eram as
mães e futuras mães e as crianças, por as considerarem bondosas,
cuidariam para que não se zangassem com elas no caso de
apresentarem mau comportamento. Além disso, as mulheres
possuíam

...mais facilidade, mais geito de transmittir aos meninos


os conhecimentos que lhes devem ser comunicados.
Maneiras menos rudes e seccas, mais affaveis e
attrahentes que os mestres, aos quais incontestavelmente
vence em paciência, doçura e bondade. Nella
predominam os instintos maternaes, e ninguem como
ella possue o segredo de captivar a attenção de seus
travessos e inquietos ouvintes, sabendo conseguir que as
lições, em vez de tarefa aborrecida, tornem-se-lhes como
uma diversão, um brinco. Em vez da catadura séria,

3
Mantive nas citações a grafia original.

76
inflexível do mestre, e por isso mesmo pouco sympathica
ás crianças, estas encontram na professora, a graça e o
mimo próprio da mulher.(...) É por isso que não falta
quem entenda que o ensino e educação dos meninos
pertence de direito à mulher, chegando alguem a dizer
que só por aberração e em prejuizo da infancia tem sido a
instrucção desta confiada ao mestre. (CAVALCANTI,
1884, p. 3).

O conferencista ainda argumentou que as mulheres


possuíam mais assiduidade às aulas do que os professores do sexo
masculino, envolvidos em negócios e várias distrações em razão do
baixo salário que recebiam. A professora, no entanto, dedicava-se
mais ao magistério por se identificar com a escola e sentir
verdadeiro afeto maternal pelos alunos, que eram sua família.
Seria nesse sentido que a escola poderia contribuir para a
amenidade dos costumes. Os pais dos alunos teriam maior
economia e mais facilidade para levar os meninos e as meninas
para uma só escola, em vez de ter de tomar caminhos diferentes, o
que lhes ocuparia demasiado tempo e esforço.

É mais fácil que um só portador conduza os alumnos, e


os pais não terão necessidade de occupar nisso duas
pessoas, ou de demorar os meninos e conduzil-os para
outro lugar depois de terem as irmãs ido para a escola. Si
as escolas tivessem de ser freqüentadas unicamente por
filhos de classes abastadas e ricas, não seria tanto para
mencionar-se como vantagem esta de que me occupo.
Mas o grande effectivo das escolas é de filhos de pessoas
que não contam entre os que vivem em abastança. (...)
Ora, tudo o que fôr facilitar ás famílias o enviarem os
meninos á escola é uma longa vantagem que não se deve
desperdiçar (CAVALCANTI, 1884, p.4).

Portanto, as vantagens das escolas mistas, além de


melhorar a instrução do povo e facilitar a vida de suas famílias,
seria um grande proveito. O Estado também ganharia em
economia, motivo por si só relevante para sua adoção nas escolas
brasileiras. Além dos efeitos pedagógicos, morais e econômicos do

77
ensino misto, o Governo da Província ainda teria a satisfação de
cumprir a incumbência constitucional de ministrar o ensino
primário a todos os analfabetos e ampliar a escolaridade para mais
cidadãos:

Si temos necessidade de augmentar o numero de escolas,


augmento que deve ser muito considerável, para que em
toda localidade haja ensino primário, o systema mixto
converte-se em expediente econômico; porque, para
muitas dessas localidades, desherdados de instrucção até
agora, uma só escola será o bastante. Em vez de dous
mestres, duas escolas, duas casas ou dous aluguéis de
casa, duas mobílias, uma aula mixta presta o mesmo e
melhor serviço: e com a quantia poupada da creação e
custeio, que assim se tornam desnecessários, de mais
outra escola, proporcionam-se os meios para em outro
logar terem os meninos o preciso ensino
(CAVALCANTI, 1884, p. 4).

Cavalcanti considerava que, com essas medidas, o Estado


poderia quase duplicar o oferecimento do ensino oficial primário,
sem maiores sacrifícios para os cofres públicos e com melhor
distribuição da educação elementar para todos, lamentando que o
governo ainda não tivesse confiado o suficiente na eficácia desse
sistema por motivos que poderiam ser respeitáveis, mas que não
lhe pareciam bem fundados, referindo-se obviamente às razões de
ordem moral e religiosa acatadas pela maioria da população. Em
seguida, o inspetor passou a argumentar contra os detratores da
co-educação dos sexos nas classes mistas discutindo a
improcedência dos motivos alegados. O principal deles seria a
repugnância das famílias em aceitar o sistema misto de ensino,
rejeição fundada na desconfiança e no preconceito principalmente,
classificando-os de infundados e adiantando que todas as inovações
costumam ser objeto de oposição. Para evitar a desconfiança das
famílias sugeriu que houvesse grande critério nas nomeações para
as escolas primárias mistas, concentrando-se a preferência nas
mulheres para reger as classes:

78
Escolham-se, para estas, as melhores professoras, austeras
quanto aos seus costumes, de procedimento exemplar,
práticas de dirigir as crianças. Redobre o governo sua
vigilancia nessas escolas. Si conhecer que a mestra, com
effeito, não se mostra em condições de inspirar a mais
plena confiança ás famílias, o governo apresse-se em
remover a professora e confie uma tão importante missão
a alguma outra mais capaz e mais apta para conseguir
captar essa confiança (CAVALCANTI, 1884, p. 7).

Quanto à instituição do sistema misto nas escolas


normais, observou que os mesmos argumentos poderiam ser
utilizados, com a diferença que nesse nível de ensino atuariam os
professores, devido ao fato deplorável de não haver professoras em
número suficiente para ocupar todas as cadeiras do ensino
secundário e normal. O conferencista também se referiu à legislação
em vigor para o ensino primário e normal da Província de São
Paulo que instituiu as aulas mistas nesses níveis escolares,
assegurando que, apesar dos adversários desse sistema, não
existiam assim tantos inconvenientes conforme foram vaticinados.
Acrescentou que os que se preocupavam com os abusos que
poderiam acontecer nas escolas mistas, “têm hoje contra essa
preocupação a experiência e ora acham-se reduzidos a argumentar
com a possibilidade de taes abusos, argumento apto a condemnar-
se absolutamente tudo”. (CAVALCANTI, 1884, p. 9).
Do ponto de vista da moralidade, duvidava que colocar
juntos os dois sexos nas escolas representasse um perigo moral,
pois, afinal, estes costumavam encontrar-se em muitos lugares que
não o ambiente escolar, como nos teatros e passeios, parecendo
que os seus detratores não haviam sido lembrados desse fato. Além
disso, acrescentou, se houvesse abusos estes também se dariam em
todos os lugares e não apenas nas escolas mistas:

A innocencia e a honestidade certamente correm muitos


perigos; mas não é na escola que mais há receial-os.
Abusos podem tambem apparecer e – seguramente já se
tem visto, - em escolas e institutos em que não se reunem

79
os dous sexos; e por abusos taes não têm pedido a
supressão dessas escolas e casas de educação de um só
sexo! Nos collegios para um sexo sómente e até nos
conventos, asylos de piedade e de virtude, tambem tem-se
feito injuria ao pudor e á innocencia (CAVALCANTI,
1884, p. 9).

Ao referir-se às capacidades cognitivas dos dois sexos,


posicionou-se contra a idéia de que as meninas não poderiam
acompanhar os estudos com o mesmo ritmo dos meninos e que
excessos intelectuais poderiam minar sua saúde. Isso porque,
mesmo a esses, não se poderia aprofundar demasiadamente os
estudos primários, o que deveria ser feito somente no ensino
superior, pois “um ensino elementar, convenientemente
ministrado, não pode ir até o ponto de ter-se receio de que por
causa delle adoeçam alumnos ou alumnas” (CAVALCANTI,
1884, p.10).
No entanto, colocou uma ressalva representativa da
tendência da época de considerar as mulheres menos aptas
intelectualmente ao referir-se ao ensino normal: “não posso em
verdade assegurar que em todas as matérias o aproveitamento das
alumnas seja inteiramente igual ao dos alumnos; mas é certo que
ellas vencem as difficuldades, e não foi preciso ainda modificar, em
favor das moças, o programma, que aliás contém muitas materias,
pelo qual estudam os rapazes”.(CAVALCANTI, 1884, p. 10).
O conferencista, seguindo um tipo de raciocínio
educacional que tomava os Estados Unidos como exemplo,
assegurou que nesse país a co-educação foi adotada em quase todas
as escolas e que o aspecto moral da instituição do sistema misto
não havia sido o determinante nessa escolha, mas sim que os
debates foram mais aprofundados quanto às capacidades
intelectuais do sexo feminino e à identidade da instrução conjunta.
O arrazoado termina com a exortação: “que se adopte a co-
educação dos sexos, assim nas escolas primárias, como nas de
ensino secundário e normal” (p.11).

80
O outro parecer, bastante sucinto, pertence ao
conselheiro Dr. Theophilo das Neves Leão que inicia seus
argumentos observando que “a co-educação dos sexos implica a
questão da emancipação da mulher, ente livre e inteligente,
podendo viver só ou em sociedade íntima com seu companheiro
natural o homem”. Apesar desse reconhecimento inicial,
concluiria suas observações com o argumento que as escolas
primárias e normais do município da corte ainda não estavam
“devidamente organizadas para um nem para outro sexo” (LEÃO,
1884, p.2).
Os detratores do sistema co-educativo consideravam que
entre os sexos havia diferenças morais e intelectuais. Portanto,
colocar meninos e meninas num mesmo local possibilitaria o risco
de contaminação da pureza feminina e o perigo sempre presente de
que os rapazes pudessem ser desviados do trabalho acadêmico pelo
contato com colegas e professoras. O argumento era que a beleza,
a sedução, a garridice do outro sexo seria uma constante tentação,
mesmo no vetusto ambiente escolar. Além disso, por serem
intelectualmente diferentes e com aspirações de vida distintas, não
tinha sentido ministrar educação igual para meninos e meninas.
Para as mulheres, era voz corrente que o excesso de instrução
poderia prejudicar seu natural voltado mais para emoção do que
para os dotes de inteligência. Destinadas que eram para a
maternidade, deveriam ser poupadas para não prejudicar a saúde
dos futuros filhos e nisso se incluía a parcimônia cognitiva.
Nos pareceres de Rui Barbosa sobre o ensino, em
praticamente todas suas proposições ele recorreu aos exemplos
europeus e norte-americanos para confirmar suas idéias e
demonstrar que muitas delas já eram uma prática nesses países.
Para ele, a co-educação era um sistema que já se encontrava em
funcionamento nos países, mas adiantados como Estados Unidos,
Suécia, Dinamarca, Suíça, Escócia, Holanda, Áustria e mesmo
no Japão. Porém, argumentou também que no Brasil sua
implantação ainda não seria aconselhável por conta da moralidade,
dos bons costumes e da higiene entre os sexos, aliando-se assim,
81
embora de forma diferenciada, aos opositores do sistema co-
educativo. Quanto ao sexo feminino, observou que a mulher não
era inferior aos homens, mas seu organismo funcionava de outra
forma, o que fazia que em alguns dias do mês agissem mais
lentamente, precisando assim de maiores cuidados. No entanto,
não opunha obstáculos a que a co-educação se desse nas classes
freqüentadas por crianças muito pequenas e nas escolas primárias.
Asseverava, no entanto, que nos graus subsequentes, isso seria
problemático, pelo menos no momento social que o país vivia. Nas
palavras de Rui Barbosa, a não indicação do sistema co-educativo
nas escolas brasileiras não era uma questão pedagógica, mas um
procedimento de fundo moral e social. Mesmo elogiando os
Estados Unidos afirmava que era enganoso pensar que lá não
havia resistências quanto ao sistema, principalmente pelo
problema moral que a co-educação acarretava. Sendo assim, nos
limites da prudência não seria aconselhável, por enquanto, que
essa prática fosse adotada no Brasil (BARBOSA, 1882, p.26).
A Reforma Capanema de 1942 oficializou por algum
tempo a separação dos sexos nas escolas, na esteira do movimento
de recuperação de valores tradicionais que ganhou força próximo
da segunda metade do século XX, e que viria a ser questionado
pouco depois com a implantação irreversível do sistema misto nas
escolas oficiais do país. No Brasil, a idéia de classes mistas
funcionando em regime co-educativo, as concepções de vida, assim
como os métodos americanos de educação e o papel representativo
das missionárias educadoras seriam imitados na escola pública
paulista e objeto de admiração dos meios intelectuais republicanos.
Estava assim plantada no terreno educacional, a semente do
liberalismo e do culto ao capitalismo, num estado que começava a
se desenvolver mais eficazmente e de acordo com as expectativas
dos meios políticos de colocar o Brasil entre as grandes nações do
mundo.
Nessas expectativas, a educação deveria ser estendida a
todos, homens e mulheres, de diferentes classes sociais e raças,
pois prosperar era a grande meta a ser atingida. Por sua vez, a co-
82
educação era uma prática que se difundia nos demais países
ocidentais e seria a panacéia para remediar os vícios do sistema
escolar que se estruturava lentamente e carregado de defeitos,
inclusive o de não atingir igualmente a população. Esta seria
natural, vantajosa, imparcial, econômica e desejável, pois nas
classes mistas o ensino era mais fácil, permitindo trocas recíprocas
entre os sexos. Considerava-se que as diferenças entre homens e
mulheres, em contraponto aos ideais naturalistas, positivistas e
católicos, eram adquiridas. Para isso deveria valer-se de idêntica
premissa para as pessoas do mesmo sexo, também diferentes entre
si, não havendo seres humanos perfeitamente iguais em todos os
aspectos, dado sua natureza ser plural. Homens e mulheres não
existiam por si próprios, nem um sexo se complementaria sem o
outro.
Alguns defensores do ensino igual para os dois sexos
argumentavam que as idéias de fragilidade e inferioridade que
atribuíam às mulheres aqueles que se posicionavam contrários à
co-educação, significava uma postura arbitrária pois, há mais de
um século, tal processo estava se revelando eficaz nos Estados
Unidos, na França, na Suécia, e na Finlândia, entre outros. As
mulheres possuíam suas faculdades intelectuais e criativas
reprimidas devido à posição social que ocupavam e a uma educação
tradicional que não desenvolvia sua inteligência e seu talento,
retirando-lhes a possibilidade de se desenvolverem psíquica,
intelectual e moralmente. Paradoxalmente, também se considerava
que as diferenças naturais eram algumas vezes necessárias pelo fato
biológico da reprodução. (MEYLAN, 1904, p.122).
Portanto, apesar da separação da Igreja dos assuntos do
Estado e da total proibição de ensino religioso nas escolas, há que
se considerar a influência ideológica do catolicismo como a
religião dominante entre a população brasileira. O matrimônio
indissolúvel, os ritos do batismo, comunhão, crisma, extrema
unção impregnavam há mais de três séculos o imaginário brasileiro
e não seria o ato político de se depor um imperador português e
instituir um regime republicano que ausentaria o povo desses
83
rituais e de sua influência. A educação escolar não fugia disso, pois
quem ensinava nas escolas também pertencia à população e vivia
na sociedade brasileira fazendo parte do intenso intercâmbio
cultural que a urbanização proporcionava, incorporando a
imagética social do período quanto aos papéis sexuais.
Apesar do movimento feminista dos anos iniciais do
século XX ter defendido um ensino não diferenciado para meninos
e meninas, a co-educação dos sexos foi uma prática que se
divulgou mais rapidamente após a segunda guerra mundial. No
período pós-guerra, as reivindicações das feministas se
concentraram no repúdio à educação diferenciada para meninos e
meninas que se evidenciava na distinção de currículos, prática
originada na crença que as mulheres possuíam menos habilidades
intelectuais do que os homens, o que justificava um ensino pouco
abrangente e aprofundado, mais voltado para as questões
domésticas do que preocupado em fornecer uma boa instrução.
A co-educação, segundo essa perspectiva, referia-se mais
propriamente em atender aos preceitos psicológicos, higiênicos e
morais de cada sexo, do que em princípios de igualdade de direitos.
Sua implantação nas escolas nunca garantiu posteriormente
maiores oportunidades para o sexo feminino no mundo social e do
trabalho, assim como maior equidade na esfera do lar.
Para fazer frente à ofensiva dos protestantes no campo
educacional, (os quais, além de introduzirem o que denominavam
co-educação dos sexos, também defendiam a profissionalização e
independência financeira feminina e a educação isenta de
proselitismo religioso, aberta à todas as classes sociais e às
diferentes raças), a Igreja Católica, na tentativa de recuperar seu
poder criou um sistema de internatos destinados às filhas das
oligarquias e da classe média que já havia se delineado no cenário
social e econômico do País.
Esses colégios representaram a solução para alguns
problemas básicos dos católicos: eram uma proposta educativa que
não atentava contra suas idéias tradicionais; não havia
comprometimento com os avanços modernos que tanto os
84
assustavam; significavam segurança para as famílias que desejavam
que as filhas estudassem em bons colégios fora do seu local de
residência; permitiam a instrução religiosa, um dos mais caros
ideais familiares dos conservadores; preparavam-nas para o
matrimônio e para a manutenção dos valores cristãos tradicionais,
e não aceitavam a proposta de educação igual para ambos os sexos.
Com isso, preservava-se a ordem e a moral social e não haveria
riscos sociais de se libertar a mulher pela via da instrução,
mantendo-se, pois, intocados os bons costumes cristãos.
Os detratores do excesso de instrução para as mulheres e
da co-educação dos sexos foram veementes em assinalar o perigo
de lhes proporcionar demasiados conhecimentos. A
profissionalização feminina e sua ida ao mercado de trabalho, a
concessão de direitos cívicos como o voto e a inserção na política
eram combatidos por serem considerados fatores de
desestabilização social e um atentado às recomendações religiosas.
Para estes, as leis naturais tinham estabelecido o lugar da mulher
no lar, e o dos homens, na vida pública. Juntar dois seres tão
diversos e com destinação tão diferente se constituía numa
inobservância das leis divinas e da natureza. Subverter essa ordem
seria desobedecer a Deus e uma educação diferenciada para
meninos e meninas, de acordo com a herança do passado, não
poderia ter seus princípios alterados por ser antinatural, sendo
fundamental para a estabilidade social que a educação feminina
fosse sempre diferente da masculina.

Referências

ATAS e Pareceres do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro. Rio


de Janeiro, Tipografia Nacional, 1884.
BARBOSA, R. Reforma do ensino primário e várias instituições
complementares da instrução pública. Obras completas. Rio de

85
Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, v.10, tomo III, p. 26,
1947.
MEYLAN, F. Th. La coéducation des sexes: étude sur l’education
supérieure des femmes aux Etats Unis. Bonn, Charles Georgi,
Imprimerie de l’ Université, 1904.
MOACYR, P. A instrução pública no Estado de São Paulo:
primeira década republicana – 1890/1893. São Paulo, Rio de
Janeiro, Porto Alegre, Cia Editora Nacional, 1942. (Brasiliana,
vol.213).
REIS Filho, C. dos. A educação e a ilusão liberal. São Paulo,
Cortez, 1981.
RODRIGUES, L. M. P. A instrução feminina em São Paulo:
subsídios para sua história até a proclamação da República. São
Paulo, Faculdade de Filosofia “Sedes Sapientiae”, Escolas
Profissionais Salesianas, 1962.

Jane Soares de Almeida – Mestre em educação pela UFSCar.


Doutora em História e Filosofia da Educação pela USP. Livre-
Docente pela UNESP. Pós-doutorado por Harvard University,
Estados Unidos e Universidade Autônoma de Barcelona,
Espanha. Pesquisadora do CNPq. Membro do Corpo de
especialistas do Conselho Estadual de Educação do Estado de São
Paulo. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação
em Educação Escolar da Unesp/Araraquara. Membro do Corpo
Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação da
Universidade Metodista de São Paulo. Programa de Pós-
Graduação em Educação – Universidade Metodista de São Paulo.
janesoaresdealmeida@uol.com.br

Recebido em: 13/04/2007


Aceito em: 20/07/2007

86
ESCOLAS ANARCO-SINDICALISTAS NO
BRASIL: ALGUNS PRINCÍPIOS, MÉTODOS
E ORGANIZAÇÃO CURRICULAR
Dagoberto Buim Arena

Resumo
Em 1985, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo publicou
edição fac-símile da coleção de edições do jornal A VOZ DO
TRABALHADOR, editado pelos anarco-sindicalistas da
Confederação Operária Brasileira (C.O.B.), entre 1908-1915, no
Rio de Janeiro. Este trabalho destaca com base nesse material, as
resoluções sobre educação adotadas no segundo Congresso de 1913,
as ações a ele subseqüentes que criaram escolas, a sua organização
curricular e pensamento do educador Florentino de Carvalho,
defensor de métodos que considerava racionais e científicos. Para
isso, o desenvolvimento deste artigo aborda o nascimento do
movimento anarquista no Brasil, a fundação da Confederação
Operária Brasileira; a criação do jornal A VOZ DO
TRABALHADOR, de seus objetivos e de sua importância para a
unificação dos anarco-sindicalistas do Brasil; e, por fim, comentários
a respeito da organização curricular de escolas, a ação de educadores
anarquistas e a importância da educação para o movimento.
Palavras-chave: anarco-sindicalismo; escolas anarco-sindicalistas;
Florentino de Carvalho

ANARCHO-SYNDICALIST SCHOOLS IN BRAZIL: SOME


PRINCIPLES, METHODS AND CURRICULAR
ORGANIZATION
Abstract
In 1985, the State of São Paulo Official Press published a “fac-
simile” edition of the newspaper “A VOZ DO TRABALHADOR”
(The Worker’s Voice), firstly edited by the anarcho-syndicalists of
Confederação Operária Brasileira (COB) (Brazilian Labor
Confederation), between 1908-1915, in Rio de Janeiro. Grounded
on that material, this work underlines the resolutions on education
adopted at the Second Congress of 1913, the following actions that
created schools, their curricular organization and the thought of the
educator Florentino de Carvalho, supporter of methods he considered
rational and scientific. In order to meet these goals, this paper
studies the emergence of the anarchist movement in Brazil; the
foundation of Brazilian Labor Confederation; the creation of the
newspaper “A Voz do Trabalhador”, as well as its objectives and
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 87-108, Maio/Ago 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
importance to the unification of anarcho-syndicalists in Brazil; and
finally, some comments on the schools curricular organization, the
actions of anarchist educators and the importance of education to the
movement.
Keywords: Union-Anarchy; union-anarchy schools; Florentino de
Carvalho

ESCUELAS ANARCO-SINDICALISTAS EN BRASIL:


ALGUNOS PRINCIPIOS, METODOLOGÍAS Y
ORGANIZACIÓN CURRICULAR
Resumen
En 1985, la Imprenta Oficial del Estado de São Paulo publicó una
edición única de la colección de ediciones del periódico LA VOZ
DEL TRABAJADOR, editado por los anarco-sindicalistas de la
Confederación Operaria Brasileña (C.O.B.), entre 1908-1915, en
Rio de Janeiro. Este trabajo destaca con base en ese material, las
resoluciones sobre educación adoptadas en el segundo Congreso de
1913, las acciones a él subsecuentes que crearon escuelas, a su
organización curricular y pensamiento del educador Florentino de
Carvalho, defensor de los métodos que consideraba racionales y
científicos. Para eso, el desarrollo de este artículo aborda el
nacimiento del movimiento anarquista en Brasil, la fundación de la
Confederación Operária Brasileña; la creación del periódico LA VOZ
DEL TRABAJADOR, de sus objetivos y de su importancia para la
unificación de los anarco-sindicalistas del Brasil; y, por fin,
comentarios respecto a la organización curricular de escuelas, la
acción de educadores anarquistas y a importancia de la educación
para el movimiento.
Palabras-clave: anarco-sindicalismo; escuelas anarco-sindicalistas;
Florentino de Carvalho

88
Introdução

Em 1985, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


publicou edição fac-símile da coleção de edições do jornal A VOZ
DO TRABALHADOR, editado pelos anarco-sindicalistas da
Confederação Operária Brasileira (C.O.B.), entre 1908-1915, no
Rio de Janeiro. Este trabalho procurará destacar com base nesse
material, as resoluções adotadas no segundo Congresso de 1913,
as ações a ele subseqüentes que criaram escolas, a sua organização
curricular e pensamento do educador Florentino de Carvalho,
defensor de métodos que considerava racionais e científicos. Para
isso, o desenvolvimento deste artigo abordará o nascimento do
movimento anarquista no Brasil, a fundação da Confederação
Operária Brasileira; a criação do jornal A VOZ DO
TRABALHADOR, de seus objetivos e de sua importância para a
unificação dos anarco-sindicalistas do Brasil, e, por fim,
comentários a respeito da organização curricular de escolas, a ação
de educadores anarquistas e a importância da educação para o
movimento.

1.1.O movimento anarco-sindicalista no Brasil


O desenvolvimento industrial do país nas primeiras
décadas do século, sustentado pela mão-de-obra européia,
principalmente formada por portugueses, italianos, espanhóis e
alemães, trouxe também a expansão do pensamento político-
econômico contra o Capital, cujos representantes destacados eram
os socialistas e os anarquistas. Entre os libertários, a influência do
sindicalismo francês desencadeou a elaboração de um movimento
conhecido como anarco-sindicalismo, cujo objetivo era a negação
de cooperativas e partidos políticos, como estratégias de luta
contra o Capital, e recomendar a organização dos operários em
sindicatos que constituiriam a organização para a destruição do

89
Estado, do capitalismo, e âncora para a construção de um novo
mundo (BIONDI, 2005; GHIRALDELLI, 1987).
Um dos fundamentos do movimento era o que
chamavam de ação direta, isto é, a promoção de greves, motins,
rebeldias no interior das fábricas, dirigidas contra todos os que
participam da organização burguesa de sociedade, tanto indivíduos
quanto instituições. O movimento anarquista ao evoluir para o
anarco-sindicalismo elaborou também as idéias a respeito das
finalidades da educação operária; destacou o papel da propaganda
no processo revolucionário contra o estado burguês, e, por essa
razão, organizou eventos de natureza cultural e promoveu a
expansão da circulação de jornais, panfletos, livros, revistas e
outros materiais impressos. Nesse ambiente de cultura, de
educação, de propaganda e de rebelião foram criadas as condições
para a fundação da Confederação Operária Brasileira (C.O.B.) e
seu jornal A VOZ DO TRABALHADOR.

1.2. A C.O.B. e A VOZ DO TRABALHADOR


As disputas entre socialistas e anarco-sindicalistas, no
Rio de Janeiro pelo controle do movimento operário e dos
sindicatos resultou na negação, pelos últimos, dos congressos
anteriores promovidos pelos socialistas, e a convocação de um
grande encontro nomeado como Primeiro Congresso Operário,
realizado em 1906. O artigo primeiro dos estatutos da
Confederação Operária Brasileira, recém-fundada, aponta, entre
outras finalidades, a de

estudar e propagar os meios de emancipação do


proletariado e defender em público as reivindicações
econômicas dos trabalhadores, servindo-se para isso de
todos os meios de propaganda conhecidos,
nomeadamente de um jornal que se intitulará A Voz do
Trabalhador (A Voz..., 01set. 1913, n. 38, p. 1).

A propaganda necessária para a expansão do movimento


e da criação das condições para rebeliões demandava criação e

90
circulação de jornais, panfletos, revistas e livros, portanto, todos os
meios conhecidos. Deste modo, a leitura desses materiais vincular-
se-ia ao segundo princípio defendido pelo movimento: a
propaganda, e, articulada a ela, a educação.

1.2.1 A Educação em A VOZ DO TRABALHADOR


O educador mais citado pelas páginas do jornal foi o
espanhol Francisco Ferrer y Guardia, criador da Liga
Internacional para a Educação Racionalista da Criança e que por
ela publicou L`École Renovée, na França e a Scuola Laica, na
Itália. Perseguido na Espanha, exilou-se na França.
Posteriormente, de volta à Espanha, foi preso e fuzilado pela
monarquia em 1909. O jornal publicou alguns artigos
comentando a sua execução, como este, cujo trecho destaca que
não

[...] houve canto do mundo donde não saísse um grito de


dor pela perda inesperada [...] dum homem que com vigor
e inteligência difundia a instrução tão necessária à massa
proletária e tão negada pelos governos, a quem interessa
conservá-la na ignorância [...] (SANTOS, R.,1909,
colunas 1-4, p. 1).

No mês seguinte, em novembro, a ação de propaganda


estimulava a leitura de uma publicação sobre a vida desse
educador, dirigida para todos os operários:

Ferrer. A comissão contra a reação espanhola publicou


um número único explicando a ação do saudoso
camarada no campo da pedagogia moderna. É uma obra
de valor, que ninguém deve deixar de ler. Por nosso
intermédio podem ser feitos pedidos para este número (A
VOZ..., 15 nov.1909, ano II, n. 20, coluna 1, p. 4).

Embora os intelectuais se preocupassem com a


divulgação da leitura, havia o obstáculo do alto índice de

91
analfabetismo entre os operários, como demonstra trecho de um
artigo publicado no jornal A Folha do Povo, de São Paulo:

Os artigos sociológicos, então, é o cúmulo: só uma


pequena minoria os lê e se faz solidária [...] é triste que se
perca tanta energia e dinheiro em propaganda que na
maioria dos casos é perdida, ao passo que seria necessário
juntar nossas energias em prol da instrução: ensinar a ler
o operário analfabeto [...] (ANTUNHA, E. APUD
GHIRALDELLI, 1987, p. 101).

A preocupação com a educação dos militantes e de seus


filhos manifestava-se pela tentativa de criação de escolas do povo,
como alternativa à escola para o povo, na tradição burguesa, cuja
elaboração deu-se nas lutas entre operários e burgueses na segunda
metade do século XIX. As experiências de formulação de escolas
criadas, dirigidas e fundamentadas na produção de conhecimento
necessário para a luta de classes aconteceram nas ruas e nas
fábricas desse século, durante os processos revolucionários e, como
afirma Foucambert (2004, p.6), investigador contemporâneo da
área da leitura:

Uma escola só pode exercer o papel que se espera dela,


como instrumento de libertação, ao romper com o
modelo que se desenvolveu explicitamente na Europa no
final do século XIX para encerrar a era das revoluções e
para concluir a domesticação de seu proletariado, modelo
que ela impôs ao mundo através do empreendimento
colonial e depois adotado pelas burguesias nacionais ao
longo de seu processo de autonomia.

Apoiados neste princípio de entender a educação como


instrumento de emancipação do trabalhador, os anarco-
sindicalistas organizaram suas próprias escolas, com a colaboração
dos educadores cujas experiências tinham sido realizadas na
Europa, para, de certo modo, alimentar o movimento iniciado na
Comuna de Paris, em 1871, como sugere, atualmente,
Foucambert (2004, p. 6):

92
É preciso retomar o trabalho no momento em que os
proletários da Comuna de Paris (1871) perdem a
esperança de uma escola do povo e têm que se submeter à
escola para o povo que quer a burguesia. É desse ponto
que é preciso recomeçar, da mesma forma que
recomeçaram os pioneiros da nova educação e, sobretudo
na França, Célestin Freinet.

Desde o século XIX, anarquistas e comunistas


elaboravam programas educacionais com os quais pensavam, cada
grupo a seu modo, desenvolver a educação entre os operários. Os
grandes congressos operários europeus foram palco de acirrada
batalha entre os dois movimentos a respeito dos princípios
orientadores de uma verdadeira educação operária como
contraponto aos valores da educação burguesa. Os imigrantes, ao
virem para Brasil, trouxeram, em suas bagagens, o gosto pelo
debate e as preocupações com a organização do movimento
operário, razões que determinaram a realização de congressos no
final do século XIX e no início do século XX, com embates entre
marxistas e anarquistas.

3. Resoluções do Segundo Congresso Operário


Brasileiro

No período entre 8 a 13 de setembro de 1913, foi


realizado no Rio de Janeiro, um Congresso Operário, considerado
pelos anarco-sindicalistas como o Segundo Congresso Operário
Brasileiro. Desde 1909, o jornal A VOZ DO TRABALHADOR,
órgão oficial da Confederação Operária Brasileira, não circulava
por causa das dificuldades financeiras e pelas dificuldades próprias
da organização do movimento sindical. Como aconteceu durante o
Primeiro Congresso, realizado em 1906, este outro procurava
revitalizar o movimento sindical e fortalecer o domínio anarco-
sindicalista. Entre várias moções aprovadas, destaco a que se refere
à critica à escola controlada pelo Estado e pela Igreja, por meio de

93
considerandos, e a proposta dos princípios filosóficos que norteiam
a criação de escolas operárias para os operários.

Educação e instrução das casses operárias


Considerando que a instrução foi até época recente
evitada pelas classes aristocráticas e pelas igrejas de todas
as seitas, para manterem o povo na mais absoluta
ignorância, próxima à bestialidade, para melhor
explorarem-no e governarem-no;
Considerando que a burguesia, inspirada no misticismo,
nas doutrinas positivistas e nas teorias materialistas,
sabiamente invertidas pelos cientistas burgueses, os quais
metamorfoseiam a ciência segundo os convencionalismos
da sociedade atual e monopolizam a instrução, e tratando
de ilustrar o operariado sobre artificiosas instruções que
enlouquecem os cérebros dos que freqüentam as suas
escolas, desequilibrando-os com os deletérios sofismas que
constituem o civismo ou a religião do Estado;
Considerando que esta instrução é ministrada juntamente
com a educação prática de modalidades que estão em
harmonia com a instrução aplicada;
Considerando que esta e instrução e educação causam
males incalculavelmente maiores do que a mais supina
ignorância e que consolidam com mais firmeza todas as
escravizações, impossibilitando a emancipação
sentimental, intelectual, econômica e social do
proletariado e da humanidade;
Considerando-se que este ensino baseia-se no sofisma e
afirma-se no misticismo e na resignação ( A VOZ..., n..
39-40, ano VI. 01.10.1913, p 4, coluna 3).

A esta escola oferecida aos operários, o movimento


propunha uma outra, cujos suportes deveriam ser o que
consideram método racional e científico, à semelhança das escolas
racionalistas ou modernas fundadas por Francisco Ferrer (1859-
1909) na Catalunha, com a finalidade de formar de modo integral
os estudantes, como será possível verificar páginas adiante, sem

94
descuidar da formação técnica para o trabalho, conforme aditivo
aprovado em complemento à menção apresentada pelos redatores.

Este Congresso aconselha aos sindicatos e às classes


trabalhadoras em geral, tomando como princípio o
método racional e científico, promova a criação e
vulgarização das escolas racionalistas, ateneus, revistas,
jornais, promovendo conferências e preleções,
organizando certames e excursões de propaganda
instrutiva, editando livros, folhetos, etc., etc. João
Crispim e Rafael Serrato Muñoz, da Federação Operária
de Santos. Antonio Venosa, do Sindicato dos Pedreiros e
Serventes de Santos. Artur Conde, do Sindicato dos
Canteiros, de Ribeirão Pires. Pedro Vila, do Sindicato
dos Trabalhadores em Tecidos, do Rio.
Esta moção foi aprovada com o seguinte aditivo:
“Propomos que, além de escolas racionalistas, seja
aconselhada a criação de cursos profissionais de educação
técnica e artística. José Romero, do Sindicato Operário
de Ofício Vários, de S. Paulo. Astrojildo Pereira, de O
Trabalho, de Bajé”( A VOZ..., n. 39-40, ano VI.
01.10.1913, p. 4, coluna 4).

Em atendimento a essas propostas, a edição de 1º. de


dezembro de 1913, noticiava a oferta de aulas, em um centro
operário, sem referência a uma organização escolar, mas, supõe-se,
com a finalidade de formação intelectual e cultural. O aditivo
atende a críticas de setores do movimento de que a educação
anarquista preocupava-se apenas com a formação geral, mas não
com a técnica, que prepararia o operário para o trabalho. Os
temas, entretanto, respeitavam as disciplinas que normalmente são
oferecidas em currículos escolares. Não há indicações se eram
destinadas apenas aos jovens operários:

Centro Cosmopolista
Esta associação, com a cooperação do Centro de Estudos
Sociais, organizou uma série de aulas, diurnas e
noturnas, de acordo com o quadro abaixo:

95
Diurnas
Português, as terças e sábados, de 1 hora às 3;
Aritmética, às terças e quintas, de 1 hora às 3;
Geometria, às quintas e sábados, de 1 às 3;
Pelo Dr. Orlando Correa Lopes
Noturnas
Francês, às terças e quintas, pelo camarada Honoré
Cemili;
Aritmética, às terças e sábados, por José Elias da Silva;
Português, às quartas e sextas, por João Gonçalves da
Silva;
Geografia, às quartas, por Carlos de Lacerda;
Inglês, às quintas, por Meyer Feldman ( A Voz...,
1.12.1913, ano VI, n. 44, p. 6, coluna 1).

São aulas de disciplinas escolares sem a organização


formal de uma escola, com o intuito de criar as condições para o
comparecimento dos operários, mesmo as oferecidas em período
diurno, colocadas em horários que poderiam não impedir a
realização de certas jornadas de trabalho cujo início poderia ser no
início da tarde. Nota-se a ênfase ao ensino do português, e
também de inglês e de francês, línguas não dominadas por
portugueses, brasileiros, espanhóis e italianos que formavam o
maior contingente de trabalhadores imigrantes.
A edição de 1 de janeiro de 1914 traz duas matérias
sobre a educação.
Uma delas noticia a construção de prédio para uma
organização sindical, no Rio Grande do Sul, em que, ao mesmo
tempo, funcionaria um ateneu de ofícios, conforme recomendava
a moção aprovada no congresso do ano anterior:

Aproveitando-se de um terreno que fora doado à


Federação Operária, na época em que seus diretores
queriam adquirir simpatia da classe a troca de favores

96
obtidos dos poderes públicos, está sendo construído no
campo da Redenção o edifício do Ateneu Operário,
destinado a ser a sede das associações operárias federadas
e ao estabelecimento de uma escola de artes e ofícios e de
instrução e educação. Esse edifício terá um vasto salão
destinado a conferências, reuniões e espetáculos.
As obras do Ateneu, já bastante adiantadas, até agora
têm sido custeadas com o produto de donativos
angariados, festas, kermesses, etc.
Uma comissão especial nomeada pela Federação Operária
encarrega-se das referidas obras (A Voz, ano VII, n. 46,
p. 3, coluna 2).

A outra matéria, assinada por Florentino de Carvalho


(1889-1947), então com 24 anos, traçava os princípios filosóficos
e metodológicos das escolas que estavam sendo criadas pelo
movimento, como a que ele próprio fundaria em São Paulo, cuja
organização curricular está publicada em edições posteriores.
Florentino de Carvalho era o pseudônimo de Raymundo Primitivo
Soares, espanhol, nascido na Província de Oviedo em 3 de março
de 1889, imigrado para a cidade de São Paulo, com seus pais e
irmãos, aos dez anos de idade. Foi cabo da polícia militar até ler
Piotr Kropotkin, ideológo anarquista russo. Entusiasmado com o
pensamento anarquista, tornou-se operário e fervoroso militante.
Frequentemente perseguido pela polícia, foi para a Argentina
onde, entre outras ações, exerceu a função de professor conforme
os princípios da Escola Moderna fundada por Francisco Ferrer na
Espanha. Deportado da Argentina para a Espanha, foi retirado à
força pelos operários quando o navio em que viajava fez escala no
porto de Santos, em 1910, adotando, a partir desta nova entrada
no país, o nome de Florentino de Carvalho. Posteriormente foi
deportado com outros militantes, mas nenhum país o recebeu. De
volta ao Brasil, com o arrefecimento do movimento durante o
governo Vargas, Florentino procurou outros caminhos para
sobreviver. Em carta endereçada a Alexandre Pinto, em 17 de
dezembro de 1946, postada em Marília – SP, o velho militante

97
anarquista dizia viver, mesmo doente, como professor em escola
rural na cidade de Oriente, SP.

"Marília,17 de dezembro de 1946


Alexandre Pinto,
Estimado camarada
Acabo de chegar a esta cidade de Marília, procedente de
uma fazenda distante daqui uns 40 quilômetros e tenho,
com surpresa, a satisfação de receber a sua grata missiva,
a qual veio a servir de início a novas e necessárias relações
com o velho amigo e companheiro de ideal.[...]
Atualmente estou lecionando em uma fazenda distante de
Oriente uns 20 quilômetros, lugar denominado Monte
Alegre.[...]
Sem mais queira o camarada abraçar em meu nome, as
pessoas da nossa grei, e receber um fraternal amplexo
deste seu amigo e companheiro de ideal.[...]
Primitivo Raymundo Soares
Ao cuidado do Sr. José Oliveira Cruz
Caixa Postal n.40 –Oriente- E.F.P.- Estado de São
Paulo"

Em 24 de março de 1947, a imprensa noticiou o


falecimento de Raymundo Primitivo Soares ou Florentino de
Carvalho, com 58 anos. O artigo de Florentino de Carvalho,
escrito em janeiro de 1914, em seu início, anunciava a
necessidade de discutir princípios metodológicos, embora, segundo
apontava o articulista, havia o pensamento de que essa discussão
revestia-se de pouca importância, desde que as crianças
aprendessem. Não seria este, entretanto, o ponto de vista do
pensador anarquista, preocupado em definir com clareza esses
princípios, porque orientariam a conduta docente e a organização
curricular da escola:

98
Há pessoas que ligam pouca importância aos métodos de
ensino: o essencial é que os meninos aprendam...seja o
que for.
Se algum interesse os pais tomam pela instrução dos
filhos é para prepará-los em materiais de leitura e
contabilidade, a fim de adquirirem com menos embaraço
uma colocação de preferência, ou um diploma de certa
profissão, mais ou menos elevada.
Estuda-se sempre com o fim de suplantar os semelhantes
na luta pela existência; nunca com o fim de criar uma
cultura racional. Este critério não predomina somente
nas famílias ignaras. Alguns militantes do livre-
pensamento, e mesmo dos ideais mais ou menos
libertários, afirmam que os indivíduos educados nos
colégios dos jesuítas, quando passam para as nossas
fileiras, vêm a ser os melhores elementos de nossa grei,
porque agem com mais conhecimento de causa (A Voz...,
ano VII, 1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 1).

Carvalho contrapõe o que considera métodos de ensinar


e de fazer ciência, próprios do movimento anarco-sindicalista, aos
métodos e princípios educativos da educação patrocinada pelo
Estado. Deste modo, entende que o racionalismo seria o princípio
educativo que poderia se contrapor ao Estado de modo que a
criança, particularmente filha de trabalhadores, pudesse receber
uma educação integral.

O método intuitivo, demonstrativo e objetivo é o


tecnicismo pedagógico, que pode ser mais ou menos
limitado, e aplicado de forma a não prejudicar o regime
estabelecido.
O método racional de analisar e conceber a natureza e a
vida, é o que foi desprezado porque o Estado e as castas
aristocráticas ou burguesas, não devem estar dispostas a
abrir falência em benefício do bem estar e do
desenvolvimento integral de todos os indivíduos que
fazem parte de toda a colméia humana (A Voz..., ano
VII, 1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 1).

99
Esses princípios metodológicos apoiar-se-iam no
positivismo comtiano que, para Carvalho, forneceu as bases
filosóficas para que o estado organizasse sistemas educativos
diferenciados para a classe dirigente e para a classe operária.

Mesmo nas democracias, onde se diz ser um fato a


igualdade perante a lei, a instrução ainda é privilégio dos
ricos. No entanto a coerência é patente: Augusto Comte
na sua filosofia positivista estabeleceu um sistema de
instrução e educação compatível com o regime capitalista.
Diz, textualmente, que aos ricos deve ser dada uma
instrução integral ou universitária, e aos operários uma
instrução elementar e profissional (A Voz..., ano VII,
1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 1).

Apoiada por essa filosofia discriminatória, a escola nas


décadas iniciais do século XX, na perspectiva anarquista,
contribuiria para formação de uma ordem moral contrária à
solidariedade humana, princípio fundamental do pensamento
anarquista. Entre outras mentalidades criadas pelo ensino imposto
pelo Estado, Carvalho arrola o que considera como doenças ou
vícios:

O ensino oficial produz, entre outros, os seguintes vícios


ou enfermidades: a - pessimismo; b – tristeza; c –
temperamento irascível; d – orgulho exagerado; e -
presunção; f – ódio e desprezo ao estrangeiro; g –
inclinação a ferir com gestos e com palavras a
suscetibilidade de outrem, sentindo prazer em irritar e
humilhar; h – inveja dos que gozam das melhores
regalias; i – falsa comiseração pela extrema pobreza que
reflete a diferença de condições (A Voz..., ano VII,
1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 2).

A preocupação com a educação integral do homem, com


o objetivo de promover a sua emancipação, era o pilar da educação
anarquista, que, apoiada nos princípios do racionalismo, isto é, do
uso da razão e do respeito à natureza humana, poderia criar as

100
condições para a visão crítica do mundo organizado pelo capital
para os capitalistas:

Quando estudamos um simples compêndio de geografia


que nos descreve a flora e a fauna e outras riquezas dos
diversos países, dando a entender que são desfrutadas por
todos os seus habitantes, poderemos racionalmente deixar
de explicar que essas riquezas beneficiam exclusivamente
determinados indivíduos e que a imensa maioria se
definha de miséria, ao pé de grandes depósitos, que
produziram com o seu próprio trabalho?
Não, a escola deve tender para a educação integral, não
escondendo nenhuma das verdades demonstradas pela
experiência; deve facilitar os meios para que os alunos
possam adquirir os conhecimentos mais essenciais a fim
de eles mesmos criem a sua educação.
Para formar uma verdadeira cultura é preciso criar ao
redor da infância um ambiente de justiça, de
independência e de estética que a liberte dos vícios e dos
preconceitos que adquire quando está em contato com os
elementos de degeneração da sociedade presente.
E não há dúvida de que com este método de educação se
conseguirá formar homens mais equilibrados, mais sãos,
mais racionais do que os que possam vir ao nosso campo,
passando primeiramente pelas academias da corrupção e
do fanatismo, cujos vestígios dificilmente desaparecem de
uma forma radical (A Voz..., ano VII, 1.1.1914, n. 46,
p. 2, coluna 2/3).

A edição de primeiro de fevereiro de 1914 noticiava a


formação de uma escola em São Paulo, na rua Miller, 74, de
acordo com o método racionalista. Uma outra matéria, de 7 de
abril de 1915, anunciava a existência de uma outra escola, na rua
da Alegria, 20, da qual fazia parte Florentino de Carvalho.
Transcrevo as duas matérias, com o objetivo de destacar as
disciplinas oferecidas, os princípios metodológicos defendidos por
Carvalho no artigo já citado e a organização curricular, de modo
geral, preocupada com a formação integral da criança.

101
O Ensino racionalista em S. Paulo
Escola Moderna n. 2
O Comitê pró Escola Moderna distribuiu ultimamente o
seguinte boletim, na capital do Estado de São Paulo:
“Cientificamos às famílias que se acha instalada no
prédio da rua Miller, 74, a Escola Moderna n. 2, criada
sob os auspícios do Comitê pró Escola Moderna.
Esta escola servir-se-á do método indutivo demonstrativo
e objetivo, e baseia-se na experimentação, nas
informações científicas e raciocinadas, para que os alunos
tenham idéia clara do que se lhes quer ensinar.
Educação artística intelectual e moral
Conhecimento de tudo quanto nos rodeia;
Conhecimento das ciências e das artes;
Sentimento do belo, do verdadeiro e do real;
Desenvolvimento e compreensão sem esforço e por
iniciativa própria.
Matérias
As matérias a serem iniciadas, segundo o alcance das
faculdades de cada indivíduo, constarão de leitura,
caligrafia, gramática, aritmética, geografia, geometria,
botânica, zoologia, mineralogia, física, química, história,
desenho, etc.
Para maior progresso e facilidade do ensino, os meninos
exercitar-se-ão nas diversas matérias com auxílio do
museu e da biblioteca que esta escola está adquirindo nas
aulas.
Na tarefa de educação tratar-se-á de estabelecer relações
permanentes entre a família e a escola, para facilitar a
obra dos pais e dos professores.
Os meios para criar estas relações serão as reuniões em
pequenos festivais, nos quais se recitará, se cantará e se
realizarão exposições periódicas dos trabalhos dos alunos;
entre os alunos e os professores haverá palestras a

102
propósito de várias matérias, onde os pais conhecerão os
progressos alcançados pelos alunos.
Para complemento de nosso programa de ensino
organizar-se-ão sessões artísticas e conferências
científicas.
Horário: 12 da manhã às 4 da tarde.
A inscrição dos alunos acha-se aberta das 10 às 12 horas
da manhã e das 4 às 6 da tarde.
S. Paulo, 16 de agosto de 1913. A diretoria” (A Voz...,
ano VII, 1.2.1914, n. 48, p. 8, coluna 2).

É interessante notar que a formação integral, objetivo da


educação anarco-sindicalista, colocava já, no início do século XX,
procedimentos que a escola oficial ainda procura operacionalizar
no início do século XXI, no Brasil, como se fossem descobertas
defendidas por tendências pedagógicas dos últimos tempos. Assim
é que a relação escola-comunidade, por meio de reuniões,
exposições e atividades artísticas; a utilização de laboratórios e
bibliotecas; encontros de natureza artística e científica, apoiados
sobre um conjunto sólido de conhecimentos, constituir-se-iam a
base necessária para o processo de humanização.
Esta escola utilizava o nome cunhado por Francisco
Ferrer para colocar em ação as recomendações contidas nas
moções aprovadas pelo Segundo Congresso e os princípios
defendidos por Carvalho.
A outra matéria, publicada em 7 de abril de 1915,
divulga o funcionamento de uma escola em São Paulo. Não há
indicações se se tratava da anterior, em nova sede:

Escola Nova
Na capital do estado de S. Paulo foi ultimamente
instalado, em confortável prédio da rua da Alegria, 26
(sobrado) um instituto de instrução e educação para
meninos e meninas, cujo título encima esta notícia,
estando já funcionando as respectivas aulas diurnas e

103
noturnas, a qual serve-se dos métodos racionais e
científicos da pedagogia moderna.
As matérias são: Para o curso primário – Português,
aritmética, geografia, botânica, zoologia, caligrafia e
desenho.
Curso médio –Português, aritmética, geografia,
mineralogia, botânica, zoologia, física, química,
geometria, história universal, caligrafia, desenho, etc.
Curso superior – Aritmética, álgebra, botânica, zoologia,
mineralogia, geometria, física, química, história
universal, geologia, astronomia, desenho. Idiomas:
português, italiano, espanhol, etc.
Os cursos primário e médio acham-se a cargo dos
professores Florentino de Carvalho e Antonia Soares.
O curso superior está sob a direção de pessoas de
reconhecida competência, figurando entre elas o professor
Saturnino Barbosa, dr. Roberto Feijó, Passos Cunha, A.
de Almeida Rego e Alfredo Junior, os quais lecionam
matérias de sua respectiva especialidade.
Para outros esclarecimentos os interessados devem se
dirigir à sede da aludida Escola Nova, à rua Alegria, 26,
S. Paulo (A Voz..., ano VIII, 7.4.1915, n. 69, p. 2,
coluna 3).

Destaca-se, neste anúncio, a preocupação com a


definição da metodologia baseada nos pressupostos racionalistas e
científicos defendidos por Florentino de Carvalho, que, com sua
irmã Antonia, praticamente organizaram a escola, porque a eles
estava a responsabilidade por ministrar aulas de várias disciplinas
nos cursos que em 2006 equivaleriam às oito séries do ensino
fundamental. Tais dados revelam a formação extraordinária de
Carvalho que viria a se tornar professor em escola rural na região
da Alta Paulista. Por outro, a preocupação com a educação levou
os anarquistas a organizarem também cursos superiores, na área
de exatas, biológicas e humanas, uma vez que a intenção seria a de
formação integral do homem. Há, pela análise das disciplinas,

104
ênfase na área de exatas, por causa da preocupação em cuidar do
que seria um aprofundamento científico do conhecimento, em
oposição às idéias de natureza religiosa. Na área de humanas, o
destaque é dado à história universal e não à do país, como
supostamente deveria acontecer também com o ensino de
Geografia. Idiomas e desenho completariam a formação nessa
área.
A educação desempenhava papel importante no processo
de revolução social que os adeptos do pensamento libertário
queriam opor a uma possível revolução de cunho político. A
sociedade livre, ideal do projeto anarquista, não dependia apenas
de mudanças nas relações sociais, mas precisava também de formar
homens com novas mentalidades, sensíveis aos avanços científicos
e culturais. A revolução social seria uma revolução integral cuja
condição básica seria o rompimento com todo tipo de ignorância e
crendices. À educação burguesa, condicionada pela organização
política e econômica da sociedade, Bakunin (1814-1876)
contrapunha a educação integral, porque

inteligência alguma, por mais prodigiosa que seja, é capaz


de abarcar todas as ciências em sua especialidade, e como,
por outro lado, é absolutamente necessário para o
completo desenvolvimento da inteligência um
conhecimento geral de todas as ciências, o ensino se
dividirá naturalmente em duas partes: a parte geral, que
dará os elementos principais de todas as ciências sem
nenhuma exceção, do mesmo modo que o conhecimento,
não superficial, porém real do seu conjunto; e a parte
específica dividida necessariamente em vários grupos ou
faculdades, cada uma delas abrangendo em toda a sua
natureza são especialmente destinadas a se completarem
(BAKUNIN, 1989, p. 43).

Florentino de Carvalho havia se entusiasmado com as


idéias de Kropoktin (1842 –1921) e é com base nelas que
organiza a escola que funda em S. Paulo, com o foco dirigido para
a formação científica, porque,

105
sobre o pretexto da divisão de trabalho separamos
violentamente o trabalho intelectual do braçal. A massa
trabalhadora não recebe mais informação científica do
que seus avós e, ademais, se vê privada da pouca educação
que poderia adquirir nas pequenas oficinas, enquanto que
seus filhos, homens e mulheres, condenados a viverem na
mina ou na fábrica desde a idade de treze anos, esquecem
logo o pouco que aprenderam na escola. Os homens de
ciência, por sua parte, desprezam o trabalho braçal.
Quem poderia fazer um telescópio ou outro instrumento
menos complicado? Muitos não são capazes nem mesmo
de desenhar um aparelho científico, somente dão uma
vaga idéia ao construtor e deixam a este o cuidado de
inventar o aparelho de que necessitam (KROPOTKIN,
1989, p.51).

Carvalho colocava em prática, ao fundar as escolas, os


princípios anarquistas de educação, apoiando-se em Ferrer e suas
experiências com a Escola Moderna de Barcelona, e no
pensamento de Kropotkin, ideólogo anarquista, do qual alimentou
seu espírito revolucionário anarco-sindicalista, para,
posteriormente, enveredar para a educação libertária, assentada
firmemente sobre o conhecimento universal produzido pelo
homem, mas orientada sempre pelos princípios de formação
integral, apoiada na análise crítica, racional, objetiva e
experimental desse conhecimento.

Conclusão

O objetivo deste trabalho foi o de verificar as


preocupações com métodos e organização curricular defendidos
pelo pensamento educacional anarquista brasileiro veiculado pelo
jornal A VOZ DO TRABALHADOR, editado entre 1908-
1915, pela Confederação Operária Brasileira, sediada no Rio de
Janeiro. Essas preocupações foram claramente expostas nas
decisões aprovadas em moção do Segundo Congresso Operário,
realizado em 1913, cujas bases também já tinha sido registradas

106
no anterior, de 1906. A partir de 1913, muitas escolas são
fundadas, entre as quais se destacam as de S. Paulo, orientadas
pelo pensamento de Florentino de Carvalho, defensor rigoroso das
idéias educacionais anarquistas.
A organização curricular das duas escolas direciona os
alunos para formação geral, com ênfase em matérias das três
grandes áreas do conhecimento, sem, contudo, oferecer aulas para
a formação específica do trabalho operário, como também
acontece com a oferta de disciplinas pelo Centro Cosmopolita, não
definido como organização escolar. Por outro lado, o Ateneu
Operário no sul do país ofereceria o ensino de artes, ofícios e
instrução geral, ações que caracterizam a formação integral.
Nesse período pós-congresso, a atuação de Florentino de
Carvalho parece ter sido fundamental para a criação a partir de
1913, pelo menos em São Paulo, das escolas anarquistas, em
cumprimento às decisões do Segundo Congresso Operário.

Referências

A VOZ do Trabalhador: orgam da Confederação Operária


Brazileira: coleção fac-similar de 71 números, 1908-1915.
Prefácio de Paulo Sérgio Pinheiro. São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado. Secretaria da Cultura: Centro de Memória Sindical,
1985.
BAKUNIN, M. e outros. Educação Libertária. Porto Alegre :
Artes Médicas, 1989.
BIONDI, L. Anarquia e movimento anarquista. Disponível em:
<http://www.arquivo.ael.ifch.unicamp.br/
textosdidaticos/htm/luigi.htm>. Acesso em 26 fev. 2005
FOUCAMBERT, J. Trata-se, de fato, de distribuir melhor a
leitura? Leitura: Teoria & Prática/Associação de Leitura do
Brasil, ano 32, n. 42 mar. 2004 – Campinas, SP. ALB; São
Paulo: Global Editora, p. 7-8, 2004
107
GHIRALDELLI JR. P. Educação e movimento operário no
Brasil. São Paulo : Cortez/Autores Associados, 1987.
SANTOS, R. A reação espanhola:o jesuitismo a renascer. A Voz
do Trabalhador. 30.out.1909, ano II, n. 19.
WIKIPEDIA. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florentino_de_Carvalho. acesso em
14 abril 2006.

Dagoberto Buim Arena - Departamento de Didática; Programa


de Pós-Graduação em Educação; Grupo de Pesquisa: Processos de
leitura e de escrita: apropriação e objetivação – UNESP/Marilia.
e-mail: arena@marilia.unesp.br

Recebido em: 20/05/2007


Aceito em: 20/07/2007

108
A PUC-CAMPINAS: AS MUDANÇAS
INSTITUCIONAIS NARRADAS POR SEUS
DOCENTES MAIS VELHOS
Rogério Canciam
Vera Lúcia de Carvalho Machado (co-autora)

Resumo
O estudo realizado insere-se na área da Educação e articula à linha
de pesquisa Universidade, Docência e Formação de Professores. A
pesquisa realizada teve como objetivo recuperar, com base nos relatos
de professores mais velhos em atividades docente na PUC-Campinas,
informações que pudessem contribuir para a história dessa instituição
educacional em tempos mais remotos. Com esse intuito, foram
adotados procedimentos metodológicos derivados da História Oral,
sendo efetuadas entrevistas com cinco docentes mais antigos.
Palavras-chave: Educação Superior – PUC-Campinas –
Universidade.

PUC – UNIVERSITY OF CAMPINAS (BRAZIL): THE


INSTITUTIONAL CHANGES NARRATED BY ITS
OLDEST TEACHERS
Abstract
The carried through study is inserted in the Education area and is
joined the University research line, Education and Teachers
Formation The carried through research had as objective to recoup
on the basis of the older teachers stories in teaching activities at
PUC-Campinas, information that could contribute for the history of
this educational institution in more remote times. With this
intention methodological procedures derived of Verbal History had
been adopted and five older professors have been interviewed.
Keywords: Further Education; PUC-Campinas-Brazil; University.

PUC-CAMPINAS: LOS CAMBIOS INSTITUCIONALES


NARRADOS POR SUS DOCENTES MÁS ANTIGUOS
Resumen
El estudio realizado se inserte en el área de la Educación y articula a
la línea de investigación Universidad, Docencia y Formación de
Profesores. La investigación realizada tuvo como objetivo recuperar,
con base en los relatos de profesores más antiguos en actividades
docentes en la PUC-Campinas, informaciones que pudieran
contribuir para la historia de esa institución educacional en tiempos

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 109-120, Maio/Ago 2007


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
más remotos. Con ese intuito, fueron adoptados procedimientos
metodológicos derivados de la Historia Oral, siendo realizadas
encuestas con cinco docentes más antiguos.
Palabras-clave: Educación superior – PUC-Campinas –
Universidad

110
Introdução

Desde os estudos desenvolvidos na graduação, nossa


atenção esteve voltada para questões da formação e da prática
docente no ensino superior, e mais especificamente para a situação
daqueles docentes que, já há muito tempo exercendo suas
atividades, ainda hoje em atuação em sala de aula,
experimentavam as inúmeras transformações características de
nossa época. Sociais, políticas, econômicas, culturais,
tecnológicas, rápida e intensamente modificando as estruturas
vitais na esteira da evolução e desenvolvimento do processo que
conhecemos por globalização, certamente tais transformações
repercutiam decisivamente na docência do momento
contemporâneo.
Assim, no interior desse quadro, decidimos investigar
como os docentes, tal como caracterizados acima, observavam,
consideravam, refletiam e reagiam diante dessa situação. Ao
mesmo tempo, percebíamos que numa investigação assim
orientada teríamos também a oportunidade de constituir
elementos de natureza histórica suscetíveis de trazer informações a
respeito da instituição em que esses professores eram docentes,
assim como a propósito da Educação mesma. E, também
elemento de relevância para nossa pesquisa, uma vez que era nosso
propósito proceder por meio da adoção de recursos metodológicos
advindos da Historia Oral, a utilização de entrevistas em que se
possibilitasse aos docentes participantes elaborarem relatos nos
quais pudessem se expressar livre e abertamente, ficavam também
postas às condições para que muitos dados diversos aflorassem e
vários aspectos reativos aos assuntos abordados pudessem ser
correlacionados. Isto nos pareceu fundamental num trabalho
acadêmico como o nosso – elaborar, tanto quanto possível, com
base nas informações proporcionadas, elementos-chaves que
pudessem ser dispostos como temas básicos, de modo que os

111
procedimentos de análise fossem orientados consequentemente,
favorecendo o processo interpretativo e as observações de caráter
mais conclusivas.
Portanto, nossa pesquisa trabalhou com o objetivo
amplo de verificar como os professores mais velhos, por longo
tempo na mesma instituição e ainda hoje nela em sala de aula,
estariam vivendo a experiências de ensinar, tendo como
contraponto a sua docência em décadas anteriores. Objetivos mais
específicos, já sugeridos precedentemente, como a promoção de
informações a respeito da historia da instituição educacional em
questão, acerca das contribuições possibilitadas com o recurso à
rememoração e lembrança (e, assim, direcionar reflexões mais
proximamente de caráter metodológico), a respeito da emergência
de temas relevantes cujo conteúdo pudesse sinalizar orientações
produtivas para a reflexão, e, enfim, a contribuição para futuras
explorações, também nortearam a condução do trabalho. Todos os
objetivos colocavam-se, no quadro das prospecções relativas ao
interesse da pesquisa, como elementos legitimadores, induzindo-
nos a poder justificar nossas pretensões com a obra realizada.
A efetivação do trabalho iniciou-se, ao lado e após uma
revisão bibliográfica, com a escolha dos professores que
satisfizessem os requisitos decisivos, e cinco professores acederam
em participar da pesquisa.
Uma vez que alimentavam teoricamente nossas opções,
foram revisitados em bibliografia pertinente aspectos diversos com
relação à história da emergência da instituição universitária em
nosso país; isso levou-nos também a investigar e sistematizar
outras informações a respeito da evolução histórica das estruturas
sociais políticas e econômicas do Brasil, desde a época imperial até
os anos 1940, com incursões à época do movimento de 1964 e
suas repercussões. No interior desse quadro, buscamos também
estipular a influencia tanto de algumas posturas da Igreja Católica
quanto de movimentos de pensadores católicos em relação à
situação da educação e, mais particularmente, da implantação de
cursos e instituições de nível universitário.
112
Dentre a valiosa bibliografia que nos auxiliou, merecem
destaque Castanho e Castanho (2006), Castanho (2007), Cunha
(1988, 1989, 2002), Cury (1986), Furtado (1967), Romanelli
(2002), Sá (1984). Também nos foi imprescindível, sobretudo
para dirimir questões e polemicas às quais não nos pareceu
adequado assumir no âmbito de nossa investigação, contar com o
aprofundamento do pensamento histórico a respeito do papel da
memória e da historia oral, desde que, para fins da consecução do
projeto em pauta, foi no interior de tal arcabouço teórico que
fomos buscar recursos para nossas opções metodológicas;
igualmente foi extremamente valioso rever com cuidado aspectos
determinantes com relação à docência superior. Cumpre destacar,
assim, as obras de Alberti (2005), Braga (2002), Bosi (2003,
2004), Fazenda (1992), Ferreira e Amado (2002), Masetto
(2003), Meihy (2000), Nóvoa (1995), Park (2000) e Werle
(2005).

Temas emergentes com os relatos dos professores


entrevistados: análise e interpretação

Os depoimentos dos professores trouxeram informações


relevantes, e, com base nelas, foi-nos possível construir uma
sistematização privilegiando quatro grandes temas, todos
configurados a partir de uma perspectiva mais fundante – a das
mudanças verificadas ao longo do tempo, tal como os docentes
puderam percebê-la e julgar. Esses temas foram dispostos como:
A. Mudanças nas formas de ensinar e mudanças que
ocorreram na sala de aula.
B. A estrutura da Universidade em relação ao ensino,
pesquisa e extensão.
C. A relação da Universidade com o município de
Campinas e região.
D. Movimentos dentro da Universidade.

113
Queremos destacar, agora, com relação a esses temas,
aquilo que surge com maior evidência, aparecendo como
determinante para a reflexão interpretativa cabível. Interessa notar
que, não apenas aspectos de teor ou conteúdo dos dados
apresentados e narrados, mas também aqueles evidentes nas
narrações mesmas, que indicam um alto grau de elaboração e de
consciência são determinantes, pois que mostram o
desenvolvimento de um posicionamento teórico marcadamente
decidido pela apropriação, em todos os docentes, da prática no
interior de um processo de reflexão.
Relativamente ao primeiro grande tema – Mudanças nas
formas de ensinar e mudanças que ocorreram na sala de aula -, os
vários relatos apontam para situações que podemos perceber como
comuns; dentre elas, aquelas referentes à mudança nos quadros
discentes no que toca à proveniência social, à presença de
universos culturais diferenciados, com conseqüentes mudanças em
atitudes, posturas e comportamentos, dos alunos, face à questão
do conhecimento e com respeito ao próprio inter-relacionamento e
à posição do professor. O papel do docente é avaliado como, em
geral, não sendo adequadamente caracterizado, hoje, por confronto
com épocas passadas. Maior profundidade e maior reflexão para o
enfrentamento das atividades intelectuais são atribuídas às
situações de aprendizagem para momentos anteriores, e varias
advertências com relação ao desempenho investigatório dos alunos
de hoje – como pesquisa bibliográfica – estão presentes nos relatos
dos docentes. Várias são as causa aventadas pelos professores:
desde as requisições estabelecidas pelo mercado de trabalho com
referência à titulação exigida até a disponibilizacao de recursos
tecnológicos e informacionais, na atualidade, mal e
contraproducentemente utilizados. Ainda com relação à disposição
dos mesmos recursos, a utilização pelos professores aparece julgada
como bastante condicionada – de modo geral, são vistos como
instrumentos de trabalho, cujo emprego deve ser justificado, sob
pena de promoção de prejuízos para a aprendizagem quando
adotados maciça e indiscriminadamente. Outro aspecto
114
recorrentemente indicado nas avaliações docentes diz respeito às
situações de envolvimento e comprometimento social, hoje
considerada nesses relatos como deficitárias.
No tocante ao tema da estruturação universitária em
torno à pesquisa, ensino e extensão, todos os professores
relacionam diversos aspectos positivos relacionados às mudanças
ocorridas; fica evidente que, para os docentes entrevistados, a
situação atual aparece como orientada positivamente para cumprir
com os tributos próprios à concepção de universidade. Desse
modo, a avaliação elaborada nos relatórios coloca-se como
extremamente favorável, uma vez que a estrutura atualmente
adotada contribui decisivamente para estabelecer as condições
necessárias ao trabalho científico, à divulgação do saber, e ao
tratamento das questões relativas à formação docente mais
adequada. Todavia, uma observação incisiva diz respeito à
necessidade de se fazer acompanhar o desenvolvimento da
estrutura universitária orientada por esse tripé de um trabalho em
cima da integração entre cursos e do relacionamento humano. E,
também, na medida em que transparece nos relatos a consideração
de que uma vocação precípua da Universidade Católica continua a
residir no ensino, aparece reforçada em vários depoimentos a
noção de que tanto a pesquisa quanto o ensino em nível de pós-
graduação ganham legitimidade desde que atuem no sentido de
melhorar a formação docente, o próprio ensino e a participação
social da Universidade.
Todos os professores entrevistados apontaram um grande
papel para a PUC-Campinas no relacionamento desenvolvido com
a cidade e região. Com respeito a décadas anteriores, a participação
da universidade aparece com maior relevância no que diz respeito a
ações sociais de cunho religioso e assistencialista; a sua presença,
marcante, na formação de professores e em atividades envolvendo
escolas e colégios da cidade e da região também foi bastante
acentuada. O desenvolvimento socioeconômico da cidade e do
entorno foi indicado e historiado de modo a levar às considerações
sobre o momento atual de transformação radical para a cidade
115
tornada sede de uma grande região metropolitana; nesse quadro,
muitas das mudanças experimentadas pela Universidade, como por
exemplo, uma retração nas licenciaturas em razão da emergência
de muitos cursos, faculdades e instituições universitárias novas,
foram comentadas para indicar a divergência de propostas e
projetos – tendo a PUC-Campinas de acompanhar e satisfazer
exigências estipuladas pela sociedade contemporânea,
marcadamente às derivadas da preeminência do mercado;
transparece ainda, nos comentários efetuados, o empenho, pela
Universidade, pela manutenção de níveis satisfatórios para o
ensino, o conhecimento e o desenvolvimento do ser humano em
suas potencialidades. Nesse momento, aponta uma crítica em
relação àquelas instituições que se desviariam da relação primordial
instituição – saber, atraídas, sobretudo pela satisfação de
requisições mais propriamente mercantilistas.
Outro elemento relevante nos discursos apresentados
trata, com base nas considerações dos diversos tipos de
movimentos e mobilizações, vivenciados na PUC-Campinas, da
ação e participação de alunos e professores. A maioria dos relatos
indica a ocorrência de movimentos reivindicatórios, de
contestação, de greves, entre outros, que tiveram lugar nas ultimas
quatro décadas. Vários aspectos e condições são introduzidos aqui,
como à questão dos confrontos de opiniões e perspectivas, o
âmbito democrático de encaminhamento de soluções para os
conflitos, a relevância de situações e conjunturas políticas como o
movimento de 1964 e suas conseqüências, a presença de
elementos ideológicos e políticos na constituição e configuração da
participação de alunos e de professores nos diversos momentos,
dentre outros. A situação atual de apatia e descomprometi mento,
relatada em alguns depoimentos, experimentada pela maioria dos
alunos, aparecem explicadas como o resultado da permanência por
um longo período de uma situação política de exceção e
autoritária. Enfim, todos esses dados permitem a reflexão sobre
pontos significativos como a historia da Universidade e da atuação
de seus integrantes no interior de conjunturas diferenciadas, as
116
causas, motivações e razoes para atitudes mais ou menos
compromissadas e combativas de seus grupos integrantes, a
constituição de elementos simbólicos e emblemáticos
preponderantes na caracterização do imaginário e das mentalidades
atuantes, entre outras questões.

Algumas considerações conclusivas

As informações, comentários e explicações que se


apresentaram com os depoimentos nas entrevistam dos docentes
mais velhos em atuação na PUC-Campinas possibilitaram
procedimentos de análise e de interpretação que, conforme o olhar
que nos orientava na investigação, levou a enfatizar algumas
observações de caráter mais conclusivo. Pensamos ser importante
mencionar a esse respeito, de um lado, todos os dados que
permitem estabelecer, para o plano das alterações e transformações
ocorridas e experimentadas, a apreciação, pelos docentes, das
diversas configurações sóciopolíticos e econômicas transcorridas;
dos resultados em relação à constituição e emergência de grupos
culturalmente determinados e diversos no interior da
Universidade, atualmente; da instalação de maior democratização
para o acesso ao ensino superior; da necessidade, para a
instituição, de promover ações no sentido de, atentando para o
teor e a intensidade de tantas mudanças, preservarem as
características do projeto que a anima. Por outro lado, também
nos parece essencial destacarmos a existência, demonstrada nos
relatos, de um alto nível de elaboração reflexiva, pelos
entrevistados, para a constituição de sentidos que permitem o
estabelecimento de narrativas integradas e articuladas; portanto, a
constituição de perspectivas históricas cujo tratamento teórico,
nestes professores, mostra-se firmemente fundado nas práticas e
experiências. E, com esta observação, queremos ressaltar que, tal
como efetivada com os relatos e com os procedimentos derivados
da história oral, a posição assumida pelos entrevistados acaba por

117
nos conferir uma posição privilegiada na interlocução e na
interpretação.
Parece-nos que aos diversos campos do saber aproveita o
tratamento de tais referências – a Educação, sua história, a das
instituições e também a reflexão sobre a natureza delas, a própria
historia, enquanto disponibilizacão de meios e de recursos de
encaminhamento para a sua exploração e pensamento. Ficam,
assim, abertas diversas alternativas sugeridas com a presente
investigação. Com ela, temos a intenção de propor mais alguns
elementos para reflexões e discussões que possam ser tomadas
frutiferamente para todos aqueles que venham a se interessar pelas
questões aqui trabalhadas.

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UNICS; Ponta Grossa: UEPG, 2005 (Col. Memória da
Educação).

Rogério Canciam - Mestre em Educação pela PUC-Campinas


Vera Lúcia de Carvalho Machado - Doutora em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas (2002). Atualmente é
professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Atua na docência em curso de graduação e em curso de pós-
graduação stricto sensu. Publicou MACHADO, V. L. C.;
MARAFON, M. R. C. Contribuição o pedagogo e da Pedagogia
para a educação escolar: pesquisa e crítica. 1. ed. Campinas:
Alínea Editora, 2005. v. 01. 87 p.

Recebido em: 14/06/2007


Aceito em: 20/07/2007

120
JOHN DEWEY NA ARGUMENTAÇÃO
DE AUTORES CATÓLICOS1
Viviane da Costa

Resumo
O presente estudo analisa o discurso educacional veiculado por seis
obras de autores católicos publicadas no Brasil entre 1930 e 1960,
época em que representantes do pensamento católico disputaram com
os liberais o domínio do campo educacional. São apresentadas as
falas dos autores a respeito das propostas educacionais da Escola
Nova e, em particular, dos princípios filosóficos, sociais e pedagógicos
de John Dewey. O objetivo é expor as estratégias discursivas
utilizadas pelos autores para persuadir os leitores e encaminhá-los a
práticas educacionais consoantes com os preceitos do catolicismo,
garantindo assim o predomínio das idéias católicas em âmbito social.
A metodologia é a análise retórica baseada nos trabalhos de Chaïm
Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação, e
Stephen Toulmin, Os usos do argumento.
Palavras-chave: Discurso educacional católico; Escola Nova; John
Dewey; Análise retórica

THE WAY JOHN DEWEY’S IDEAS ARE USED BY


CATHOLIC AUTHORS
Abstract
The present study analyses the educational speech through six works
of catholic authors published in Brazil between 1930’s and 60’s
during a time where the representatives of the Catholicism disputed
with the liberals the dominion of the educational field. It shows the
arguments of the catholic intellectuals in relation to the new
pedagogical purposes and in particular of John Dewey´s
philosophical, social and pedagogic principles. It aim is to show the
strategic speech used by the authors to persuade the readers to
practice the Catholic Pedagogy making sure, that way, the
dominance of catholic ideas. This methodology is rhetorical analysis,

1
Neste artigo são apresentados alguns aspectos de nossa dissertação de mestrado,
intitulada Argumentos católicos contra John Dewey: análise retórica do discurso de
oposição à pedagogia nova, apresentada em maio de 2005 ao Programa de Pós-
Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara - UNESP, sob a orientação do Prof. Dr. Marcus Vinicius da Cunha.
Pesquisa desenvolvida sob bolsa CAPES.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 121-153, Maio/Ago 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
based upon the works of the Chaïm Perelman and Lucie Olbrechts-
Tyteca, Traité de L´argumentation, and Stephen Toulmin, The uses
of arguments.
Keywords: Catholic educational speech; New School; John Dewey;
Rhetorical analysis.

JOHN DEWEY EN LA ARGUMENTACIÓN DE AUTORES


CATÓLICOS
Resumen
El presente estudio analiza el discurso educacional vehiculado por seis
obras de autores católicos publicadas en Brasil entre 1930 e 1960,
época en que representantes del pensamiento católico disputaron con
los liberales el dominio del campo educacional. Son presentadas las
opiniones de los autores respecto a las propuestas educacionales de la
Escuela Nueva y, en particular, de los principios filosóficos, sociales y
pedagógicos de John Dewey. El objetivo es exponer las estrategias
discursivas utilizadas por los autores para persuadir los lectores y
encaminarlos a prácticas educacionales consonantes con los preceptos
del catolicismo, garantizando de esa forma el predominio de las ideas
católicas en ámbito social. La metodología es el análisis retórico
basado en los trabajos de Chaïm Perelman y Lucie Olbrechts-Tyteca,
Tratado de la argumentación, y Stephen Toulmin, Los usos del
argumento.
Palabras-clave: Discurso educacional católico; Escuela Nueva; John
Dewey; Análisis retórica

122
Considerações iniciais

O campo da educação brasileira no período de 1930 a


1960 foi marcado por disputas travadas entre intelectuais católicos
e liberais. Ambos os grupos propunham uma reforma educacional
sob a ótica da formação da nacionalidade e tinham como ideal a
legitimação de uma educação que situasse o país dentro dos
preceitos sociais modernos. Porém, para o grupo dos intelectuais
católicos, em particular, esse ideal só poderia ser alcançado por
uma política que estivesse sintonizada com os princípios religiosos
(CARVALHO, 1998). Na busca pela legitimidade no controle da
educação, o grupo católico efetivou, então, uma ampla campanha
de divulgação de seu ideário pedagógico e de sua política
educacional, abordando, também, aspectos do ideário de seus rivais
(CARVALHO, 1994).
Tendo como pressuposto que o ideário da Escola Nova
definiu-se no calor dos argumentos críticos dos intelectuais
católicos, neste estudo, analisamos, em específico, seis obras
católicas voltadas para a formação do professorado, que trazem
desde análises conceituais até comentários sobre realizações
educacionais em diversos países.2 Por meio dessas fontes,
buscamos expor os argumentos que faziam menção às propostas da
Escola Nova e, sobretudo, ao pensamento filosófico e educacional
de John Dewey e dos supostos vínculos desse pensador com a
psicologia behaviorista e o ideário comunista. 3

2
Esses livros são : Ensaio da filosofia pedagógica, de Frans De Hovre (1969),
Rumos da educação, de Jacques Maritain (1966), Noções de história da educação,
de Theobaldo Miranda Santos (1951), A filosofia contemporânea, de Leonardo
Van Acker (1981), A favor ou contra a educação nova?, de Suzanne Marie
Durand (1956), Filosofia da educação, de John D. Redden e Francis A. Ryan
(1973).
3
Em nosso estudo de Iniciação Científica, intitulado John Dewey no ideário
educacional católico, desenvolvido em 2001/2002 sob a orientação do Prof. Dr.

123
Seguindo o referencial teórico da análise retórica, em
especial, os trabalhos desenvolvidos por Chaïm Perelman e Lucie
Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação, e Stephen Toulmin,
Os usos do argumento, neste estudo procuramos expor as
estratégias discursivas utilizadas pelos autores para persuadir os
leitores e encaminhá-los a práticas educacionais consoantes com
os preceitos do catolicismo.
Na análise desse discurso, tomamos como base o fato de
que os autores católicos tinham o objetivo maior de preservar a
influência da Igreja na esfera social por meio da conservação e
expansão de seus adeptos. Para isso, em contraposição às
propostas da pedagogia nova, que no período eram consideradas
pelo grupo católico como perniciosas ao ideal democrático por se
fundamentarem na filosofia pragmatista de John Dewey, seus
leitores deveriam ser convencidos da primazia da Igreja em nortear
uma educação moderna. Desse modo, uma das estratégias
efetivadas pelo grupo católico foi a de apresentar ao seu
professorado as propostas educacionais dos liberais sob um olhar
católico. Com essa campanha seria possível manter o professorado
adepto dos princípios católicos e assim garantir o predomínio desse
ideário em âmbito social (COSTA, 2004).
De um modo geral, Dewey, nas obras que analisamos, é
contextualizado como um filósofo cético por negar a existência de
uma verdade absoluta e contrariar as bases filosóficas estabelecidas
pela Igreja. No campo educacional, a inserção de seus pressupostos

Marcus Vinicius da Cunha, mediante bolsa IC/FAPESP, analisamos as matérias


publicadas no periódico católico A Ordem no período de 1930 a 1934. Nosso
principal objetivo foi verificar o modo pelo qual os intelectuais católicos
recontextualizaram e apresentaram ao professorado da época as concepções
educacionais renovadoras e, particularmente, o pensamento filosófico e
educacional de John Dewey, pensador norte-americano que exerceu poderosa
influência entre os educadores denominados liberais. Verificamos, nessa pesquisa,
que a principal e mais freqüente linha de argumentação seguida pelos católicos
consistia em posicionar os liberais e Dewey no rol dos intelectuais adeptos do
behaviorismo e do comunismo (CUNHA; COSTA, 2002).

124
filosóficos causaria um distanciamento das bases seguras das
ciências que, na opinião dos católicos, deveriam fundamentar as
práticas pedagógicas.

Análise do discurso

1- Filosofia católica versus filosofia naturalista


Um dos principais temas discursados pelos autores trata-
se da filosofia católica neotomista em contraposição à filosofia
naturalista e suas respectivas conseqüências na educação. Para os
católicos, somente a filosofia católica, o neotomismo, seria capaz
de nortear a educação em busca do ideal democrático. Por isso,
enquanto apresentam a filosofia católica como a única dotada de
princípios capazes de conduzir a educação à democracia, por ser
um pensamento sintonizado com os avanços científicos, a filosofia
naturalista é aludida como uma concepção filosófica permeada por
princípios que levam a equívocos no âmbito das ciências e da
educação, sendo esta última representada pelas propostas da
Escola Nova. A filosofia naturalista é, pois, caracterizada como
uma perspectiva contrária ao ideário católico, uma vez que é
fundamentada na noção de que a verdade não é eterna e nem
imutável e de que só à experiência e à razão cabem julgar o
verdadeiro e o falso. Para os autores, da concepção filosófica
naturalista é que decorrem o ceticismo e o relativismo, por
substituir a existência da verdade onipotente e absoluta pela idéia
de natureza.
No que tange a educação, os autores prescrevem ser a
pedagogia nova uma educação fundamentada na filosofia
naturalista e que por isso algumas conseqüências sociais seriam
despertadas caso tal pedagogia fosse implantada pelos professores.
Uma das principais críticas dos autores às propostas educacionais
da escola nova deve-se ao fato dessas propostas serem laicas: a
ausência dos princípios religiosos no currículo escolar, como assim

125
atestam os autores, acarretaria a formação de uma sociedade
totalitária e comunista.
Para explicar as razões pelas quais o naturalismo é uma
filosofia equivocada, o argumento dos autores é, invariavelmente,
o seguinte: tal filosofia diverge dos princípios católicos, e tudo o
que diverge dos princípios católicos está errado. O mesmo
raciocínio vale para indicar os méritos do neotomismo: o
neotomismo é certo porque converge com a visão católica. Essas
idéias formam os seguintes enunciados: “o naturalismo e a
pedagogia nova devem ser recusados porque estão em desacordo
com a filosofia católica” e “o neotomismo e a pedagogia
tradicional devem ser aceitos porque concordam com a filosofia
católica”.
Esses argumentos podem ser descritos pela forma
silogística em que A é a premissa maior, B é a premissa menor e C
é a conclusão; dados A e B, então C. Em um argumento
silogístico, a premissa maior é a que possui o termo de maior
extensão, enquanto a menor contém o termo menos extenso,
sendo que de ambas se deduz a conclusão, a qual se apresenta,
então, como uma conseqüência das premissas. Assim, temos:
A. Todos os princípios que discordam da filosofia
católica são princípios errados;
B. o naturalismo e a pedagogia nova discordam da
filosofia católica;
C. então, o naturalismo e a pedagogia nova são
princípios errados.
e
A. Todos os princípios que concordam com a filosofia
católica são princípios certos;
B. o neotomismo e a pedagogia tradicional concordam
com a filosofia católica;
C. então, o neotomismo e a pedagogia tradicional são
princípios certos.

126
Observa-se que os enunciados “o naturalismo e a
pedagogia nova devem ser recusados porque estão em desacordo
com a filosofia católica” e “o neotomismo e a pedagogia
tradicional devem ser aceitos porque concordam com a filosofia
católica” encontram-se estruturados de tal modo que omitem a
explicitação das premissas maiores “Todos os princípios que
discordam da filosofia católica são princípios errados” e “Todos os
princípios que concordam com a filosofia católica são princípios
certos”. A prática argumentativa, ao contrário da lógica formal,
não precisa utilizar todas as implicações para ser considerada
legítima frente ao auditório.
Um argumento assim elaborado é denominado
entimema, pois se apóia nas características dos ouvintes ou
leitores, não necessitando, portanto, apresentar todas as premissas
que levam à conclusão, uma vez que estas são dadas como
admitidas pelo auditório. O entimema é uma dedução, uma
demonstração que é construída com base nos valores e práticas
próprias do auditório, cujas premissas podem não ser enunciadas
ou explicitadas e, mesmo assim, favorecer a aceitação do
argumento. Isso acontece porque o auditório reconhece no
argumento aspectos e valores que considera reais e verdadeiros
(WOLFF, 1993). Assim, os argumentos entimemáticos,
caracterizados por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.229-
230) como argumentos quase-lógicos, tiram sua força persuasiva
de sua aproximação aos raciocínios incontestados pelo auditório:
“ora o orador designará os raciocínios formais aos quais se refere
prevalecendo-se do prestígio do pensamento lógico, ora estes
constituirão apenas uma trama subjacente”.
Os silogismos assim construídos podem ser colocados na
forma ampliada proposta por Stephen Toulmin (2001, p. 153),
para quem as formas aparentemente inocentes dos argumentos
silogísticos podem ocultar alguma complexidade. Dada a natureza
perspicaz dos argumentos, devemos levar em consideração a força
das premissas quando consideradas como garantia, bem como o
apoio de que dependem para sua autoridade. Assim, temos os
127
seguintes componentes adicionais: (D) são os “dados” que se
apresentam sobre o objeto particular a respeito do qual se deseja
concluir alguma coisa, ou seja, sobre a premissa menor; (W) é a
“garantia” que dá fundamento à conclusão, isto é, à premissa
maior; (B) é o “apoio” factual à justificativa, um elemento que
está implícito no silogismo mas que é decisivo para a sustentação
do argumento, uma vez que (W) não é nem factual nem
categórica, mas hipotética e permissiva; e (C) é a conclusão.
No silogismo sobre o naturalismo e a pedagogia nova,
temos que o dado (D) corresponde à proposição “o naturalismo e a
pedagogia nova discordam da filosofia católica”; a garantia (W) é
“todos os princípios que discordam da filosofia católica são
princípios errados”; e a conclusão (C) é “então, o naturalismo e a
pedagogia nova são princípios errados”. Em outras palavras, (W) é
o que garante (C), mas para que essa garantia seja válida é preciso
haver algum tipo de apoio, designado (B), pertinente ao campo em
que se dá o processo argumentativo.
Em nossa análise do discurso dos autores pesquisados,
vimos que esse apoio não se faz presente, pois todas as distinções
estabelecidas entre o certo e o errado repousam exclusivamente na
afirmação da garantia “todos os princípios que discordam da
filosofia católica são princípios errados”. Esse modo de
argumentar é chamado pelos lógicos de “petição de princípio”
(COPI, 1978, p. 84), uma falácia em que a verdade que se quer
demonstrar, isto é, a conclusão do raciocínio, é adotada como
premissa do próprio raciocínio. A premissa maior está, explícita ou
implicitamente, relacionada à conclusão do argumento. Seja no
terreno da filosofia, seja no da pedagogia, a base dos julgamentos
feitos pelos autores é a aceitação dos princípios católicos, aceitação
que é afirmada sem necessidade de discussão, pois é uma premissa
supostamente aceita pelo auditório, composto certamente por
católicos.
Em meios aos argumentos dessa natureza, pode-se
extrair uma proposição que confirma o uso da petição de princípio:
“a pedagogia nova pode ser aceita, em parte ou no todo, desde que
128
dela sejam expurgadas as afirmações que contrariam os princípios
católicos”. Assim, uma mesma idéia que é apresentada como
incoerente e inaceitável pode ser mostrada como válida e
enriquecedora, desde que seja concordante com a premissa maior
que estabelece o princípio católico como verdadeiro para reger o
campo da educação e da filosofia.
Com isso, os autores estariam admitindo que a
pedagogia nova é neutra em termos religiosos, uma vez que o seu
conteúdo pode ser preenchido pela religiosidade católica. Se for
assim, podemos concluir que a afirmação de que tal pedagogia
decorre do naturalismo fica comprometida, se entendermos, como
fazem os autores, que o naturalismo é adversário da religião. Em
outras palavras, a essência da nova pedagogia teria que ser buscada
não no naturalismo, mas em outro campo de idéias –
procedimento que até então não é contemplado no discurso dos
autores.
No campo da retórica, quando um argumento é regido
pela petição de princípio, o que está em jogo não é a veracidade do
argumento, mas sim a adesão do auditório a uma determinada
tese. O emprego da petição de princípio, segundo explicam
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 127), supõe que o
interlocutor já tenha aderido à tese que o orador se esforça por
fazê-lo admitir. No caso do discurso dos católicos, é isso o que
garante o seu sucesso, pois os autores elaboram argumentos
pautando-se nas crenças do auditório, isto é, na crença em Deus.
Considerando tratar-se de um auditório composto de educadores
católicos, a ênfase dada à premissa maior – “tudo o que discorda
da filosofia católica é errado” – torna possível afirmar o erro da
pedagogia nova, por ela ser naturalista e divergente dos princípios
cristãos.
A apresentação dessa mesma premissa permite, no
entanto, que os autores também argumentem sobre a possibilidade
de acolher algumas técnicas da pedagogia nova, sem se arriscarem
a ver desqualificadas as suas afirmações depreciadoras dessa mesma
pedagogia. Essa mudança nos argumentos torna-se possível porque
129
os autores fazem uso de outros termos modais, denominados por
Toulmin (2001, p.145) “qualificadores modais”,
esquematicamente indicados por (Q), e “condições de exceção ou
refutação da garantia”, indicadas por (R). O uso desses modais
permite que a mesma premissa – a maior, já aceita pelo auditório
– garanta a veracidade de argumentos que, embora aludam a
proposições do tipo “a pedagogia nova discorda da pedagogia
cristã”, não inviabilizam a conclusão “a pedagogia nova pode ser
aceita, em parte ou no todo, desde que dela sejam expurgadas as
afirmações que contrariam os princípios católicos”.
Quando esses modais são inseridos no discurso, seguidos
da enunciação da premissa universal, o orador encontra subsídios
para apresentar, em um mesmo silogismo, as razões e as condições
para o auditório renunciar ou não a um determinado princípio.
Seguindo o modelo ampliado sugerido por Toulmin, os
argumentos dos autores analisados podem ser esquematizados da
seguinte maneira:
D. A pedagogia nova discorda dos princípios católicos,
W. Já que se pode afirmar que todos os princípios que
discordam da filosofia católica são princípios
errados,
Q. então, provavelmente,
R. a menos que a pedagogia nova renuncie às suas
afirmações anticristãs,
C. pode-se afirmar que a pedagogia nova é um
princípio errado.
No âmbito do discurso que visa conquistar ou aumentar
a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu
assentimento, uma mesma premissa pode, assim, qualificar
diferentes enunciados e conclusões, tais como procuramos
exemplificar na postura dos autores frente às propostas
educacionais da Escola Nova: se a pedagogia nova renunciasse à
sua base filosófica naturalista e anticristã e alicerçasse na filosofia

130
católica, poderia, provavelmente, ser considerada um princípio
educacional correto.
No caso em estudo, para que a Igreja viesse a
reconquistar o domínio sobre a educação, certamente ela deveria
ser vista e reconhecida pelo professorado de formação católica
como uma instituição condizente com o ideário da modernidade.
Para isso, algumas mudanças na estrutura educacional deveriam
ser efetivadas, tais com a implementação das técnicas educacionais
escolanovistas, que ora são criticadas pelos próprios representantes
da Igreja. Mas como justificar tais mudanças sem o risco de
comprometer a filosofia católica, sem contradizer os argumentos
críticos à pedagogia nova, por esta ser norteada pela filosofia
naturalista, e sem que as teses dos autores sejam contestadas pelo
auditório, por lhe parecerem contraditórias?
O meio encontrado pelos autores para justificar tal
prescrição se efetiva pela tentativa de perpetuar no auditório o
sentimento de que a aceitação dos métodos propostos pela Escola
Nova não promoveria qualquer alteração na pedagogia cristã, pois
as principais técnicas dessa pedagogia poderiam ser absorvidas pelo
professor católico sob a orientação única da filosofia cristã. Além
do mais, essas mesmas técnicas, segundo atestam os autores,
seriam legitimamente cristãs, por terem sido elaboradas por
representantes da Igreja.
Nesses termos, a justificativa de tal mudança é
substituída, como explicam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002,
p. 120), por uma tentativa de provar que não houve mudança real:
“assim como o juiz que não pode mudar a lei, sustentará que a sua
interpretação não a modifica, que corresponde melhor à intenção
do legislador; a reforma da Igreja será apresentada como uma volta
à religião primitiva e às Escrituras”.
Em nossa análise, vimos também que os autores
apresentam um enunciado que possui outra conformação: “a
filosofia católica, bem como a sua pedagogia, são científicas”, o
que se destina a mostrar que o neotomismo é uma filosofia
sintonizada com certos avanços da modernidade, particularmente
131
a ciência. Esse argumento difere dos anteriores porque não parte
da presunção de um auditório particular. Ele se dirige a um
auditório que talvez não compartilhe da crença no catolicismo, ou
seja, que talvez não aceite as premissas universais “tudo o que
concorda com a o catolicismo está certo” e “tudo o que discorda da
visão católica está errado”.
É por isso que os autores apresentam alguns pensadores
de reconhecida atuação na era contemporânea e que, segundo
mostram, concordam com a visão católica. Muitos argumentos
influenciam o auditório unicamente por causa do prestígio. O
argumento de prestígio, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2002, p. 348), é o argumento de autoridade, o qual utiliza a
apresentação de “atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de
pessoas como meio de prova a favor de uma tese”. Por meio da
apresentação de pensadores contemporâneos prestigiados nas áreas
da filosofia e da educação, os autores encontram uma maneira de
sustentar suas afirmações, pois a figura de uma pessoa reconhecida
no campo em que o auditório se localiza, e que, por sua vez,
compartilha dos mesmos princípios, faz valer os argumentos
pronunciados sem qualquer tipo de discussão.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 529) chamam a
atenção para outra técnica discursiva, “a superestimação voluntária
do orador da força dos argumentos”. Como vimos, nossos autores
superestimam a força de seus argumentos; fazem isso, por
exemplo, quando certificam os leitores de que somente a filosofia
católica é capaz de nortear o campo científico e o campo
educacional à verdade. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca,
essa é uma atitude que tende a aumentar a força dos argumentos,
pois “apresentar uma conclusão como a mais do que é aos nossos
próprios olhos significa comprometer a nossa pessoa, usar de seu
prestígio, acrescentar desde então aos argumentos um argumento
suplementar”.
Vale destacar o uso de um outro mecanismo discursivo
que visa conferir legitimidade a uma tese, em detrimento de outra.
De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 119), o
132
orador, a fim de concretizar a adesão a seu discurso, pode servir-se
da “técnica da coisa julgada”, a qual consiste em realizar
comparações entre enunciados opostos para indicar a veracidade de
apenas um deles. Essa técnica também se encontra estruturada no
discurso dos autores analisados: ao apresentarem a pedagogia nova
e a pedagogia cristã, comparando-as, os autores o fazem de tal
modo que induzem o julgamento dos leitores em prol da
legitimação da pedagogia cristã, principalmente porque o
tratamento dado a essa última traz a enunciação de valores
próprios e característicos do auditório.

2 – Pragmatismo, socialismo e pedagogia nova

No pensar dos católicos, a principal corrente filosófica


derivada do naturalismo é o pragmatismo, considerado um
princípio filosófico e científico inaceitável a qualquer adepto da
filosofia educacional católica, por permear, como assim descrevem,
“a descrença dos valores eternos e absolutos da fé cristã, e por
pregar o princípio de que não há qualquer forma de valores fixados
ou verdades eternas que não seja unicamente de natureza mutável,
prática e material”(REDDEN; RYAN, 1973, p. 430).
Os representantes da filosofia pragmatista,
principalmente John Dewey, são apresentados como adeptos da
filosofia naturalista e defensores de uma educação
demasiadamente voltada para os bens sociais coletivos, “na qual
não há fim absoluto, e tudo se torna relativo” (DE HOVRE,
1969, p.20). No discurso dos autores, certas conseqüências sociais
são apresentadas como decorrentes da inserção em âmbito
educacional dos princípios filosóficos do naturalismo e do
pragmatismo. As correntes filosóficas de base naturalista são
caracterizadas como veiculadoras de idéias que revelam uma
tendência que favorece o socialismo.
Os autores atribuem, então, à filosofia naturalista a
responsabilidade pelo surgimento do pragmatismo e do socialismo,

133
bem como do modelo educacional daí decorrente, a pedagogia
nova. Na forma silogística podemos expressar esse discurso do
seguinte modo:
A. Todos os princípios que discordam da filosofia
católica são princípios errados;
B. o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova
discordam da filosofia católica;
C. então, o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia
nova são princípios errados.
Da mesma forma, a pedagogia baseada nos princípios
católicos é certa porque é coerente com a filosofia católica, que é,
invariavelmente, certa. Colocando esse silogismo no modelo de
Toulmin, temos:
D. O pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova
discordam da filosofia católica.
W. Considerando que todos os princípios que discordam
da filosofia católica são princípios errados,
C. então o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia
nova são princípios errados.
A proposição que atua como garantia (W) para a
conclusão (C) deveria receber um apoio factual (B), o que não
ocorre no discurso dos autores analisados, ou seja, não há
nenhuma informação que sustente a proposição “todos os
princípios que discordam da filosofia católica são princípios
errados”. Enfim, temos aqui, novamente, o recurso da petição de
princípio, o qual, como já vimos anteriormente, encontra sua
validade no auditório considerado, composto por católicos.
A exposição feita até aqui permite que avancemos um
pouco mais em nossa análise, destacando agora o enunciado “o
pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova discordam da
filosofia católica”, que é uma das premissas do silogismo acima
apresentado. Ao colocá-lo na qualidade de conclusão, podemos
avaliar as razões empenhadas pelos autores para a sua afirmação.

134
O discurso elaborado na primeira parte deste capítulo permite
identificar essas razões, ou seja, os dados (D). Podemos, também,
tentar compreender as garantias (W) do argumento, como bem os
elementos que constituem os seus apoios (B). O argumento pode
ser assim formulado:
D. O pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova
apresentam a característica X.
W. Todos os princípios que apresentam a característica
X discordam da filosofia católica.
B. É assim porque a filosofia católica possui o atributo
Y, que é discordante de X.
C. Então, o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia
nova discordam da filosofia católica.
Cabe-nos, então, verificar o que é X, o elemento de
discordância com a filosofia católica e seus atributos Y. Segundo o
discurso dos autores, tal atributo pode ser localizado perante os
seguintes enunciados: “o pragmatismo é uma filosofia da ação que
despreza as coisas espirituais”; “o socialismo privilegia as
exigências sociais em detrimento dos valores individuais”; “ambos,
pragmatismo e socialismo, são nocivos à democracia e favoráveis
ao estatismo”; “os princípios educacionais renovadores conduzem
a humanidade à indagação sobre a existência de Deus, e à anarquia
social”.
Sendo todas essas características X discordantes da
filosofia católica, tem-se a garantia (W) para a conclusão (C).
Mas, conforme sugere o modelo de Toulmin, toda garantia
necessita de apoios factuais B. É preciso que certos fatos sejam
apresentados para que se possa afirmar que a filosofia católica
possui atributos Y que não compactuam com as quatro
características acima indicadas. Em suma, é necessário poder
afirmar que a filosofia católica: “jamais despreza as coisas
espirituais”, “não privilegia o social em detrimento do individual”,
“é favorável à democracia e contrária ao estatismo”.

135
O discurso dos autores afirma tudo isso, implicitamente,
é claro, como vimos, mas não apresenta quaisquer fatos em apoio
a esses enunciados. Tais fatos deveriam ser buscados na história,
nas relações da Igreja com seus fiéis e com o poder político
estabelecido. A Igreja, como sustentáculo da filosofia defendida
pelos autores, deveria ser por eles mostrada como instituição social
que ao longo de sua existência reivindicou e sustentou, por meio
do ensino religioso e outros instrumentos, o equilíbrio perfeito
entre indivíduo e sociedade, favorecendo a democracia
contrariamente ao estatismo.
Os autores poderiam, ou deveriam, ser capazes de
apresentar exemplos concretos de suas afirmações, no intuito de
reforçar suas teses sobre as qualidades da instituição que sustenta a
filosofia que defendem: a Igreja Católica. De acordo com
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 399-400), o exemplo é
um recurso discursivo que, quando colocado em prática em
argumentos voltados para um auditório particular, tende a
fundamentar alguma estrutura do real que se quer legitimar. O
orador que pretende qualificar seus argumentos por meio de
exemplos deve levar em consideração os valores e as concepções
características de seu auditório. Para que um exemplo sustente a
tese que o orador quer legitimar é preciso que haja uma
apresentação dos fenômenos de modo que estes não venham a ser
considerados pelo auditório uma simples informação desvinculada
da realidade.
O emprego de exemplos, no entanto, ao mesmo tempo
em que pode viabilizar generalizações a favor de legitimar uma
tese, pode também sofrer algum tipo de rejeição por quem os
recebe. Ainda segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.
402), a rejeição do exemplo, “seja porque é contrário à verdade
histórica, seja porque é possível opor razões convincentes à
generalização proposta”, pode enfraquecer a adesão à tese que se
deseja provar. Assim, a escolha de um exemplo, enquanto
elemento de prova, pode comprometer o orador, pois pode ser
interpretado de maneira contrária ao que se espera. No nosso caso
136
em estudo, acreditamos que o motivo pelo qual os autores não
empregam exemplos para fortalecer suas afirmações sobre a Igreja
Católica talvez seja esse: o desejo de evitar o risco de sofrerem
algum tipo de contestação.
Outro recurso discursivo empregado pelos autores é a
inserção de definições. De acordo com Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2002, p. 241), as definições possuem um caráter
argumentativo, pois ora podem ser justificadas, valorizadas, com a
ajuda de argumentos, ora podem elas próprias configurar-se em
argumento. Na apresentação do discurso dos autores, vimos que o
termo “pragmatismo”, por exemplo, é definido como “filosofia da
ação”, princípio filosófico que prega a “substituição da inteligência
pela ação”, que “tem a utilidade como único critério para
determinação da verdade”, que “permeia a descrença nos valores
eternos e absolutos da fé cristã”. O termo “experimentalismo”,
caracterizado sobretudo como um aspecto imante do pragmatismo,
recebe os seguintes significados: “ajustamento do indivíduo à
sociedade em mudança”, princípio que “busca habituar a criança
às práticas sociais universalmente aceitas como disponíveis pela
sociedade”.
Essas definições, que fazem parte dos atributos X, são
expostas de tal modo que tornam desnecessária a explanação de Y,
os característicos do catolicismo. Isto se dá porque as definições
atuam, por si, como recurso argumentativo, ou seja, por seu
intermédio o orador já estrutura na mente de seus ouvintes os
elementos interpretativos condizentes com o seu objetivo. Vemos,
novamente, o destacado papel do auditório na articulação da
estratégia argumentativa dos autores, os quais recorrem às suas
crenças e estruturas de pensamento para sustentar o seu discurso.
Na busca pela consolidação de suas premissas, todo
orador procura elaborar argumentos que possam ser considerados
verdadeiros pelos ouvintes por conterem aspectos que lhes são
familiares. Para cada auditório, explicam Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2002, p. 131), “existe um conjunto de coisas admitidas
que têm, todas, a possibilidade de influenciar-lhes as reações”,
137
conjuntos de ações e concepções que constituem um sistema de
referência que serve para testar as argumentações.
Toda argumentação, seguindo Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2002, p.136), supõe uma escolha precedente das melhores
premissas, dos dados a serem apresentados, e uma avaliação da
mais eficiente técnica de enunciar raciocínios. Quem pronuncia
um discurso visando à persuasão, complementam Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2002, p. 163), empenhou-se anteriormente em
organizar bem seu tempo e sua técnica discursiva para garantir a
atenção dos ouvintes. Para isso, para cada parte de sua exposição
procura conceder um espaço proporcional aos elementos que deseja
ver presentes na consciência de seus ouvintes, sejam valores já
partilhados, sejam valores que o orador almeja ver estruturados nas
concepções de seu auditório. Por outro lado, enunciados que
possam propiciar uma indagação por parte do auditório não devem
ser explicitados. No interesse de sua argumentação, o orador se
esforça para situar o debate no plano que lhe parece mais
favorável.
Quando os argumentos são assim elaborados, como
denominam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.119), a partir
da “inércia psíquica e social” do auditório, o orador tem a
possibilidade de conduzir modelos de práticas e concepções futuras
que permitem a sustentação ou a continuidade de um determinado
ato, ou a veracidade e aceitação de uma determinada tese. Isso
ocorre porque o orador, ao enunciar seu discurso, recorre a
premissas e valores compartilhados pelo auditório para garantir a
validade das teses que busca legitimar.
Assim, na busca pela adesão a uma tese, o orador pode
contar, para suas presunções, com a inércia psíquica e social dos
ouvintes. Pode-se presumir, com isso, “que a atitude adotada
anteriormente pelo auditório – opinião expressa, conduta preferida
– continuará, no futuro, seja por desejo e coerência, seja em
virtude da força do hábito” (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2002, p. 119). O emprego de aspectos familiares aos

138
participantes do auditório pode, assim, validar um argumento, por
ser reconhecido ao menos em parte por eles.
O que denominamos atributo Y na argumentação dos
autores analisados trata-se, pois, dos valores inerentes à cultura
católica, isto é, atitudes, práticas ou concepções vivenciadas no
passado e/ou no presente pelos destinatários da mensagem. Esses
valores, quando reverenciados pelo orador, tendem a fundamentar
as concepções filosóficas e educacionais das teses que apresentam
como legítimas, mesmo na ausência de apoios factuais.

3- O ceticismo de John Dewey

Na filosofia deweyana, a verdade não é única e nem


absoluta; ela é construída e válida para um determinado momento
(AMARAL, 1990). Sua concepção filosófica apóia-se numa visão
do mundo que se opõe ao que é fixo e imutável, beneficiando a
noção de movimento e transformação (CUNHA, 2001). Na visão
dos católicos, a filosofia deweyana, por não partilhar da crença de
uma verdade absoluta e imutável, tornaria o processo educativo
uma atividade deliberativa, incerta, que resultaria na consolidação
da política do comunismo.
As críticas dos autores a John Dewey se apresentam,
especificamente, de dois modos. Em alguns casos, os argumentos
são gerais, decorrentes de Dewey ser pragmatista, resultado de o
pragmatismo ser uma concepção filosófica originária do
naturalismo. Em outros, a argumentação busca sustentar que
Dewey, por ser pragmatista, defende radicalmente o primado
experimentalista, desenvolvendo sua filosofia sob os preceitos
psicológicos e científicos do behaviorismo e do darwinismo, os
quais, quando colocados em prática, poderiam levar à construção
de uma sociedade comunista. De um modo geral, o pragmatismo é
explicado pelos autores como uma corrente filosófica contrária aos
princípios escolásticos por pertencer ao movimento filosófico do
naturalismo, cujas bases negam qualquer elemento que não seja de

139
natureza material, como a fé, que não pode ser empiricamente
verificado. Conseqüentemente, trata-se de uma visão que conduz
ao ceticismo, uma forma de pensamento incompatível com a
crença nos valores imutáveis, inerentes aos preceitos da Igreja.
Os argumentos que atribuem a Dewey a identidade de
principal precursor do “experimentalismo” no campo da filosofia e
da educação recebem conotações diferentes dos diversos autores.
Em certos contextos do discurso, o termo experimentalismo
abrange o sentido de um mecanismo de comprovação e verificação
de pressupostos científicos e filosóficos até então tidos como
verdadeiros. Nessa perspectiva, a filosofia de Dewey teria como
objetivo primeiro verificar, empiricamente, postulados filosóficos,
até mesmo a religião, a fim de descaracterizá-los como princípios
eternos, verdadeiros e/ou científicos. O experimentalismo
deweyano, entretanto, também é definido como um conjunto de
práticas sociais colocadas em ação por um determinado grupo
tendo em vista o bem da sociedade em mudança. Na comunidade
escolar, por exemplo, o experimentalismo resultaria na elaboração
de práticas comuns entre os alunos. Mas tanto o primeiro
significado quanto segundo, quando entrelaçados no discurso, dão
margem a que os autores estabeleçam uma relação intrínseca entre
o experimentalismo filosófico de Dewey e o seu ideal educacional e
social.
O “experimentalismo de Dewey”, ou a “filosofia da
mudança”, é considerado pelos autores o resultado da fusão feita
pelo próprio Dewey entre os princípios “do naturalismo, do
evolucionismo e do behaviorismo” (REDDEN; RYAN, 1973,
p.482). O pragmatismo naturalista, o experimentalismo, a
psicologia behaviorista e a teoria evolucionista, são assim
concebidos pelos autores estudados como as principais bases
filosóficas e pedagógicas de Dewey. Essa interação de princípios
assume dimensões nitidamente políticas, pois a filosofia deweyana
é também apresentada como contrária ao ideal democrático. As
bases filosóficas e pedagógicas de Dewey não seriam assim
compatíveis com uma educação democrática: “O exclusivismo do
140
método experimental, a desconfiança no valor da razão, o
desconhecimento prático das relações profundas entre a
inteligência e a ação, o relativismo da verdade”, são tendências
que, quando aceitas e inseridas na educação, levariam “à mais
completa dissolução da vida intelectual e moral: o
comunismo”(SANTOS, 1951, p.408).
Pela apresentação feita até aqui, vimos que os autores, a
fim de legitimarem seus discursos, desencadeiam seus argumentos
fundamentados em diversas técnicas ou instrumentos discursivos
sob o intuito de obterem ou fortalecerem a adesão do professorado
às teses pedagógicas e filosóficas da Igreja Católica. Uma dessas
técnicas corresponde ao modo de argumentar denominado
“petição de princípio”, em que a conclusão apresentada se faz
presente no silogismo como uma de suas premissas. Destacamos,
também, os argumentos entimemáticos, e outros instrumentos
discursivos, como o emprego do argumento de prestígio; a técnica
da coisa julgada; o uso de exemplos e a inserção de definições.
Esses recursos adquirem caráter persuasivo porque os autores
levam em consideração o auditório que buscam persuadir,
fundamentando suas teses em valores incontestáveis da audiência,
como a crença nos dogmas da Igreja. Para que a argumentação
retórica possa desenvolver-se, e assim conseguir aumentar a
intensidade de adesão à tese apresentada, desencadeando nos
ouvintes a ação pretendida ou criando neles “uma disposição para
ação, que se manifestará no momento oportuno” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 50), é preciso que o orador
dê valor às concepções em comum do auditório, “é preciso que
aquele que desenvolve sua tese e aquele a quem quer conquistar já
formem uma comunidade” (PERELMAN, 1999, p.70).
Considerando todos esses aspectos já apresentados, que
caracterizam o discurso dos católicos como persuasivo, nosso
intuito, agora, é mostrar as bases dos argumentos que tornaram
possível os autores expandirem a tese de que John Dewey, tido
como o principal representante do pragmatismo no contexto da
filosofia contemporânea e da educação moderna, é um pensador
141
pragmatista de princípios experimentalista e behaviorista, e
idealizador de uma sociedade comunista.
O pragmatismo, assim como o naturalismo, é
considerado pelos autores uma filosofia falsa e equivocada por
contradizer os princípios dogmáticos que os católicos defendem.
As concepções que os autores elaboram acerca do pragmatismo, de
ser uma filosofia de princípios equivocados, principalmente por
negar a existência de uma verdade absoluta e apregoar somente a
existência de uma realidade material, são, também, as que
fundamentam as teses lançadas especificamente sobre a filosofia
deweyana e seu ideal educacional e social. No conjunto de
argumentações que os autores buscam evidenciar diante do
professorado, Dewey é considerado o sustentáculo de uma filosofia
cética e o idealizador de uma proposta educacional e social
também condizente com o ceticismo, por desprover sua filosofia de
quaisquer fins e valores que não sejam de natureza experimental e
social.
O pragmatismo deweyano, segundo argumentam os
autores, é uma filosofia cética porque apregoa a idéia inaceitável
aos católicos de que a verdade só pode ser legitimada por meio de
experimentos e comprovações científicas, o que exclui a
religiosidade como critério de verdade. Esse argumento pode ser
descrito pela forma silogística, na qual, dadas uma premissa maior
e uma premissa menor, obtém-se uma determinada conclusão.
Assim temos:
A. Toda filosofia que não aceita a crença em Deus
como critério de verdade é cética.
B. A filosofia deweyana, por ser pragmatista e
naturalista, não aceita a crença em Deus como
critério de verdade.
C. Logo, a filosofia deweyana, por ser pragmatista e
naturalista, é cética.
Essa mesma alegação pode ser descrita na forma
silogística ampliada proposta por Toulmin (2001). Esse

142
procedimento torna-se pertinente em nossa investigação porque
permite verificar qual a garantia (W) empregada pelos autores em
seus argumentos. No silogismo acima elaborado, pode-se tomar
uma das premissas como garantia do argumento, relacionada à
conclusão que se quer legitimar, o que caracteriza, mais uma vez,
o uso da falácia de petição de princípio. Assim, o enunciado que
atuava como premissa menor constitui o dado (D), ao passo que a
premissa maior é a garantia (W) que busca legitimar a conclusão
(C):
D. A filosofia deweyana, por ser pragmatista e
naturalista, não aceita a crença em Deus como
critério de verdade.
W. Já que se pode afirmar que toda filosofia que não
aceita a crença em Deus como critério de verdade é
cética,
Q. então, certamente,
C. conclui-se que a filosofia deweyana, por ser
pragmatista e naturalista, é cética.
Pelo esquema apresentado, torna-se possível visualizar as
bases pelas quais os autores regem a conclusão de a filosofia
deweyana ser cética. A principal causa do ceticismo de Dewey
advém do próprio pragmatismo: segundo acreditam os autores, o
pragmatismo resultou do princípio filosófico do naturalismo, que
por desconsiderar a existência de valores e verdades imutáveis no
tempo, é considerada uma filosofia cética e falsa pelos católicos.
Além disso, a garantia “Toda filosofia que não aceita a crença em
Deus como critério de verdade é cética” encontra-se estruturada
em valores partilhados e já aceitos pelo auditório, os quais
predizem ser a filosofia católica a única que possui conhecimentos
certos por crer na existência da verdade absoluta. Sendo assim, a
descrença pragmatista nos princípios dogmáticos do catolicismo é
o que justifica e permite aos autores considerarem a filosofia
deweyana cética.

143
No silogismo acima, na passagem do dado (D) à alegação
final (C), faz-se presente, além da garantia (W) do argumento, um
qualificador modal (Q) – “certamente”. Segundo explica Toulmin
(2001, p. 145), os qualificadores modais servem para indicar a
“força” conferida pela garantia na passagem do dado à conclusão.
A escolha do qualificador modal depende da garantia e dos dados
que são enunciados a favor da tese que se quer fortalecer. Assim,
quando a garantia autorizar apenas um passo provisório dos dados
à conclusão, um passo que só pode ser dado “sob certas condições,
com exceções ou qualificações”, torna-se mais adequado aludir a
qualificadores modais como “provavelmente” e “presumivelmente”.
Em se tratando dos autores por nós pesquisados, pode-se empregar
o advérbio “certamente”, porque seus dados encontram-se
fundamentados numa garantia partilhada e incontestável pelo
auditório, de onde advém o alto grau de persuasão e aceitação do
argumento como um todo.
Tendo em vista o fortalecimento dos argumentos que
prescrevem ser Dewey o representante de uma filosofia cética, os
autores também se ocupam em estruturar argumentos sobre o
experimentalismo de Dewey, com os quais procuram demonstrar
sua natureza cética e equivocada. Para isso, desenvolvem
argumentos em que identificam a psicologia behaviorista e a teoria
evolucionista de Darwin como as bases do pensamento
experimentalista de Dewey. A razão apresentada pelos autores para
essa alegação é a de que Dewey acredita ser o homem o resultado
de sua adaptação aos estímulos que recebe do meio em que vive.
Para provarem a veracidade desse argumento, os autores
certificam ao professorado que o próprio Dewey deixa explícita sua
adesão ao behaviorismo e ao darwinismo em algumas de suas
obras. A respeito dessas obras, diga-se de passagem, os autores
apenas as mencionam, sem fornecerem maiores detalhes; em troca
disso, entretanto, oferecem suas palavras, seu prestígio perante a
comunidade, e estruturam seus discursos em aspectos que
comungam com o auditório. Nesse caso, empregam a técnica das
“figuras de comunhão”, a qual, segundo explicam Perelman e
144
Olbrechts-Tyteca (2002, p. 201), é obtida por meio de referências
a uma cultura, a uma tradição ou a um passado. Por essa razão,
ao alegarem que o experimentalismo de Dewey nega a verdade
absoluta, e assim, os princípios dogmáticos da Igreja, valores que
certamente são compartilhados pela comunidade católica, os
autores encontram as condições necessárias para afirmarem ser o
experimentalismo de Dewey um princípio falso e também cético.
Seguindo as teses de Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2002, p. 529), podemos ainda observar que os católicos também
utilizam a técnica de “superestimação” de argumentos, que
consiste em “estender os acordos particulares” já estabelecidos com
o auditório durante uma discussão, “sem que o interlocutor tenha
dado sua adesão explícita”, o que leva uma conclusão a ser “mais
certa do que é”. Podemos visualizar esse mecanismo nos
argumentos que entrelaçam a filosofia pragmatista de Dewey como
o behaviorismo e o darwinismo, quando, em suas alegações, os
autores levam em consideração que suas teses podem ser
facilmente aceitas pelo auditório ao concluírem que Dewey é um
adepto do behaviorismo e do darwinismo. A afirmação, esta sim
demonstrada, de que Dewey quer uma educação vinculada às
circunstâncias sociais vigentes, é imediatamente associada, desta
feita sem demonstração, às idéias behavioristas e darwinistas.
Mediante um pré-julgamento em benefício de seus
próprios argumentos, os autores conseguem obter o veredicto que
almejam a respeito de enunciados sobre os quais a audiência ainda
não tem opinião formada. Assim, tendo como garantia a aceitação
prévia de determinadas teses e a inércia psíquica e social do
professorado de formação católica, os autores chamam a atenção
de seus ouvintes sobre as possíveis repercussões do ceticismo
deweyano em âmbito social.
Essa mudança do foco das argumentações dos católicos
caracteriza o uso de uma técnica discursiva, que também favorece
a persuasão, denominada “argumento da direção”. Segundo
explicam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 326), o uso
dessa técnica permite que uma mesma alegação sirva de alerta
145
contra outros fenômenos, isto é, que uma tese já aceita dê
fundamento a outras teses que o orador ainda se esforça em
legitimar. É o que fazem os autores quando afirmam que a
filosofia pragmatista, por ser cética, é contrária ao ideal
democrático. Regidos pela garantia de que “Somente uma filosofia
que crê na existência de Deus pode alcançar a democracia”,
premissa que faz referência à cultura comum da comunidade
católica, sua crença em Deus, os autores desenvolvem novas
conclusões a respeito do pensamento educacional e social de
Dewey.
Os autores passam, então, a estruturar seus argumentos
sobre o que acreditam ser o ideal educacional de Dewey, e
também, sobre as possíveis repercussões desse ideal na sociedade.
O apoio encontrado pelos autores para entrelaçarem seus
argumentos de natureza filosófica com argumentos de
especificidade sociológica e educacional se concretiza nos
argumentos que explanam ser Dewey um partidário radical do
experimentalismo em âmbito social, por considerar o
experimentalismo como o único princípio válido para nortear a
filosofia e as ciências em geral.
Por tomar o experimentalismo como critério de sua
filosofia educacional, Dewey poderia levar o seu ceticismo à
estrutura social, com a conseqüência de promover o comunismo.
A explicação que os autores oferecem sobre essa suposta adesão ao
radicalismo é que Dewey apresenta uma característica em comum
com os radicalistas: a descrença e ausência de sentimentos
religiosos – o ceticismo. A descrença de Dewey nos postulados
religiosos, aliada à sua adesão ao socialismo, vertente da sociologia
que os católicos repudiam por discordar dos princípios da Igreja,
são alegações que os autores utilizam para alertar seus leitores de
que o pragmatismo deweyano é uma filosofia contrária à proposta
social democrática e simpática ao comunismo.
Pautados em argumentos desse tipo, os autores
articulam seus discursos no terreno educacional, buscando
difundir a idéia de que somente uma educação norteada pela
146
filosofia católica é capaz de concretizar o ideal democrático, uma
vez que essa educação, como alegam, possui técnicas educacionais
modernas e, mais do que tudo, o estabelecimento de um fim
preciso à educação. Para os católicos, a finalidade da educação
fundamenta-se na existência de uma verdade única, Deus,
princípio esse que, segundo interpretam os autores, é
desqualificado pela filosofia pragmatista de Dewey.
Por reafirmarem ser a característica principal do
pragmatismo deweyano o ceticismo, os autores encontram a
garantia de argumentos pelos quais buscam mostrar a tese de que
Dewey é o pregador de um sistema educacional também cético,
cuja descrença na verdade absoluta desproveria a educação de
condições para concretizar o ideal democrático, já que, para os
católicos, esse ideal somente seria viável mediante a crença na
verdade absoluta.
Vejamos por quais dados e garantias os autores
encontram condições para propagarem entre os leitores a alegação
de que a filosofia educacional proposta por Dewey é “incapaz de
viabilizar a democracia”:
D. A filosofia educacional proposta por Dewey não
aceita a crença em Deus como critério de verdade.
W. Já que se pode afirmar que toda filosofia educacional
que aceita a crença em Deus como critério de
verdade é capaz de implementar a democracia,
Q. então, provavelmente,
C. pode-se concluir que a filosofia educacional proposta
por Dewey não é capaz de implementar a
democracia.
Mesmo que apresentem como garantia de seus
argumentos premissas compartilhadas pela comunidade católica,
há nesse silogismo apenas uma presunção por parte dos autores de
considerarem a filosofia educacional deweyana incapaz de conduzir
a sociedade à democracia. Por essa razão, já não se torna viável
inserirem o advérbio “certamente” como qualificador (Q) de apoio

147
à garantia (W) de suas teses (C), como fazem quando alegam a
legitimidade da filosofia católica perante todas as outras que não
crêem na verdade absoluta. O mesmo ocorre quando indicam
haver proximidades entre o pensamento de Dewey e o ideal
comunista: os autores apenas presumem essa circunstância, não
lhes sendo apropriado, portanto, o uso do qualificador
“certamente”, e sim do “presumivelmente”.Com base na
presunção de que a proposta deweyana não é democrática, passam
à de que Dewey pode ser – ou “é”, como afirmam – comunista.
Na visão dos autores, por tomar as necessidades
circunstanciais e experimentais da sociedade como único critério
de verdade, e descrer na existência de Deus, Dewey não tornaria
concreto o ideal democrático, mas sim contribuiria para estruturar
uma forma de sociedade sem valores a serem seguidos por seus
membros. O ceticismo apontado pelos autores como característica
da filosofia deweyana, em âmbito social, resultaria na
concretização de um ideal comunista, doutrina que é tida pelos
católicos como a vertente mais radical do movimento filosófico do
naturalismo.
Esse raciocínio contém os seguintes enunciados: “a
filosofia pragmatista, por não aceitar a crença da existência de
Deus como critério de verdade, e por tomar como critério de
verdade as condições sociais, encontra-se assentada em ideais
arbitrários, o que, em âmbito social, pode conduzir a sociedade ao
comunismo”, e a “filosofia católica, por tomar com critério de sua
pedagogia a crença em Deus, está assentada em ideais fixos que,
em âmbito social, levam à democracia”. Apresentando esses
enunciados na forma silogística ampliada proposta por Toulmin
(2001), temos:
D. A filosofia educacional de Dewey não é uma
pedagogia assentada na existência de Deus como
critério de verdade.

148
W. Já que se pode afirmar que toda pedagogia assentada
na existência de Deus como critério de verdade pode
atingir o ideal democrático,
Q. então, provavelmente,
R. a menos que se possa provar que ideais sociais
podem conduzir a uma sociedade democrática,
C. conclui-se que a filosofia educacional de Dewey não
pode atingir o ideal democrático.
Em sua crítica do silogismo, Toulmin (2001, p. 145) dá
o nome de “condições de exceção ou refutação”, indicadas por (R),
às circunstâncias que retiram a “autoridade geral da garantia” (W).
No presente caso, o qualificador modal “a menos que se possa
provar que a democracia pode ser obtida por meio de ideais sociais”
retira a força do enunciado “somente a crença em Deus pode erigir
a democracia”. Como a intenção dos autores é garantir a adesão
do auditório à conclusão de que Dewey é contrário à democracia e
favorável ao comunismo, tal qualificador é por eles omitido.
Por fim, destacamos que o discurso dos autores
analisados em nossa pesquisa exibe uma outra técnica discursiva
que favorece a persuasão, denominada por Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2002) como “dissociação das noções”. Trata-se de
desenvolver o raciocínio por meio de pares conceituais opostos
entre si, na forma “termo I x termo II”. Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2002, p. 473) tomam como exemplo emblemático o par
“aparência x realidade”, sendo o primeiro termo identificado como
I, e o segundo, como II. No processo de dissociação, pela
enunciação do termo II o orador busca evidenciar o que representa
o real e verdadeiro, o correto, o desejável, ao passo que o termo I é
invocado como “ilusão e erro”.
Vários são os pares analíticos que podemos destacar no
discurso aqui estudado, mas desejamos chamar a atenção para o
par “ceticismo x dogmatismo”, que consideramos ser, talvez, o
fundamento de todos os demais. Para os autores analisados,
somente uma filosofia e uma pedagogia regidas por princípios

149
dogmáticos podem levar à democracia, uma vez que o dogma,
aquilo que é inquestionável, constitui a verdade representada pela
existência de Deus. O pensamento cético, por sua vez, por colocar
em dúvida a existência de verdades absolutas, é mostrado como
erro. Guiados por esse pensamento, os autores também empregam
vários outros pares, sempre em busca de legitimar os respectivos
termos II, como: “pragmatismo x neotomismo”, “pedagogia nova
x pedagogia tradicional”, “comunismo x democracia”.

Considerações Finais

Neste trabalho, chamou nossa atenção o fato de os


católicos verem Dewey como descrente da existência de Deus,
sendo por isso considerado um representante do ceticismo em
âmbito filosófico e social. Foi a alegação de ceticismo o que
justificou as aproximações do pragmatismo de John Dewey com o
ideal comunista. Por pertencer a um movimento filosófico que
desconsidera a existência de verdades absolutas, proposição essa
inaceitável para os católicos, Dewey não teria bases suficientes
para defender o ideal democrático, já que a ausência daquela
verdade no plano social e educacional resultaria na falta dos
valores necessários à sustentação da democracia. Ao pronunciarem
seus argumentos sob a garantia de Dewey ser um filósofo avesso a
princípios dogmáticos e representante do ceticismo, os autores
tornaram plausível a afirmação de o filósofo norte-americano ser
favorável a uma sociedade comunista, cujo ideal educacional seria
adaptar os educandos a exigências políticas totalitárias. O
principal apoio que os autores ofereceram a seus argumentos foi,
de fato, a enunciação de valores e crenças já aceitos pelo auditório,
que nada mais eram do que os princípios filosóficos do
catolicismo, baseados na crença em Deus.
Este estudo corresponde à nossa primeira tentativa de
realizar um empreendimento desse tipo, mediante os recursos da
nova retórica. Esperamos ter mostrado o quanto é amplo o campo

150
de aplicação dessa metodologia para a análise de discursos
pedagógicos, e contribuído assim com outras investigações sobre as
repercussões das idéias veiculadas pelos católicos no Brasil, em
particular no período de desenvolvimento do ideário escolanovista.

Referências

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experiência democrática. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1990.
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151
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152
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Paulo: Convívio, 1981.

Viviane da Costa - Doutoranda do Programa de Pós-Graduação


em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara-UNESP. Mestre em Educação Escolar pela
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara-UNESP.
Principais publicações: COSTA, Viviane da. O discurso
educacional católico como estratégia de dominação política e
filosófica do campo educacional: uma abordagem sob a perspectiva
de Pierre Bourdieu. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 27.,
Caxambu, 2004. Anais...Caxambu:Anped, 2004. 1 CD ROM;
CUNHA, Marcus Vinicius da; COSTA, Viviane da. John Dewey,
um comunista na Escola Nova brasileira: a versão dos católicos na
década de 1930. História da Educação, Pelotas, n.12, p. 119-
142, set.2002. Título da Pesquisa de Doutorado: O pragmatismo
de John Dewey e os princípios filosóficos céticos. End: Av. Altino
Correa Moraes, 490, Jd. Morumbi, cep. 14801-080- Araraquara-
SP. Tel: (16) 3331. 3104. E-mail: vidacosta@bol.com.br

Recebido em: 15/04/2007


Aceito em: 20/07/2007

153
.
EDUCAÇÃO E FILANTROPIA NA CIDADE DE
SÃO PAULO, NO FINAL DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX: UM
ESTUDO DA OBRA DO CONDE JOSÉ VICENTE
DE AZEVEDO NO BAIRRO DO IPIRANGA
Lincoln Etchebèhére Júnior
Leonel Mazzali
Rosemari Fagá Viegas

Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar o comportamento da elite
católica paulista nas últimas décadas do século XIX e primeiras do
século XX, diante da denominada “questão social”. As referências são
a figura do conde José Vicente de Azevedo e a sua obra – educacional
e filantrópica – no bairro do Ipiranga, em São Paulo. A metodologia
adotada foi a pesquisa documental e a consulta em bibliografia
especializada. A principal conclusão do trabalho é que, diante da
“carência social” e da ação dos movimentos sociais revolucionários
anarquistas, o Estado, não possuindo uma estrutura voltada para a
implementação de políticas sociais, uniu-se à hierarquia da Igreja e à
elite esclarecida para concretizar ações direcionadas a amenizar a
“questão social”. Se essa parceria foi fundamental para deter os
chamados “inimigos da Igreja” naquela época, deixou evidente a
importância da Igreja Católica como fornecedora de conhecimentos e
habilidades extremamente escassos no meio civil.
Palavras-chave: Educação; elite paulista; filantropia.

EDUCATION AND PHILANTHROPY IN THE CITY OF


SÃO PAULO, IN THE END OF THE NINETEENTH
CENTURY AND FIRST DECADES OF THE TWENTIETH
CENTURY: A STUDY OF THE WORKMANSHIP OF THE
COUNT JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO IN THE
SUBURB OF IPIRANGA
Abstract
The goal of this work is to analyse the behavior of São Paulo’s
catholic elite in the last decades of the nineteenth century and first
decades of the twentieth century, before the so called “social matter”.
The references are the figure of count José Vicente de Azevedo and
his educational and philanthropic workmanship – in the suburb of
Ipiranga, in São Paulo. The methodology adopted was the

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 155-181, Maio/Ago 2007


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
documentary research and the consultations to specialized
bibliography. The main conclusion is that, before the “lack of
welfare” and of the action of the revolutionary anarchist social
movements, the State, not owning a structure turned to the
implementation of social polices, united to the Church hierarchy and
to the clarified elite for actions directed to soften the “social matter”.
If this partnership was fundamental to stop the so called “enemies of
the Church”, at that time, left evident the importance of the
Catholic Church as a supplier of knowledge and skills extremely
scarce.
Keywords: education; São Paulo’s elite; philanthropy

EDUCACIÓN Y FILANTROPIA EN LA CIUDAD DE SÃO


PAULO, EN EL FINAL DEL SIGLO XIX Y PRIMERAS
DÉCADAS DEL SIGLO XX: UN ESTUDIO DE LA OBRA
DEL CONDE JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO EN EL
BARRIO DEL IPIRANGA
Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar el comportamiento de la elite
católica paulista en las últimas décadas del siglo XIX y primeras del
siglo XX, delante de la denominada “cuestión social”. Las referencias
son la figura del conde José Vicente de Azevedo y su obra –
educacional y filantrópica – en el Barrio del Ipiranga, en São Paulo.
La metodología adoptada fue la investigación documental y la
consulta en bibliografía especializada. La principal conclusión del
trabajo es que, frente la “carencia social” y de la acción de los
movimientos sociales revolucionarios anarquistas, el Estado, no
teniendo una estructura preparada para la implantación de políticas
sociales se ha unido a la jerarquía de la Iglesia y a la elite esclarecida
para concretizar acciones con el objetivo de amenizar la “cuestión
social”. Si esa unión fue fundamental para detener los llamados
“enemigos de la Iglesia” en aquella época, dejó evidente la
importancia da Iglesia Católica como proveedora de conocimientos y
habilidades extremamente escasos en el medio civil.
Palabras-clave: Educación; elite paulista; filantropía.

156
Introdução

As duas últimas décadas do século XIX e as primeiras do


século XX – transição do regime imperial para a implantação e
consolidação da República – foram ricas em situações de natureza
política, econômica, social e religiosa. Dentre essas situações de
transição merecem destaque: a separação entre o Estado e a Igreja;
a consolidação de uma Igreja romanizada, europeizante e
ultramontana; o término do regime servil (13/5/1888); a grande
imigração européia e, com ela, a chegada dos anarquistas que se
fixaram principalmente na zona urbana.
A cidade de São Paulo, a partir da chegada da Ferrovia
Santos - Jundiaí (1867), expandiu-se, tornando-se progressista. Já
não era mais o antigo burgo administrativo e estudantil. O
crescimento urbano orientou-se para os bairros de Campo
Redondo (Campos Elíseos), Luz, Brás e Campo do Arouche.
Surgiram novas freguesias. Era o progresso da cafeicultura e da
indústria nascente. Além do Gazômetro, na Freguesia do Bom
Jesus de Matosinhos do Brás, a indústria já se fazia presente no
Cambuci, na Mooca, no Belém e no Ipiranga. Nos bairros então
periféricos instalaram-se os operários, mormente imigrantes —
campo fértil para a ação anarquista. O desenvolvimento industrial
aumentou o número do operariado urbano, pois São Paulo já
possuía ferroviários, trabalhadores dos transportes urbanos e
comerciários, que deram origem às associações de classe.
Anarquistas editavam jornais, a maioria em língua italiana, e
fundavam escolas de alfabetização noturna, veículos para as suas
idéias.
Igreja e Estado, separados oficialmente desde 15 de
novembro de 1889, uniram-se diante da “questão social”, termo
que implicava a luta entre o capital e o trabalho. No período,

157
surgiram várias instituições1 para amparar a população de menor
poder aquisitivo e os desprovidos – antigos trabalhadores livres,
imigrantes e ex-escravos. Na cidade de São Paulo, as
mantenedoras dessas instituições, na maior parte das vezes, eram
Irmandades Religiosas: Santa Casa de Misericórdia, Irmandade do
Santíssimo Sacramento, Venerável Ordem Terceira do Carmo,
Venerável Ordem Terceira de São Francisco, associações
religiosas compostas e dirigidas por leigos2. Além disso, surgiram
instituições sem vínculo religioso, como o Instituto Ana Rosa,
voltado ao amparo a órfãos, mantido pela família Souza Aranha
(barão de Limeira) e Asilo Nossa Senhora Auxiliadora do
Ipiranga, mantido pela família do Dr. José Vicente de Azevedo.
Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é identificar e
analisar, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século
XX, o papel da elite católica paulista, tendo como referências a
figura do conde José Vicente de Azevedo e sua marcante atuação
nos campos educacional e filantrópico no bairro do Ipiranga. O
foco de análise se justifica, de modo particular, a partir da
consideração do perfil do conde – católico convicto, monarquista
que aceitou a República como fato consumado, deputado
provincial pelo Partido Conservador, aristocrata oriundo do vale
do Paraíba, senador e deputado estadual, advogado e professor – o
qual sintetiza a visão e comportamento da elite paulista no período
que interessa a este trabalho.
O trabalho está estruturado em cinco seções. A primeira
apresenta o processo de urbanização da cidade de São Paulo entre
o final do século XIX e início do século XX. A segunda discute as
relações entre a Igreja e o Estado, a partir das mudanças políticas
advindas da Proclamação da República e da emergência da

1
Sposati, Aldaíza de Oliveira. Vida Urbana e gestão da pobreza. São Paulo:
Cortez, 1988.
2
Boschi, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política
colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.

158
denominada “questão social”. Após analisar as transformações no
ensino oficial e a expansão do ensino protestante, respectivamente,
terceira e quarta seções, a última seção aprofunda o estudo da obra
educacional e filantrópica do conde José Vicente de Azevedo.
Finalmente, a conclusão retoma os pontos centrais e aponta para
novas pesquisas.

O processo de urbanização da cidade de São Paulo


entre o final do século XIX e início do século XX: a
economia cafeeira e o processo de industrialização

Em 1872, segundo Juarez Rubens Brandão Lopes3,


existiam no País quatro cidades com mais de cinqüenta mil
habitantes – Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Paulo –, nesta
ordem. Somente as três primeiras possuíam uma população maior
do que cem mil habitantes e nenhuma alcançara o marco de meio
milhão. Em 1900, havia quatro cidades com mais de cem mil
habitantes; o Rio de Janeiro, a maior delas, atingia o marco de
811.443 habitantes, e São Paulo chegava a 239.820 habitantes.
O que motivou o crescimento da cidade de São Paulo
foi a economia cafeeira, à qual estavam intimamente ligadas uma
estrutura bancária, comercial e ferroviária, o estabelecimento das
primeiras indústrias e a introdução do trabalhador assalariado de
origem européia. O desenvolvimento de uma estrutura
creditícia/financeira e o florescimento de uma vasta estrutura
comercial, baseada no comércio de importação e exportação,
propiciaram, além da diversificação do emprego urbano, a criação
de uma rede de distribuição para produtos industriais. A abolição
da escravidão e a imigração européia foram decisivas para a
formação de um mercado especial, o da força de trabalho. Por sua

3
Lopes, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social:
Formação da Sociedade Urbano Industrial no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional,
1976.

159
vez, o incentivo à imigração viria a se transformar em fator
acelerador do processo de urbanização do final do século XIX e da
mudança dos padrões de consumo. O imigrante trouxe novas
técnicas e novos hábitos, responsáveis, em boa parte, pelo
crescimento da cidade, reflexo do desenvolvimento da então
província e posteriormente Estado de São Paulo.
O comércio exportador, segundo Lincoln Etchebèhére
Júnior4 :

(...) favorecia o surgimento de novos grupos numa


população urbana que se dedicava a diferentes atividades:
profissionais liberais, operários, funcionários públicos,
empregados do comércio, etc. Crescia a população
citadina aberta à modernidade, que acreditava no
“progresso”.

Em decorrência do florescimento do mercado urbano


apareceram as primeiras indústrias alimentares – massas, biscoitos,
doces, cerveja e carnes salgadas. É importante assinalar que se
tratava de uma indústria tipicamente regional, onde não se faziam
sentir as economias de escala, e a proximidade do mercado
consumidor era de grande importância. O capital era
predominantemente nacional, salvo as incursões do capital inglês
no ramo de moinhos de trigo e no transporte ferroviário.
Os ingleses iniciaram a construção de ferrovias nas
regiões cafeeiras de então. A mais importante era a São Paulo
Railway Company, Limited, que ligava o porto de Santos a
Jundiaí, e desta localidade penetrava nos distritos cafeeiros.
Vinculavam-se às ferrovias quase todo o processo de exportação e
importação, navios, seguros, comissões, dividendos provenientes
das operações financeiras, enfim, os lucros estavam em mãos
inglesas em sua grande parte.

4
Etchebèhére Júnior, Lincoln. A dessacralização toponímica dos municípios
paulistas. Tempo e Memória. Ano 2, n.3, ago/dez, 2004, p. 54.

160
A influência inglesa ultrapassava o âmbito econômico.
Conforme Lincoln Etchebèhére Júnior 5:

A penetração inglesa ocasionou mudanças nos hábitos


urbanos, que procuraram aproximar-se dos costumes
europeus no seu cotidiano, quer na indumentária, na
alimentação, quer em medicamentos e em artigos
sanitários, símbolos da modernidade. O uso de
transportes coletivos, a água encanada, o gás e,
posteriormente, a energia elétrica, trouxeram igualmente
um desenvolvimento urbanístico. Introduziu-se nessa
época a prática desportiva – já em 1886 organizou
Charles Miller os primeiros quadros futebolísticos de São
Paulo. Surgiram os piqueniques, os cafés, as casas de
chá, enfraquecendo-se velhos hábitos coloniais, como as
concorridas procissões.

A industrialização trouxe consigo a modernização e, em


decorrência, transformações econômicas, sociais e políticas. São
Paulo possuía uma elite que buscava a sua modernidade; surgiram,
então, a Associação dos Engenheiros e o Liceu de Artes e Ofícios,
com o objetivo de formar mão-de-obra especializada para a
incipiente indústria. O comércio paulista, geralmente na mão de
europeus, tinha sua base em artigos de luxo importados para
atender à aristocracia da cafeicultura. Nesse período, apareceram
os novos bairros aristocráticos, como Campos Elíseos, antigo
Campo Redondo, e Vila Buarque, e a Avenida Paulista. A
aristocracia imitava as construções européias, e assim ergueram-se
os palacetes. Na região central da cidade, os velhos edifícios
coloniais deram origem a um novo estilo – Art Noveaux.
Entretanto, os imigrantes foram habitar o outro lado do
Tamanduateí, além da Várzea do Carmo (atual Parque Dom
Pedro II), compreendendo os bairros operários do Brás, da Mooca,
do Belém, do Belenzinho e do Ipiranga, redundando em uma

5
Idem, p. 55.

161
população carente de assistência em todos os seus níveis, quer
educacional, quer sanitário.

Igreja, Estado e “questão social”

O golpe de 15 de novembro de 1889, que estabeleceu a


República Positivista, trouxe inicialmente problemas para a Igreja;
mas esta, ferida com a “questão religiosa”, não execrou o novo
regime. Embora os primeiros tempos não tenham sido amigáveis,
a não-hostilização do novo regime pelo clero foi favorável a uma
posterior reaproximação.
A República, ao conceder a liberdade de culto às Igrejas,
foi responsável pela entrada, no Brasil, de grande quantidade de
congregações religiosas européias: povoaram-se os conventos,
mosteiros, abadias, criaram-se novos bispados, abriram-se colégios
masculinos e femininos, dirigidos principalmente pelo clero
europeu. Foi o período da romanização — a europeização que se
fazia presente na nova mentalidade, tão contrária ao velho
catolicismo luso-brasileiro.
A hierarquia católica, diante do avanço da educação
protestante, buscou professores nas ordens religiosas. D. Antonio
Joaquim de Mello entregou o Seminário Episcopal da Luz aos
frades capuchinhos. As irmãs de S. José de Chambery fundaram o
Colégio do Patrocínio, em Itu, e de lá estabeleceram outros
colégios. Na mesma cidade, os jesuítas fundaram o Colégio São
Luís (1867), transferido para São Paulo no início do século.6
O ultramontanismo ocasionou, no Brasil, a chamada
“questão religiosa”, eclipsando o catolicismo liberal, fato que
ocasionou a aliança entre as lojas maçônicas, o protestantismo, os
republicanos e os espíritas, que viam no ultramontanismo um
inimigo comum. Ultramontanos e não-ultramontanos lutaram até
a implantação da República, pois o Império possuía uma religião

6
Hoje esse estabelecimento dedica-se também ao ensino superior.

162
oficial: a Católica Apostólica Romana, vinculada ao Real
Padroado, herança colonial. A Igreja ultramontana desenvolveu
novas diretrizes de conduta, que se fizeram refletir no campo da
filantropia. À caridade dos avoengos paulistanos, os ultramontanos
somaram iniciativas educacionais destinadas a preparar os
indivíduos para enfrentar desafios trazidos por uma sociedade em
mutação.
O Estado e a Igreja, com as relações amenizadas pelo
banimento dos “radicais”, necessitavam resolver a “questão social”.
Para isto uniram-se contra os anarquistas, considerados um
inimigo comum. A Igreja, além dos protestantes e positivistas,
deparava-se com novo inimigo: os anarquistas, inimigos também
do Estado. No início do século XX, já os jornais noticiavam greve
ferroviária, o que levou a Companhia Paulista a fundar uma
associação beneficente para os seus empregados.
Igreja e Estado, separados oficialmente desde 15 de
novembro de 1889, uniram-se diante da “questão social”, termo
que implicava a luta entre o capital e o trabalho. O papa Leão
XIII, por intermédio da encíclica Rerum Novarum, convocou à
harmonia capitalistas e trabalhadores, e instou os católicos a
auxiliarem a hierarquia nessa questão. A elite católica, em parte
monarquista, cessado o período radical do anticlericalismo
republicano e positivista, aderiu à República, pois republicanos
positivistas, irmãos de avental e irmãos de opa, pertenciam a uma
mesma camada social.

O ensino oficial na Província de São Paulo

A educação em São Paulo surgiu com os padres da


Companhia de Jesus, quando da fundação do Colégio de São
Vicente. Logo depois, os padres Manoel da Nóbrega e José de
Anchieta galgaram o planalto de Piratininga, fundando o Colégio
de São Paulo (1554). Este foi o pólo irradiador de outros
estabelecimentos jesuíticos, como São Miguel, Conceição de

163
Guarulhos e Carapicuíba. A educação jesuítica continuou até a
expulsão dos padres da Companhia, em 1759, após 210 anos de
permanência no Brasil. O marquês de Pombal, responsável por
essa expulsão, criou as “escolas régias”, mantidas pelo subsídio
literário cobrado sobre o uso das carruagens, da cachaça e do
tabaco. Porém, as novas escolas, regidas por mestres desmotivados
pelos baixos salários, tornaram-se de nível muito inferior às do
ensino jesuítico.
O príncipe regente D. João, que chegou ao Brasil em
1808, tinha interesse pelo desenvolvimento da educação. Esse
interesse, entretanto, beneficiou apenas o Rio de Janeiro e a
Bahia, restando para São Paulo algumas “aulas régias”.
Com a Independência, a Constituição de 1824
determinou em seu artigo 179 que “a instrução primária é gratuita
a todos os cidadãos”. Esta medida foi confirmada pela Carta
Imperial de 15 de outubro de 1827, que mandava criar escolas de
primeiras letras para meninos e meninas em todas as cidades, vilas
e lugares mais populosos, determinando ainda os vencimentos para
mestres e mestras, o concurso público de ingresso, a vitaliciedade
dos cargos, e o conteúdo programático: “... os professores
ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática
de quebrados, decimais e proporções, as noções gerais de
geometria, a gramática da língua nacional e os princípios de moral
cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana,
proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as
leituras a Constituição do Império e História do Brasil”.7 Quanto
às mestras, o texto magno observava as diferenciações de gênero:
“... além do declarado no art. 6º, com exclusões das noções de
geometria e limitada a instrução da Aritmética só às quatro
operações, ensinarão também as que servem à economia
doméstica; e serão nomeadas pelos Presidentes do Conselho
aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida

7
Carta Imperial, 15/10/1827, Art. 6º.

164
honestidade, se mostrarem com mais conhecimento nos exames
na forma do art. 7º”.8
Portanto, a admissão de professores e professoras
privilegiava a “dignidade” ao saber propriamente dito, o que
acarretava a contratação de mestres dotados de conhecimentos
precários. Contudo, cidades, vilas, freguesias e povoações possuíam
aulas de primeiras letras, pelo menos para meninos, em toda a
Província, se bem que algumas criadas não foram providas9.
Em 1º de outubro de 1828 foi estabelecido o Regimento
das Câmaras Municipais, criando Câmaras Municipais em todas
as cidades e vilas do Império, que tinham entre as suas atribuições
a aplicação das rendas, determinando: “...nas Cidades e Vilas onde
não houver Casas de Misericórdia, atentarão principalmente na
criação dos Expostos, sua educação, e dos mais órfãos pobres e
desamparados”.10
O Ato Adicional de 1834 deu competência às províncias
para legislar “sobre instrução pública e estabelecimentos próprios e
promovê-las”.11 Por conseguinte, houve a descentralização do
ensino: as províncias ficaram incumbidas dos ensino primário e
secundário, cabendo o superior à Coroa.12
A Escola Normal Provincial foi criada pela Lei nº 34,
de 16/3/1846, e instalada em 9/11/46. Seu professor e diretor era

8
Idem, art. 12º.
9
Cf. in: MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província
de São Paulo Ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836 e 10 de março
de 1837. Publicado em 1838. Informações corroboradas por Azevedo Marques,
em Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticiosos da
Província de São Paulo — 1876.
10
Regimento das Câmaras Municipais do Império, Art. 76, in ALMEIDA,
Fernando H. Mendes de (org.). Constituições do Brasil. São Paulo: Saraiva,
1963.
11
Ato Adicional à Constituição do Império, Art. 10, in ALMEIDA, Fernando
H. Mendes de (org.). op cit.
12
Com a República, a competência passou a ser do governo federal.

165
o Dr. Manoel José Chaves, bacharel em direito, professor de
filosofia do curso anexo à Faculdade de Direito, e tesoureiro da
Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé. O curriculum escolar
era semelhante às escolas primárias, acrescentando-se noções
elementares de pedagogia. Era uma tentativa de melhoria do
ensino, porém, o grande desenvolvimento do ensino normal deu-se
com a implantação da República. Homens públicos, bem como
literatos e outros profissionais de renome foram professores antes
de ocuparem posições mais altas, e outros continuaram no
exercício da docência, como José Vicente de Azevedo.
Em 1825 foi criado o Seminário de Educandas Nossa
Senhora da Glória, graças aos esforços do presidente da Província,
barão de Congonhas do Campo, objetivando socorrer as meninas
órfãs. A instituição era dirigida por senhoras da sociedade
paulistana, sendo sua primeira diretora Elisária Cecília Espínola.
Na segunda metade do século XIX, o estabelecimento passou a ser
dirigido pelas irmãs de São José de Chambery. A chegada das
freiras francesas foi responsável por uma relevante melhoria do
ensino. Suas ex-alunas tornavam-se professoras após prestarem
concurso público. O Seminário da Glória funciona atualmente no
bairro do Ipiranga, e tornou-se uma escola oficial comum com o
nome de Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus
Seminário Nossa Senhora da Glória, sendo, portanto, o
estabelecimento de ensino mais antigo de São Paulo, que ainda
conserva o aspecto profissionalizante, pois dele saíram mestras,
governantas e damas de companhia da antiga aristocracia paulista.
Na Casa de Correção, instalada em 1852, existiu uma
escola para sentenciados, sendo seu professor o almoxarife do
estabelecimento, capitão Joaquim Mariano Galvão Bueno, que em
1874 passou a desempenhar o cargo de diretor da referida casa.
A fundação de estabelecimentos religiosos teve início
com a chegada das irmãs de São José, que se estabeleceram em
Itu, uma das cidades mais prósperas da época, e terra do bispo de
São Paulo, D. Antonio Joaquim de Mello. O retorno dos jesuítas
também contribuiu para esse desenvolvimento.
166
O advento da República ocasionou grandes mudanças no
ensino oficial. Os líderes republicanos — a grande maioria ligada
ao positivismo e às Lojas Maçônicas — introduziram o ensino
laico, que por vezes, em determinadas ocasiões e locais, tomava a
cor de anticlerical e anti-religioso. O positivismo tornou-se a nova
religião do Estado, na afirmação de Eduardo Prado13. O ideário
positivista prometia banir a superstição e a ignorância por meio da
instrução. No lançamento da pedra fundamental da nova Escola
Normal de São Paulo (1890), futura Escola Normal Caetano de
Campos, tem-se um exemplo dessa declaração de princípio: a
escola serviria “de templo Matriz da Instrucção popular deste
Estado de São Paulo”.14 De fato, porquanto da Caetano de
Campos surgiram as escolas normais do interior paulista:
Itapetininga (1895), Pirassununga (1913), São Carlos do Pinhal
(1913), Piracicaba (1913), Botucatu (1913), Guaratinguetá
(1918), Campinas (1919) e Casa Branca (1919).

O ensino protestante na Província de São Paulo

São Paulo, logo após a Independência, recebeu


imigrantes alemães que se estabeleceram em Santo Amaro (1827),
fixando-se posteriormente na capital da Província e em outras
regiões. Parte desses imigrantes era evangélico luterana, mas os
seus adeptos não praticavam o proselitismo, por força da
Constituição vigente. Em Petrópolis e outras colônias alemãs, a
Igreja Luterana era subsidiada pela Coroa, numa espécie de Real
Padroado. O culto em língua alemã prejudicava a expansão do
protestantismo. A expansão teve início por intermédio dos
missionários norte-americanos — sobretudo presbiterianos,

13
Eduardo Prado, jornalista católico, monarquista, pertencente à elite paulista,
escreveu duas obras: Fastos da ditadura militar no Brasil e A ilusão
americana, ambas confiscadas pelo governo republicano.
14
Ribeiro, José Jacinto Chronologia Paulista, v. II, p. 209. São Paulo, 1904

167
metodistas e batistas —, que aportaram no Brasil a partir de
meados do século XIX.
Em 1868 fundou-se uma sociedade de estudantes na
Faculdade de Direito de São Paulo, para combater o
protestantismo. Seu líder era Joaquim Nabuco, filho do senador
José Thomaz Nabuco de Araújo, um dos defensores dos acatólicos.
A sociedade promoveu debate público entre missionários
presbiterianos e estudantes, estes provavelmente orientados pelo
corpo docente do Seminário Episcopal de São Paulo — reduto
ultramontano fundado pelo bispo D. Antonio Joaquim de Mello15.
Imigrantes americanos, antigos confederados,
espalharam-se em pequenos grupos pela Província, concentrando-
se em Santa Bárbara, região de Campinas, que se tornou um dos
centros de atividade missionária norte-americana.
O proselitismo missionário buscou na educação um dos
pilares para a sua ação. Abrir escolas era uma maneira de
conseguir adeptos, como ocorria com a pregação doutrinária
itinerante e a distribuição de bíblias. Em 1866 tentou-se abrir
uma escola noturna em São Paulo, mas a iniciativa não se
concretizou por falta da licença necessária. Em 1870, George W.
Chamberlaine fundou a Escola Americana, estabelecimento que
planejava desde 1868. Essa escola funcionou inicialmente na Luz,
e em 1872 mudou-se para a Rua Nova de São José, no centro da
cidade. Quatro anos depois instalou-se na cidade nova, Freguesia
de Santa Ifigênia, esquina das Ruas Ipiranga e São João. Nesse
local recebeu a visita de D. Pedro II, em 1878. Nessa ocasião, o
imperador teria ofertado dez contos de réis para a compra do
terreno onde hoje está instalada a Universidade Presbiteriana
Mackenzie.
Lecionaram na Escola Americana ilustres brasileiros: o
jornalista e romancista Júlio Ribeiro Vaughan, o matemático

15
Foi professor deste seminário frei Vital Gonçalves de Oliveira, nomeado em
1871 bispo de Olinda e Recife. A Questão Religiosa teve origem com este
prelado.

168
Antonio Trajano, o gramático Eduardo Carlos Pereira, e também
não-protestantes, como o jornalista Rangel Pestana, ligado ao
jornal Província de São Paulo, porta-voz dos republicanos
paulistas,16 e o poeta Teófilo Dias.
Em Campinas, cidade paulista que a cafeicultura tornara
rica e aristocrática, surgiu a Escola Internacional em 1871,
fundada por um ex-confederado, o reverendo George Nasch
Morton (1841-1904), e mais “cinqüenta cidadãos de projeção”,
entre os quais o coronel-comendador Joaquim Egídio de Souza
Aranha e João Brás da Silveira Caldeira, além de membros do
Partido Republicano, como Manuel Ferraz de Campos Salles,
futuro presidente da República, Francisco Glicério de Cerqueira e
Francisco Rangel Pestana.
Na Escola Internacional integravam o corpo docente
americanos e brasileiros notáveis, como Rangel Pestana, Júlio
César Ribeiro Vaughan e o latinista e gramático, ex-padre
português Francisco Rodrigues dos Santos Saraiva (1834-1900).
A Gazeta de Campinas, em 17/12/1871, anunciou os
três princípios “fundamentais e concomitantes indispensáveis da
educação: 1) moralidade e religião; 2) inteira liberdade religiosa; 3)
escola franca a estudantes de todos os credos e de todas as
nações”.17
A colônia alemã de São Paulo fundou a Escola Alemã,
instalando-a modestamente na Rua da Constituição. Essa escola
foi mais tarde transferida para um vistoso prédio de estilo
normando, na Freguesia da Consolação, próximo ao Colégio
Mackenzie, e se tornou uma das melhores escolas de São Paulo.18

16
Hoje, O Estado de S. Paulo.
17
Vieira, Daniel Gueiros O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão
Religiosa no Brasil. Brasília: Universidade de Brasilia,, 1980, p. 262.
18
Trata-se do atual Colégio Visconde de Porto Seguro, funcionando no bairro
do Morumbi.

169
Os metodistas fundaram o Colégio Piracicabano,
também modestamente instalado na Rua da Boa Morte, e
atualmente Universidade Metodista de Piracicaba.
Os estabelecimentos protestantes passaram a concorrer
com os estabelecimentos católicos e oficiais na formação religiosa
de crianças e jovens. No presente, essa concorrência limita-se
quase que exclusivamente aos campos pedagógico e econômico.

A obra educacional e filantrópica de José Vicente de


Azevedo no bairro do Ipiranga

São Paulo era uma cidade em franco progresso e de


grandes transformações, advindo, com elas, graves problemas
sociais. Ao operariado urbano de origem européia — em especial
italianos, portugueses e espanhóis — juntavam-se trabalhadores
urbanos já existentes e ex-escravos, todos com necessidade
premente de atendimento social.
José Vicente de Azevedo (1859-1944), criado no
tradicional catolicismo luso-brasileiro, conheceu a caridade cristã
que se manifestava nos meios familiares e públicos, por intermédio
das tradicionais irmandades, particularmente a da Misericórdia. O
conde ingressou na Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé
de São Paulo, da qual foi provedor por 22 anos. Nesse cargo
procurou, além das obrigações ligadas diretamente ao culto
eucarístico, que fazia questão de honrar dignamente, dedicar-se às
questões sociais. Impregnado pelos ensinamentos cristãos,
ressaltados nas encíclicas Rerum Novarum, de Leão XIII (1878-
1903), e Quadragésimo Anno, de Pio XI (1922-1939),19 José
Vicente de Azevedo desenvolveu a sua filantropia e a de seus
colaboradores, que podia ser vista como um exemplo da prática
assistencialista da elite católica paulista. No bairro do Ipiranga

19
Encíclicas que objetivavam a solução da questão operária a partir dos princípios
da caridade cristã, unida à justiça distributiva.

170
surgiram, assim, obras educacionais, assistenciais e religiosas, tais
como:
1. Asilo das Meninas Órfãs N.S. Auxiliadora do
Ipiranga;
2. Orfanato Sagrada Família;
3. Orfanato Cristóvão Colombo;
4. Grupo Escolar São José;
5. Seminário Maior Imaculada Conceição;
6. Clínica Infantil do Ipiranga (Hospital D. Antonio
Cândido Alvarenga);
7. Instituto Padre Chico (primeira instituição
educacional para cegos de São Paulo).
A primeira obra iniciada pelo conde Dr. José Vicente de
Azevedo, no bairro do Ipiranga, foi, segundo Maria Angelina
Franceschini 20, o Internato Nossa Senhora Auxiliadora do
Ipiranga, responsável (indiretamente) pelo surgimento do
Educandário Sagrada Família, do Grupo Escolar São José e do
Noviciado Nossa Senhora das Graças. O Internato Nossa
Senhora Auxiliadora do Ipiranga foi inspirado no Seminário das
Educandas de Nossa Senhora da Glória – único estabelecimento
gratuito existente na Paulicéia, fundado em 182521, de caráter
oficial, posteriormente dirigido pelas irmãs de São José de
Chambery22.

20
Franceschini, Maria Angelina V. de A et alii. Conde José Vicente de
Azevedo, sua vida e sua obra. São Paulo: Fundação Nossa Senhora
Auxiliadora do Ipiranga, 1996.
21
Azevedo Marques, Manuel Eufrázio. Apontamentos históricos, geográficos,
estatísticos e noticiosos da Província de São Paulo (1876). São Paulo:
Edusp, 1980, v. II.
22
As irmãs de São José de Chambery iniciaram seus trabalhos educacionais no
Brasil ao estabelecerem o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, na então
“Fidelissima Cidade de Itú”, uma das principais da Província de São Paulo.
Estabeleceram-se posteriormente na capital da Província, com o Colégio São
José, situado na Rua da Glória, propriedade da Irmandade de Misericórdia de São

171
O Dr. José Vicente de Azevedo fundou o Asylo de
Meninas Órfãs e Internato de Nossa Senhora Auxiliadora, cuja
pedra fundamental foi lançada em 26 de outubro de 1890. A
finalidade da obra era ministrar instrução primária, educação,
prendas domésticas e profissionais gratuitamente a órfãs
desvalidas, de preferência filhas de famílias brasileiras outrora
abastadas. Amparo que se estendia, segundo Lincoln Etchebéhère
Jr.23, às órfãs e às irmãs que cuidassem das mesmas, caso viessem a
falecer no referido asilo.
As obras foram projetadas graciosamente pelo Dr.
Francisco de Paula Ramos de Azevedo, indicando para executá-las
o arquiteto Guilherme Krug, que com seu filho as concluiu. O
asilo foi inaugurado, após muitas dificuldades, aos 22 de
novembro de 1896. A administração interna do referido asilo
ficou sob a assistências das irmãs de Maria Auxiliadora ou
salesianas. A manutenção do asilo ficou sob a assistência da
Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé, da qual o Dr. José
Vicente de Azevedo era irmão provedor. Em 1911, a referida
irmandade deixou de ocupar-se daquela instituição e a
administração coube, então, ao Dr. José Vicente de Azevedo, que
recebera, desde 1892, grande doação destinada ao asilo feita pelo
Sr. Joaquim Floriano Wanderley.
Em 1924, as irmãs salesianas deixaram a direção do
asilo. Dona Leonor de Campos Salles, filha do presidente Campos
Salles, auxiliada por outras senhoras dirigiu o estabelecimento.
Em 1933, regressaram as irmãs salesianas, permanecendo até
1952, quando a direção passou a dona Maria José Meira de
Vasconcelos. No ano seguinte, 1953, a direção passou às mãos

Paulo, e ainda como enfermeiras no Hospital de Misericórdia da mesma cidade.


Na capital paulista ainda passaram a dirigir o Colégio Sant’Ana.
Etchebéhère, Lincoln Jr. Apontamentos Históricos da Universidade São
23

Marcos. São Paulo: Universidade São Marcos, 1995.

172
das irmãs da Congregação das Filhas de Nossa Senhora do
Sagrado Coração, que lá permanecem até a presente data.
O Dr. José Vicente de Azevedo não se lembrou apenas
das órfãs desvalidas de famílias outrora abastadas, lembrou-se
também dos ex-escravos e das crianças filhas dos mesmos. Surgiu
assim a Instituição da Sagrada Família, através do educandário de
mesmo nome, cuja origem remonta ao final do século XIX,
quando existia uma capela em honra à Sagrada Família em terras
de sua propriedade.
Em 1900, um grupo de paulistas dirigiu-se ao bispo de
São Paulo, dom Antonio Cândido de Alvarenga, solicitando apoio
a fim de erguer as Casas da Providência, que compreendiam,
segundo Maria Angelina Franceschini24, um Instituto de
Agricultura Prática, Artes e Ofícios para ensino de menores,
filhos ou descendentes dos antigos escravos, bem como um asilo
para velhos ex-escravos ou seus descendentes. O Dr. José Vicente
de Azevedo ofereceu para a obra um terreno na colina histórica do
Ipiranga, e em 29 de setembro de 1901 foi lançada a pedra
fundamental no local da Capela da Sagrada Família.
As irmãs da Providência receberam a obra por escrito e
foram autorizadas a receber esmolas para mantê-la. Solicitou-se
também verba para sua manutenção, oficiando ao então presidente
do Estado, conselheiro Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves.
Em 1902, alegando insegurança no local e não tendo o necessário
para sua manutenção, as irmãs da Divina Providência
comunicaram à superiora que não continuariam a obra e se
retiraram para o bairro da Mooca.25
Em fevereiro de 1903, chegou a São Paulo, procedente
de Nova Trento, Santa Catarina, o padre Luiz Mária Rossi,
pertencente à Companhia de Jesus, que assumiu o cargo de

24
Franceschini, Maria Angelina V. de A et alii, op. cit.
25
Brida, Sabina Della. Educandário Sagrada Família 80 anos. São Paulo:
s.c.p, 1983.

173
superior da Residência dos Jesuítas de São Paulo. Padre Rossi
aceitou e acatou a sugestão de trazer as irmãs de Nova Trento para
administrar a Capela da Sagrada Família, procurando o Dr. José
Vicente de Azevedo para doação de terreno e ajudar no pagamento
da viagem das irmãs para São Paulo.
Assim, a chamado do padre Rossi, duas irmãs e uma
postulante partiram de Nova Trento em 17 de julho de 1903, e
após cinco dias chegaram a São Paulo. O Dr. José Vicente de
Azevedo, em 1905 dou à Instituição da Sagrada Família, confiada
às irmãs de Nossa Senhora da Conceição, com diretoria própria, o
quarteirão onde se encontra atualmente o prédio Sagrada Família.
O objetivo da instituição era socorrer os ex-escravos e seus
descendentes, principalmente inválidos. As fundadoras da Sagrada
Família foram: madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus 26,
superiora; as irmãs Serafina da Santíssima Trindade, Luiza de
Jesus Crucificado e a postulante Josefina Pereira Gonçalves. 27
Em janeiro de 1961, o Colégio Sagrada Família foi
transferido para junto da Via Anchieta, Vila Nossa Senhora das
Mercês, com o nome de Regina Mundi. O prédio das colegiais
passou a ser casa de formação da Congregação das Irmãzinhas da
Imaculada Conceição, posteriormente ocupado pelas orfãzinhas, e
a partir de 1989, pelo Centro de Encontros Sagrada Família.
Diante da situação socioeconômica das crianças das
famílias de baixa renda e inspirado no Liceu de Artes e Ofícios de
São Paulo, o conde José Vicente de Azevedo comprometeu-se a
construir o Liceu de Artes e Ofícios São José, no bairro do
Ipiranga. A pedra fundamental foi lançada em 31 de março de
1891, e as obras do liceu para instalações de escolas profissionais
foram entregues ao irmão-coadjutor salesiano Dr. Domingos

26
Cadorin, Célia B. Ser para os outros: Perfil Biográfico de Madre Paulina do
Coração Agonizante de Jesus. Trento: Argentarium, 1989.
27
Idem, Madre Paulina Fundadora da Congregação das Irmãzinhas da
Imaculada Conceição. São Paulo: Loyola, 1986, v. I.

174
Delpiano28. O falecimento de dom Luiz Lasagna, a 6 de
novembro de 1895, determinou a paralização das obras, pois seu
sucessor não manteve o acordo firmado anteriormente.
No ano de 1895, a obra foi entregue ao padre José
Marchetti, pertencente à Congreção de São Carlos Borromeu ou
Scalabrinos. A Congregação fundada por monsenhor Scalabrino
tinha por finalidade dar amparo – espiritual e material – aos
imigrantes italianos que imigravam para a América e para a
Austrália.29
O padre José Marchetti – que chegara a São Paulo com
um grupo de imigrantes italianos – trazia consigo órfãos cujos pais
haviam falecido durante a viagem, em virtude de uma epidemia
que grassara a bordo. O padre Marchetti tomou a direção da obra,
cuja inauguração foi realizada em 1895, e a seu pedido, o Dr.
Vicente de Azevedo mudou o nome do liceu para Instituto
Cristóvão Colombo, cujo objetivo era ensinar ofícios aos órfãos de
imigrantes, principalmente italianos. Os trabalhadores imigrantes
italianos, não-anarquistas, auxiliaram na construção do prédio.
Ensinavam-se os ofícios da época – marceneiro, chapeleiro,
celeiro, sapateiro e alfaiate. Posteriormente, foi um dos primeiros
estabelecimentos a ensinar datilografia.30
Assistindo ao crescimento do bairro do Ipiranga, e
conseqüentemente ao seu aumento populacional, onde crianças
necessitavam estudar, o dr. José Vicente de Azevedo resolveu
fundar o Grupo Escolar São José. Para isso, por volta de 1920,
procurou dona Carolina Ribeiro, notável educadora que o auxiliou,
e assim, em 1° de outubro de 1924 abriu-se o Grupo Escolar São

28
Paladino, Patricia. Domingos Delpiano: o engenheiro arquiteto.
Universidade de São Paulo (Faculdade de Arquitetura) Trabalho de Graduação
Interdisciplinar, São Paulo, 1989.
29
Rizzardo, Redovino. João Batista Scalabrini, Profeta da Igreja Peregrina.
Petrópolis: Vozes, 1974.
30
Franceschini, Maria Angelina, op. cit.

175
José, numa dependência do Asilo das Meninas Órfãs Nossa
Senhora Auxiliadora, hoje Internato Nossa Senhora Auxiliadora.
Foram feitas as adaptações necessárias, e em 1924
foram matriculados vinte e nove alunos; no ano seguinte, cento e
oitenta. O número de alunos crescia a cada ano e foi necessário
construir um prédio próprio. Surgiu um prédio com três
pavimentos, dezesseis salas de aula, todas as dependências
necessárias para abrigar oitocentos alunos. O número de alunos
atingiu, em 1944, mil. Era um estabelecimento modelar e o
curriculo estava de acordo com o ensino oficial, ao qual fora
acrescentado o ensino da religião. Durante vários anos funcionou
anexo ao Grupo Escolar São José um curso de corte e costura,
com muitas alunas matriculadas.
O Grupo Escolar São José, durante trinta e cinco anos
foi mantido pelo conde Vicente de Azevedo, embora, em
determinada época, as professoras fossem designadas pelo governo
do Estado. Em 1959, o grupo deixou de funcionar por ingerência
do governo do Estado, que providenciou outro grupo escolar para
o bairro do Ipiranga. Durante o seu funcionamento, mais de três
mil e quinhentos alunos receberam o diploma do curso primário.
O conde pretendia fundar um hospital semelhante à
Santa Casa de Misericórdia, construindo doze pavilhões
hospitalares em honra dos doze apóstolos. Entretanto, a sua obra
não se concretizou. Uma parte do terreno foi doada à
Arquidiocese de São Paulo, com a finalidade de formar um clero
sábio e santo, surgindo assim o Seminário Maior da Imaculada
Conceição. A outra parte do terreno, com alguns pavilhões, em
1928, graças à intervenção da baronesa de Serra Negra, deu
origem ao Instituto Padre Chico. 31
Finalmente, a Clínica Infantil do Ipiranga (Hospital D.
Antonio Cândido Alvarenga) surgiu no começo do século XX.
Dona Maria Carmelita Vicente de Azevedo, filha do conde
31
Entrevista com a professora Maria Gabriela Franceschini Vaz de Almeida
(neta do conde Vicente de Azevedo), realizada em dezembro de 2005.

176
Vicente de Azevedo, preocupada com a situação da saúde dos
operários do bairro do Ipiranga, juntamente com um amigo
médico, instalou um consultório que oferecia graciosamente, duas
vezes por semana, atendimento a essa população. Posteriormente,
solicitaram ao Dr.Vicente de Azevedo um terreno para a criação
de uma clínica infantil para dar assistência às crianças. Nesse local
surgiu um hospital que, a pedido do conde, passou a denominar-se
Dom Antonio Cândido de Alvarenga, bispo de São Paulo e amigo
do conde. Homenagem ao amigo que morreu assistindo
pestilentos. Foi o primeiro hospital da cidade de São Paulo a dar
assistência pré-natal, graciosamente, às mães do Ipiranga.32

Conclusões

No final do século XIX e início do século XX, a


expansão da cafeicultura foi responsável pelas transformações
sociais, econômicas e culturais da cidade de São Paulo. A
imigração européia e a industrialização, ao acelerar o ritmo de
expansão capitalista, tornaram a cidade o segundo centro urbano
do Brasil, dando-lhe ares de metrópole. A arquitetura colonial
cedia paulatinamente espaço à arquitetura européia, nos seus
edifícios públicos, igrejas e palacetes. Junto com essas mudanças, o
operariado urbano aumentou, oriundo de imigrantes brasileiros
natos, muitos deles libertos ou ex-escravos. Grande parte dessa
população era constituída de pessoas carentes, que necessitavam de
assistência pública ou particular.
O poder público percebia a necessidade de resolver essa
questão. O Estado republicano laico, diante da situação social e da
ação dos anarquistas, estendeu a mão à Igreja para que ela o
auxiliasse na política social. Diante dos perigos anarquista e
socialista, da adesão dos antigos monarquistas à República e da
não-hostilização da Igreja ao novo regime, cessou a “Kulturkampf

32
Idem.

177
tupiniquim”; o catolicismo ultramontano conviveu com a
República Positivista, porque seu objetivo era o de restaurar tudo
em Cristo, e a República aparentemente não lhe criou obstáculos,
o que não aconteceu no regime imperial.
Diante da “carência social” e da ação dos movimentos
sociais revolucionário- anarquistas, o Estado – não sustentando
uma estratégia e uma estrutura voltadas à implementação de
políticas sociais – uniu-se à hierarquia da Igreja e à elite
esclarecida para a efetivação de ações direcionadas a amenizar a
“questão social”. Coube então à sociedade civil da época, em
particular à elite católica integrada por irmandades religiosas, e à
elite não-católica ligada à Maçonaria e a outras instituições
similares, desempenhar o papel do Estado. Da união do Estado
com a hierarquia católica surgiram ações voltadas à população
carente: alfabetização, profissionalização e assistência social..
José Vicente de Azevedo foi um modelo da elite católica
no campo educacional e filantrópico, responsável em parte pelo
sucesso dos empreendimentos da hierarquia da Igreja. O estudo da
sua obra no bairro do Ipiranga deixa patente a importância da
atuação conjunta elite-hierarquia da Igreja. Nesta parceria, a
Igreja Católica fornecia o “capital humano” – padres e freiras com
conhecimentos e habilidades para o ensino elementar, para a
filantropia e a assistência hospitalar. Daí a ênfase a institutos que
preparassem os internos profissionalmente, além da parte
assistencial. A Igreja conclamou o clero europeu, como foi dito
acima, para os seus objetivos ultramontanos. E conclamou a elite
católica para seus objetivos assistenciais. A filantropia retardou o
aniquilamento das velhas irmandades, pois nela estavam os meios
humanos e materiais necessários para o atendimento a carências e
a carentes da sociedade brasileira da época.
O Estado, não possuindo ainda um serviço social,
auxiliava a obra filantrópica eclesiástica, na qual se incluía a
educação. O apelo da Igreja resultou na construção de vilas
operárias, hospitais, orfanatos, asilos, escolas profissionalizantes e
outras obras filantrópicas.
178
Não se pode esquecer que a Igreja Católica, nesse tempo,
estava incorporada à cultura do povo, por meio da fé e da
confiança no clero. A educação, orientada pela Igreja, explícita ou
implicitamente foi também um meio de deter os chamados
“inimigos da Igreja” naquela época, a saber, protestantes,
anarquistas, socialistas e livres pensadores, que circulavam
livremente entre a elite paulista. A Igreja, desembaraçada do Real
Padroado, pôde agir contra a protestantização do País e contra o
positivismo oficial. Deve-se levar em conta que a hierarquia
buscou o apoio necessário na elite católica da época, que ainda
fornecia membros às tradicionais irmandades e ordens terceiras.
Nesse sentido, a obra do conde José Vicente de Azevedo
revelou a importância do apoio de padres e de freiras na sua
consecução. Este fato ficou mais evidente na criação e
implementação dos asilos e orfanatos – Asilo das Meninas Órfãs
N.S. Auxiliadora do Ipiranga; Orfanato Sagrada Família e
Orfanato Cristóvão Colombo. Caberia aos gestores religiosos não
só o amparo, mas a educação e a iniciação na formação
profissional.
Não menos importante foi a inciativa no âmbito do
atendimento à saúde, expressa na criação da Clínica Infantil do
Ipiranga, com o foco no pré-natal às gestantes e aos recém-
nascidos. Nesse âmbito, revela-se também o papel da ação dos
religiosos.
Finalmente, o estudo levanta a necessidade de pesquisas
capazes de completar a historiografia dedicada a verificar as
complexas relações entre a Religião, a Educação e a Assistência
Social no Brasil, tendo como pano de fundo o Estado, suas
políticas e estruturas de atuação.

Referências

ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). Constituições do


Brasil. São Paulo: Saraiva, 1963.

179
AZEVEDO MARQUES, Manuel Eufrásio de. Apontamentos
históricos, geográficos, estatísticos e noticiosos da Província de
São Paulo. São Paulo: Edusp, 1980.
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Lincoln Etchebèhére Júnior. Universidade São Marcos.


Professor doutor do Mestrado Interdisciplinar em Educação,
Administração e Comunicação. Educação e Práticas Educativas
no Brasil. Rua Dr. Martinico Prado, 142, Apto. 95, Santa
Cecilia – São Paulo – CEP 01224010.
lincoln.e.jr@hotmail.com.br
Leonel Mazzali. Universidade São Marcos. Professor doutor do
Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e
Comunicação. Políticas Públicas e Administração no Brasil. Rua
João Antonio de Campos, 40, Jundiaí-SP, CEP 13209280.
leonel_mazzali@uol.com.br
Rosemari Fagá Viegas. Universidade São Marcos. Professora
doutora do Mestrado Interdisciplinar em Educação,
Administração e Comunicação. Cultura e Identidade. Rua João
Carlos Mallet, 175 – Planalto Paulista – São Paulo – CEP
04072040. viegas@fecap.br

Recebido em: 10/04/2007


Aceito em: 20/07/2007

181
.
ENTRE O CURA E O MÉDICO: HIGIENE,
DOCÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO NO BRASIL
IMPERIAL1
José Gonçalves Gondra

Resumo
Neste artigo analiso a forma escolar que a doutrina higienista
pretendeu legitimar junto aos professores primários, com base no
exame de quatro conferências pedagógicas apresentadas pelo Dr.
Gallard aos professores primários franceses, na Sorbonne, em 1867,
por ocasião da Exposição Universal de Paris. Este conjunto de
conferências foi traduzido (e adaptado) para o português por
Machado de Assis, sob a chancela do Dr Homem de Mello (Inspetor
Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte) e publicado nas
colunas do hebdomadário “A instrução pública”. Por fim, para
observar mais um espaço de difusão das mesmas, em 1873, tais
conferências foram publicadas em um opúsculo intitulado “Hygiene
para uso dos mestres-escola”, destinado “ás administrações das
escolas do Império” e para onde conviesse “a prática do que ensina”.
Com o exame deste material e de suas formas de circulação é possível
observar a capilarização da doutrina da Higiene que procura definir
um estatuto para o professor primário, a idade da escola e um modelo
de educação integral.
Palavras-chave: Higiene, Instrução Pública, Escolarização

BETWEEN THE CURI AND THE PHYSICIAN:


HYGIENE, TEACHING AND SCHOLARSHIP IN
IMPERIAL BRASIL
Abstract
In this article, I analyze the school way hygienist doctrine which was
thought to be legitimated among elementary teachers. Such analysis
is based on Dr. Gallard’s four pedagogical conferences to French
elementary teachers in Sorbonne. They took place in 1867, on the
occasion of Paris Universal Exposition.This conference collection
was translated (and adapted) to Portuguese by Machado de Assis, by
Dr. Mello (General Inspector of Elementary and Secondary
Teaching of the Court) and published in the weekly “A instrução

1
Uma versão deste texto foi apresentada no VII Congreso Iberoamericano de
Historia de la Educación Latinoamericana, ocorrido em Quito, Equador, em
2005.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 183-204, Maio/Ago 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
pública”. Finally, these conferences were also published in an
opuscule named Hygiene to master-school use, destinated to imperial
schools administration, and to those who work with teaching
procedures. This material and its circulation provided observing the
hygiene doctrine capillarity which seeks for defining a primary
(elementary) teacher statute, the school age and an integral education
model.
Keywords: Hygiene; public education; schooling

ENTRE EL CURA Y EL MÉDICO: HIGIENE, DOCENCIA


Y ESCOLARIZACIÓN EN BRASIL IMPERIAL
Resumen
En este artículo analizo la forma escolar que la doctrina higienista ha
pretendido legitimar junto a los maestros primarios, con base en el
examen de cuatro conferencias pedagógicas presentadas por el Dr.
Gallard a los maestros primarios franceses, en la Sorbonne, en 1867,
por ocasión de la Exposición Universal de Paris. Este conjunto de
conferencias fue traducido (y adaptado) para el portugués por
Machado de Assis, bajo la aprobación del Dr Homem de Mello
(Inspector General de la Instrucción Primaria y Secundaria de la
Corte) y publicado en las columnas del semanario “La instrucción
pública”. Por fin, para observar más un espacio de difusión de las
mismas, en 1873, tales conferencias fueron publicadas en un
opúsculo intitulado “Higiene para uso de los maestros-escuela”,
destinado “a las administraciones de las escuelas del Imperio” y para
donde conviniera “la práctica de lo que enseña”. Con el examen de
este material y de sus formas de circulación es posible observar la
difusión de la doctrina de la Higiene que busca definir un estatuto
para el maestro primario, la edad de la escuela y un modelo de
educación integral.
Palabras-clave: Higiene, Instrucción Pública, Escolarización

184
Durante muito tempo a instrução foi representada nas
aldêas apenas por dous homens: o médico e o cura...
Direi melhor: o cura e o médico, porque devo respeitar a
ordem de precedência, que acho legítima e é geralmente
adoptada. Ao pé delles e entre elles, puzeram as nossas
actuaes instituições o professor primário. Não penseis que
neste trio intelectual, seja o vosso papel menos bello ou
mais obscuro.” (Dr. Gallard, 1873, p. 5)

Saber constituído como ramo especializado da medicina


e constituinte de um vasto conjunto de práticas, a Higiene2, para
se legitimar, empregou dois grandes vetores. Um voltado para o
interior da própria ordem médica, desdobrável na criação de
disciplinas de formação; na importação, tradução e redação de
manuais e compêndios; na organização de sociedades científicas e
também na produção de discursos endereçados a um público mais
amplo, na forma de dicionários, jornais, revistas e da própria
literatura. O outro vetor foi apontado para várias instituições da
sociedade como quartel, cemitério, prisão, bordel, igreja, família e
escola, por exemplo3.
Apontado para a escola, a heterogeneidade das formas de
legitimação também se fez presente, visível na definição das regras
para constituir uma família higienizada, na definição de uma física
das escolas, compreendendo sua localização, arquitetura,
iluminação, aeração e metrificação dos espaços e também na

2
Para o Dr. Devay “L’Hygiene n’est autre chose que la raison appliquée” (p.
VIII). In Traité spécial d’higyène des familles. Paris: Labé – Libraire de la Faculté
de Médecine, 1858.
3
A esse respeito, cf. Machado et ali. Danação da norma. Rio de Janeiro: Graal,
1978; Costa, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 3ª edição. Rio de
Janeiro: Graal, 1989; Rocha, Heloisa H. P. A higienização dos costumes –
educação escolar e saúde no projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo (198-
1925). Campinas: Mercado das Letras, 2003 e Gondra, José. Artes de civilizar –
medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: EDUERJ,
2004, dentre outros.

185
normalização dos professores e das ações pedagógicas. Uma
evidência deste último dispositivo acionado pelos higienistas se
encontra presente na circulação de manuais de higiene voltados
para o mestre-escola, alguns vertidos para a língua portuguesa.
Na tentativa de analisar a forma escolar que a doutrina
higienista pretendeu legitimar junto aos professores primários,
examino a circulação de quatro conferências pedagógicas
apresentadas pelo Dr. Gallard aos professores primários franceses,
na Sorbonne, em 1867, por ocasião da Exposição Universal de
Paris. Conjunto de conferências traduzido (e adaptado) para o
português por Machado de Assis4, sob a chancela do Dr Homem
de Mello5 (Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária da
4
Jornalista, contista, cronista, poeta e teatrólogo (21-06-1839 a 29-09-1908),
Assis também foi funcionário público da Secretaria de Estado do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas, função exercida a partir de 1873. É
fundador da Academia Brasileira de Letras (também conhecida como a Casa de
Machado de Assis), instituição que presidiu por mais de uma década. Ao longo de
sua vida, teve relação próxima com o mundo editorial, atuando como auxiliar de
tipógrafo, auxiliar de tradução (auxiliou Charles de Robeyrolles na tradução de O
Brasil Pitoresco, em 1858) e tradutor (traduziu, em 1870, Oliver Twist de Charles
Dickens para o Jornal da tarde), p. ex. Para compreender algumas das atividades
de Machado de Assis, cf., dentre outros, Chalhoub, Sidney. Machado de Assis
historiador. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. Para acesso a vasta
produção, arquivo e estudos sobre Machado de Assis, consultar
http://www.machadodeassis.org.br/, portal da Academia Brasileira de Letras.
Acesso em 26/05/05.
5
Francisco Inácio Marcondes Homem de Mello (1-5-1837 a 4-1-1918) foi
nomeado Inspetor Geral da Instrução Pública Primária e Secundária do Rio de
Janeiro em 19 de janeiro de 1873, foi agraciado com o título de Barão Homem
de Mello em quatro de julho de 1877, em reconhecimento aos relevantes serviços
prestados ao Império. Eleito Deputado Geral, representou a província de São
Paulo na Assembléia Geral do Império, na legislatura de 1878 a 1881,
integrando o Gabinete Saraiva (José Antonio Saraiva), como Ministro do
Império e da Guerra. Conselheiro do Império, participou ativamente da
campanha abolicionista. Em 1878, foi nomeado presidente da província da
Bahia e a 27 de julho de 1882, diretor da Biblioteca Nacional, tendo sido
também Lente de Geografia e História no Colégio Militar do Rio de Janeiro, era
major honorário do Exército Brasileiro, dentre outras funções por ele exercidas.

186
Corte) e publicado nas colunas do hebdomadário “A instrução
pública”6. Em 1873, as conferências foram publicadas em um
opúsculo intitulado “Hygiene para uso dos mestres-escola7”,
destinado “ás administrações das escolas do Império” e para onde
conviesse “a prática do que ensina”.
Valendo-se desse duplo dispositivo de difusão, via
imprensa pedagógica de traçado oficial e na forma de opúsculo,
visava-se ensinar os professores primários alguns dos princípios
elementares da doutrina que reivindicava para si o estatuto de
ciência-mestra, via de acesso aos segredos da civilização8. Assim,
modelando mestres, a higiene buscava submeter a população aos
seus cânones. Esta, segundo o médico francês, não mais deveria
apenas ficar sob a direção do cura e do médico. Ao defender o
rearranjo na forma de instruir o povo, a higiene escavava um
ponto bem marcado para o professor primário, definido por uma
obediência rigorosa às suas exigências. Deste modo, ao produzir o
professor como aliado estratégico nas disputas com a fé, a higiene
prometia um novo tempo, civilizando a população que ela mesma
representava como rude e impura por meio de uma escola
higiênica e higienizadora.

6
A Instrução Pública. Rio de Janeiro: Typographia Cinco de Março, 1872-75 e
1887-88.
7
Dr. Gallard. Trad. Machado de Assis. Hygiene para uso dos mestre-escolas. Rio
de Janeiro: Typographia 5 de março, 1873. Outra reflexão acerca deste material
pode ser conferida no estudo de Rocha, Heloisa H.P.. Discurso higienista e
educação: fontes para o estudo da Higiene Escolar no século XIX. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1998 (mimeo)
8
Um estudo mais detalhado acerca das características da Higiene no século XIX
pode ser conferido em Gondra (2004).

187
As Conferências Pedagógicas

Em um total de quatro, as Conferências do Dr. Gallard


podem ser compreendidas como expressão de um dispositivo
acionado pelo Estado no sentido de favorecer e patrocinar a
emulação dos professores, esta espécie de arte da superação. Postos
frente a temas e problemas da vida e do trabalho, os mestres
seriam estimulados na busca de soluções, aperfeiçoando, assim, os
modos como interferiam na vida de seus alunos, configurando
parâmetros que deveriam presidir as práticas desses sujeitos. Esse
método de formação tem características transnacionais, visto sua
adoção, por exemplo, na Corte brasileira, desde 18549.
As instruções de 1854 indicam, de antemão, os temas
ao determinar que os professores seriam reunidos “a fim de
conferenciarem entre si sobre todos os pontos que interessão o
regimen interno das escolas, methodo do ensino, systemas de
recompensas e punições para os alumnos, expondo as observações
que hajão colhido de sua pratica e da leitura das obras que hajão
consultado”. O regulamento de 1872 repete a observação e
prossegue nas orientações, prevendo que, durante a organização do
programa, o presidente deveria propor que os professores
indicassem temas.

De preferência sobre quaesquer dos seguintes assumptos:


1º capacidade actual e eventual da casa das escolas, seus
commodos e utensis necessários; 2º Estudo, exame e
aplicação dos methodos e systemas de ensino; 3º
Apreciação dos livros usados nas escolas e dos que convirá
adoptar; 4º Finalmente, tudo quanto se considerar
necessário e profícuo em relação ao melhor e mais

9
A respeito das Conferências Pedagógicas da Corte, cf. Borges, Angélica.
Governo dos professores primários na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Universidade
do Estado do Rio de Janeiro/Faculdade de Educação, 2005. Monografia de
graduação e Gondra, José. A emergência da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2005,
especialmente o capítulo 3, escrito com Angélica Borges.

188
prompto desenvolvimento da instrução e educação
primária.

Com isso, pode-se perceber que, embora adotada como


método, a consulta se fazia acompanhar da definição de uma
espécie de agenda, composta por três preocupações caras aos
homens que auxiliavam no governo da instrução: arquitetura e
material escolar; os métodos e livros. As normas também
prescreviam o tipo de participação dos professores na organização
dos programas, sendo que o emprego da metodologia da indicação
dos temas por parte do professorado vinha acompanhada da
manutenção de antigas regras, como o fato de o poder de
consolidação das questões a serem debatidas permanecer
concentrado na figura do presidente da Conferência e do Conselho
Diretor, em cumprimento ao inciso 3º do artigo 4º, do
regulamento de 1872: “Recolhidas estas indicações o Presidente
ficará só com o conselho diretor para assentarem nos pontos ou
quesitos que devem constituir o programa, pontos que serão
determinados com toda a individuação, simplicidade e clareza,
ficando assim encerrada a conferência”. Desta forma, a palavra
final caberia a um grupo seleto de indivíduos, representantes do
governo imperial, restringindo o espaço para rediscussão das
escolhas, visto que o anúncio dos novos pontos consistia no último
ato relativo à organização do evento.
As discussões, respeitando as normas preestabelecidas,
também deveriam se dar de forma restrita e controlada. O
conjunto de regras apresentadas em 1872 definia diversas
estratégias de controle disciplinar ao exigir, por exemplo, que os
professores guardassem “cortesia e urbanidade”, evitando
expressões e gestos que pudessem ofender tanto quanto o desvio da
discussão para outro assunto; ao não consentir discursos
divagantes e extensos como argumento para tornar a reunião
“proveitosa”. Do mesmo modo, determinava a presença do
Inspetor Geral investido na função de convocar e presidir a
reunião, bem como manter a ordem, “podendo não só fazer sahir

189
da sala os que não se portarem convenientemente, mas suspender
os trabalhos, quando não possa conter os indivíduos que de
qualquer modo os perturbarem”. De modo assemelhado, o
regulamento de 1884 registra: “As discussões estranhas aos fins
indicados no artigo anterior deverão ser rigorosamente
prohibidas”.
Como se pode perceber, a arte da superação deveria se
dar frente a uma regulamentação precisa, que definia o
funcionamento geral das Conferências da Corte Imperial, o
período em que deveriam se realizar, sua periodicidade, as
condições de participação, os lugares a serem ocupados por cada
um dos participantes10 e, também, um sistema de recompensas e
penalidades. Esta regra incidia, de modo especial, sobre aqueles
descritos como os mais despreparados, os desequipados intelectual,
moral e higienicamente: os professores primários. Regra homóloga
ao caso francês. As Conferências do Dr Gallard, difusor da
Higiene, se volta para os professores das aldeias, espaço afastado
da urbanidade e civilidade que se pretendia instituir em toda a
França, mas não só neste País, como indicado nestes
apontamentos iniciais11. O Dr. Gallard, nesta tarefa de irradiador
de uma certo padrão de urbanidade e civilidade não estava só,
como deixa transparecer no início de seu discurso, na quarta
Conferência:

10
O Regulamento de 1872 determina também os lugares onde os participantes
deveriam se acomodar: o secretário ficaria ao lado direito do inspetor, tendo do seu
outro lado o secretário da repartição da instrução pública; os membros do conselho
diretor teriam seu lugar no estrado da mesa do presidente; os professores públicos e
particulares convidados tomariam “promiscuamente” assento em cadeiras
colocadas em frente da mesa do presidente e os delegados e espectadores ficariam
nos lugares que lhes fossem destinados.
11
Para o caso português, cf. os estudos de Ferreira, António Gomes,
especialmente Gerar, criar, educar: a criança no Portugal do Antigo Regime.
Coimbra: Quarteto, 2000.

190
Tomando a palavra depois do orador que acaba de sentar-
se, só me é dado esperar attrahir a vossa attenção com um
discurso que seja breve. Não devo pretender outro mérito,
mas esse há de ser apreciado por uma assembléia que,
reunida e attenta há mais de duas horas, deve de algum
modo assustar-se ao ver a terceira pessoa levantar-se para
fallar (1873, p. 69)

Com isso, se pode perceber aspectos do funcionamento


das Conferências Pedagógicas na França que, reunindo os
professores das aldeias, em Paris, no âmbito de uma Conferência
Universal12, procurava colocá-los em contato com autoridades bem
determinadas, durante um certo tempo, no qual ouviam suas
preleções
No conjunto das quatro Conferências, traduzidas e
publicadas no Brasil, em 1873, sob o título “Hygiene para uso dos
mestre-escolas”, cabe analisar o que foi elevado ao estatuto de
matéria a se fazer conhecida pelos professores das aldeias
francesas, bem como o modo como tais matérias foram
representadas em um discurso marcado pela perspectiva de
“formação em serviço” para esse tipo específico de trabalhador.

Uma descrição do professor primário

A instrução nas aldeias francesas, segundo o Dr.


Gallard, durante muito tempo foi representada apenas por dois
homens: o cura e o médico13. Como assinalado na epígrafe deste
artigo, ele propõe o reconhecimento da existência de um trio
intelectual, reservando para o professor primário uma função bem

12
A respeito da dimensão pedagógica das Exposições Universais, cf. o estudo de
Khulmann Junior, M., As grandes festas didáticas: a educação brasileira e as
exposições universais (1862-1922). Bragança Paulista, 2001.
13
Essa ordem é apresentada como uma forma de respeitar a precedência, sinal de
um reconhecimento de que a ordem religiosa antecedeu a ordem médica no
regime das prescrições voltadas para o conjunto da população.

191
destacada de fazer a mediação entre os dois que lhe antecederam,
como forma de mediar um conflito derivado das ordens religiosa e
médica, descrito como um conflito entre o espírito e a matéria,
que terminava por reduzir o homem a uma ou outra dessas duas
dimensões. O desafio posto e a tarefa delegada ao professor era
integrar “essas duas partes indispensáveis: a alma e o corpo”
(1873, p. 6). Tarefa que classifica como fácil, dado o não
pertencimento do professor a qualquer uma das duas ordens.
Portanto, inscrito em outro domínio, o professor primário poderia
zelar por uma formação integral, como o médico assinala:

Tanto mais indispensável é isto, quanto que intelligencia,


a alma, a parte immaterial sem a qual a creatura não
existiria, e que vos cumpre desenvolver, nem o estado,
nem a mãe de família, que vos confia seus filhos, podem
vel-a senão atravez do grosseiro e material invólucro do
corpo; assim que é exigência delles que vigieis com a
máxima solicitude o que respeita a esta ultima parte.
Com os cuidados iguaes que derdes a esses pequenos
corpos e a essas intelligencias infantes é que formareis
homens úteis à família, e cidadãos úteis ao estado. (p. 6)

O discurso que define um papel a ser exercido pelo


professor primário é o mesmo que institui um lugar para si, a
“minha missão”, a do higienista. Esta consistia em ensinar14 como
o desenvolvimento da inteligência, a cultura da alma não deveria
impedir que se velasse pelo corpo, de modo que a nova civilização
pudesse ter homens bem constituídos física e intelectualmente,
com uma inteligência sã em um corpo são e vigoroso: mens sana

14
O caráter de dispositivo de ensino/formação é, por vezes, matizado como
estratégia para fazer o discurso deslizar para pontos variados. Com essa intenção
assinala que as Conferências teriam menos o caráter de um curso solene que o de
uma simples conversa, em que se podia ir de um assunto a outro, sugerindo não
haver um plano prévio para sua intervenção. (p. 10)

192
in corpore sano15. No entanto, esse esforço supõe um regime
descritivo que também recobre as crianças. Esta descrição, por sua
vez, vem apoiada em outra preleção das referidas Conferências.
Trata-se nesse caso das recomendações da Sra. Pape-Carpantier16.
Segundo ela, para dirigir as crianças e vencer as inumeráveis
dificuldades derivadas do desempenho de “tão importante e nobre
missão” o grande segredo era amar, amar muito e amar com todo
o coração. No entanto, tal amor sem medidas, vinha subordinado
ao conhecimento dos “cuidados delicados” que deveriam anteceder
(e se manter durante) a instrução das crianças, particularmente da
criança pobre, da aldeia. Cabe indagar a que cuidados ele se refere,
na ordem em que os mesmos são abordados: parto17, hemorragias,
respiração do recém-nascido, crítica ao enfaixamento, defesa do
uso de fraldas, aleitamento materno, combate ao comércio do
leite, crítica aos andadores, defesa de uma aprendizagem natural e
da vacina, descrição da nosografia e das formas de lidar com o
quadro das doenças mais comuns. Ao lado disto, também

15
Ao fazer a citação em latim, pede perdão ao seu auditório, prometendo não
fazer nenhuma outra. Sinal, mais um, de uma descrição dessa assembléia, que
precisava aprender com o higienista.
16
A Conferência da sra. Pape-Carpantier ocorrera no dia anterior à do
higienista. Mme. Pape-Carpantier (1815-1878) inspirou-se largamente em
Froebel na organização das salas-de-asilo. Como ele, defendia o ensino baseado
na natureza da criança. Proclamava que a educação deveria ter por base a afeição
e o respeito: “A criança deveria viver no meio de impressões frescas e suaves. Não há
uma criança que não se deixe prender pela afeição que se lhe demonstre. Amai cada
uma das que são confiadas aos vossos cuidados. Só valemos tanto quanto amamos.
O amor é a chama que atrai a chama.” (apud Riboulet, L. História da Pedagogia.
São Paulo: Francisco Alves, 1951, p. 499). Aspectos da difusão do modelo das
salas-de-asilo em Portugal podem ser conferidos em Fernandes, Rogério.
Orientações pedagógicas das Casas de Asilo da infância desvalida. Cadernos de
Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 109, pp. 89-114, março
2000.
17
Ainda que afirme não pretender revelar todos os mistérios do parto, ele oferece
um conjunto de informações, autorizando o socorro em situações limites e
emergenciais, indicando os procedimentos a serem adotados.

193
prescreve uma idade da escola e uma série de prescrições para o
trabalho com as crianças, que merece ser detalhada.

A idade da escola18

No que se refere à idade da escola, defende que aos 4-5


anos a criança estaria apta a freqüentar a escola. Para ele, a
antecipação consistia em um erro posto que não se deveria obrigar
a trabalhar a inteligência nimiamente infantil porque prejudicaria
o desenvolvimento do físico, retomando e reforçando o princípio
da integração e do equilíbrio entre o físico e o intelectual, entre o
corpo e a alma, afirmando com uma certa dose de ironia que
sempre desconfiara “da saúde desses prodigiosinhos” que
começavam “os seus estudos aos dous ou três annos” (p. 16).
Chegada a idade da escola, uma série de cuidados deveriam guiar a
rotina das crianças, como a garantia de uma atividade física,
impedindo que os meninos fossem obrigados a uma prolongada
imobilidade:

A criança é activa, deixai que se mova; tem uma


actividade exuberante, mas essa actividade é vida, é
condição de seu desenvolvimento physiologico: ella mal
soffre constrangimento; por esse motivo deveis variar-lhe
os trabalhos de tal maneira que, depois de uma occupação
relativamente curta, raramente mais de uma hora, haja
logo, não recreio, (pois o alumno passaria o tempo a

18
Uma reflexão acerca da cronologia da vida pode ser encontrada em manuais de
higiene que, dependendo da tradição a que o autor se vincula, institui etapas da
vida bem diferenciadas. A respeito deste debate, cf. Ariès, Philippe. História social
da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981; Becquerel, A 3ª edição
(com adição e bibliografia feita por Beuagrand). Traité elementaire d’hygiene privée
et publique. Paris: P. Asselin, 1864. e Gondra & Garcia. Arte de endurecer
miolos moles e cérebros brandos – racionalidade médico-higiênica e construção
social da infância. Revista Brasileira de Educação. Campinas: Autores Associados,
n. 26, pp. 69-84, 2004.

194
brincar), mas um exercício qualquer que lhe descanse o
espírito e o corpo19. (p. 20)

No esforço de diagnóstico de uma aula, de suas


emergências e das práticas em uso, também aborda a questão do
silêncio, discutindo o “prolongado silêncio” das aulas. Para ele, tal
procedimento também deveria ser eliminado na medida em que a
respiração sofria com a adoção de tal medida. Cabem, então,
observar a cadeia de causalidade que organiza para alterar a rotina
das aulas. Para ele, o prolongado silêncio funcionava como
elemento causal e forma explicativa da alegria e gritos das crianças
quando chegava a hora do recreio. Em suas palavras:

Obedecendo instinctivamente à necessidade imperiosa de


respirar largamente, põem, em jogo, ruidosamente, é
certo, mas de um modo efficaz, todos os músculos que
favorecem o acto respiratório. Não quero aconselhar-vos
que os deixeis gritar assim na aula, cuja ordem não pode
consentir semelhante gymnastica vocal, mas podeis fazer
com que elles cantem no passeio executado na sala, ao
passar de um a outro exercício. Pouco importa que
cantem bem ou mal; o que eu desejo é que os seus
músculos se movam, tanto os do peito como os das
pernas, e até os dos braços que naturalmente
acompanharão o movimento da cadencia. (p. 20)

Segue insistindo no benefício dos passeios, desde que


feitos de modo a deixar livres os movimentos das crianças, olhando
livremente para diante de si “como convem a quem sente a
consciência quieta e tranqüila” (p. 21). Mantendo a defesa da
liberdade dos movimentos do corpo, Dr. Gallard vai se aliar aos
que combatem o fim dos castigos corporais em favor de sua
substituição pelos castigos morais, descritos como mais humanos e

19
A recomendação geral vem acompanhada de um modelo, um exemplo: “Há um
meio simples que podeis pôr em pratica, e que aliás já é empregado no ensino mútuo,
é fazer executar um pequeno passeio em volta da aula, na occasião de passar de um
estudo a outro” (p. 20)

195
mais eficazes. Nesta linha, o combate também recobre o que
designa de “atitudes forçadas”, mais cruéis, às vezes, que as
pancadas. Segundo ele, colocar uma criança de joelhos e deixá-la
assim, por longo tempo, é maior tortura que um “carolo” dado em
um momento de cólera; por um livro em cada mão e fazer
estender os braços em cruz é um suplício inimaginável20. Como
alternativa, recorre aos mecanismos da disciplina. Para ele

Entre os castigos, os que se dirigem á intelligencia, os


castigos de algum modo morais, ao os que devereis
sempre preferir, porque esses não alteram a saúde, e
parece-me que são mais efficazes. Marcai na aula um
logar destinado especialmente aos maus alumnos; não é
necessario que seja o mais escuro ou o menos arejado;
bastará que seja o logar das crianças punidas, e é quanto
basta para que nenhuma criança queira occupal-o. Pode-
se imaginar castigo mais simples e innocente? (p. 21)

Na seqüência, propõe formas alternativas de


constrangimento da criança “indisciplinada”, fazendo combinar
preocupações comportamentais e zelo com a saúde. Nesta lógica,
os mais quietos e fracos deveriam ser castigados com os “brincos”
que exigiam força. Os de “vitalidade exuberante” deveriam ser
obrigados a jogos tranqüilos. Com isso, prometia a obtenção de
um grande efeito, sem que nunca o professor pudesse ser acusado
de excessiva severidade.
Em 1896, decorridos mais de duas décadas da tradução
do Dr. Gallard, Machado de Assis publica “Várias Histórias” 21,
coletânea de contos na qual há um intitulado “Conto de Escola22”.

20
A substituição dos suplícios pela disciplina, visando um governo de si, uma
autodisciplina é objeto do estudo de Foucault e que pode ser conferido em
Foucault, Michel. Vigiar e punir. 9ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.
21
Assis, Machado. Várias histórias. São Paulo: Globo, 1997.
22
Apoiado em Diderot, Assis justifica sua opção pelo gênero do “conto”,
ressaltando que o tamanho reduzido dos mesmos não é o que fazia mal a este
gênero de histórias. Para ele, a questão era a da sua qualidade, havendo “sempre

196
Neste conto, o tradutor se aproxima de algumas teses do traduzido
ao descrever formas da violência contra as crianças presentes na
casa e na escola; esta última situada na Corte, em um “sobradinho
de grade de pau”, nos idos de 1840. Para escapar da violência do
espaço privado, Pilar, o aluno imaginado, se refugia na escola de
primeiras letras para meninos do Prof. Policarpo. Opção que o
leva a se arrepender, contrastando a imobilidade da aula (e de seu
corpo) com a liberdade da rua: “Com franqueza, estava
arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar
lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros
meninos vadios (...) E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o
livro de leitura e a gramática nos joelhos” (Assis, 1997, p. 138-
139).
Como se pode perceber, há sinais de desdobramento das
recomendações do Dr. Gallard no modo como o arrependimento
do menino é descrito, estratégia do tradutor para criticar a forma
escolar que aprisiona e paralisa seus alunos. Essa espécie de
linguagem desdobrada também se manifesta na denúncia dos
castigos físicos, simbolizado pela presença e emprego da
palmatória: ”O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória.
E essa lá estava, pendurada no portal da janela, à direita, com seus
cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e
brandi-la, com a força do costume, que não era pouca” (idem, p.
140)
Quanto aos usos desta ferramenta de supliciar, seu
emprego se dava em situações heterogêneas, com foco voltado para
uma espécie de normalização das práticas. Neste sentido, servia
para instituir um modelo bem determinado de desempenho
intelectual, punindo os que dele se desviavam, como também para
punir atitudes julgadas incompatíveis com o ambiente escolar.
Neste caso específico, o objeto a ser combatido era a corrupção,
submetida ao regime da penalidade-punição que, neste caso, vai se

uma qualidade nos contos, que os torna superiores ao grandes romances”.


(Advertência, in Varias Histórias, 1997)

197
realizar com base em uma espécie de amálgama entre o castigo
físico e o constrangimento de ordem moral. Combinatória que
pretendia banir da pequena sociedade escolar um comportamento
tido como indesejável na grande sociedade. Neste registro, a escola
também ensina o que considerava como “boa delação”.
Ensinamentos que fizeram com que o menino “sem virtudes”
(idem, p. 137), a caminho da escola, no dia seguinte às duas
grandes lições recebidas no que se refere à corrupção e delação,
tivesse, desta vez, se desviado não apenas da rotina da escola de
primeiras letras do prof. Policarpo, mas da própria escola, tendo
preferido marchar junto a uma companhia do batalhão de
fuzileiros, ao ritmo do rufar dos tambores. Assim, no conto
machadiano, a escola da mobilidade, da rua, representa uma dupla
vitória em relação à escola da paralisia e da violência. Não seria
isto mais um efeito da linguagem do traduzido, desdobrada na do
tradutor?
Por fim, ao concluir sua primeira conferência, o
traduzido se desculpa pela quantidade de assuntos abordados, o
que fez com que os tivesse tratado com uma “rapidez vertiginosa”.
Ao encerrar, em um esforço de síntese, formula seu conselho final:

Vigiai com igual solicitude a alma e o corpo dos vossos


alumnos: com igual cuidado deixai-lhes desenvolver as
forças physicas e as forças intellectuaes,por que em cada
um desses meninos que o estado vos confia deve elle ir
buscar mais tarde uma eleitor e um soldado, isto é o
poder moral e o poder material de que o nosso governo
terá sua força e que fazem hoje a nossa França tão quieta
e unida no interior, tão grande e respeitada no exterior.
(p. 22)

No conselho final, retoma pois uma determinada


representação deste integrante do trio intelectual responsável pela
instrução e formação dos camponeses. Cabe, nesta representação,
o reforço à função de agente integrador, articulador da dimensão
moral e intelectual dos futuros eleitores e soldados.

198
Por uma educação higiênica ou integral

As Conferências do Dr. Gallard também pretenderam


funcionar como dispositivo para fazer circular e legitimar um
modelo de educação integral, partilhado por grande parte da ordem
médica no século XIX23. Trata-se do modelo hexagonal que supõe
observar as seguintes dimensões na organização e funcionamento
das instituições privadas e públicas: circumfusa (os arredores),
applicata (proteção e limpeza corporal), ingesta (nutrição e
hidratação), gesta (exercícios corporais), excreta (eliminação dos
resíduos do corpo) e percepta (educação dos órgãos do sentido).
Modelo que, de modo condensado, se encontra presente e
estrutura as 3 últimas Conferências do higienista francês para os
professores primários do interior da França e, posteriormente
destinadas aos que administravam as escolas do Império do Brasil.
A segunda Conferência é aberta com uma observação
referente à educação dos adultos nas escolas noturnas. Sendo
assim, as prescrições higiênicas dilatam seu raio de cobertura,
aplicando-se tanto às crianças como aos “homens feitos”, ou seja,
tratava-se de um saber que deveria se fazer presente durante toda a
vida. Saber que recobria as regras do asseio pessoal, passando pelos
banhos (regularidade e temperatura), as roupas (inclusive “as de
baixo”), cuidados com a construção e localização das casas,
alimentação (tipos, carnes, bebidas), relação entre boa digestão e
repouso. Essas prescrições, como as demais, também vêm apoiadas
em autoridades, recolhendo exemplos que recuam até a
antiguidade ou mesmo de autores que lhe são contemporâneos.
Neste caso, recupera o livro do Dr. Motard, Ensaio de Hygiene
Geral, de 1841. Um dos destaques extraídos desse livro reforça a
instrução como remédio para os males do campo que, então,
descreve. Apoiado no colega, afirma que o remédio é a instrução
longamente disseminada nas aldeias, reconhecendo que a

23
A esse respeito, cf. por exemplo, Becquerel, A., 1864. e Gondra, 2004.

199
dificuldade não consistia em sua indicação, mas em sua aplicação.
Deste modo, volta sua face para o aparelho do Estado, reclamando
uma efetiva política de instrução que revolucionasse a sociedade
francesa, sem convulsão. Deste modo, o diagnóstico médico
também se apresenta como instrumento para uma ação de
governo:

Será eterna honra do ministro que preside aos destinos da


instrucção publica (o Sr. Duruy24) o ter comprehendido
como essa applicação deve ser feita. Árdua, atrevida e
bella era a empresa de renovar completamente a sociedade
franceza, sem revolução nem abalo, é só com a diffusão
da instrução (p. 32)

Como se pode perceber o discurso técnico-científico


comparece associado a um projeto de intervenção “pacífica” na
sociedade francesa. Repõe-se, deste modo, uma dimensão
redentora da razão-educação, atualizando uma representação
missionária do professor que, ainda que não fosse mais um
apóstolo de uma determinada fé, era instituído como um apóstolo
civil, cujo trabalho-missão deveria ser presidido pelas “luzes”
impostas pela racionalidade médico-higiênica25.
A terceira Conferência reafirma o saber médico como
guia da sociedade, desferindo ataques aos curiosos, comadres e
curandeiros. É a mais longa das quatro, na qual vai se afirmando

24
Victor Duruy (11-09-1811 a 25-11-1894) nasceu em Paris, foi normalista,
mestre de conferências na Escola Normal, professor de história na Escola
Politécnica e inspetor geral de ensino secundário. Foi ministro da Instrução
Pública entre 1863 e 1869 e membro do Conselho de Instrução Pública de
1881 a 1886.
25
Não defendo uma exclusividade desse saber-poder na modelação da sociedade e
de suas instituições, até porque sua afirmação e legitimidade supõem o
reconhecimento de articulações variadas e polimorfas com outras ordens de saber-
poder, como a religiosa, militar e jurídica por exemplo. Percepção que nos obriga
a trabalhar com a tese de que a própria ordem médica se organiza e funciona de
modo heterogêneo.

200
claramente os limites das concessões feitas aos professores
primários, ainda que equipados com os saberes difundidos no
âmbito das Conferências. A eles caberiam medidas emergenciais,
de primeiros socorros, cuja continuidade deveria estar subordinada
à figura do representante da racionalidade médico-higiênica:

Vou dizer-vos o que, nessas circunstâncias urgentes,


podeis e deveis fazer antes de chegar o médico. Notai bem
que as minhas instrucções não podem ir além disso, nem
pretendem supprir os conhecimentos que só a experiência
e estudos especiaes podem dar. Ainda com esta prudente
reserva, ser-vos-há possível intervir muita vez de maneira
a fazer-vos uteis a vossos vizinhos e a prestar auxílios aos
médicos do logar, auxilio tanto mais efficaz quanto que o
fareis com reserva e discrição. (p. 34)

O tom imperativo dá a medida da concessão, marca os


espaços do saber-poder, delineando o raio de atuação desses dois
representantes da intelectualidade, raio cuja medida é dada pelo
médico: “Os cuidados que podeis prestar, e que vou indicar,
applicam-se a moléstias ou a feridas”. Segundo esta divisão, o
higienista aborda a questão da inanição, sangrias, epilepsia,
embriagues, asfixia, vômitos, envenenamentos, epidemias e
endemias, por exemplo. No regime da repartição, se esforça em
acentuar a linha que distingue os dois ofícios. O médico,
representado como sempre modesto e muito instruído, passava os
dias e, muitas vezes, as noites, a correr pelos campos, ora a cavalo,
mais comumente a pé, raramente em um mau tílburi, que não o
protegia nem do frio, sol, nem da chuva e vento. Ao mesmo tempo
em que afirma ser o ofício do professor primário, sem dúvida
difícil, reconhecendo, mais do que ninguém a abnegação dos
mestres-escolas, também assinalava que não podia ser comparado
às dificuldades encontradas pelo médico no exercício de sua
função. Mais sofrido, mais modesto e muito instruído, cabia,
portanto, ao médico, por uma qualidade ou combinatória delas,

201
definir o que deveria ser executado por cada um dos membros da
referida trindade intelectual.
A quarta Conferência é dedicada ao corpo e à ginástica,
fornecendo um guia mais completo para a ação dos professores, de
modo que pudessem mediar as relações entre o corpo e alma.
Neste domínio, as atividades corporais são descritas como a
possibilidade de aumentar o vigor corporal, bem como os limites
em que conviria prosseguir ou restringir o desenvolvimento das
forças físicas. O princípio operatório é assemelhado ao empregado
nas demais conferências. Faz uso de uma erudição, recorrendo a
exemplos da antiguidade e de outros países como estratégia para
reafirmar que o princípio da moderação também deveria ser regra
na seleção dos exercícios corporais. Com essa chave, estrutura um
discurso em que aponta o que deve ser eliminado e o que deve ser
estimulado nas aulas, configurando o que nomeia como “a boa, a
verdadeira e sã gymnastica” (p. 79) Assim, por exemplo, combate
o pugilato, os exercícios artificiais dos ginásios, indicando a bola,
barra, equitação, natação, trabalhos agrícolas, exercício militar,
manejo de espingarda e a caça. Como vantagem adicional do uso
higiênico dos exercícios corporais, lembra que os mesmos também
funcionavam como um eficaz remédio contra “as paixões nocivas”.
Ao concluir sua última Conferência, faz questão de relembrar a
missão dos professores primários:

Cabe-vos fazer com que nos vossos alumnos o equilíbrio


se estabeleça de um modo regular, para que elles sejam
dotados de uma alma forte e de um corpo vigoroso. Vossa
missão é formar homens, na máscula acepção da palavra,
e dignamente desempenhareis essa nobre tarefa se
conseguirdes que os vossos alumnos sejam, ao mesmo
tempo, capazes de servir a nossa pátria com a
intelligencia e defendel-a com animo e vigor (p. 83)

Nas palavras finais, a pátria comparece como argumento


que orientaria a adesão ao saber-poder da Higiene. Como se pode
perceber, trata-se de uma racionalidade que se aproxima do

202
aparelho do Estado, estratégia que apresenta um duplo efeito;
expandir-se por meio das instituições que o Estado cria e mantém
e, com isso, expandir-se enquanto discurso primeiro de uma
sociedade e população que se queria higiênica e higienizadora.
A título de conclusão, cabem alguns comentários,
tomando por base o percurso e as formas de difusão do discurso
traduzido. O interesse do poder público na medicina de caráter
social, essa razão aplicada, já vinha se manifestando em outras
medidas, como é o caso das sucessivas reformas pelas quais o curso
de Medicina passou ao longo do Império, no apoio à sociedade
científica dos médicos, na criação de juntas de higiene, na inclusão
da disciplina de higiene nos cursos normais e também na tradução
de livros que abordavam esta questão. Na ordem médica, este é um
ramo que vai disputar uma orientação na formação e direção da
própria ordem, enfatizando a perspectiva da prevenção, contra a do
par doença-cura. Na ordem escolar, se observa uma vasta produção
de discursos voltados para configurar uma escola higiênica. Dois
exemplos para concluir. O primeiro refere-se ao livro Hygiène
Scolaire – influence de l´école sur la santé des enfants, de A. Riant26,
em sua 6ªedição, de 1882, integrante do acervo da biblioteca na
Escola Normal de São Paulo, atestando a circulação de obras
francesas focadas nesta problemática e sua presença em uma escola
de formação de professores primários. O segundo exemplo é o livro
Noções de Higiene, do médico brasileiro, Afrânio Peixoto27 que, em
1925, se encontrava na 3ª edição (revista e adaptada para as

26
Doutor em medicina pela Faculdade de Paris, professor de higiene na Escola
Normal do Departamento do Sena, encarregado do curso de higiene no Liceu
Charlemagne e oficial de instrução pública. Sua obra foi admitida pela Comissão
de exame das bibliotecas escolares e das bibliotecas pedagógicas, tendo sido
premiada pela sociedade livre de instrução e de educação populares.
27
Formado na Faculdade de medicina da Bahia, foi professor de Medicina Legal
e Higiene na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e professor de Medicina
Pública na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Também foi
diretor da Escola Normal e Diretor-Geral de Instrução Pública do Distrito
Federal, dentre outras funções por ele exercidas.

203
escolas normais, aos cursos de farmácia e odontologia, às escolas
profissionais, aos ginásios e liceus). No prefácio à 1ª edição, é
apresentado como o primeiro do gênero que se publica no Brasil.
Dois pequenos exemplos que indicam que a preocupação com a
difusão da higiene para o uso dos mestres-escolas não pode ser
vista como algo incidental, tampouco como algo fixo. Essa forma
de intervir na sociedade e na vida das pessoas teve vida longa,
formas variadas de institucionalização e legitimação, forjando uma
tradição que é preciso conhecer.

José Gonçalves Gondra/UERJ. Rua Olegário Mariano, 276.


Tijuca – Rio de Janeiro – RJ. CEP: 20510-210. e-mail:
gondra@oi.com.br. Tels. 21- 2238-7760 ou 88745703

Recebido em: 12/05/2007


Aceito em: 20/07/2007

204
RESENHA
.
AGÊNCIAS MULTILATERAIS E A EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL BRASILEIRA
Manoel José Porto Júnior
Giana Lange do Amaral

Resenha do livro:
OLIVEIRA, Ramon de. Agências multilaterais e a educação
profissional brasileira. Campinas: Editora Alínea, 2006.

O livro de Ramon de Oliveira, recentemente publicado


pela editora Alínea, trata da influência das Agências Multilaterais
– sobretudo Banco Mundial e CEPAL (Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe) – nos rumos das políticas
públicas educacionais implementadas no Brasil, bem como, nos
demais países da América Latina. O tema é de enorme
importância principalmente por dar ênfase aos discursos de
combate à pobreza e desigualdades sociais presentes nos
documentos dessas agências que, na prática, priorizam a lógica
reprodutora do capital com graves efeitos sociais nos países sob sua
influência.
O trabalho desenvolvido por Ramon de Oliveira
explicita, com notável profundidade e rigor científico, as
observações já realizadas por vários pesquisadores que apontam o
caráter subserviente da inserção dos países chamados “em
desenvolvimento” na economia globalizada, problematizando os
receituários e as imposições apresentados para o Brasil pelos
representantes do capital internacional.
O autor apresenta o livro em três capítulos. O primeiro,
trata da relação da CEPAL com a Educação: seus objetivos e a
sua relação com o Brasil, o desenvolvimento econômico, assim
como sua proposta educacional. O segundo capítulo, que aborda a
respeito do Banco Mundial e a Educação, levanta questões sobre a
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 207-214, Maio/Ago 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
atuação do Banco Mundial no combate e mercantilização da
pobreza, enfatizando suas propostas educacionais, sobretudo para
o ensino profissionalizante.
Dessa forma, o autor parte da descrição de cada
instituição – CEPAL e Banco Mundial –, caracterizando suas
estratégias de ação mais globais para, então, analisar as políticas
propostas, quando não, impostas, para a área da educação. Através
da análise dos documentos produzidos tanto pela CEPAL, como
pelo Banco Mundial, estabelece aproximações e discrepâncias
entre ambos, além de analisar criticamente os resultados obtidos a
partir dessas políticas.
No terceiro capítulo, é abordada a influência das
agências multilaterais na educação profissional brasileira. O autor
apresenta os resultados decorrentes da aplicação das
proposições/imposições das agências em questão, incluído o BID –
Banco Interamericano de Desenvolvimento – junto às políticas
públicas para a Educação Profissional, que resultaram na Reforma
advinda com o Decreto 2.208/97, financiada pelo PROEP –
Programa de Expansão da Educação Profissional – iniciativa do
Ministério da Educação em parceria com o Ministério do
Trabalho e Emprego e com o BID.

A CEPAL e a Educação

A CEPAL foi criada pela ONU em 1948. Possui 41


países membros e 7 associados, tendo como objetivo assessorar os
governos da América Latina e do Caribe nas políticas de
desenvolvimento social, com vistas a garantir o desenvolvimento
econômico com maior eqüidade social. Para tanto, defende –
sobretudo a partir da década de 90 – a idéia de reestruturação dos
processos produtivos nos paises em desenvolvimento, buscando a
competitividade industrial, baseada em estudos do modelo asiático.
Para que isso aconteça, propõe uma concertación
estratégica que seria a articulação entre o Estado e os principais

208
atores políticos e sociais, visando ações que alavanquem o
progresso tecnológico e, por conseqüência, a competitividade das
economias latino-americanas no mercado internacional. Dessa
forma, a formação da mão-de-obra ganha papel de destaque, tanto
para a referida competitividade industrial, como para a distribuição
de renda. O discurso cepalino defende a necessidade do
desenvolvimento para que ocorra a diminuição das desigualdades
sociais. Mas para que isso ocorra de fato, o Estado deve garantir o
apoio à pequena e média empresa, com a formação profissional de
seus trabalhadores, bem como, de jovens, de desempregados e de
trabalhadores informais urbanos e rurais. A partir de uma melhor
educação para a população, somada ao esforço da concertación
nacional em estimular o desenvolvimento econômico competitivo,
diminuiria o número de desempregados, bem como, aumentaria os
salários.
O autor desnuda o caráter ideológico de tal discurso,
visto que a competitividade do capitalismo globalizado, onde a
tecnologia serve à acumulação do capital, tem levado à diminuição
dos empregos. Além disso, avalia que o discurso da CEPAL
esquiva-se da análise das relações que se estabelecem entre os
países periféricos e os países altamente industrializados, que
submetem os primeiros à eterna dependência tecnológica, bem
como, que as indústrias estrangeiras pagam, na periferia, salários
muito mais baixos em comparação com seus países de origem.
Para a educação profissionalizante, a CEPAL propõe a
descentralização da gestão, com vistas a uma maior aproximação
dos centros formadores com a iniciativa privada, inclusive
buscando, com isso, formas de financiamento, através de
convênios e venda de serviços. Defende ainda que a iniciativa
privada interfira no currículo e avalie o processo de formação dos
trabalhadores.
A CEPAL mantém um discurso privatizante para o
ensino superior, defendendo que o Estado limite-se à concessão de
bolsas para alunos merecedores. Considera importante, também
aqui, a relação íntima com a iniciativa privada e a cobrança de
209
mensalidades, como forma de garantir financiamento. Oliveira
aponta a contradição dessa posição privatizante em relação à idéia
de eqüidade defendida pela CEPAL, visto que a concentração de
renda é muito grande, sendo inconcebível uma política de bolsas
para dar conta de tamanha disparidade.
Para o autor, apesar de ficar claro que a CEPAL
defende, em seus documentos, a superação da dualidade entre
ensino profissionalizante e ensino propedêutico, fica claro,
também, que seus receituários para a educação profissional – não
existe uma proposta sistematizada por parte dessa Agência – são de
cunho ideológico, baseados na ultrapassada Teoria do Capital
Humano, tão largamente desmascarada a partir das
transformações que ocorrem nas relações de produção.

O Banco Mundial e a Educação

O Banco Mundial foi criado em 1944, com o objetivo


de auxiliar as economias das nações no pós guerra. Seu capital é
composto de recursos de mais de 170 países, contudo a
presidência e a maioria dos cargos do Banco são ocupados pelos
americanos, que, junto com Japão, Alemanha, França e Reino
Unido, detêm pouco mais de 37% do capital votante. Possui
grande vinculação com o FMI – Fundo Monetário Internacional
– o que torna suas proposições praticamente imposições para os
países endividados que buscam seus recursos.
Segundo Oliveira, durante a guerra fria – clima de
tensão bélica entre o bloco capitalista e o bloco socialista,
formados no pós-2ª Guerra – o Banco Mundial inseriu-se nas
economias do terceiro mundo para, a partir de um discurso
desenvolvimentista, conter as tensões sociais que poderiam levar ao
comunismo. Com o aprofundamento da crise social, novos
discursos ideológicos foram desenvolvidos – globalização da
economia, tecnologização e competitividade internacional – com
vistas a justificar as desigualdades internas e entre as nações.

210
Assim, aumentaram os recursos disponibilizados para as áreas
sociais e a educação passou a ser tratada como remédio para a
pobreza. Tais ações visam garantir, mesmo com as graves
conseqüências sociais, o processo de reprodução do capital e
representam uma reedição da ideológica Teoria do Capital
Humano.
O receituário proposto/imposto pelo Banco Mundial aos
países em desenvolvimento, baseado no consenso de Washington,
previa a diminuição do Estado, através: da redução dos gastos
públicos, da privatização de empresas e de serviços públicos e da
abertura para o capital estrangeiro.
Os documentos do Banco Mundial analisados por
Oliveira – o autor optou pelos documentos produzidos entre 1990
e 1997 – apontam para uma maior participação da iniciativa
privada nas áreas de educação e saúde, devido às carências
financeiras dos países em desenvolvimento. Isso permitiria o
investimento do Estado nos setores mais empobrecidos da
população. Além disso, a partir de pesquisas pontuais
desenvolvidas por técnicos vinculados àquela instituição, tais
documentos salientam a melhor qualidade da educação privada em
relação àquela prestada pelo poder público, pelo comprometimento
e cobrança que o pagamento gera. Tais pesquisas desconsideram
aspectos como renda familiar e acesso à informação diferenciados
que interferem na diferença de rendimento dos alunos.
Para Oliveira, o Banco Mundial, baseando-se nos ideais
de competitividade e eficiência, sintetiza a problemática
educacional em questões meramente gerencias, desconectando-a
de fatores políticos e sociais determinantes da própria
impossibilidade de o sistema educacional atender, com maior
igualdade, aos vários setores da sociedade.
A partir da década de 90 verifica-se um deslocamento
dos recursos disponibilizados pelo Banco Mundial da educação
profissionalizante para a educação fundamental. Defende,
também, a privatização tanto do ensino superior, como de parte do
ensino secundário. Com a defesa da descentralização da gestão
211
educacional, tal instituição pretende a retirada da responsabilidade
de financiamento estatal da educação.
Na lógica de melhorar a eficiência escolar com menores
custos, o Banco Mundial incentiva a distribuição de livros
didáticos em detrimento da formação dos professores e da
assistência estudantil. O autor demonstra os vários equívocos
dessa opção, inclusive no que tange ao desperdício de dinheiro
público devido às formas de escolha de tais livros.
O Banco Mundial admite a importância da educação
profissionalizante como instrumento de readequação da economia
das nações em desenvolvimento frente às mudanças que ocorrem
no mundo do trabalho. Defende um modelo flexível, desvinculado
da educação regular e preponderantemente privado, visto que as
escolas públicas não conseguiriam a recolocação dos trabalhadores
no mercado devido à rigidez de suas estruturas. Portanto, suas
proposições/imposições defendem a diminuição do período de
formação dos cursos; sua modularização, que permitiria saídas
intermediárias e conseqüentemente um retorno mais rápido do
trabalhador desempregado para o mercado; maior vinculação
curricular com as necessidades imediatas no mercado e a educação
profissional complementar e separada da educação regular.
Quanto ao financiamento, defende a cobrança de taxas,
bem como a venda de serviços pelas instituições formadoras, como
forma de subsidiar a formação dos alunos carentes.
O autor aponta, através de números do próprio Banco
Mundial, como a adoção de tal receituário tem contribuído para o
agravamento da crise social e econômica nos países da América
Latina e no Brasil. Além disso, critica as proposições
homogeneizantes, que desconsideram as situações específicas dos
países, e que levaram à destruição de experiências exitosas, como a
da rede federal de escolas técnicas, agrotécnicas e centros federais
de educação tecnológica.

212
A Influência das Agências Multilaterais na Educação
Profissional Brasileira

Nesse terceiro e último capítulo, Ramon de Oliveira


demonstra como a Reforma da Educação Profissional realizada
através do Decreto 2.208, bem como as ações do Ministério da
educação e do Ministério do Trabalho e Emprego do governo
Fernando Henrique Cardoso, buscaram atender aos ditames do
Banco Mundial, da CEPAL e do BID, este último bastante
atuante nesse processo.
Dessa forma, a descentralização administrativa, a
desvinculação da educação profissionalizante da educação regular,
a diminuição da duração dos cursos e sua modularização, uma
maior participação da iniciativa privada na definição curricular e
na avaliação da formação profissional e o aumento de vagas no
ensino privado, mesmo que por justificativas diferenciadas –
existem várias contradições entre o discurso cepalino e o do Banco
Mundial – atenderam às proposições/imposições destas agências.
Finalizando, pode-se afirmar que o livro de Ramon de
Oliveira traz uma importante contribuição para os pesquisadores
que buscam analisar a natureza das transformações nas políticas
públicas para a educação brasileira. Permite desnudar os aspectos
ideológicos, de mascaramento da realidade, presente nos discursos
assumidos por governantes submissos aos interesses do grande
capital, que utiliza-se das agências financiadoras e de
assessoramento para garantir a continuidade do processo de
acumulação de capital, apesar das crises sociais crescentes
provocadas pelo mesmo.
No entanto, considero que exista uma única lacuna,
justificada pela opção expressa pelo autor de trabalhar com os
textos anteriores à reforma da educação profissional de 1997, que
seria a análise do Decreto 5.154/04, que é citado na obra. Alguns
autores como Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Marise
Ramos (2005), classificam-no como um empate e único passo
possível devido à correlação de forças que existe na sociedade
213
brasileira. Já os movimentos sociais ligados ao Fórum Nacional de
Defesa da Escola Pública apontam que a timidez reflete a
manutenção da submissão aos ditames e aos acordos existentes
com o BID.
Por fim, esta obra possibilita, pelo resgate histórico e
riqueza de análise que apresenta, uma melhoria qualitativa do
debate sobre as políticas públicas para a educação profissional
frente às profundas transformações que ocorrem nos processos
produtivos.

Obra Citada:

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria e RAMOS,


Marise. A gênese do Decreto n. 5.154/2004: um debate no
contexto controverso da democracia restrita. In: FRIGOTTO,
Gaudêncio; CIAVATTA, Maria e RAMOS, Marise. Ensino
médio integrado: Concepção e contradições. São Paulo: Cortez,
2005, p. 21- 56.

Manoel José Porto Júnior, professor do CEFET/RS.


Giana Lange do Amaral, professora da UFPel.

Recebido em: 10/04/2007


Aceito em: 20/07/2007

214
DOCUMENTO
.
REVISTA DA LIGA DO ENSINO
(n.1, janeiro de 1884, p.1-30)

ENSINO DE MORAL E RELIGIÃO

I – Até o começo do presente século a cultura moral e a


cultura religiosa andavam tão íntima e indissoluvelmente ligadas
nas leis, nos programas e nos regulamentos da instrução da
mocidade, que mutuamente se absorviam e verdadeiramente se
consubstanciavam, constituindo na escola um ensino idêntico,
uno, indivisível.
Nas suas relações com os cultos o poder civil então não
reconhecia direitos senão os da crença oficial, e conseqüentemente
desde a escola até os tribunais de justiça não compreendia, nem
aceitava outra moral que não a da religião privilegiada.
Hoje a secularização do Estado, dos seus interesses, e
portanto de suas leis, de sua competência, e portanto de suas
instituições, já não significa simplesmente, como então, um
postulado da ciência e da política abstrata, mas revela-se como o
resultado culminante e o maior dos fatos incorporados à
civilização prática.
Para com infinitas manifestações da liberdade do
pensamento, assim as ciências e nas letras, como em toda a ordem
de conhecimentos, o Estado moderno tem por supremo dever a
tolerância; ante todas as possíveis divergências da consciência
humana a sua garantia única e simultaneamente a sua primeira
obrigação é a neutralidade.
Ao influxo desse preceito, que a nossa idade recolheu
como o derradeiro e grande sopro do último século, remodelaram-
se os códigos e as legislações.
Ora, como em todas as instituições civis, e antes que
nenhuma outra, cumpria que a escola se transformasse à lei desse
movimento generoso e irresistível. E transformou-se, e

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 217-279, Maio/Ago 2007


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
transforma-se, pactuando cada dia os espíritos em uma nova
solução, mais próxima da solução extrema, tendendo as legislações
a alargar constantemente as aplicações do princípio novo,
transigindo os ânimos hostis com alvitres que cada vez os
avizinham mais do resultado final encarecido e almejado pelos
amigos da organização racional e liberal do ensino.
O antigo tipo da escola puramente confessional ou
sectária, com o seu programa e suas lições do culto oficial, para
mestres e discípulos, indistinta e forçadamente, pode-se considerar
de todo extinto no quadro das legislações atuais, sendo que nos
rarissimos países onde ele permanece (a Espanha, por exemplo),
além de que na execução da lei busca-se atenuar o exclusivismo de
suas disposições, cuida-se nas regiões competentes de reformar
estas últimas em harmonia com as bases liberais das legislações
peregrinas.
Está entendido que, assim exprimindo-nos, não
queremos referir-nos senão aos países, e tal é o caso do Brasil,
onde a escola só conseguiu medrar e frutificar ao impulso que lhe
imprimiu o poder civil, e onde destarte figura como uma criação
exclusiva do Estado, porquanto, para dizermos com o Sr. Michel
Bréal, "naqueles países onde a escola se criou e desenvolveu sob
proteção e com os auxílios do clero, não é para se admirar que este
ainda conserve sobre ela a sua influência. Aí os meninos dividem-
se por tantas escolas quantos são os cultos existentes, e o mestre,
aconselhado e encaminhado pelo ministro do culto, reparte com
este os cuidados da direção religiosa"1. Esta, porém, é uma
situação peculiar dos estados protestantes da Alemanha, onde a
escola e a religião se mostram como duas irmãs gêmeas, nascidas
da Reforma.
Aí mesmo, não obstante, a corrente da secularização já
abriu o álveo. Mas, como quer que seja, nada tem comum com
essa a situação de todos os outros povos modernos, sem distinção

1
Quelques mots sur l´instructions publique en France, p. 145

218
de raças, onde a escola, havendo invariavelmente surgido como um
produto da iniciativa secular, e onde não soe reproduzir-se e
medrar senão por virtude das dotações com que o Estado queira
aviventá-la, entretanto a inércia, a imprevidência, o preconceito ou
a simples força das circunstâncias deixaram que dela se apoderasse
o exclusivismo das seitas privilegiadas, até de todo usurparem, aqui
pela simples obrigação de ensino, ali pela cessão absoluta da
cadeira do mestre aos ministros do culto, um domínio que, sendo
de origem meramente civil, cumprirá, sob pena de desvirtuar-se de
todo, que se torne absolutamente estranho às distinções de fé.
Semelhante estado de direito era incompatível com uma
civilização que repousa no espírito de tolerância, e que da igualdade
perante a lei, da liberdade de consciência, do livre exame, da
repartição do imposto proporcionalmente às recompensas e serviços
em cujo nome ele é solicitado, fez as suas supremas leis.
Ora, sendo tal a situação em que tiveram de
invariavelmente talar, sem outra exceção, os estados modernos,
estudando os diversos alvitres a que elas têm chegado para que se
desvencilharem do regime antigo nas relações da escola com o
culto, seremos levados, aproveitando a lição estranha e seguindo a
evolução histórica, a descobrir o expediente no momento atual
mais propício a tornar possível, entre as aspirações e os interesses
opostos, que entre nós, como alhures, se debatem neste terreno,
um acordo que além pode conciliar, respeitando-os os legítimos
escrúpulos de ambos os lados.
Neste intuito, posto de parte, porque dele já começou a
separar-se a nossa legislação, e porque até de seus últimos redutos
tende a desaparecer, o antigo modelo da escola com o ensino
religioso obrigatoriamente professado a todos os alunos, sem
distinção, pelo instituidor civil, as legislações vigentes oferecem-
nos os três expedientes seguintes:
Iº. O ensino da religião oficial como parte integrante do
programa da escola é matéria obrigatória da missão do professor,
mas facultativo para os alunos;

219
2º. A instrução religiosa excluída do programa escolar,
porém ministrada, fora das horas de aula, no edifício da escola,
pelos ministros dos diferentes cultos, aos alunos que quiserem
recebê-la;
3º. O ensino religioso excluído do programa e da casa
escolar.
Ao primeiro desses regimes filiou o decreto de 19 de
abril de 1879 as escolas do município da côrte.
É também o que vigora em Portugal e na República
Argentina.
O segundo, que cabe à Holanda a glória de haver
inaugurado em 1806, é, salvo modificações e diferenças
acidentais, o regime comum à Inglaterra, pelas leis de 1870
(ministro liberal de Gladstone) e de 1877 (gabinete conservador de
Beaconsfield), à Bélgica, pela lei de 1 de julho de 1879, aos
Estados Unidos, por sucessivos e vários atos da legislação federal e
das dos Estados2, à Áustria, à Suíça, à Itália, finalmente em várias
de suas principais cidades.
Neste ultimo país, cumpre notá-lo, a lei vigente é a de
15 de julho de 1877. Deixando ao arbítrio dos municípios
conservarem ou suprimirem o ensino religioso, essa lei ficou
aquém das vistas até dos mais moderados estadistas da península,
como o Sr. Minghetti. No seu livro – A Igreja e o Estado – já
antes ele escrevera (p. 128): "É uma conseqüência do que
estabelecemos que, se o Estado é verdadeiramente incompetente
em matéria religiosa, não lhe cabe fazer ensinar nem o catecismo,
nem a teologia. E quando digo o Estado, compreendo as províncias e
as comunas, que, neste particular, podem ser consideradas como
pequenos estados".
Com tal disposição (a lei de 1877), diz outro escritor
italiano, "querendo-se contentar a todos, acabou-se por não
satisfazer ninguém, porque deixou-se aos municípios a solução
2
Buisson. – Rapport sur l’ instruction primaire à l’ exposition universalle de
Philadelphie, em 1876.

220
dum problema, talvez o mais árduo e difícil, que só o parlamento
era competente para resolver"3. Assim, a corrente de opinião neste
país encaminha dia a dia a escola para o regime a que foi intento
da lei subordiná-la, embora ao legislador haja faltado a coragem de
estabelecê-lo franca e uniformemente.
Finalmente, ao terceiro e último dos sistemas que
enumeramos só um país, a França, conseguiu até agora, chegar,
pela lei de 28 de março de 1882; ainda assim porém, quanto à
escola primária restritamente, pois no que concerne ao ensino
secundário, o regime vigente, do decreto de 24 de dezembro de
1881, é o da Holanda, da Inglaterra, da América respectivamente
às suas escolas elementares, permitindo aquele decreto que nos
estabelecimentos de ensino secundário a instrução religiosa seja
distribuída, fora das horas de aula, mas no interior dos
estabelecimentos, pelos ministros dos diferentes cultos.
Conseqüentemente temos que, quanto ao lugar da
religião nos programas do ensino público, o assentimento dos mais
esclarecidos povos produziu-se no sentido de retirá-la das
obrigações do mestre, não simplesmente exonerando-se este do
encargo de ensiná-la, senão ainda fazendo-a desaparecer da
atmosfera da escola, e impondo-se ao professor o dever de abster-se
com o máximo escrúpulo, no exercício do magistério, de tudo
aquilo que mesmo de longe seja susceptível de parecer relacionado
com a instrução religiosa ou de implicar preferências de seita que
possam melindrar a liberdade de consciência dos alunos e dos pais
de família.
É o que explica que até o uso da leitura bíblica, sem
comentários, e os simples exercícios religiosos, anteriores ou
subseqüentes às classes, estejam em via de desaparecer
inteiramente naquelas onde já não tenham inteiramente
desaparecido, das escolas americanas e inglesas4; é o que revelam

3
(2)Aw. F. Natoli. – La Scuola e lo Stato, se condo la moderna sociologia.
4
Buisson, - Op. cit, pag. 459

221
os últimos e sucessivos atos, leis, decretos, regulamentos e
instruções da Suíça, da Áustria, da Bélgica, da Holanda, quando
neste particular trazem continuamente avivada a consciência e a
responsabilidade dos instituidores, em ordem a que de suas escolas
não seja lícito supor que elas conservam o mínimo vestígio das
antigas características confessionais porque se distinguiram.
Desta maneira, se os estados modernos tem afirmado o
seu dever de proteger as religiões, o que não importa, antes repele,
a obrigação de ensiná-las diretamente; se manifestam reconhecê-
las, respeitá-las, e garanti-las, ao ponto de concederem aos
respectivos ministros o domínio secular da escola para o ensino
formalístico da fé; de outra parte tem assim caminhado a
resguardar da tirania odiosa das tendências e hábitos
monopolizadores do sectarismo religioso os seus supremos deveres
de neutralidade e a sua reconhecida incompetência de jurisdição
nos assuntos do pensamento individual e da consciência humana.
Eis porque, apreciando esse regime, um publicista tão
conhecido, quanto insuspeito de radicalismo, e que poderíamos
chamar o publicista conservador da terceira república, o Sr. John
Lemoine, foi levado a dizer no dia seguinte ao da votação da lei
belga de 1879: "Esta lei não realiza as aspirações do partido
liberal: é uma lei de transação".
Efetivamente, o grande orgão da imprensa do Reino
Unido, o Times, exprimia-se quase ao mesmo tempo nestes termos:
"É certo que pela nova lei o clero não será expulso da escola: pelo
contrário, a lei reconhece-lhe o direito de aí entrar para ensinar o
que quiser. Sua presença, pois, na escola é permitida. Somente,
sobre ele não exercerá a menor superintendência, quer na escolha
dos livros, quer no que respeita aos deveres profissionais e seculares
do mestre. Se o clero quiser mais do que isso, poderá fazê-lo nas
suas escolas, mas não no Estado".
Ora, um regime que assim conserva abertas aos cultos as
portas da escola para que nesta, lado a lado da instrução científica
dos programas leigos, possam os cultos ensinar o que quiserem, não
pode ser deveras senão um regime de transação. Com o
222
movimento de secularização que domina os espíritos, as leis e as
instituições; com os princípios de igualdade jurídica e de livre
exame que caracterizam o nosso tempo, é, em rigor lógico,
compatível o sistema da escola primária francesa, qual a criou a lei
de 28 de março de 1882, e de que outros países já também
oferecem o tipo em algumas de suas escolas livres ou particulares:
para exemplo a Escola modelo de Bruxelas, admirável criação da
Liga do Ensino nesse país.
O futuro, em todos os povos, reserva à escola esse
regime.
Com a liberdade que os pais de família e as coletividades
religiosas têm de ministrar o ensino religioso, por meio de seus
naturais representantes, no lar, no templo, ou nas escolas por sua
iniciativa fundadas, e aonde seria lícito aos alunos dirigir-se a
receber aquelas lições, e reservado o acesso da escola pública
exclusivamente aos representantes da autoridade secular, que a
criou, sem preocupação de seita, para a instrução universal das
gerações, sem distinção de crenças, até a possibilidade dos conflitos
na área da escola terá desaparecido, logrando-se de outra parte que
assim sejam satisfeitas todas as condições de verdadeira liberdade
para o padre, para o mestre, para os alunos, para os pais de
família, que são os quatro fatores interessados na solução desse
problema.
Efetivamente, pergunta o Sr. Paul Bert5 defendendo o
sistema da lei francesa: "Onde e como sob tal regime poderiam os
conflitos suscitar-se? Não sobre as ciências, a literatura e a
história, reservadas ao mestre, nem sobre as verdades religiosas
reservadas ao padre. Seria sobre a moral? Impossível ainda, porque
mestre e padre encontrar-se-ão de acordo para louvar ou censurar
os mesmos atos, e não é licito admitir que um deles faça, com
grande indignação do outro, a teoria da mentira e do roubo. Não;
em moral o padre aceitará tudo o que houver sido ensinado pelo

5
(I) L’instruction dans une démocratie.

223
mestre; simplesmente, dará aos mesmos princípios outra base,
outra sanção, eis tudo, e a isso ajuntará prescrições especiais
relativas aos dogmas e aos ritos de sua igreja particular".
Ora, como veremos em pouco, o ensino do que se tem
convindo chamar das bases da moral não cabe na escola, pelo
menos na primária, e quanto ao dos dogmas e dos ritos a sua sede
verdadeira é o templo ou o lar.
Mas, diante das dificuldades práticas, as quais não
importa explicar, e cuja origem não se faz mister expor, que a
adoção imediata desse regime no estado atual dos espíritos
encontraria, a razão do estadista e a do legislador, e disso ainda
oferece prova a própria França na organização do seu ensino
secundário, tem sido levadas, embora com sacrifício da lógica, a
pleitear simplesmente pelo alvitre, e a contentar-se com o sistema,
da escola leiga na pessoa do mestre, nos capítulos do seu programa
e no espírito do seu ensino, mas livre e aberta aos ministros dos
diferentes cultos, fora das horas de aula, para aí distribuírem o
ensino religioso.
Até agora, somente em França a luta ainda travou-se
entre este e o alvitre extremo do ensino religioso excluído do
programa, como do edifício escolar.
Esquecem-se deste fato os que entre nós (e seja-nos lícito
recordá-lo, porque em debates públicos semelhantes gêneros de
prova vimos invocado), amigos do argumento de autoridade dos
nomes próprios, a este propósito lembram sem nenhum propósito
o nome do Sr. Jules Simon, que tão caro foi já ao liberalismo
deste século entre os povos de nossa raça.
Na questão do ensino em suas relações com o culto, o
Sr. Jules Simon de feito representa hoje na opinião francesa o
espírito reacionário: mas é que nesse país o espírito reacionário já
não está neste assunto senão em nada pretender além do que é o
máximo liberalismo prático nos povos vizinhos, e em contentar-se
com este, submetendo-se-lhe às exigências.
Haja vista como, na sessão do Senado de 12 de março
de 1880, exprimia-se, discutindo o projeto de lei, o Sr. Jules
224
Simon: "Às razões da Convenção, que vos inspiram, poderia eu
ajuntar outra, a saber: que é difícil a um leigo ministrar o ensino
religioso. Dado o estado presente dos espíritos, não concordo em
que os mestres leigos da Universidade sejam incumbidos desse
ensino, e não concordo por amor deles. Desse encargo advir-lhes-
iam dificuldades contínuas, que embaraçariam o exercício de suas
funções".
E em seu recente livro, Deus, Pátria e Liberdade:
"Digam-nos, pois, de que espécie de neutralidade cuidam. A que
consiste em fazer ensinar cada religião por seus próprios ministros,
parece-nos muito aceitável. Reconhecemos a incompetência do
leigo em matéria de ensino religioso. Católico, não
concordaríamos em que fossem ensinados aos nossos filhos os
dogmas e os mistérios do católico por outro mestre que não o
cura. Admitimos, pois, a separação das atribuições. Cada religião
positiva será direta e exclusivamente ensinada por seus discípulos.
Mas, chegar ao ponto de não admitir esse ensino senão fora do
local escolar, eis o que se nos afigura puerilidade, e talvez também
ódio".
Ora, é contra a escola secularizada em maneira tão
semelhante conciliadora dos interesses confessionais, que esses
interesses reclamam, que eles levantaram-se em toda a parte onde
ela logrou estabelecer se, prometendo dar combate em toda parte
onde ela ainda não se introduziu.
Tal o caso da Bélgica antes e depois de 1879, quando,
segundo refere o Sr. Le-Hardy Beaulieu, no relatório apresentado
acerca do inquérito mandado proceder sobre os resultados da lei do
ano passado, a pressão do clero sobre os resultados da lei do ano
passado, a pressão do clero sobre os mestres, os alunos, os pais e as
mães de família tocou, mediante ameaças de todo o gênero,
inclusive a recusa dos sacramentos e ofícios espirituais, os últimos
limites do escândalo, com o fim de que as escolas civis se
tornassem desertas; tal o exemplo na Inglaterra, quando a palavra
de Cobden e de Bright, de Forster e de Disraeli, coube defender a
escola secularizada contra a eiva de impiedade e imoralidade, com
225
que os amigos do monopólio batisavam-lhe a tolerância e o
espírito de igualdade; tal o fato na América, quando, como refere
o Sr. Buisson, depois de haverem os católicos reclamado, em
nome da igualdade dos cultos, contra a escola sectária, onde se
praticava a leitura da Bíblia na versão que lhes era suspeita,
volveram, alcançada a eliminação desse uso e constituídas em
perfeita igualdade as condições confessionais, a clamar contra a
escola pagã.
É que o espírito dos cultos ou as pretensões das seitas
natural e forçoso é que não possa contenta senão a escola ou
pessoalmente dirigida pelo ministro da fé, ou positivamente
enfeudada aos intuitos confessionais, convertido o dogma em
matéria integrante do programa da escola, e constituído o
instituidor na obrigação de ensiná-lo.
Este último alvitre, salvo aos alunos acatólicos a
faculdade de não freqüentarem a aula de instrução religiosa, é,
segundo já vimos, o que implantou entre nós o decreto de 19 de
abril de 1879, que reformou o ensino secundário no município da
corte e o superior em todo o império.
Esta disposição, que respectivamente ao estado anterior
de nossa legislação representa um movimento progressista, mais
não significa do que um verdadeiro contra-senso se a encaramos
diante das legislações mais cultas da atualidade e dos mais
elementares preceitos da pedagogia hodierna.
Em resumo, ela mira respeitar a liberdade do aluno
desobrigando-o de receber um gênero de instrução que em
consciência ele repele, mas atenta contra a justa soma de direitos e
benefícios que a escola deve com igualdade precisa e absoluta
repartir pelos discípulos, desde que em proveito de uns mantém
uma espécie de lições que a outros recusa.
Nem se diga que essa distinção provém de ser o
catolicismo a religião constitucional do Estado.
Oficial é também a religião anglicana na Grã-Bretanha,
e nem por isso a ortodoxia inglesa tem nas escolas esse monopólio
humilhante.
226
Depois, o nosso decreto, que não esqueceu, embora com
tamanha avareza, uma vez que não tornou-a igual para todos, a
liberdade de consciência dos alunos, injuria a liberdade de
consciência, quiçá mais digam de respeito, no mestre, mantendo
essa espécie de capitis diminutio, em que, impondo-se ao
instituidor público a obrigação de lecionar determinado culto, vem
a incorrer todo o cidadão que, tendo a desventura de não
compartir a crença oficial, e repugnando coerentemente à vileza
solene e contumaz da apostasia ou da hipocrisia, assim vê fechada
diante de si a porta desta mais liberal de todas as carreiras, a do
professorado.
Evidentemente a mantença dessa incapacidade política,
de que a Constituição não cogitou, significa um atentado cada dia
repetido contra a lei fundamental do Império. Aliás, se não é
precisamente com o placet da lei constitucional que essa
desigualdade odiosissima persiste, nem ao menos em benefício da
crença, e para atenuá-la com esse proveito, é lícito argumentar que
ela se destina, por que, se há um conceito mil vezes repetido e mil
vezes justo é que tão competente como o padre ninguém há para
ministrar o ensino da religião, e conseqüentemente que muito
melhor será esse ensino distribuído por ele do que pelo professor.
Com esse alívio das ocupações profissionais, quem, pois, tem que
lucrar não é senão o culto; mas, se esta sobrecarga pesasse aos seus
ministros, sinal era então de que o santo ardor da fé não os
inspirava.
Como quer que seja, porém, não é aos funcionários do
Estado que incumbe o ensino da fé. Esse ônus pertence ao
ministério do clero, nas várias igrejas, a respeito das quais o papel
do poder público se resumirá exclusivamente em protegê-las nas
suas relações espirituais com as consciências livremente adhesas a
cada culto.
Ao sacerdote, pois, a tarefa de ensinar o dogma, os ritos,
o catecismo, a fé: ao mestre a missão, que lhe é própria, de
instruir os alunos, com a plena liberdade que a probidade da
profissão e o interesse da verdade requerem, nas verdades morais e
227
científica que constituem o patrimônio e a glória da inteligência
humana. Ou consistia na explicação aprofundada dos dogmas, ou
a simples lição do catecismo, e é desta maneira que se costuma
praticá-lo, o ensino religioso é estranho à missão do instituidor:
no primeiro caso, é superior à competência do mestre à
inteligência do menino; no segundo é inferior a um tempo ao
entendimento da criança e ao dever do professor.
Em ambos os casos, é incompatível com a vocação do
mestre-escola, tal como se esmeram em cultival-a e formal-a os
métodos e processos de pedagogia contemporânea, que não
reconhece direitos de cidade senão à instrução adquirida à custa da
observação do alombo e do mestre, combinadas em descobrir as
causas e as leis do fenômeno e de suas relações em toda a ordem
de fatos sujeitos à inteligência humana, e assim condemna por
absurda a instrução puramente de memória, que mediante um
trabalho puramente mecânico dessa faculdade, cujo resultado é
equivalente, se imponha à criança o suplicio de guardar.
Em definitiva, bem o sentiu o gênio observador de Bain,
e diremos com ele finalizando esta parte: "Há talvez sem dúvida
um elemento intelectual na religião; entretanto ela é
essencialmente emocional, e o ensino ordinário da escola não é
favorável à cultura das emoções. O sistema que melhor convém ao
elemento intelectual não é o mais próprio para o elemento
emocional. A regularidade das lições, o método, a ordem, certa
severidade de disciplina, tais são as condições de todo o progresso
na instrução; mas, para produzir e desenvolver uma afeição vivam
ou um sentimento profundo, cumpre aproveitar circunstanciais ou
acontecimentos que raramente se apresentam na vida da escola.
Nas circunstâncias mais favoráveis, este desenvolvimento exige
longos anos para adquirir a força necessária a grande influência
moral. Esta é a verdade particularmente quanto aos sentimentos
religiosos, os quais deverão ser muito poderosos para
contrabalançarem todos os males da vida. Erramos, encarregando
deste dever o mestre-escola. O pai ou a mãe, a igreja, a
individualidade do alombo, o espírito do tempo, tal como a
228
sociedade e a literatura o manifestam, eis as influencias que
contribuem para determinar a presença ou a ausência das
disposições religiosas, e entre estes factores a escola é o que menor
influencia exerce"6.
É, pois a psicologia, pela voz de um de seus mais
autorizados mestres, quem adverte ao culto que ele ao demais se
engana, quando conta, como o mais eficaz, com o concurso da
escola para a elaboração do sentimento religioso. Decididamente,
não é aí onde melhor ele se forma. Em prova, basta citar o
exemplo daqueles países onde, não se incluindo o ensino religioso
no programa da escola e entre os deveres do mestre, a religião
floresce no coração da infância, das famílias e do povo como o
sentimentos mais puro, mais enérgico, senão também até o mais
temeroso, da alma nacional: a Inglaterra, a América do Norte, a
Holanda.
É que aí a religião não se aprende como uma lição de
cor, mas cultiva-se e zela-se como agrande tradição e a suprema
esperança da vida. Eis o que explica que, ao lado dos milhares e
milhares de escolas absolutamente leigas que cobrem, como as
suas mais vigilantes atalaias, ou os seus melhores fortes de defesa,
a superfície do território norte-americano, uma estatística do ano
recente (1876)7 assinala a existência de 69.871 escolas de
domingo, nas quais se empregam 753.060 mestres e que
freqüentam 5.790,683 alunos! E’ aí onde os cultos distribuem, e
a mocidade recebe, o ensino religioso.
Quando, pois, anatematizando a escola leiga, os inimigos
do ensino secular pretendem injuriá-la com a qualificação de escola
atéia, é antes de tudo a evidência dos fatos quem se levanta para
infligir-lhes o mais eloqüente dos desmentidos! Esta fórmula – o
Estado ateu, a escola atéia, diz Buisson, "é o que os americanos
chamam liberdade de consciência, igualdade de todos perante a lei,

6
(I) Bain. – La science de l´éducation.
7
(I) Buisson. Op. cit.

229
neutralidade do governo entre as seitas e os partidos. Quem lhes
propusesse dar oficialmente a uma escola do Estado ou da comuna
uma qualificação religiosa qualquer, não encontraria maior
número de votos do que aquele que lhes pedisse para intitularem-
na, ao contrário, escola atéia ou anti-cristã".
Certo igualmente, quando à Holanda, à Áustria, à
Bélgica, à Inglaterra estabeleceram que o ensino da religião fosse
exclusivamente confiado aos ministros do culto, não pensaram em
fazer profissão de impiedade ou de ateísmo, mas em deixar a quem
de direito uma missão para que o Estado é perfeitamente incapaz e
à qual é inteiramente estranho.
Eis porque o Sr. Lemoine escreveu algures: "Cremos que
quem disse – a lei é atéia – professou uma doutrina espiritualista.
Nunca se pode sustentar que desta forma o legislador negava a
existência de Deus e rejeitava todas as religiões: o que se quis dizer
é que a lei não conhecia senão cidadãos, e não lhes pedia conta de
sua religião particular. É uma locução de que se pode servir o
magistrado mais cristão, nunca significou que a lei faça profissão
de ateísmo, o que seria a expressão de uma religião, mas
simplesmente que não pode ter opiniões dogmáticas em matéria
religiosa e aplica-se imparcialmente a todos os cidadãos sem
distinção de igrejas".
Como, de feito, inverter essa fórmula contra a lei, que ao
mesmo tempo que dá ingresso no recinto de suas escolas aos
sacerdotes de todos os cultos, para o ensino da revelação,
terminantemente impõe ao mestre o máximo respeito às crenças
gerais, constituindo-o na obrigação de abster-se de tudo quanto
possa ofende-las, limitando o seu ensino ao da verdade reconhecida
pelo consenso universal?
Pretendesse a lei a demais o contrário, e orçaria pelo
maior dos ridículos e pela mais colossal impotência e insensatez.
Na razão do homem a idéia de Deus é ainda, e tem sido
sempre, a idéia capital dominadora do seu ser; e verdadeiramente
fora loucura nutrir como plausível o intento de desarraigar do
coração e do entendimento humano, como um simples artigo da
230
lei, essa isolável convicção, de que se alimenta a humanidade,
quanto à suprema causa do universo e suas leis. Na atmosfera da
escola, pois, livre esta embora do espírito sectário que o ensino
religioso lhe soprava, ou precisamente por isso, nada obsta a que
paire como inspiração superior esse espírito eminentemente teista
e cristão, de que fala Bain, e que, enquanto for aquele a cuja luz a
humanidade caminha, tenderá a exercer fatalmente em todas as
grandes manifestações da vida social inevitável influência.
O mais, o ensino particular desta ou daquela seita,
desvirtuaria o papel da escola, cujo recinto perderia daquela paz
serena e fecunda que deve constituir-lhe o ambiente, desde que
fosse permitido ao exclusivismo desta espécie penetrá-lo com sua
ação maléfica e irritadora.
Eis, pois, a escola leiga, que nenhuma susceptibilidade
ofende, que nenhuma crença viola, que a todos os direitos respeita,
que não deixa de acatar nenhum sentimento bom e nenhuma
convicção sincera. Ela oferece, além disto, o mais seguro abrigo a
todas as consciências retas, e em seu seio podem viver
harmonicamente todos os cultos, a cujas distinções se mantêm
superior e inacessível. Não é uma profissão de fé religiosa o que
praticam os que a reclamam, e todas as comunhões podem
indistintamente e devem com igual esforço defendê-la.
Em realidade, pois, os debates apaixonados que nos
livros, na tribuna, nas academias, a sua simples enunciação basta
para suscitar, não provêm senão dos ódios de partido e da cegueira
dos interesses empenhados no pleito mais estranhos à vista clara
da verdade dos fatos.
II – Se a instrução religiosa é assim alheia à missão do
mestre, a educação moral pelo contrário deve ser a preocupação
culminante e o resultado superior do ensino da escola.
Quem contestará a necessidade de que o ensino tenda a
frutificar na consciência do aluno e a desenvolver-lhe no afã esses
grandes sentimentos da honra, do desinteresse, da benevolência,
do patriotismo, da lealdade, da caridade, do amor ao trabalho, do

231
dever em suma, e da fraternidade humana, em todas as suas
formas?
Estes altos princípios são as grandes condições
fundamentais da paz, da ordem e da felicidade nas sociedades
humanas. Formam o patrimônio comum da experiência dos
povos, acumulada pelos séculos. Superiores às distinções de fé, às
diferenças de teorias, aos conflitos de sistemas, são o ponto de
mira de todas as escolas, que assim se confundem quando se trata
de apregoá-los.
Não sendo privilégio de nenhuma crença, constituem,
pois, a tarefa comum de todos os mestres, e sua missão primordial
na escola.
São verdades estas que não exigem demonstração.
Somente, como há de a escola exercer a sua função educadora,
como deve promover a cultura moral?
Reduzindo-a à lição didática dos deveres, a um curso
teórico de ética, a um programa escrito de obrigações, ou fazendo-
as derivar da ação diuturna dos fatos na escola, do influxo
continuado do regime escolar, da vida, da comunicação, da
prática, dos estudos, dos exemplos desenvolvidos na classe?
Toda a cultura moral que se não baseie no segundo
destes processos será coisa sem nome e eficácia; e mais não fazem
senão esterilizar o tempo e sobrecarregar de inútil e onerosa
bagagem a memória do aluno as escolas onde toda a educação
moral das crianças se prepara, obrigando-se a decorar os preceitos
abstratos e as fórmulas consagradas do catecismo ou do
compêndio.
Não; à primeira idade, pelo menos, não convém os
conhecimentos do dever senão intuitivamente ministrado,
adquirido nos exemplos que cercam o menino, ou para que se lhe
provoca a atenção, fazendo-o querer a virtude e o bem como um
hábito, a que cumpre afeiçoá-lo, e a cuja regra benéfica ele desse
modo seja espontaneamente levado a obedecer.
Como bem observa o Sr. Jules Simon, "cumpre
proporcionar cada ensino à idade e à força dos espíritos, e quando
232
nos dirigimos aos meninos, o ensino moral da escola deve ser
exatamente semelhante ao que eles no lar doméstico recebem de
seus pais ou de suas mães, que nunca terão a idéia de falar-lhes da
doutrina de Kant ou da de Spencer"8. A autoridade deste último e
prodigioso pensador seria aliás a primeira que o Sr. Jules Simon
poderia invocar em favor de sua tese. É, pois, dirigindo o ensino,
aproveitando, em bem da cultura moral, a ação geral dele e
valendo-se de todas as oportunidades infinitas que em cada classe,
a propósito de cada lição, a pretexto dos mil fatos da vida da
escola, se oferecem, que o mestre há de promover a educação
moral do aluno, fazendo germinar-lhe no coração e crescer-lhe no
espírito a idéia do dever, o sentimento moral, a vontade de praticar
o bem, que o aluno será assim compelido espontaneamente a
conhecer, a sentir, a querer. Da vocação do mestre, do espírito de
seu método, da ação de seus exemplos pessoais em última análise,
é que depende soberanamente a educação moral do aluno das
escolas elementares. Eis, pois, que aí não deve ter cabida o ensino
de moral senão intuitivamente, diretamente, praticamente. Cumpre
que seja um resultado de todo o ensino e convém penetrar em todo
o programa.
É isto o que a lição dos mestres ensina e os preceitos da
legislação positiva começam a impor.
Na América, atesta o Sr. Buisson, é neste sentido que se
exprimem e que obram as mais competentes autoridades, sendo
que nas melhores escolas elementares americanas o ensino da
moral não figura nos programas como um curso especial. O
Congresso Pedagógico de Paris, reunido em 1881, resolveu em
sentido idêntico que: "o ensino da moral seja independente do
ensino religioso, que se ligue a todas as lições da classe elementar
sem formar curso especial; que seja feito em harmonia com os
princípios da sociedade moderna".

8
(I) Dieu, Patrie et Liberté.

233
A lei holandesa de 1878 já não incluíra o ensino moral
entres as matérias do curso; e ainda antes, as instruções redigidas
pelo Sr. Tempels, a 1º de outubro de 1877, para o uso dos
professores da Escola Modelo de Bruxelas, começando por
consignarem que a cultura moral é a parte principal da cultura
geral, acrescentam que entretanto a moral não figura entre as
matérias do programa que deve ser ensinado na escola, porque para
as crianças não é uma matéria científica, mas deve ser o resultado
de sentimentos e hábitos, importando, sim, neste particular, à
escola, submeter o menino a um regime que tenha por fim
produzir uma moralidade efectiva que o aluno realmente possua as
virtudes que são objeto da moral.
É visto que, subindo o aluno com a idade, na escala do
saber, o concurso do professor no ensino direto da moral tende a
diminuir.
"Para os meninos de mais de doze anos, diz por isso
Bain, podemos afirmar que as lições diretas de moral não convém
senão como meio de disciplina. Nas grandes escolas e
universidades tem-se renunciado de comum acordo fazer entrar no
plano de estudo o ensino direto da moral". É a idade em que as
portas do ensino secundário se tem aberto para o aluno; aí,
chegado aos últimos círculos do curso, oferece-se ao discípulo,
segundo com razão estatuem ainda em geral os melhores
programas dos países adiantados, o estudo científico da teoria
moral e de suas origens e sistemas, como parte do curso filosófico.
Quanto às escolas normais, desenvolvendo-se sem pausa
no aluno o senso pedagógico, imbuindo-o solidamente da
instrução integral do programa, habilitando-o praticamente no
exercício da vocação a que é chamado, habituando-o desde o mais
cedo possível ao ensaio da profissão, criando-o assim no amor
desta, eis como se terá melhor preparado a exercer na escola, que
for chamado e reger, a influência moral do seu ministério.
Rodolpho E. de Souza Dantas

234
REVISTA DA LIGA DO ENSINO
(n.3, março de 1884, p.57 a p. 84)

Sumário. – O ensino secundário do sexo feminino, pelo


Conselheiro Rodolpho E. de Souza Dantas. – O ensino superior
no Brasil, pelo Dr. Luiz Couty. – Crônica.

Rio de Janeiro, 31 de Março de 1884.

O ENSINO SECUNDARIO DO SEXO FEMININO

I – Ainda não são decorridos cinco anos que fazendo o


balanço das estatistícas do ensino em França, e perscrutando-lhes
as advertências, escrevia o Sr. Michel Bréal: "Custa a crer que
uma grande, inteligente e liberal cidade como Paris ainda até
agora não haja fundado uma escola secundária para as moças!9".
Estendido a toda a França, na época em que foi pronunciado,
nada perderia a verdade do conceito. Ora, este angustioso
testemunho de abatimento, proferido na pátria, e contra a pátria,
de Fénélon, de Mme. de Maintenon, de Mme. de Lambert, de
Condorcet, de Lakanal, de Mme. de Campan, de Guizot e de
Duruy, por um espírito digno de emular com esses na vasta
intuição e no profundo zelo dos princípios e dos interesses da
educação, seria para diminuir o amargor da confissão a que
fossemos obrigados quanto ao estado do nosso ensino público,
quando, entre as mil e enormissimas lacunas que o agorentam,
carecessemos de não occultar que a instrução da mulher tem aqui
por limite as primeiras letras de nossas pobres escolas elementares,
sendo que até na capital do império, apesar de toda sua população
e riqueza, era ainda desconhecida uma escola secundária do estado

9
Excursions pédagogiques, p. 282.

235
ou do município para o sexo feminino. Da França, porém, já
Voltaire disse que a tudo ela chega tarde. Aliás, a julgar pelo ardor
com que, uma vez definitivamente compenetrada dessa falha
imensa na obra de sua história, da sua legislação positiva e do
engrandecimento de sua educação, pos empenho em repará-la, não
é senão justo acrescentar que a tal respeito soube a França
ressarcir generosamente o tempo perdido e os esforços
desaproveitados.
De feito, apenas cinco anos são passados depois de
escritas as desalentadoras palavras do seu eminente filólogo e
pedagogista Bréal, e já orçam por dezenas de milhões os gastos
feitos pelo estado, os departamentos e as comunas de França com
a aquisição dos terrenos e edifícios para os liceus de mulheres; e já
sobem a setenta os colégios e liceus de moças, criados, projetados e
em via de ser contratados; e já em uma escola normal de primeira
ordem formam-se professoras para as escolas secundárias de
mulheres; e já atinge este ano a 85:000 francos, no orçamento da
instrução pública, o algarismo de despesa anual do estado com a
manutenção do ensino secundário do sexo feminino.
Se, pois, e já o vimos feito, na lembrança de um
passado, cuja distância é apenas de um lustro, poderíamos, no
confronto de uma nação que a tantos respeitos permanece, para
tantos povos, como a metróple verdadeira da inteligência, do
progresso moral e da riqueza, procurar atenuantes a tamanha
deficiência no plano do nosso ensino público, muito mais útil e
urgente fôra agora a imitação daquele exemplo, se se deliberassem
os encarregados da verdade da educação pública entre nós a iniciar
com firmeza e critério o empreendimento desta obra de justiça, de
interesse social e de segurança do futuro nacional.
A natureza, disse uma vez o professor Huxley,
reclamando a propósito do nosso tema – o desenvolvimento da
instrução das mulheres – a natureza tem a sua velha lei salica, que

236
não será abolida: no governo da humanidade não ha por isso temer
que se produza alguma mudança de dinastia10.
Conseqüentemente, desinçado assim o problema da
instrução do sexo feminino, já dos erros e dos ridículos de um
sentimentalismo exorbitante nos excessos de suas exigências, como
dos vãos temores de uma rotina supersticiosa e estéril, considerada
a mulher simplesmente na verdade de sua natureza, de suas
tendências, de suas aptidões, de seu destino em suma, o sistema da
instrução que lhe é relativo, e que convem garantir-lhe, apresenta
agora uma face por forma tal positiva, que poderia em todos os
estados constituir hoje um dos capítulos mais práticos da
administração interior, tendo já entrado em muitos em larga fase
de progressivo desenvolvimento.
Reconhecendo e sancionando desde o princípio, pela
coeducação, a verdade e a necessidade prática da igualdade dos
sexos perante a instrução geral, foi como o bom senso americano
conseguiu, comparativamente aos estranhos sistemas, prodigiosas
vantagens de dinheiro, de tempo e de vigor intrínsico para o seu
regime escolar, e a garantia da vida moral e do progresso commum
na república.
A coeducação, porém, nem só não basta às exigências
crescentes e a todas as necessidades do ensino que nos ocupa, e em
prova não é preciso recordar senão o próprio exemplo da União
Americana com os seus inúmeros estabelecimentos especiais, que
cada dia se levantam ao lado as escolas comuns ou mistas; mas
ainda revela-se como a mais arriscada das soluções do problema,
em toda a parte onde, desde a origem, não constituiu, como ali,
um princípio geral, preponderante, fundamentalmente orgânico da
constituição moral do ensino. Daí as escolas especiais, as
instituições independentes, o conjunto de estabelecimentos à
parte, que na generalidade dos países se destinam à instrução do
sexo feminino, formando na organização material do ensino larga
10
Les sciences naturelles et les problémes qu’elles font surgir (Lay sermons). P.
35.

237
seção especial, paralelamente às instituições consagradas à
educação do outro sexo.
II – Coerente a esse fato, um decreto do poder geral na
côrte, e nas províncias os poderes locais, por virtude das respectivas
leis, asseguram a instrução primária ao sexo feminino, em escolas
elementares a ele exclusivamente destinadas. Desgraçadamente,
porém, a significação destes dois últimos vocábulos entre nós
quase por todo o país é tal, que, na prática, a realidade, o objeto e
os resultados que pareceria deverem exprimir resumem-se na mais
contristadora das mistificações. É o vazio organizado,
regulamentado, com todas as honras e solenes custos de uma
verdadeira instituição. Tudo o que de invariável e universalmente
constitue hoje a essência, a área, o proveito e a eficácia da
instrução primária permanece como uma aspiração remota para a
escola popular brasileira, condenada ainda até este dia à
mesquinha trajetória da qual a taboada e o catecismo são os dois
lúgubres polos esterilissimos. De métodos não há de falar, em
tratando-se de programas cuja matéria é aquela. E nisso cifra-se a
soma de instrução em nossas escolas populares ao alcance do
maior número. Assim é que ainda persiste a nação em supor que
tem bastantemente instruído nos deveres morais e profissionais,
que respectivamente lhes incumbirão, as que amanhã no seio do
povo serão as mães de família e os que depois, na elaboração da
riqueza pública, serão desta os operários anônimos e inumeráveis.
Não há também admirar depois disto que a escola popular entre
nós seja quase tão somente o receptáculo dos deserdados da
proteção da fortuna, sob qualquer das suas formas, derivando para
os colégios particulares, e para os estabelecimentos criados afora
do estado, ou acima e contra ele, a grande corrente da infância de
ambos os sexos, à qual meios apenas menos minguados favorecem.
Como quer que seja, entretanto, à criança que fez o
curso primário da escola pública do sexo masculino pode ainda
sorrir a esperança de vir a completar algum dia, mediante
retribuição efectivamente módica ou nenhuma, em
estabelecimento público, a instrução cujo esboço imperfeitissimo
238
lhe foi uma vez revelado. Obterá isso, embora sem a prévia
preparação que nas primeiras aulas não recebeu, e, pois, quebrada
a lei da proporção entre a cultura adquirida e a por adiquirir; mas,
emfim, obterá. Ainda assim, obterá – quer dizer, na côrte e em
algumas províncias, porquanto somente na primeira, e não em
todas as segundas, existem estabelecimentos públicos de ensino
secundário. O que importa, porém, é que na côrte e onde tais
estabelecimentos existem eles são privativamente, de fato e de
direito, reservados ao sexo masculino, donde resulta que até este
momento a administração do país, geral e local, está dominada da
convição de que para a instrução do outro sexo há feito tudo desde
que a tenha limitado à que a escola de primeiras letras distribui; e
mais, que o seu intento, traduzido nos fatos, é assinalar em
relação à cultura geral a subalternidade de um dos sexos,
precisamente daquele ao qual a natureza e as necessidades da vida
social constituíram na tarefa augusta e arduíssima de ser o
primeiro educador da infância e o fator primordial e insubstituível
na formação do carater moral e na direção primária do espírito do
homem.
III – Com as suas próprias estatísticas em mão teria
entretanto o estado, entre mil outros argumentos, o aviso e a
prova irrefragável do erro e da injustiça que assim comete.
Efetivamente, tomando do último trabalho oficial deste gênero,
anexo (D) ao relatório do ilustrado ex-ministro do Império
conselheiro Leão Velloso, aí encontramos alguns dados
interessantes ao ponto que nos ocupa. Entre os estabelecimentos
consagrados pelo estado e as províncias ao ensino parcial de cada
sexo, muito de indústria, não nos referimos às escolas normais.
Primeiramente, elas também entram no plano do ensino primário,
cujo professorado se destinam a preparar para a tarefa que já vimos
ser a da nossa escola elementar. Depois, as escolas normais são
institutos antes consagrados à cultura profissional, à cultura
pedagógica, partilha de um limitado número, do que à cultura
geral, que neste momento é apenas a que nos interessa.

239
Mas, o que é certo é que, embora lastimosamente
incompleto e defeituosissimo, o currículo da escola normal,
comparativamente às aulas da escola elementar, representa nos
seus resultados e nos seus fins uma realidade muito mais séria do
que as segundas significam. Aí, se revelam notavelmente
superiores, em relação às do outro sexo, a matrícula, a assiduidade
e o aproveitamento nas escolas do sexo feminino. Quanto à
matrícula, os números podem dizer. Assim, a começar pela Escola
Normal da côrte, escola mista, o relatório citado assinala que,
emquanto no ano a que alude, a matrícula de homens na primeira
série do curso não passou de 45 alunos, matricularam-se na
mesma série 125 moças; quanto à 2ª série, inscreveram-se 16
alunas e nenhum homem. O inteligente professor Sr. Borges
Carneiro, comisionado pela congregação da Escola para relatar os
sucessos do ano letivo, exprime-se nestes termos, sobre o
aproveitamento comparado dos alunos e alunas: "Não pode
também passar despercebido o fato da atitude preponderante que
as senhoras tem assumido no aproveitamento escolar: são elas que
mais concorrem às aulas e melhores notas conquistam nos
exames" (annexo C). Nas províncias, a julgar pelo anexo a que
primeiramente aludimos, o mesmo fato, por via de regra, pode ser
observado. Aliás, grande número de nossas províncias não
possuem escolas normais, sendo que naquelas onde, em virtude de
resoluções provinciais recentes, se criaram estabelecimentos com
esse nome, até à data da ultima estatística ainda se não haviam
inaugurado tais estabelecimentos. De todas as escolas existentes,
porém, as únicas (sempre conforme à última estatística oficial) que
apresentam diferenças decididamente vantajosas para a matrícula
dos alunos do sexo masculino são as de Minas Geraes e Sergipe.
Na Bahia, a província onde o ensino normal entre nós é melhor
organizado, e que conta uma escola desse gênero para cada sexo, a
última estatística assinala a matrícula de 68 alunos na de homens,
para a inscrição de 125 discípulas na de mulheres. Nas principais
das outras escolas normais provinciais, todas mistas, registra a
estatística: na do Pará, a inscrição de 18 homens e 101 mulheres;
240
na de São Paulo, 26 alunos de 32 alunas; na do Rio Grande do
Sul, 44 matriculados para 69 matriculadas.
Neste fato, que não é peculiar ou exclusivo da
escolaridade em nosso país, mas que em muitos casos, no ensino
de todos os graus, pedagogistas e observadores dos mais
autorizados têm conseguido assinalar em muitas instituições do
estrangeiro, a nossa administração deveria rastrear tesouros de
aptidão e de curiosidade científica, que, na carência do terreno
onde naturalmente se expandiam, se esterilizam e fenecem com
incalculável detrimento dos mais nobres interesses da educação
pública.
IV- Em resultado, a instrução das filhas-famílias do país
está dependente dos meios de que porventura disponham os seus
progenitores, ou os encarregados de velar-lhes pelo futuro, para
conservá-las nos colégios particulares, à lei do acaso constituídos,
ou sob a direção de mestras (privilégio dos ricos), que se
incumbam de ministrar-lhes o ensino no domícilio paternal. E o
número sem conta das que nesse caso não estão? E a multidão
imensa de todas as demais que da escola primária pública, única
que podiam pretender, saíram sabendo apenas rezar, contar e ler?
E aquelas, quer dizer quase todas, a cujos pais a pobreza e mesmo
a mediana dos recursos não consentem, ou só consentem a preço
de sacrifício, por assim dizer do próprio sangue, a despesa do
colégio ou do mestre que venha à casa? E a filha do empregado
público, do militar, do artífice, em relação às quais a vocação, o
estímulo, as necessidades morais e materiais da existência, o gênio
quiçá, requeriam a extensão da cultura, a ampliação das
faculdades, o desenvolvimento do saber?
Estas são o grande número, são quem forma
propriamente a família brasileira. E para sentir a extensão da
dívida em que com elas está, bastaria que a administração
atentesse no espetáculo que a seu lado oferece este admirável e
glorioso instituto que se chama Lyceu de Artes e Officios do Rio
de Janeiro. É mais do que uma escola, já se disse, é um templo. As
aulas, que abriu para o sexo feminino, em poucos meses
241
povoaram-se de alunas. Perguntai aos beneméritos professores,
que, em cada noite que passam no cultivo daquelas inteligências
delicadissimas, juntam novas bençãos à nobreza do desinteresse,
do civismo e da abnegação com que se empenham nesse
incomparável apostolado; perguntai-lhes se estão contentes dos
resultados do ensino que tem distribuído, e certo eles vos
responderão que se acham seguros de haverem aberto uma escola
no lar da família de cada aluna que preparam. É o que ja sentira o
gênio profundo de Condorcet: instruir a mulher é, além de tudo, o
mais seguro meio de perpertuar entre a espécie humana os
conhecimentos adquiridos. Carecemos assim de chegar aos últimos
e mais recentes períodos desse fecundissimo instituto, para ver
empreendida e realizada a primeira das tentativas sérias que no
país ainda foram feitas afim de proporcionar-se ao sexo feminino
largo ensino público e gratuito. Também estender-se-ão até o
infinito as irradiações desse foco de luz purissima, de súbito aberto
em meio a profunda noite, largamente acumulada em torno deste
vasto domínio da nossa educação pública.
É aí somente que a mulher brasileira desde hontem
pode, é aí onde apenas até hoje podia entrar, segura de encontrar
sem ônus, nem entraves, nem preocupações de qualquer sorte
atenuadoras do estímulo ou da confiança, uma soma de instrução
criteriosamente distribuida e sistematicamente organizada por
forma a compensá-la das usuras do ensino do estado.
Com ser tão amplo, excelentemente ministrado o curso
do Liceu, todavia não se criou com o fim expresso o ensino
secundário do sexo feminino, entendido este em harmonia com o
objeto, os limites e a organização que respectivamente lhe
atribuem hoje o sistema escolar a ciência e a experiência do
ensino. O curso do Liceu de Artes destina-se a mais e menos do
que isso: a mais, porque tem um lado técnico e um fim superior
profissional, que o ensino secundário propriamente tal não
comportaria; a menos, porque não mira em toda a extensão a
cultura geral, cujo desenvolvimento é o objeto peculiar deste.
Constituindo em todo caso um manancial perene e opulentissimo
242
de instrução sólida e ao alcançe geral, extremamente relacionado
além disso, por aderências comuns, com as instituições que é o
nosso propósito especial estudar hoje, era de rigor registrar-lhe
aqui a gloriosa iniciativa, inclinando-nos ante a magnitude do
exemplo que abriu, dos estímulos que fomenta e dos resultados
que neste particular tem alcançado na obra grandiosissima da
educação das classes trabalhadoras. Alguma ou algumas
instituições congêneres, e dignas também do mais elevado apreço
público e do constante aplauso e favor geral, preparam-se agora, ao
que ultimamente lemos, a concorrer com o Liceu nessa tarefa
nobilissima.
Oxalá os recursos de toda a sorte e de toda a procedência
as auxiliem, multipliquem-se, não cessem! E na capital do império
ter-se-á então assentado na mais larga base o futuro do trabalho e
a educação da família nas classes operárias.
Em definitiva, porém, ficamos sempre em que, salvo tão
esplêndida criação, isolada no meio do largo deserto que a nossa
indiferença tem mantido em torno deste magno interesse social, a
instrução do sexo feminino permanece limitada, pelo estado, ao
nada da escola pública elementar, e pelos particulares, indivíduos
ou corporações, ao que possam dar de si, e em bem de
limitadissimo número, ainda assim o arbítrio e os recursos dos
colégios especiais, sem inspeção eficaz, sem programas claramente
conhecidos, organizados em geral sem plano nem sistema
previamente concebidos, e, em suma, quase sempre alheios, por
isso, à compreensão exata e inteira dos interesses superiores e do
objeto verdadeiro da cultura que se comprometem a desenvolver.
V- Excelente sintoma é, pois, o que se traduz na
generosa iniciativa que congregou em torno do ilustrado vice-reitor
do Externato do Colégio de Pedro II, Dr. José Manoel Garcia, o
numeroso grupo de distintos professores, à frente e com o auxílio
dos quais aquele honrado cidadão conseguiu fundar o curso noturno
gratuito de ensino secundário para o sexo feminino, estabelecido no
referido Externato. Para a causa dos interesses da instrução
pública, este fato ficará sendo provavelmente o fato capital do ano.
243
Às saudações com que a imprensa de todos os matizes o consagrou
seja nos permitido unir também as nossas. E porque no
recenseamento das tentativas que se tem feito no país para a
constituição do ensino secundário do sexo feminino deve consistir
hoje o nosso estudo, mencionemos desde já, a par do curso
instituido na côrte, o curso de letras e ciências para o sexo feminino
que, desde o 1º de maio do ano passado, se inaugurou e funciona
na capital da província da Bahia.
Um eminente colaborador desta Revista, que é ao
mesmo tempo alta dignidade e merecido orgulho do funcionalismo
do ensino entre nós, lamentava há pouco nestas colunas11 a falta
de solidariedade política e literária que, até para com os povos da
América Latina nos conserva tão deploravelmente ignorantes das
produções, dos successos e dos esforços úteis ou brilhantes, devidos
ao gênio das nações vizinhas, nas variadas manifestações de sua
atividade. Pelo que diz respeito à ausência de solidariedade
literária, esta tanto mais é para sentir-se quando vemos que
permanece como a lei das relações morais entre as próprias
circunscrições do império reciprocamente, passando despercebidos
e jazendo de todo ignorados muitas vezes, fora dos limites do
município ou da província onde se realizaram, fatos do mais
salutar alcance para os interesses comuns do progresso e da ciência
do país. Assim é que, embora de todo o ponto ignorado da côrte e
talvez da própria administração geral, o curso de letras e ciências
para o sexo feminino, criado na capital da Bahia, nem por isso
deixará de ficar com a instituição primeiro levantada no país para
a missão que o seu título indica. Devido à esclarecida iniciativa de
um sacerdote, ao qual igualmente caracterizam a piedade das
tendências liberais do espírito, o padre Romualdo Maria de Seixas
Barros, digno portador do veneradio nome de D. Romualdo, e
investido há alguns anos nas funções, que exerce com o máximo
zelo, de diretor da instrução pública naquela província, o ensino

V. a Revista de janeiro de 1884. As leis do ensino, pelo Dr. Souza Bandeira


11

Filho.

244
secundário do sexo feminino professa-se ali desde o ano passado.
Com o curso do Externato de Pedro II, em boa hora aberto o mês
último na côrte, temos assim no país duas instituições, que,
precedendo a ação dos poderes públicos neste ramo importante do
ensino geral, ao qual eles ainda se conservam alheios, aos demais
possuem o merecimento de demonstrar como mais instante cada
dia a necesidade de concorrer a administração na solução do
problema em que lhes cabe a glória de se haverem empenhado.
Temos realmente diante dos olhos as leis de cada um
desses institutos: o regulamento orgânico do curso fluminense, e
os estatutos do curso baiano. Na economia íntima de seu plano, o
primeiro apresenta relativamente aos segundos certas vantagens
que ele ainda não assinala: assim, enquanto a distribuição do
ensino no curso da côrte atravessa uma série gradativa de anos,
instituídos em obediência às necessidades evolucionistas da cultura
mental, nos estatutos do curso baiano essa ordem ainda não se
observa. Depois, no que refere aos exames de admissão e finais, às
certidões e diplomas do curso, o regulamento da côrte já revela um
sistema acabado, do qual não sabemos se está em posse o curso
bahiano, mas de que os seus estatutos primitivos não cogitaram.
Uma diferença fundamental em certo ponto caracteriza
ao demais os dois estabelecimentos, e é que, enquanto no da côrte
a direção e o professorado formaram-se de um pessoal
exclusivamente masculino, no curso bahiano, salvo o diretor, todo
o pessoal docente compõe-se de senhoras.
Quanto às mais importante das questões, a dos
programas, o curso da côrte compreende as seguintes matérias:
português, italiano, francês, inglês, alemão, latim, matemáticas
elementares, geografia, história geral, cosmografia, chorographia
do Brasil, história do Brasil, retórica e poética, história literária,
literatura nono-latina, literatura nacional, gramática histórica da
língua portuguesa, filosofia racional e moral, ciências físicas e
naturais, higiene, economia doméstica, legislação usual,
pedagogia. E o curso instituido na Bahia menciona estes: língua
nacional, compreendendo noções de literatura, língua francesa,
245
língua italiana, língua inglesa, geografia e cosmografia, história
pátria e elementos da história universal, aritmética e geometria,
elementos de física, química, botânica e zoologia com a aplicação
aos usos da vida, higiene e noções de economia doméstica, noções
de direito usual nas suas relações com a família12, desenho de
imitação, prendas domésticas. Ora nesta questão fundamental do
programa das matérias afigura-se-nos que, em sua simplicidade
relativa, o do curso bahiano consultou melhor as necessidades e os
fins da instrução secundária. Se apresenta talvez algumas
deficiências, estas se nos revelam menos sensíveis do que as
lacunas, e sobretudo do que constituem o programa do curso do
Externato de Pedro II.
Com os direitos e os intuitos da simpatia fervorosa que
nos inspiram a generosa iniciativa dos fundadores dos dois cursos e
a causa a que eles tão devotada e patrioticamente se consagraram,
vamos entrar na apreciação daqueles programas. Que em nossas
palavras, pois, eles não vejam senão o interesse e a liberdade
conscienciosa de uma crítica de amigo.
VI – O numero crescidissimo de matérias que fazem
objeto do programa de ensino do curso estabelecido no externatode
Pedro II, parece-nos tanto mais exorbitante, quanto do estudo, do
exame e da aprovação em todas essas matérias torna o
regulamento irremissivelmente dependente a obtenção do diploma
que instituiu como prova e prêmio dos estudos secundários.
Na sua obra magistral, que ficará clássica, acerca do
ensino secundário das mulheres, o eminente vice-reitor da
Academia de Paris sr. Gréard, enumerou assim as matérias do
programa que faz em toda a parte o objeto comum do ensino
secundário do sexo feminino: religião, moral, língua nacional e
línguas vivas, literatura antiga e literatura moderna, história,
geografia, aritmética, elementos de de geometria, ciências físicas e
naturais, economia doméstica e direito usual, desenho, música,
12
Segundo informação que devemos á obsequiosidade do ilustrado director, ainda
não funciona esta cadeira.

246
ginástica. Tal é o conjunto de conhecimentos mais ou menos
desenvolvido, segundo o grau de sua utilidade, que entre todos os
povos constituem o objeto comum deste ensino. A lei de 21 de
dezembro de 1880 em França, acresenta o ilustre escritor, mais
não fez do que adotar esse tipo13. Cotejado com esse plano, como
se revela aqui sobrecarregado, ali defectivo, o programa lecionado
no Externato de Pedro II?! Antes de tudo, a inclusão do latim
como disciplina obrigatória do curso chama-nos a atenção. Somos
dos que pensam com Herbert Spencer que nove vezes sobre dez o
grego e o latim são hoje úteis a um homem na maior parte das
carreiras14. Como quer que seja, considerado como instrumento da
cultura geral e especialmente do conhecimento dos tesouros
literários e científicos da antigüidade clássica, o estudo daquelas
duas línguas persiste ainda em toda a parte ocupando sempre largo
espaço no ensino dos liceus de homens. Vemo-lo, é certo,
figurando também em algumas escolas superiores de mulheres na
Inglaterra15, e no programa do ministério da instrução pública na
Rússia para as escolas secundárias de mulheres16, e no ensino
superior de duas grandes instuições suecas17. Mas, o assentimento
quase unânime dos pedagogistas e das legislações produziu-se no
sentido de serem estas duas línguas retiradas do programa dos
estabelecimentos do sexo feminino. Assim é que a resolução de 14
de janeiro de 1882, que, aliás ampliando a lei, fixou a distribuição
das matérias do ensino secundário das mulheres em França, não
consigna o estudo dos elementos da língua latina senão nos cursos

13
L’enseignement sécondaire des filles, 3ª edição, pag. 114.
14
Da Educação intellectual, moral e physica, pag. 3.
15
De l’enseignemnt superieur des femmes en Angleterre, en Ecosse et en Irlande,
par M. Buisson (Revue Internationale de l’Ensoignement, ns. de janeiro. março e
maio de 1883).
16
L’enseignement secondaire des filles, par Oct. Gerárd. Appendice n. 11.
17
Les E’coles superieures de filles en Suéde, par le Dr. Gustave Sgolberg (Reuve
Internationale de l’Enseignement), 1882.

247
facultativos do quarto e quinto ano do segundo período de
estudos18. Assim é que os programas das escolas alemãs de
mulheres, tão vastos e especialmente tão preocupados do ensino de
línguas, que se os incriminam de serem simples cópia dos ginásios,
com a diferença de que estes cultivam as línguas antigas, enquanto
que as primeiras preferem exclusivamente as línguas modernas19, não
mencionam nem o grego nem o latim. Igualmente procedem os
programas italianos, suíços, belgas e holandeses20. Voltando à
França, refere o Sr. Gréard: "Mestres competentes pretenderam
introduzir nos programas aplicados à lei de 1880 o estudo das
línguas antigas. Que idiomas mais próprios para exercitar o
espírito na análise das formas da linguagem e para nutri-lo da
excelência moral das idéias que tiveram por fim exprimir! Era além
de tudo, supunha-se um novo meio de aproximar as mulheres dos
maridos, as mães dos filhos. Entretanto foi preciso resistir a esses
impulsos generosos. Compreendeu-se que os segredos dessas
línguas seletas e fortes não eram dos que se deixam aprehender em
algumas horas de aplicação e que, supondo que nesse intuito o
auxílio das mães pudesse ser verdadeiramente útil aos filhos, os
exercícios de conjugação e de declinação que com eles
balbuciassem não valeram o tempo que elas houvessem empregado
em aprendê-los. Considerou-se ao demais que o estudo das línguas
modernas, comparadas com a língua francesa, bastava para iniciar
a moça na filosphia da gramática; enfim, que as traduções abriam
a todas as inteligências sérias os tesouros dessas literaturas sem
iguais, e que melhor era ler e reler correntemente uma boa versão
da Economia de Xenophonte, do que soletrar-lhe o texto,

18
Foi como auxiliares do estudo do francez, e simplesmente neste sentido e
limite, diz o Sr. Gréard em a nota 1ª, pag. 144, de sua obra, que a resolução
citada no texto inscreveu estas noções na serie das materias do curso facultativo
do 4º e 5º anno dos lyceus e collegios de moças.
19
Lés écoles superieures de filles en Allemagne, par le Dr. W. Noeldeke. Reuve
Internationale de l’Enseignement, janeiro 1881.
20
Camille Sée – Rapport sur l’enseignement secondaire des filles.

248
penosamente, com o auxílio de um dicionário. Não lastimemos
estas decisões, conclui o eminente escritor. Elas não impedirão o
nascimento de uma Mme. Dacier; e obviando ambições
impotentes, em outras concorrerão para salvar a graça sólida do
espírito francês. É de resto um erro querer abarcar todos os
estudos no trabalho de alguns anos da mocidade. A educação é
obra da existência inteira. Colocar a aluna na posse de si mesma;
acender em seu espírito e em seu coração o foco da vida intelectual
e moral, não é isto tudo o que se pode, tudo o que se deve exigir de
um bom sistema de estudos para moças, confiando quanto ao mais
nelas próprias, em suas faculdades disciplinadas e avigoradas?"21.
Pois para iniciar as alunas na filosophia da gramática, uma vez
que afinal não é senão disto que pretendeu cuidar o curso do
Externato, com o ensino do latim, não bastava, além do estudo
das línguas vivas, a cadeira da gramática histórica da língua
portuguesa, que, como cadeira especial, também nos repugna em
um plano de ensino secundário do sexo feminino?
Aliás, ainda no capítulo das línguas quizeramos que a
obtenção do diploma do curso não dependesse do estudo
obrigatório dos quatro idiomas estrangeiros, que, além do latino,
figuram o programa. Houvesse embora todas estas cadeiras de
línguas, mas com o caráter de facultativas algumas. Dest’arte o
estudo obrigatório da língua portuguesa e da história literária do
francês e inglês, abertas facultativamente as aulas de italiano e
alemão, deveria constituir, a nosso ver, esta parte do plano do
curso. E ainda assim muito mais larga sería essa parte do que
aquela que por exemplo nas escolas francesas cabe a semelhante
gênero de ensino. Finalmente, nesta ordem de idéias
eliminaríamos a cadeira de retórica e poética, reduzidas a uma só,
embora como matéria distribuida por todos os anos do curso, as
que no programa se inscrevem com os títulos de história literária,
literatura novo-latina, literatura nacional e gramática histórica da

21
(I) Op. citada, pgs. 144-145.

249
língua portuguesa, que todas poderiam filiar-se à primeira,
considerado com mais latos desenvolvimentos o que
particularmente dissesse respeito à língua nacional e à sua
literatura e história.
E o tempo por tal forma ganho com a supressão da
freqüência forçada em tantos cursos tão profusamente
disseminados, aproveitá-lo-íamos no ensino de uma disciplina, esta
sim, fundamental e essencial, como nenhuma mais, à aquisição
dos conhecimentos, ao desenvolvimento das faculdades e à
extensão e segurança da cultura geral – o desenho. Depois, o
ensino da música, que se não contém no plano do curso do
Externato, mas que é inseparável de qualquer programa de
instrução do sexo feminino, teria também a parte que lhe cabe. A
ginástica e às prendas de agulhas deixaremos de referir-nos: de um
curso que funciona à noite fora injusto e talvez impraticável
pretende-las. Mas a omissão do desenho entre as matérias do
programa é inexplicável e dolorosa; e quando consideramos que os
distintos organizadores do curso a excluiram em holocausto talvez
ao latim ou à retórica e poética, não nos sentimos em nós que lhes
não clamemos suplicantes pelo termo e reparação dessa
inconcebível anomalia.
Este século poder-se-ia talvez chamar hoje o século do
desenho, tais e tão prodigiosamente bemfazejas e fecundantes são
as transformações e as revoluções que à luz dessa admirável
disciplina hão conseguido operar as indústrias, as ciências e as
artes. No programa de todas as escolas o ensino do desenho deve
ter, pois, o seu lugar soberano, imprescritível, e, se em uma escola
destinada à cultura geral das mulheres, não encontrou um abrigo
sem reservas, cuidados particulares e o mais sólido cultivo, ficai
certos de que essa escola falhará aos seus fins, por mais generosas
que sejam, como em nosso caso são, as intenções dos fundadores.
Para que não continue deploravelmente incompleto nos seus
resultados, e meio anulado em seus efeitos, antes produzam-se
todos os bens que são de esperar do elevado tentamen dos
ilustrados organizadores do curso, fazemos votos por que quanto
250
antes preencham esta imcomparável lacuna do programa que se
propõem seguir. Basta-lhes refletir em que nenhuma escola do
mundo, digna desse nome, e consagrada ao fim que eles têm em
vista, sejam essas escolas públicas ou particulares, chamem-se
colégios ou pensões, cursos ou liceus, nunca consumou essa
mutilação sacrílega no seu plano de estudos.
A distribuição do ensino científico no programa
fornecer-nos-ia talvez ensejo para desejarmos uma repartição de
cadeiras mais equitativamente feita, e mais em harmonia, a nosso
ver, com os limites do ensino secundário, destacando a higiene da
história natural e anexando-a talvez à economia doméstica;
reduzindo a de filosophia racional e moral a esta última parte;
finalmente, limitando a uma só a de história do Brasil e história
geral, considerado que o estudo desta sería o dos elementos e se
faria sobre os fatos e as leis fundamentais que dimanam dela. Não
é, porém, nosso propósito mais que lançar uma vista geral sobre o
programa que se traçaram os dois cursos. E neste passo, não
demorando além disso a nossa crítica, repetiremos que afigura-se-
nos mais consentânea à natureza e aos fins do ensino que trataram
de organizar a simplicidade e a parcimónia do programa do curso
bahiano. É mais simples, mas é também mais preciso; é mais
sóbrio, mas presta-se a tornar-se muito mais intenso.
Efectivamente, escreve o Sr. Gréard: "Duas coisas áa que
considerar na educação: a aquisição dos conhecimentos e o
desenvolvimento das faculdades. Não se concebe uma sem outra.
Entretanto diferem até certo ponto entre si, conforme se trata dos
homens ou das mulheres. Independentemente de um espírito bem
formado – ao qual nada supre – o homem carece de uma soma de
saber solidamente estabelecida, conservada, com solicitude,
frequentemente renovada, que aplique às suas funções, à sua
indústria, aos negócios públicos, à toda a direção da própria vida.
Não sucede o mesmo em igual com a mulher. O que mais útil lhe
é, a si mesma e aos outros, o que mais vale nela, não é o que mais
útil lhe é, a si mesma e aos outros, o que mais vale nela, não é o
que lhe possa ficar do saber adquirido, qualquer que seja a sua
251
valia, seguramente muito apreciável sempre: ainda mais que isso, é
o espírito mesmo que esse saber contribuiu para formar. O escopo
principal de uma educação bem dirigida deve, pois, consistir em
assegurar-se à moça essa alta cultura moral que cria a
personalidade humana; em inculcar-lhe esse respeito da verdade e
esse amor da sinceridade, que fazem a probidade da inteligência e
do coração; em constituir-lhe, enfim, como o mais precioso dos
dotes que a instrução possa fornecer, o que se chama vulgarmente
um são critério ou um juízo seguro, capaz, nas conjuncturas
graves ou melindrosas, de decidir-se rapido e bem22".
"O defeito da educação moderna", contina adiante o
lucidissimo pensador, "está porém em sacrificar o espírito aos
conhecimentos. E sem contar que, uma vez excedida a medida,
obtem-se tanto menos quanto mais se exige, é de temer que essa
sobrecarga de ciência não faça estalarem ou enfraquecerem as
molas que se cuida de fortificar. O mal nada tem que nos seja
peculiar. É o efeito universal do desenvolvimento da civilização,
efeito tanto mais temível quanto, à medida que os programas do
ensino se dilatam, restringem-se o período de aplicação que lhes é
consagrado. A criança tem cada vez menos tempo para aprender
cada vez mais coisas. Se do perigo que daí resulta convém prevenir
os rapazes, com a maioria de razão cumpre contra ele prever as
moças, que não têm o mesmo temperamento, nem os mesmos
deveres, nem as mesmas necessidades. É quanto a elas
principalmente que a educação deve ser uma obra de discrição e
discernimento. Não é que intentemos deste modo suprimir de seus
estudos o esforço, que só é fecundo; quiseramos melhor utilizá-lo,
concentrando-o mais. Ainda menos trata-se de organizar para as
moças uma ciência menos exata, uma ciência para uso delas, ad
usum puellarum, mas simplesmente de tornar-lhes a ciência, a
verdadeira ciência, mais acessível e mais assimilável, desligando-a
de tudo que não fôr indispensável à educação do espiríto. Muita

22
Op. cit. p. 140.

252
coisa que é a minúcia do saber e o pormenor dos fatos pode lhes
ser poupada. Nada lhes adiantam as curiosidades. O que queremos
para elas é um ensino sóbrio, bem despojado, por assim dizer, -
um ensino de resultados e conclusões, que coloque os sentimentos,
as idéias, as invenções, as descobertas, as grandes conquistas da
civilização humana em plena luz"23. Ora, esta precisamente é a
tarefa do ensino secundário, e, se no interesse da unidade e da
igualdade moral no seio da família e das nações, convém que nas
escolas do sexo feminino se distribua paralelamente à extensão
com que é professado no liceu de homens, de outra parte isso deve
ser feito até certo ponto, com as imperiosas reservas fatalmente
resultantes da diferença natural dos sexos, do vário destino social
de cada um e das condições naturais intrinsecamente diversas que
respectivamente os assinalam. Ante essa ordem de idéias é que se
nos afigura que o programa do curso instituído no Externato
contém os accrescentamentos e denuncia as omissões que já
perfunctoriamente notamos.
VII- Honrado o elevadissimo cometimento a que se
abalançaram os esclarecidos fundadores dos cursos secundários do
sexo feminino, fazendo justiça aos serviços que se propuseram
prestar e ao largo progresso relativo que já conseguiram iniciar no
país, devemos finalmente almejar que na obra em que eles se
empenharam deliberem se a tornar os poderes públicos, gerais e
locais, a parte que lhes incumbe. Só a administração está entre
nós na posse dos meios necessários à realização desse desideratum,
tal como ele deve ser entendido e satisfeito. Ée ste um dever dela.
O que a iniciativa dos professores acaba de dar na córte é o mais
que poderia dar, e o mais que tinhamos o direito de pedir-lhe. Não
basta, porém, as necessidades do ensino a que se destina servir.
Este só poderá possuir a precisa eficácia, tomar os
desenvolvimentos que lhe são próprios, e produzir os benefícios por

23
Op. Cit. p.143

253
que soe assignalar-se, quando organizado normalmente,
sistematicamente, como as demais instituições públicas do ensino.
Dos cursos fundados sob o enérgico impulso de Duruy,
em França, disse o ilustre e falecido sábio Paulo Broca, no seu
relatório ao senado sobre o projeto de lei Camille Sée, que a
experiência provou que eles eram insuficientes e sem estabilidade,
tendo ouvintes antes que discípulos, constituindo um ensino, mas
não uma escola. Cumpre também não exigir mais da dedicação dos
nossos mestres. Professando à noite, em horas tão generosamente
arrancadas por eles ao descanso, aos lazeres do trabalho diário, e às
necessidades da própria cultura, dos cursos que instituiram ou
instituem não é lícito além disso esperar. Faltará aí forçosamente
o tempo, a coerência, o sistema, a harmonia, em suma, o espírito
e a ação que fariam a força e o brilho de uma escola secundária
verdadeiramente tal. Antes de tudo a educação física, que cumpre
ser promovida no mesmo grau que a cultura moral e intelectual,
além do mais por bem destas mesmas, será ali impossível. Depois
terão construído no ar, desde que não podem manter calsses
elementares onde comece a educação e que desenvolva
gradativamente a cultura das futuras alunas até que elas possam
pretender ingresso nas aulas do ensino secundário. A frase não é
nossa, é do Sr. Gréard. Um estabelecimento de ensino secundário
sem classe elementares que lhe sejam próprias, diz ele, é como um
edifício sem alicerces. "A escola superior de moças, que tem
consciência do valor do ensino elementar, escreve por sua vez o
Dr. Noeldeke, diretor da escola de Leipzig, administra-o em suas
classes preparatórias, com o mesmo empenho que as escolas
elementares propriamente ditas". Para o ensino preliminar, refere
ainda o Dr. Gustavo Sgolberg, a maior parte das escolas de
mulheres na Suécia possuem uma divisão chamada preparatória, que
em seu desenvolvimento completo compreende três classes para as
meninas de seis a nove anos. Eis porque, observa ainda o Sr.
Gréard, na generalidade dos países os estudos secundários das
moças se estendem por um período de oito a dez anos em regra, de
sete pelo menos.

254
Eis, porém, pela razão oposta, por que, por exemplo, o
regulamento orgânico do curso do externato fixou em um
mínimo, que deve forçosamente exceder a dez anos, a idade das
suas alunas. No Brasil, entretanto, menos do que em outra parte
fora lícito contar com a preparação alcançada na escola primária
pública, ou no seio da família, como prova de capacidade para a
iniciação no ensino secundário, além de que, quando assim não
fosse, tão funesto seria ao liceu receber alunos que não houvesse
preparado, quanto à escola tomar meninos que não fossem feitos para
ela, porquanto o que importa antes de tudo é que a aluna permaneça
sob a direção a que foi primeiro confiada, que perceba diante de si
claramente e sem impaciência o caminho que tem de percorrer; que de
seu lado o mestre possa contar com os anos, ganhar terreno, regular
sua marcha segundo se tornar preciso, semear no momento oportuno,
dar ao germe o tempo de frutificar, e não ter pressa de fazer a
colheita24. E não falamos na formação de pessoal necessário ao
novo curso, e em outras questões essenciais à sua organização e
desenvolvimento desta.
Eis, porém, como compreenderiamos um plano útil e
verdadeiro de estudo num estabelecimento secundário de
mulheres, e nesse pensamento foi que nos inspiramos, quando na
sessão parlamentar do ano de 1882, nos coube a honra de
apresentar um projeto destinado a iniciar a fundação do ensino
secundário do sexo feminino no país, convertendo em liceu de
moças o Internato do Imperial Collegio de Pedro II. Enquanto a
administração geral ou local não se resolver a fundar
paralelamente aos liceus de homens, existentes no país,
estabelecimentos do mesmo gênero, vasados nos moldes que
descrevemos, para o ensino das mulheres, a instrução do sexo
feminino permanecerá entre nós como uma aspiração cada dia
mais instante e de atualidade sempre crescente.

24
Gréard, Op. Cit.

255
Oxalá os sucessos que alcançar a ultissima iniciativa dos
dignos professores que entretanto hão procurado preceder o estado
nessa bela obra, e os resultados a que esforço deles revelar-se
impotente e inferior possam determinar a administração a
consagrar-se ao mesmo fim com a compreensão nítida e o passo
seguro que a magnitude do assumto e a grandeza de tais interesses
reclamam.
Rodolpho E. de Souza Dantas

O ENSINO SUPERIOR NO BRAZIL

Em 1882 começamos com este título uma memória


destinada a uma revista francesa; porém não a terminamos,
naturalmente receioso de tornarmo-nos desagradável sem
utilidade. Os estrangeiros no Brasil, se dizem as coisas tais quais
se lhes afiguram, são acusados de injustiça e de prejudicar o Brasil;
se as dizem tais com elas semelham existir, são talvez aprovados;
mas, cedo ou tarde, os fatos se encarregam de desmenti-los.
Poderiamos como tantos outros estrangeiros (alguns dos
quais são homens ilustres) discorrer sobre os edifícios, as
faculdades, o título das cadeiras, um pouco sobre os programas, e
no mais limitar-nos a algumas frases breves; ou ainda poderiamos
cingir-nos a descrever algumas recentes instituições ou certos
trabalhos úteis. Mas julgamos melhor e mais sincero considerar o
conjunto, e, já que nos achamos no seio de uma sociedade cuja
fundação importa o reconhecimento das lacunas do ensino, vamos
dizer o que não quisemos publicar na Europa.
Ninguém por certo negará que o ensino superior tem
feito neste país, sobretudo de dez anos a esta parte, consideráveis
progressos.
A Escola Politécnica do Rio de Janeiro, reorganizada em
1874, contém numerosas cadeiras, ensinos mui diversos, entres os
quais alguns suficientemente dotados. Os difíceis trabalhos de vias
férreas, executados em toda a parte por antigos alunos, apresentam

256
sob este ponto de vista, prova suficiente. A Escola de Minas de
Ouro Preto, estabelecida em 1875, encetou digna e seriamente
uma carreira de grande utilidade, pois deve determinar o
aproveitamento do sub-solo do Brasil, tão pejado de riquezas.
Escolas especiais reorganizadas também há alguns anos
– A Escola Militar, a Escola de Marinha – realizaram a separação
completa dos estudos civis e militares, que muitos espíritos
eminentes desejariam ver adotada em França, e com as escolas e
os serviços práticos anexos, instituidos no Rio de Janeiro e no Rio
Grande do Sul, fornecem para a defesa do pa´s homens capazes e
instruídos.
Enfim, pela última reorganização da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, criaram-se laboratórios, quase
duplicou se o número das cadeiras e completou se do melhor modo
o ensino das clínicas. A Faculdade da Bahia recebeu também
melhoramentos reais.
Não conhecemos suficientemente as Faculdades de
Direito de S. Paulo e do Recife para ajuizar delas como merecem;
por isto limitamo-nos a reconhecer a parte importante que nos
seus programas ocupam as ciências sociais. Conhecemos o Museu,
e dele falaremos, pelo menos de uma de suas seções. Quanto ao
Observatório, seus trabalhos mostram que se acha regularmente
organizado e é dirigido com seriedade. Emfim, devemos
mencionar o início da Escola Veterinária de Pelotas e as Escolas
Normais fundadas nas capitais de algumas províncias.
Como se vê, ainda não se inauguraram, ou não estão
inauguradas de modo cabal diversas escolas especiais, mas todos os
orgãos indispensáveis ao ensino superior já existem: em menos de
meio século o Brasil ultrapassou as instituições análogas da
América do Sul, e talvez da América do Norte.
Este progresso é do melhor augurio para provir, e é de
toda a justiça reconhecer que a maior parte dele deve ser atribuida
ao Chefe do Estado, pela sua constante e frutuosa intervenção.
Cumpre agora examinar se os orgãos do ensino prestam
todos os serviços que é lícito exigir deles. Para responder com
257
exatidão a este quesito, em nossa qualidade de biologista limitar-
nos-emos a discutir o que diz respeito ao ensino das ciências
biológicas, as quais estão tão intimamente ligadas à vida do
homem, pois seus rápidos progressos trazem cada dia novas
soluções aos mais graves problemas da medicina, da higiene e da
sociologia.
O ensino das ciências biológicas é dado no Brasil pelas
duas Faculdades de Medicina, pela Escola Veterinária e por
diversas cadeiras: de zoologia, botânica, biologia industrial, na
Escola Politécnica; na história natural, nas Escolas de Minas,
Marinha e Militar; de zoologia, botânica, paleontologia e fisiologia
experimental, no Museu.
Este elenco é suficiente; não se pode exigir que o Brasil
despenda, como a Alemanha, vinte milhões com o ensino
superior, ou igual a França, a qual luta neste terreno para não ser
mais vencida em outro. Quanto à Inglaterra possui somente trinta
e oito cadeiras destinadas ao ensino das ciências biológicas, o
Brasil pode ufanar-se de já ter atingido quase o mesmo número.
Sob outro ponto de vista, o dos meios materiais, o Brasil
parece-nos ter necessário. Encontram-se já no Museu, na Escola
Politécnica e sobretudo na Faculdade de Medicina vastas salas,
cheias de instrumentos especiais; e vários laboratórios,
principalmente os de terapêutica, de higiene, de histologia, de
fisiologia, estão abundantemente providos.
Muitos particulares doaram avultadas quantias para
algumas destas fundações científicas, e as verbas necessárias à sua
conservação e utilização foram votadas pelas câmaras legislativas.
Os meios de estudo estão pois constituídos, mas os
estudos achar-se-ão suficientemente organizados? Para responder
a esta pergunta, é necessario advertir que as ciências biológicas não
se aprendem nos livros: cada uma delas exige longo aprendizado
intelectual e manual.
O botânico deve examinar milhares de plantas,
decompor centenas de flores, de folhas ou de hastes, antes de
poder classificar à primeira vista. O zoologista deve dissecar grande
258
cópia de animais, aprender a injetar-lhes os vasos, colorir-lhes os
tecidos, corta-los em delgadas lâminas; finalmente o médico, além
dos indispensáveis conhecimentos de química e de botânica, de
zoologia e de fisiologia, deve principalmente aprender, mediante a
prática quotidiana a auscultar o coração ou o pulmão, a apalpar
um abcesso, e também a reconhecer um parto vicioso; e isto só é
que importa ao doente, porque o diagnóstico impõe o tratamento.
Como se vê, os laboratórios não constituem a única
condição prática dos estudos: os museus e os viveiros para os
zoologistas, as herborizações ou os jardins de plantas para os
botânicos, o hospital para o médico são ainda mais indispensáveis,
porque fornecem os materiaes de estudo.
O ensino médico pode reduzir ao mínimo o laboratório,
mas não pode passar sem o hospital; na Inglaterra, por exemplo,
os hospitais são ainda hoje as únicas escolas médicas úteis e sérias.
Nem Bichat, Magendie, e até 1865 Pasteur e Claude
Bernard, tiveram verdadeiros laboratórios. Drawin trabalhou quase
sempre no campo, com os materiais mais singelos e meios mais
simples ainda; e, convém dize-lo, os meios materiais que o Brasil
possui já se equiparam aos de Ranveir, Marey, Brown-Sequard ou
Vulpian.
Devemos então censurar as nações que consagram parte
de seus recursos a reunir nas melhores condições os meios e os
materiais de estudo? Certamente não: na luta industrial e
econômica que a ciência resume e dirige, e que se torna cada vez
mais viva entre as nações cultas, a vitória não caberá somente ao
povo mais ativo ou mais inteligente; caberá também àquele que
tiver coligido melhores elementos de trabalho. O Brasil procedeu
portanto muito bem, principiando com largueza a disposição dos
meios práticos científicos. Com a sua fauna tão curiosa, a sua
fauna tão rica e tão variada, as suas raças tão diferentes, as suas
moléstias tão especiais, que representam condições de estudos
biológicos talvez únicos no mundo, parece estar preparado para
rápido adeantamento. Entretanto resta examinar o que é mais
importante, a educação e os trabalhos científicos.
259
Todas as ciências, particularmente as ciências biológicas,
exigem, como já dissemos, sério aprendizado. Pelo que temos
observados estudantes brasileiros aprendem bem rapidamente,
quando são dirigidos com cuidado nos primeiros passos da prática.
Temo-lo dito muitas vezes, aqui, como na Europa: causa-nos
admiração a rapidez com que os estudantes aprendem e executam
pequenas operações relativamente difíceis, como são a observação,
pelo Kymographo, da tensão arterial, a abertura de um crânio para
descobrir o cérebro, a extração dos gases do sangue, a análise da
urina, etc. Nossos assistentes no Museu aprenderam em menos de
dois anos tudo quanto costumam saber os melhores preparadores
de Paris; e confessamo-lo, consumimos pela nossa parte mais de
dois anos para conhecer este a b c das pesquisas fisiológicas.
A educação manual é, pois, fácil no Brasil, e será
alcançada de modo rápido e completo por todos aqueles que a ela
queiram dedicar-se. Mas, devemos dize-lo, são poucos os que têm
feito. Em vez de esperar dois ou três anos em um laboratório,
trabalhando regularmente para aprender a trabalhar,
frequentemente procede-se de modo contrário; e a publicação
torna-se, senão o fim, pelo menos a manifestação quase imediata
do esforço. Semelhante circunstância nos tinha impressionado
logo depois de aqui chegarmos; indicamo-la em um artigo que a
Revista Brazileira publicou, e, apesar de louváveis exceções, os
fatos confirmam a nossa primeira impressão. Poderiamos citá-los
sem receio de ser acusado de recorrer a personalidades, pois nunca
intervimos em discussões às vezes pouco científicas, salvo quando,
muito contra a nossa vontade, o nosso nome era nelas envolvido;
mas preferimos não insistir em um estado de coisas transitório,
cujas causas são múltiplas, ou, mais exatamente, o que queremos é
estudar essas causas.
O gosto das pesquisas fáceis ou das exibições pseudo-
científicas, nocivas à estima e ao adiantamento do país, parece-nos
em princípio poder explicar-se pelo pouco desenvolvimento do
meio científico; mas esta causa tem pouca importância.

260
O interesse pelas coisas científicas existe já no Brasil: as
publicações periódicas, as sociedades multiplicam-se; e as
descobertas demasiado prontas acham no Rio censores severos,
assim como, sabemo-lo por experiência própria, reconhecem-se a
apreciam-se trabalhos menos ruidosos.
Mas existem outros obstáculos menos palpáveis e muito
mais graves: tais obstáculos são a má organização administrativa
científica e a dificuldade com que lutam os mestres para formar
discípulos.
Esta má organização oferece aspectos diversos. Assim o
ensino médico é baseado, como já vimos na clínica, e podem-se
invejar à Faculdade do Rio de Janeiro os dois eminentes
professores que durante dez anos se consagraram a este ensino. Na
qualidade de médicos práticos e de lentes já fizeram suas provas;
mas quanto trabalho e quanto tempo despenderam para darem,
por si sós, a suficiente instrução prática a 800 alunos! Por vezes
assistimos à clinica do Dr. Torres Homem: afim de poder cumprir
as obrigações da sua cadeira, este lente é forçado a subdividir as
visitas, mostrando em certos dias aos alunos como se ausculta, se
apalpa, se examina um doente, e a restringir aos outros dias as
lições magistrais, que em toda a Europa constituem o único
encargo do professor de clínica.
Desde muitos anos em França, por exemplo, os alunos
são exercitados nos diferentes serviços dos hospitais, em turmas de
15 a 20; todas as salas de homens e mulheres são franqueadas, e
ao professor de clínica incumbe simplesmente completar o ensino
prático largamente principado pelos numerosos médicos dos
hospitais e pelo pessoal adjunto de internos e externos.
Na Alemanha, na Áustria, a organização pouco varia.
Mas no Rio de Janeiro ainda hoje a maior parte dos serviços
conserva-se inacessível aos estudos; e até 1883 todos os médicos
tinham o direito de vida e morte, sem nunca haverem examinado,
nem sequer visto, uma mulher doente. Na presença de tais fatos,
aqueles que não conhecessem este país tão democrático, tão rápido
no progresso, julgariam que ele está ainda em plenaiedade média.
261
Mais outras provas desta má organização. Durante seis
meses servi na qualidade de médico, no hospício de D. Pedro II.
Nenhum asilo do mundo pode apresentar igual variedade de
doentes de tão diversas nacionalidades e raças. Mas o hospício não
é utilizado para o ensino, e além disto os médicos tem tudo a seu
cargo: a visita, o livro de farmácia, as operações de pequena
cirurgia, o exame das urinas; e depara-se-lhes nas salas, onde não
exercem autoridade direta, uma confusão de doentes de todas as
espécies, meninas orfãs, velhos, aleijados, cegos, etc., confusão
prejudicial a todos os respeitos.
Posto que eu seja sempre odioso, como nunca se
conhece bem senão o que se passa conosco, permita-se-nos aduzir
ainda alguns fatos pessoais.
O conselheiro Sinimbú, quando ministro da
Agricultura, determinou em 1879 o estabelecimento de um
laboratório de fisiologia experimental no Museu, e alguns meses
depois o senador João Alfredo obteve do Senado a votação do
crédito preciso.
Assim provida tão útil instituição com os convenientes
meios de trabalho, pensavam os nossos colaboradores e nós que só
nos restava trabalhar; mas tivemos de gastar muitos meses para
redigir e conseguir que fosse aceito um regulamento; depois
tivemos de fazer relatórios, ofícios, pedidos, emfim de encher o
papelório próprio de uma repartição administrativa.
Sendo absolutamente gratuitas as funções de director
com que fomos honrado, abstivemo-nos, a contar do segundo ano,
de ordenar qualquer despesa, porquanto ao sub-director incumbia,
como na Europa, a parte, para assim dizer, administrativa. Parecia
que, passado o período de difícil começo, esta modesta instituição
poderia funcionar regularmente; entretanto eis alguns dos fatos do
último ano. Em junho de 1883, importante parte dos recursos do
laboratório foi-lhe tirada, sem aviso prévio, para cobrir o déficit de
serviços orçamentariamente distintos. Os trabalhos do ano de
1884 ficaram assim comprometidos, porque suportam parte da
despesa do ano passado, e não se pode levar a efeito uma útil
262
publicação que já estava preparada – a reunião, em volume, dos
trabalhos do laboratório. Depois, no mês de julho ordenou-se que
se realizasse, por hasta pública, o fornecimento de animais e sua
nutrição, como se fosse possível prever o número de porquinhos da
Índia, coelhos, galinhas, que seria necessário em cada dia, e o
modo pelo qual deviam ser nutridos tais animais. Para concluir,
referiremos um último incidente. Este laboratório, como os da
Europa, tinha entre o seu pessoal médicos que, exercendo clínica
limitada, buscam em múltiplas ocupações científicas os meios de
existência; mas um decreto sobre a acumulação dos empregos veio
perturbar tudo. Há quatro meses este decreto foi considerado sem
aplicação ao subdiretor, e todavia subsiste quanto aos assistentes.
Daí a desorganização do pessoal.
Perguntamos a todos os que sabem o que são pesquisas
científicas se é possível trabalhar com proveito no meio de
semelhantes embaraços, e de que serve organizar meios práticos se
pois são quase inutilizados.
Estamos pronto a reconhecer que estes fatos não
dependem de ninguém, e os citamos como exemplos de um antigo
sistema que convém modificar.
Nossos colegas brasileiros fazem as mesmas queixas; mas
talvez ainda sofram mais, porque a maior parte de seus
laboratórios não tem verba especial. Entretanto, se compararmos o
orçamento de que dispõem Vulpian, Brown-Sequerd, Ranvier,
com o custeio médico de um laboratório da Faculdade de
Medicina ou da Escola Politécnica, veremos com admiração que
ao Brasil ainda neste ponto pertence a primazia. Aqui gasta-se
com instrumentos, aquisições diversas, organizações sucessivas;
mas sendo obrigado em cada experiência nova a assinar papelada e
a fazer pedidos especiais para a compra de um animal, de um
pequeno instrumento, de um reativo esgotado, cuja necessidade
em regra é urgente, e por outro lado, além de poderem estes
pedidos ser aceitos ou recusados e devendo ser submetidos à
congregação sempre que excederem determinadas quantias, ocorre

263
muitas vezes que o professor, diante da dificuldade de preencher
sua missão, desanima e cinge-se ao mais simples: a lição oral.
Na Europa tudo isto é diferente. O laboratório tem às
vezes poucos recursos, mas esses recursos pertencem-lhe
exclusivamente: cada professor dispõe deles conforme lhe parece,
quanto é necessário, e unicamente cumpre-lhe justificar as
despesas. E então o laboratório torna-se um verdadeiro centro de
trabalho, onde os armários às vezes não se acham na melhor
ordem e os livros e papéis administrativos são muito reduzidos,
mas onde se formam discípulos e de produzem obras úteis ao país.
Os professores do ensino superior devem não somente
mandar nos seus laboratórios, mas também ter autonomia nos
seus cursos e no que respeita aos programas. Velhos regulamentos
que se poderiam citar, (na França, por exemplo), caíram
absolutamente em desuso. Na Faculdade de Medicina de Paris,
como no Museu ou no Colégio de França, os direitos das
congregações não vão até ao ponto de serem por estas embaraçados
os direitos de cada um dos seus membros no modo de
compreender o programa do curso, e entretanto tais congregações
são poderosas e respeitadas.
Duas palavras resumem o que fica dito: descentralização
dos laboratórios, liberdade dos lentes na escola. Eis o que se deve
realizar no ensino superior do Brasil, se se quiserem aproveitar
proficuamente os recursos já existentes.
Mas, para dar aos lentes a necessária liberdade e para
inspirar emulação aos alunos, outra questão, a das facilidades da
vida material, deve ser resolvida.
R. Lankester, presidindo recentemente a grande
associação das ciências britânicas, observava que "em toda a parte
o público toma interesse cada vez maior pela opinião dos sábios
sobre questões da indústria, de economia comercial ou de higiene
pública; entretanto, o mesmo público admira-se de que se
proponha uma remuneração que permita a tais sábios viver
decentemente, enquanto consagram a vida e as forças às pesquisas
científicas".
264
Disse muito bem o sábio inglês que as descobertas mais
importantes da biologia, como as da natureza da tuberculose ou da
ação os antisépticos, não podem vender-se no mercado, e que os
vulgarizadores e os autores de livros ordinariamente acabam por
deixar de ser investigadores.
Por conseguinte, para que as cadeiras sejam úteis, é
necessario dotá-las convenientemente. R. Lankester cita como
modelos as cadeiras alemãs, onde os ordenados progressivamente
aumentados podem chegar a 18.000 francos; poderia ter citado as
cadeiras de Paris, onde um professor da Faculdade percebe 15.000
francos, e deplora que os honorários que se pagam em Oxford
(17.500 a 20.000 francos) não sejam comuns a todas as cadeiras
superiores do Reino, em uma época em que pequenos negociantes
ou industriais adquirem facilmente grandes cabedais. Que diria
este professor, se tivesse conhecimento de que no Brasil, onde a
vida é carissima, os ordenados dos lentes do ensino superior são de
4:800$000, o que equivale a 8.000 francos na Inglaterra ou na
Alemanha?
Se alguns dos professores contratados, que as
dificuldades administrativas não desanimaram, têm prestado
serviços no Observatório, na Escola de Minas, na Escola
Politécnica, e em geral ao país, deve-se isto em grande parte a
terem eles honorários que lhes permitem consagrar-se
exclusivamente às indagações científicas, e é fora de dúvida que,
enquanto estiverem tão mal retribuídos, os lentes de que tratamos
descurarão o ensino para procurarem em ocupações não oficiais os
meios de vida complementares, que seus conhecimentos lhes
permitem obter.
Não falamos assim por espírito de classe ou por
preconceitos profissionais. Os interesses dos sábios ou mesmo de
cada ensino pouco valem por si próprios, mas não se deve esquecer
que eles tornam-se capitais, quando se referem ao estado de
adiantamento moral, higiênico e industrial de toda a nação, e a
questão pecuniária deve ser considerada sob o mesmo ponto de
vista geral que as outras questões.
265
Assim, porque em todos os países os hospitais são tão
largamente franqueados a todos os médicos? Certamente porque a
multiplicidade e a combinação dos ensinos asseguram ao doente
tratamento mais completo; mas sobretudo porque importa a todos
os habitantes das cidades e dos campos, ricos e pobres, que o
médico tenha aprendido, no tempo de estudante, a tratar os
doentes. Por exemplo, se devemos deplorar que no Brasil as
clínicas de moléstias de mulheres e de partos não estejam
suficientemente organizadas25, não é tanto por causa do ensino
dos médicos, o qual acabará sempre por aperfeiçoar-se na prática,
mas sim por causa da saúde das milhares de mulheres que vivem
nas fazendas, nas povoações, sem meios de comunicação, e que
forçosamente são confiadas aos médicos principiantes, aos quais
não foi dado adquirir a prática necessária durante o tirocinio
acadêmico. Nestes casos, a vida da doente ou a do filho poderá ser
comprometida, por não se ter deixado que mestres hábeis
ensinassem sem perigo para ninguém, em hospitais
cuidadosamente organizados.
Este exemplo prova exuberantemente a utilidade prática
das ciências biológicas: vamos citar outros que, conquanto menos
diretos, são igualmente convincentes.
Quando em um laboratório se fazem pesquisas sobre a
febre amarela, o beribéri, a tuberculose; quando se procuram
determinar as propriedades de diversas plantas medicinais, algumas
das quais, como a ipecacaunha e o jaborandi, já constituem
produtos de exportação; quando se perscrutam as propriedades dos
venenos animais ou as funções fisiológicas e psicológicas do
cérebro, os biologistas trabalham para o bem geral, do mesmo
modo que os químicos e os médicos, sem terem com eles a

25
O presente artigo foi escrito antes da recente decisão do ilustre provedor da
Santa Casa de Misericordia do Rio de Janeiro. Em presença deste ato,
lembramos mais uma vez que não criticamos uma ou outra administração, mas
sim um inveterado estado de coisas.

266
perspectiva, mais ou menos imediata, de uma remuneração
industrial ou clínica.
Não é, portanto, somente com a mira no progresso
moral, é tambem com o fito mais direto de progresso econômico,
que todos os grandes países devem proceder por si mesmos ao
estudo das questões científicas. Quanto ao Brasil, seria extensa a
lista dos problemas de paleontologia, de botânica industrial, de
antropologia, de cruzamento raças, de criação, de aclimação e de
colonização, os quais tão diretamente lhe importa resolver, e
exigem observações científicas sérias e seguidas.
O caminho está aberto. Todos devem ter interesse em
torná-lo mais largo e mais fácil. Já se fez muito; é preciso fazer
ainda mais, e sobretudo é necessário progredir com a ordem e o
método; depois de ter dotado os laboratórios, cumpre animar os
professores, e dar-lhes os meios de tornarem-se úteis.
A missão da Liga do Ensino é de propaganda e quase de
fiscalização. Pela nossa parte, no desempenho do modesto papel
que nos cabe no seio desta associação, procuramos dizer que se nos
afigura ser a verdade.
Luiz Couty

CHRONICA

A 9 do mês que hoje finda celebrou a Liga do Ensino a


primeira sessão do corrente ano, sob a presidência do sr. dr. Ruy
Barboza.
Em sentidas frases memorou ele a perda que sofrera a
associação com o passamento do 2º secretário bacharel José Pedro
da Silva Maia, a quem nestas mesmas colunas26 já procurámos
pagar o nosso tributo de profunda saudade; e, por proposta do sr.
Fausto Barreto, resolveu-se mencionar na ata as condolências que
em todos despertara tão triste sucesso.

26
V. a Revista de fevereiro de 1884. nº 2 – Chronica.

267
Para preencher a vaga de sócio-diretor, ocasionada pelo
ôbito do bacharel Silva Maia, foi eleito o dr. Joaquim Pelino da
Costa Guedes, a cujo cargo se acha na Escola Normal da Côrte o
ensino da pedagogia. A vaga de 2º secretário ficou preenchida pelo
sr. Joaquim Borges Carneiro.
Na constituição da Liga figura, entre os meios de
estudar e melhorar as condições do ensino entre nós, a nomeação
de comissões, conforme a inscrição dos sócios para os trabalhos da
sociedade.
Por competir ao presidente tal nomeação, coube-lhe
providenciar afim de que tenha começo aquele importante
inquérito. Formulados os quesitos que pareceram mais urgentes,
fez-se a designação dos sócios, consultando-se em geral as aptidões
especiais.
Eis os quesitos, diante dos quais se declaram os nomes
dos comissionados:
1º Quais as condições presentes das escolas primárias do
município da côrte, em relação à higiene escolar. Membros da
comissão: drs. Hilario de Gouvêa, João Paulo, Couty, Moncorvo
de Figueiredo e Silva Araujo.
2º Quais os processos pedagógicos da escola primária do
município da côrte; circunstâncias e causas do domínio da rotina
no ensino elementar. Que aplicação e desenvolvimento tem tido
entre nós os métodos modernos de cultura na escola? Quid acerca
do uso do método intuitivo e lições das coisas? Membros da
comissão: dr. Souza Bandeira Filho, dr. Menezes Vieira e Silveira
Caldeira.
3º Estado e vícios atuais do ensino da leitura nas escolas
primárias do município da côrte. Membros da comissão: dr.
Zeferino Candido, dr. Ferreira Jacobina e Hilario Ribeiro.
4º Condição atual do ensino do desenho na escola
primária. Em que proporções se distribui. Inconvenientes da sua
falta na educação comum, verificados pelo exame das
circunstâncias entre nós. Será o chamado desenho que entre nós
se ensina em algumas escolas aquele a que as idéas do nosso tempo
268
assinalam uma importância fundamental na escola elementar?
Membros da comissão: comendador Bethencourt da Silva e dr.
Ferreira Jacobina.
5º Ensino do catecismo nas escolas primárias desta
capital; descrição dele; livros por onde se faz; suas relações e
resultados para com a formação do caráter, a primeira orientação
da inteligência e a fisiologia do cérebro na idade decisiva do seu
desenvolvimento. Membros da comissão: drs. Ferreira de Araujo e
Couty.
6º Estado do ensino moral no município da côrte:
caracteres e causas de sua imprestabilidade. Membros da comissão:
drs. Sancho Pimentel, Souza Bandeira Filho e Pelino Guedes.
7º Do ensino secundário do sexo feminino no município
da côrte. Status quo. Desiderata. Apropriação das idéias
contemporâneas às condições da nossa sociedade. Membros da
comissão: conselheiro Dantas Rodolpho, Fausto Barreto e Carlos
Jansen.
O sr. dr. Ruy Barbosa tomará parte nos trabalhos da 4ª
e da 5ª comissão.
Os comissionados procuram habilitar-se com os meios
necessários afim de instituirem o exame que lhes foi cometido, e
brevemente terão de proceder às diligências indispensáveis, para o
que a associação confia não só que as autoridades, como os
diretores dos estabelecimentos particulares e os professores
públicos, lhes proporcionem todas as facilidades, auxiliando-os no
que respeita à exata verificação das condições do ensino.
Reconhecidos os males que desnaturam e atrofiam a instrução,
poder-se-á por uma propaganda sincera e esclarecida, fundada na
verdade, conseguir que se conserve o que efectivamente há
recomendável em nossas instituições; que se lhes supram as
lacunas e se lhes extirpem os vícios; finalmente que sejam dotadas
com os melhoramentos que as tornem profícuas.
Não faremos a ninguém a injustiça de supor que os
esforços neste útil empenho sejam embaraçados pela má vontade,
ou pela vã pretensão de ocultarem-se os defeitos existentes. Não é
269
possível que as classes e os indivíduos a quem mais diretamente
cabe promover o melhoramento do ensino criem empecilhos a tão
prometedora empresa; ao contrário, só nutrimos a esperança de
que todos cumprirão o seu dever, colocando acima de condenáveis
vaidades e interessiculos o magno interesse que se liga à honra e à
prosperidade nacional.
De não menor alcance foi a providência que tomamos
em cumprimentos do art. 5º do nosso estatuto. Referimo-nos à
nomeação de delegados nas províncias, para nos auxiliarem no
conseguimento de informações sobre as coisas da instrução e
diligenciarem nas localidades respectivas os mesmos cometimentos
a que nos abalançamos.
Assim foram nomeados: na província do Ceará, o dr.
Joaquim Catunda; na de Pernambuco, o dr. José Hygino Duarte
Pereira; na da Bahia, o dr. Antonio Pacifico Pereira; na de S.
Paulo, o dr. Rangel Pestana; na de Minas Gerais, o dr Henrique
Gorceix, na do Rio Grande do Sul, o dr. Apolinário Porto Alegre.
Estas escolhas, que recaíram em homens de notáveis
talentos, exprimem o reconhecimento das suas idéias adiantadas e
concordes com as que determinaram a fundação da nossa
sociedade; da sua competência em matéria de instrução, e dos
serviços que lhes deve a causa do ensino, a qual em toda a parte
iliga os homens de melhor vontade e mais capazes de aturado labor
e fervorosa dedicação.
Não é lícito duvidar de que a resolução a que aludimos
seja fecunda em preciosas contribuições e interessantes resultados
para os nossos fins. Os que entre nós se votam ao estudo das
condições da pública intrução e das questões que se lhe prendem
lutam com invencíveis dificuldades para conhecer o estado de
coisas nas diferentes províncias. Neste particular manda a justiça
reconheçamos que só possuímos o que se encontra nas publicações
oficiais, embora lacunosas e destituídas de continuidade, além de
outras imperfeições provenientes da incompetência daqueles a
quem de ordinário cabe a execução de tais trabalhos. Mas é certo
que quase tudo nos falta: as estatisticas do ensino raro figuram nos
270
documentos oficiais; as que existem, incompletas e deficientes,
não infundem confiança; o próprio conhecimento das instituições
é difícil; e quanto aos programas e aos métodos, é absoluta a
ausência de dados e informações. Se, graças aos trabalhos dos
nossos colaboradores nas províncias, alcançarmos, de par com a
satisfação dos nossos intentos gerais, obviar a todos esses
inconvenientes, nos daremos pressa a divulgar tão proveitosos
subsídios, e teremos assim cumprido um dos nossos mais
veementes anelos, o de substituir à incerteza e ao indefinido, de
que se resentem os negócios relativos à instrução em todo o
Império, o conhecimento assim das necessidades, como dos
progressos que se verificarem mediante exame circunspecto e
competente.
Não foram os fatos que ficam relatados os únicos que à
reunião do dia 9 imprimiram caráter verdadeiramente importante.
O artigo que sobre as leis do ensino, a propósito dos
Apuntes para um curso de pedagogia do sr. F. A.
"Já antes, com grande satisfação me havia ocupado dos
trabalhos legislativos do dr. Ruy Barboza, destinados a reformar a
instrução pública no Brasil, e tinha experimentado o receio de que
tão plausíveis tentativas se malograssem, em parte por falta de um
povo preparado para realizá-las na vida prática do ensino. Ao lado
das leis reformadoras, que se fundam somente na opinião e no
saber de poucos, há dois perigos: 1º que não se executem à míngua
de aptidões e convições; 2º que sejam derogadas antes de muito
pelo natural influxo que exercem no parlamento as maiorias não
preparadas para sustentá-las. Essas tentativas de reforma estão
condenadas a um futuro precário, sempre que não as precede ou,
pelo menos, acompanha, uma propaganda ativa no seio de todas as
classes populares, porque é o povo que deve levá-las a efeito e
apoiá-las eficazmente quando se manifestam intentos reacionários.
A Liga do Ensino vem desempenhar no Brasil este
grande papel. Era absolutamente necessária, desde que entraram
na Câmara dos Deputados os notáveis projetos do dr. Ruy
Barboza. Sa a Liga fôr feliz na sua empresa, dir-se-á com justiça
271
no futuro: que ao honrado deputado se deve a iniciativa da
reforma e o seu êxito. Autorizam-me a formular este prognóstico
o exemplo do que fizeram análogas instituições em países como a
Bélgica, a Inglaterra, a Itália, a França, a Espanha, o Uruguai,
etc. Aqui a reforma escolar foi começada e preparada, com exíguos
recursos, pela Sociedade de amigos de educação popular, em meio
de um público indiferente. Dentro de poucos anos, formou
opinião nas classes instruídas; pouco depois impôs as suas idéias
ao governo, e mais tarde assistiu várias vezes à victoria da opinião
popular contra os retrógrados, que, a começar pelo parlamento,
ameaçaram destruir em um instante a obra tão laboriosamente
levantada.
"Faço votos para que os seus compatriotas compreendam
desde logo a significação altamente civilizadora da Liga do Ensino,
e porque os trabalhos desta benemérita instituição dêm depressa os
mais lisonjeiros resultados.
"Se me fosse permitido, faria uma indicação: é que se
robusteçam as relações que se criarem por meios da Revista com as
sociedades análogas do Rio da Prata. Como fundamente insinua
em seu artigo sobre as leis do ensino, o isolamento restringe a ação
dos indivíduos. Não só a dos indivíduos, como também a das
associações científicas e literárias, acrescento eu. As mútuas
relações enriqueceriam as aptidões e a experiência de cada uma
com a experiência e as aptidões das outras, e poderiam adquirir tal
desenvolvimento estes vínculos, que seria possível adotar regras de
proceder uniformes em relação a acontecimentos ou situações que
interessem mais ou menos vivamente ao porvir dos povos que se
estendem entre o Atlântico e os Andes, e, poventura, de toda a
América Latina. Creio que, se a Liga adotasse este pensamento, a
ele aderiria também a Sociedade de amigos da educação popular, a
que pertenço. É de esperar que não tardariam a imitar-nos as
outras associações semelhantes deste país e da República da
Argentina. Quantas empresas escolares poderiam assim realizar-se,
que seriam irrealizáveis no isolamento das forças?

272
"Seja como for, ofereço à Liga a minha cooperação
pessoal, apesar da sua pouquíssima importância, para o caso de
que de alguma coisa possa servir-lhe".
Esta communicação foi recebida, como merecia com as
mais vivas mostras de satisfação.
O modo cavalheiroso porque nós é significado o apoio
que tanto nos honra cativa o melhor da nossa gratidão. O dr.
Berra é um homem de elevado valor literário, a quem causa a
instrução no Uruguai e em geral os estudos pedagógicos devem
notáveis serviços. Para nós o seu concurso é o mais valioso que
poderíamos desejar entre os nossos vizinhos.
As vantagens desse auxílio já se fazem sentir: depois de
escrita a carta de que transcrevemos os trechos que se leram,
reuniu-se a comissão diretora da Sociedade de amigos da educação
popular, e, por proposta do dr. Berra, resolveu ela enviar as suas
principais publicações à Liga do Ensino. Gratos à gentileza que nos
dispensam o abalisado pedagogista e seus consócios, procuraremos
retribuir esses testemunhos de apreço, que em alto garu nos
obrigam, e não pouparemos esforços para desenvolver e estreitar as
relações cuja convivência foi tão definida e aconselhada pelo dr.
Berra.
Esta crônica não conterá apenas os fatos que pertencem
à vida íntima da Liga do Ensino. Felizmente assinalaram o mê
que ainda finda acontecimentos dignos de nota em referência à
causa a que a nossa associação procura ser útil.
Folgamos de mencionar o bom serviço prestado com a
reforma do regulamento das conferências pedagógicas dos
professores primários, propsta pelo solicito sr. Inspector Geral.
É ocioso encarecer as vantagens que essa instrução
ofereçe para impulsionar-se o progresso dos nossos professores, os
quais tudo devem temer do isolamento. Mas, afim de conseguir
tão momentoso resultado, releva se consultem as condições
daquela classe e de desvele a administração em que as conferências
sirvam para compelir o professor ao estudo e ao trabalho.

273
A estes ditames da experiência satisfazem as instruções
de 11 de março.
O novo regimento consagra benéficas inovações: - a da
publicação dos trabalhos; a de associarem-se a estes, além dos
adjuntos as escolas públicas e dos professores da Escola Normal,
um dos quais será eleito pela congregação afim de intervir no
exame das teses de pedagogia, os membros do Conselho Diretor e
os delegados literários; a de estebelecerem-se interessantes sessões
de trabalhos práticos, que consistirão na direção de uma classe e
na explicação do emprego e das vantagens dos instrumentos mais
aperfeiçoados para o ensino, dilatando-se por outro lado a parte
reservada aos temas pedagógicos, mediante a faculdade que tem o
professor já de apresentar dissertações escritas a respeito de
observações pessoais feitas nas escolas ou sobre questões do ensino,
independentemente da discussão dos pontos escolhidos pelo
Conselho Director, já de proceder à exposição do invento ou do
aperfeiçoamento de qualquer aparelho; emfim a da concessão de
prêmios aos professores públicos que mais se distinguirem.
Adotamos convictamente a idéia de prêmio, em que
muito confiamos para se aviventarem as conferências, e que se
duvida é mais um adminículo com que se favorece a carreira do
professorado.
As medidas por meio das quais se ampliou o caráter
prático dos trabalhos hão de ser muito profícuas ao
aperfeiçoamento do professor, pois correspondem ao principal
objetivo da instrução – que cada um se aproveite da experiência de
todos.
A admissão de autoridades do ensino, e dos professores
da Escola Normal, nas conferências pedagógicas, pelo menos em
tese promete a vantagem de ilustrarem-se os debates e satisfaz a
conveniência, consultada pela legislação de outros países, de
contratarem-se, por meio das contribuições experimentais, que ao
professor imcumbem, as dos cultores teóricos da pedagogia,
estabelecendo-se na prática a orientação científica que deve
produzir a transformação do ensino.
274
Quanto à publicação de trabalhos, servirá para estimular
o professor, cujos esforços não é justo deixem de ser conhecidos
fora do recinto das conferências, e permitirá que se utilize no
ensino das províncias o que realmente for digno disso.
A certeza da publicidade advertirá os professores sobre a
conveniência de enunciarem as suas idéias e observações, pelo
menos com clareza, ordem e correção, - conveniência a que em
geral não atenderam os que tomaram parte nas conferências de
dezembro do ano passado, das quais deu conta no último numero
da "Revista" o sócio da Liga que se imcumbiu de acompanhá-las27.
A tal respeito não deixam nenhuma dúvida os trabalhos constantes
do impresso que temos à vista, alguns dos quais são o mais
convincente documento da ignorância dos seus autores nos
conhecimentos elementares que a aula primária devem ministrar-
se às crianças.
A providência da publicação, portanto, produzirá a
vantagem de aconselhar o silêncio aos chamados professores que
não podem arrostar a crítica, e assim se evitará que o magistério,
onde sem dúvida se encontram cidadãos inteligentes e habilitados,
continue a desmoralizar-se com as revelações de um atraso
vergonhoso e de um racismo incurável, como as que se
presenciaram na ocasião aludida, e constam daquele impresso.
Em relação a tais professores nada valem as
conferências, as quais, no justissimo conceito de Siciliani, longe
de formarem professores, não fazem mais do que promover nos
que são dignos deste nome a atividade prática e teórica, e incutir-
lhes na consciência a dignidade, a alteza e o valor do mestre na
sociedade civil; em uma palavra, avivam o pensamento, despertam
a mente, acendem e excitam o entendimento, mas, não o suprem,
e menos o criam.
Desde que as conferências se tornaram sérias, é natural
que em seus trabalhos tomem parte somente os professores
27
V. a Revista de fevereiro de 1884. – Conferências pedagógicas – 1883 – por
Balduino Coelho.

275
conscienciosos e habiliatdos. Neste sentido formamos votos para
que em breve prazo possam os resultados que se colherem daquelle
precioso orgão do progresso da escola não só aconselhar a
administração a que amiúde as reuniões dos professores, para sua
mais ativa cultura e troca de idéias, mas ainda justificar os
encargos que o estado, logo que possível for, deve assumir criando
a biblioteca pedagógica, complemento indispensável à instrução.
Ocupar-nos-emos agora com o regulamento de 28 de
março, que, também sobre proposta do ilustrado sr. Inspetor
Geral, foi expedido pelo ministério do Império para os exercícios
práticos de pedagogia da denominada Escola Normal.
Veio ele em boa hora preencher uma grave lacuna.
Desde o ano de 1882, quando começou ali o estudo da pedagogia,
tem-se deixado de fazer aqueles exercícios, os quais até certo ponto
serviriam para atenuar a falta das escolas anexas, que em toda a
parte se consideram indispensáveis à instrução dada pelos
institutos normais.
O regulamento impõe aos alunos da aula de pedagogia a
obrigação de assistirem, em cada um dos seis primeiros meses do
curso, durante cinco dias consecutivos, aos trabalhos das escolas,
pelas quais forem distribuídos, conforme os sexos. No último dia
da semana, reunidos os normalistas de ambos os sexos em uma das
escolas, um deles dará a lição prática, e, depois de se retirarem os
escolares, terão lugar as observações dos outros alunos-mestres
sobre ela, a defesa do normalista que houver dado a lição e
finalmente o resumo das observações, feito pelo professor de
pedagogia, que procederá a crítica das diferentes opiniões e demais
circunstâncias que se houverem produzido. O mesmo professor
distribuirá o serviço de maneira que, durante aqueles seis meses,
todos dos alunos-mestres se sujeitem às lições práticas e estas
versem sobre todas as disciplinas do ensino primário. Nos dois
últimos meses do curso só haverá, em cada mês uma lição prática;
mas os normalistas serão obrigados a trabalhar ativamente nas
escolas duas semanas por mês, dirigindo sob sua responsabilidade
as classes que lhes forem confiadas pelo professor de pedagogia, o
276
qual efetuará a distribuição de forma que, ultimados os exercícios,
cada aluno-mestre tenha lecionado em todas.
Estas providências são acompanhadas não só das regras
relativas quer às obrigações do professor de pedagogia, quer às do
catedrático da escola anexa, como das demais disposições
adequadas ao estado actual. O regulamento figura-se-nos o melhor
possível em presença de semelhante estado, que representa uma
triste realidade. Felizmente o governo parece estar convencido
disto, e a circunstância de ter sido expedido com caráter provisório
o ato de que nos ocupamos autoriza a crença de que se cogita de
criar uma instituição que sirva para formar professores.
Para tão urgente fundação felizmente já estão
aparelhados elementos aproveitáveis. Além dos relatórios presentes
ao ministério do Império pelo sr. dr. Souza Bandeira Filho, no
desempenho de um dos encargos que lhe foram confiados em sua
viagem à Europa; além do parecer da comissão nomeada pelo sr.
Leão Velloso, da qual fizeram parte o conselheiro Dantas
Rodolpho, o dr. Ruy Barboza e Balduino Coelho, e o ex-director
da Escola dr. Benjamin C. B. de Magalhães, existem os trabalhos
que sobre o mesmo assumto se elaboraram com destino ao
malogrado Congresso de Instrução. Brevemente haverá para o
estudo da matéria novos subsídios com que tem de contribuir os
cavalheiros a quem a presidência da Liga incumbiu o exame do
estado e carateres do ensino normal na côrte. Diante dos
testemunhos acumulados contra a monstruosidade da criação que
anseamos ver substituída por outra que ofereça as condições
específicas do ensino profissional, é de esperar que cessem
hesitações que porventura ainda subsistirem, e que o governo,
pronunciando-se sobre esta parte do projeto do sr. dr. Ruy
Barboza, submetido à Câmara dos Deputados, obtenha do Poder
Legislastivo a autorização de que carecer afim de começar a
instante transformação do professorado primário.
Não devemos duvidar das excelentes intenções e dos
esforços da administração para livrar-nos das demoras que se
opõem ao nosso progresso, sobretudo depois de atos, como os que
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acabemos de registrar, com que foram atendidas necessidades
importantes, e nos quais felizmente se observaram os bons
princípios.
Deste interesse, que muito nos apraz reconhecer nos
poderes públicos, ainda aqui consignaremos mais um testemunho,
digno de apreço.
Tendo o governo da Inglaterra convidado o Brasil para
concorrer à Exposição internacional de saúde e educação que em
maio próximo se efetuará na cidade de Londres, em South
Kensington, não aconteceu como de outras ocasiões, em que se
deixaram de aproveitar, com evidente detrimento dos interesses
nacionais, os magníficos ensejos que por meios análogos se nos
ofereciam para darmos a conhecer às nações civilizadas o que
possuímos e vamos realizando, e isto sem embargo das naturais
condições de inferioridade que em muitos casos nos viessem a
caber. Com efeito, o governo do Brasil aquiesceu aquele convite, e
em 29 de fevereiro último providenciou para que se cologissem os
elementos necessários à nossa representação. Dos trabalhos
relativos à parte educativa ficou encarregada a Inspetoria Geral da
instrucção; os atinentes à parte sanitária foram cometidos à Junta
Central de higiene pública.
Para organizarem a seção brasileira na Exposição, o
governo nomeou os nossos distintos compatriotas, que se acham
na Europa, dr. Joaquim Nabuco e lente da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro dr. Pedro Affonso de Carvalho Franco, os quais
tem de servir sob a presidència do nosso Ministro em Londres sr.
Barão de Penedo.
Devendo os objetos achar-se até 15 de abril na capital do
reino unido, reduziu-se a vinte dias o tempo dentro do qual
cumpria preparar o que houvéssemos de remeter. Presumimos que,
em razão da angústia deste prazo, nada se conseguiu organizar na
parte relativa à saúde. Quanto à da educação, felizmente a
Inspetoria Geral pode desempenhar-se do encargo que recebera.
Colecionaram-se os objetos e aparelhos para o ensino, em uso nos
estabelecimentos públicos e em alguns estabelecimentos
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particulares da côrte, e igualmente os trabalhos dos alunos;
reuniram-se as obras adotadas nas aulas, e as plantas ou
fotographias das principais casas de escolas daqui e de algumas
províncias. A remessa das coleções realizou-se no dia 24 deste
mês, a bordo do vapor Guadiana, e consta-nos que já se acha
organizada pelo infatigável sr. Inspetor Geral a memória descritiva
dos objetos, onde se encontram informações que habilitam a
melhor ajuizar dos ensinos que serão representados na Exposição.
Sem dúvida o minguado contingente com que nos
apresentaremos em South Kensington não dará idéia cabal do
nosso estado, mas não é menos certo que a nossa posição entre as
nações cultas nos impunha o dever de não recusarmos o convite
que nos foi dirigido; e ante esta consideração, que a nosso ver
sobreleva a quantas se inspirem na expectação de grangearias e
preeminências internacionais, merece o nosso aplauso o
procedimento do governo e dos que auxiliaram no pensamento de
que o Brasil não deixasse vazio o lugar honroso que lhe foi
reservado na festa e ciência e do trabalho com que brevemente
veremos abrilhantar-se os fatos da civilização.

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A revista História da Educação aceita para publicação


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originados de estudos teóricos, pesquisas, reflexões metodológicas e
discussões em geral, pertinentes ao campo historiográfico. Os
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em português ou espanhol. A revista publica, também, trabalhos
encomendados e traduções de artigos que possam contribuir
significativamente na área da História da Educação. Possui,
ainda, duas outras sessões: resenhas e documentos. A primeira
apresenta o conteúdo e comentários sobre publicações recentes ou
reconhecidas academicamente. A sessão documentos publica
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Conselho Editorial e/ou a pareceristas ad hoc. A seleção dos
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História da Educação e à linha editorial da revista, a originalidade
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resenha é de 17.000 caracteres (contando espaços). Os resumos
em português, inglês e espanhol devem ter no máximo, cada um
deles, 790 caracteres (contando espaços).

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 281-282, Maio/Ago 2007


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