Você está na página 1de 10

INTERAÇÃO EM AULAS DE LEITURA: O DISCURSO

POLIFÔNICO DO PROFESSOR1

ACIR MÁRIO KARWOSKI


Mestrado em Lingüística Aplicada
Universidade de Taubaté

RESUMO

Qual o papel do professor e seu discurso na interação com os alunos em aula de leitura? Para responder a
essa pergunta, realizamos um trabalho de observação de como professores do Ensino Médio introduzem,
desenvolvem e encerram suas aulas de leitura para, a partir da transcrição dos dados, descrever a
ocorrência da polifonia, isto é, vozes que polemizam entre si, se completam ou respondem umas às outras;
as diversas perspectivas, pontos de vista que se fazem presentes, que se deixam falar nos enunciados
produzidos na interação verbal (cf. Bakhtin, 1929; Ducrot, 1984). A partir das análises, podemos afirmar
que coexistem no discurso do professor duas perspectivas polifônicas: a) perspectiva polifônica
proveniente da formação pessoal e sócio-cultural, ou seja, os juízos de valor, depoimentos pessoais,
crenças, convicções étnico-religiosas, políticas e culturais; b) perspectiva polifônica proveniente da
formação escolar e profissional, ou seja, a consciência de autoridade e do imaginário do papel ideal do
professor. Esse cruzamento de vozes, muitas vezes, conduz os alunos ao silenciamento, isto é, a sua total
subordinação ao discurso do professor, sem possibilidade de interlocução. O professor precisa permitir
que o aluno se utilize do discurso para expressar a sua contrapalavra, buscando o sentido do texto que é
construído na compreensão responsiva, na interação verbal, no processo dialógico. As atividades de sala
de aula devem ser interativas, de confrontos de saberes e conhecimentos acumulados socialmente, e não
meras atividades cristalizadas de subordinação ao texto didático e ou provocadoras do silenciamento das
vozes dos alunos.

PALAVRAS-CHAVE: interação; aulas de leitura; polifonia.

INTRODUÇÃO O presente artigo constitui-se na versão


sintetizada da pesquisa que empreendemos no
As aulas de leitura não têm levado os Curso de Mestrado em Lingüística Aplicada na
alunos à construção do conhecimento porque há Universidade de Taubaté. Para realizar o
o predomínio da voz do professor em detrimento trabalho, procuramos observar o papel do
das vozes dos alunos. A aula repousa no saber já professor de Língua Portuguesa durante aulas de
cristalizado, isto é, há uma grande dependência leitura e a partir daí descrever como introduz,
em relação às informações contidas no texto desenvolve e encerra sua aula. Verificamos
didático levado para a sala de aula. também o modo pelo qual professor e alunos se
posicionam/ou são posicionados no discurso
escolar e descrevemos a ocorrência da polifonia
no discurso do professor e alunos no
1 Dissertação de Mestrado em Lingüística Aplicada apresentada ao desenvolvimento do trabalho com a leitura em
Departamento de Ciências Sociais e Letras da Universidade de
Taubaté, sob orientação da professora Dra. Eliana Vianna Brito.
sala de aula, a partir da concepção de linguagem
como o lugar da interação verbal proposta por daqueles que, pela interação verbal, procuram
Bakhtin (1997). recuperar os significados que se encontram
Realizamos um trabalho de observação acumulados no discurso produzido a partir do
em sala de aula, na tentativa de compreender os contexto histórico, social e cultural dos
processos de ensinar e aprender, onde atores interlocutores dialogicamente constituídos.
reais - professores e alunos - interagem na É na interação verbal que ocorre a
construção do conhecimento, com a gravação de combinação socialmente partilhada de dados
três aulas de leitura propriamente ditas, em um perceptivos (signos) em sistemas simbólicos de
Colégio da Rede Pública do Ensino Médio, em linguagem. Dessa forma, as atividades de sala de
classes de 1ª série do período noturno, no Sul do aula proporcionam ao aluno a oportunidade de
Estado do Paraná. Fizemos também observações refletir sobre o uso da linguagem, constituindo-
da sala de aula, bem como entrevistas para coleta se em mais que uma necessidade: a garantia de
de registros das professoras envolvidas na uma efetiva participação na vida social.
pesquisa, procurando verificar seus hábitos de
estudo e preparação de aula e a formação A reflexão sobre o
didático-pedagógica, a fim de explicitar qual a caráter histórico-social de determinada
concepção acerca da leitura adotada pelas manifestação da linguagem pode
professoras. permitir o entendimento das razões do
uso, da valoração, da
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA representatividade, dos interesses
sociais colocados em jogo, das escolhas
Parâmetros Curriculares Nacionais, Leitura e de atribuição de sentidos, ou seja, a
Interação. consciência do poder constitutivo da
linguagem (PCNEM, 1999, p. 127).
As mudanças qualitativas propostas Na concepção bakhtiniana de interação
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do verbal, o leitor, através do discurso, constituído
Ensino Médio (doravante PCNEM), visam pela alteridade, opõe uma contrapalavra ao autor,
“buscar a plena formação do aluno para sendo o sentido do texto construído na
participar do convívio social de maneira crítica, compreensão responsiva. É no acontecimento da
a partir de competências e habilidades que enunciação que a palavra se torna concreta,
estruturam o trabalho com a linguagem”, pois, como signo ideológico, e se transforma de
sendo esta uma herança social, reprodutora de acordo com o contexto em que surge. É no
sentidos e possibilitadora da interação entre os acontecimento da enunciação que ocorre a
sujeitos, através do discurso, “constitui-se numa polifonia, pois, segundo Bakhtin (1997,p. 113)
das principais práticas sociais.” Segundo os “a palavra é o produto da relação recíproca entre
PCNEM (1999, p. 125-126), falante e ouvinte, emissor e receptor. Cada
nas práticas sociais, o homem cria a palavra expressa o “um” em relação com o
linguagem verbal, a fala. Na e com a “outro”. Eu me dou forma verbal a partir do
linguagem, o homem reproduz e ponto de vista da comunidade a que pertenço”.
transforma espaços produtivos. A Durante a leitura, o leitor depara-se com idéias
linguagem verbal é um sementeiro que podem refutar, confirmar e antecipar as
infinito de possibilidades de seleção e respostas e objetivos.
confrontos entre os agentes sociais Para Barros (1997), o dialogismo
coletivos. A linguagem verbal é um dos bakhtiniano define o texto como um “tecido de
meios que o homem possui para muitas vozes” ou de muitos textos ou discursos,
representar, organizar e transformar de que se entrecruzam, se completam, se respondem
forma específica o pensamento. umas às outras ou polemizam entre si no interior
As práticas sociais de uso da linguagem do texto.
possibilitam a produção de sentidos, isto é, Por outro lado, o dialogismo diz respeito
trocas de forças entre os interlocutores, ou, também às relações que se estabelecem entre o
conforme Bakhtin (1997), uma arena de luta eu e o outro nos processos discursivos
instaurados historicamente pelos sujeitos que, levando o aluno a compreender o processo de
por sua vez, instauram-se e são instaurados por construção dos sentidos produzidos
esses discursos. (BRAIT, 1997) dialogicamente no convívio social. Para a
Dessa forma, sendo a leitura um ato de efetivação desse objetivo, as atividades de sala
constituição do sentido, vive-se um conflito de de aula devem ser interativas, pois, segundo os
vozes, e não um ato de simples decodificação, Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
pois a linguagem é um fenômeno profundamente Médio, a interação é o que faz com que a
social, histórico e ideológico, numa relação linguagem seja comunicativa.
direta com a construção do sujeito, porque todo Portanto, os textos lidos em sala de aula
discurso se constitui na fronteira entre aquilo que “comunicam” de forma dialógica, sendo únicos
é seu e aquilo que é do outro. como enunciado, mas múltiplos enquanto
O ser social é, portanto, formado espaços para atribuição de sentidos.
hibridamente por discursos dialogicamente As atividades de leitura deixam de ser
conflitantes, pois, para Bakhtin (1997), a língua “interpretação” para se constituir em
é formada por variantes que estão relacionadas à “construção-negociação” de sentidos, pois,
questão do sujeito constituído social e
segundo Barros e Fiorin (1999), o teórico russo
ideologicamente pelo discurso heterogêneo, ou
Bakhtin “critica fortemente as análises parciais,
polifônico.
sejam elas internas ou externas, e prega a análise
A leitura de textos passa a ser a forma
do todo do texto: de sua organização, da
mais imediata de aquisição – confrontação de
interação verbal, do contexto ou do intertexto”.
sentidos acumulados historicamente pelo uso da
De acordo com os PCNEM (1999, p.
linguagem, pois, num mundo demarcado pela 140),
comunicação escrita em que a herança cultural, deve-se compreender o texto que nem
isto é, o saber acumulado historicamente pelas sempre se mostra, mascarado pelas
relações sociais, se apresenta em forma de estratégias discursivas e recursos
diversificados textos escritos, ao aluno cabe a utilizados para se dizer uma coisa que
tarefa de, orientado pelo seu professor, negociar procura “enganar” o interlocutor ou
os sentidos e os diferentes significados históricos subjugá-lo. Com, pela e na linguagem as
e culturais que lhe são apresentados nos textos sociedades se constroem e se destroem.
que lê, a partir do confronto de opiniões e pontos É com a língua que as significações da
de vista fundamentados, discutindo as diferentes vida assumem formas de poesia ou da
perspectivas que se encontram em jogo. fala cotidiana nossa de cada dia.
O aluno, ao compreender o uso da Agindo interativamente no conflito
linguagem como interação na sociedade, amplia gerado pela multiplicidade de sentidos que são
seu conhecimento de si e do outro, num processo construídos no ato de leitura, o professor estará
dialógico, e passa a utilizar as diferentes desenvolvendo a capacidade de o aluno refletir,
linguagens como meio de comunicação, ou argumentar e defender seu ponto de vista acerca
processo de construção de significados, dos fenômenos sociais que o cercam e que lhe
tornando-se receptor e produtor de diversos são indispensáveis ao pleno convívio social.
textos, entendidos como unidade básica da A multiplicidade de vozes que aparecem
linguagem verbal oral e escrita. no diálogo estabelecido entre professor e alunos
Ao considerar o aluno um receptor- em sala de aula permite que sejam
produtor de diversos textos, e ao compreender o compartilhados pontos-de-vista diversos a partir
texto como o centro de todo processo ensino- da troca de experiências de cada um. Esse
aprendizagem, e que se insere numa situação de compartilhamento de idéias através do diálogo
discurso produzido por um sujeito em contribui para o reconhecimento da importância
determinado contexto histórico, social e da linguagem verbal como ferramenta de
ideologicamente definido, o professor estará comunicação e formação social.
colaborando para o desenvolvimento das A leitura, sendo o ato de negociação de
capacidades cognitivas e meta-cognitivas, sentidos, em muito contribui para a formação e
manutenção do nível cultural do leitor e deste na diversos espaços sociais de uso da linguagem e
sua interação com os que o cercam, na busca da que estabelece a história das interações
identidade social, tão indispensável nos dias dialógicas e ideológicas entre os homens.
atuais. Já diz o ditado “quanto mais leitura, mais Na perspectiva sociológica da
se apreende o mundo.” E daí, é um passo a linguagem, isto é, o acontecimento no convívio
formação crítica acerca dos fenômenos sociais social nas quais as práticas sociais ocorrem
estabelecidos na interação verbal entre os através da linguagem, a interação sócio-verbal é
interlocutores. “um conjunto complexo e dinâmico de
As práticas sociais de uso da linguagem, elementos relacionados intrinsecamente no qual
portanto, manifestam-se através da interação interagem o homem, sua linguagem e sua
verbal entre os interlocutores. Para Barros e história”. (CASTRO, 1993)
Fiorin (1999), o dialogismo é a característica Sendo a língua dialógica por princípio,
essencial da linguagem, princípio constitutivo de inserida num contexto social vivido pelos
todo discurso e espaço interacional entre o eu e o interlocutores, não há como separá-la de sua
tu, ou o eu e o outro, pois “nenhuma palavra é própria natureza, mesmo em situação escolar.
nossa, mas traz em si a perspectiva de outra Segundo os PCNEM (1999, p. 139), o estudo da
voz”. Segundo a autora, os sujeitos enunciador e língua materna deve, pela interação verbal,
enunciatário, estabelecedores da interação permitir o desenvolvimento das capacidades
verbal, são constituídos por diferentes vozes cognitivas dos alunos, pois:
sociais que fazem deles sujeitos históricos e o caráter sócio-interacionista da
ideológicos. Esse dialogismo discursivo linguagem verbal aponta para uma
acontece no fenômeno da interação verbal entre opção metodológica de verificação do
discursos ou entre os textos no interior do saber lingüístico do aluno como ponto
discurso (intertextualidade). de partida para a decisão daquilo que
O fenômeno da interação verbal é será desenvolvido, tendo como
estabelecido entre dois ou mais interlocutores no referência o valor da linguagem nas
efetivo uso da palavra no ato da enunciação, diferentes esferas sociais.
pois, segundo Bakhtin (1997), “ o homem se No contexto de sala de aula, deixar falar
entrega todo à palavra e esta palavra forma parte é condição primeira para o desenvolvimento da
do tecido dialógico da vida humana, do simpósio comunicabilidade crítica que se espera
universal.” Para o autor russo, a enunciação é o desenvolver em cada aluno, pois “as palavras são
produto da interação de dois indivíduos tecidas a partir de uma multidão de signos
socialmente organizados, mesmo que não haja ideológicos e servem de trama a todas as
um interlocutor real. Na realidade toda palavra é relações sociais” (FREITAS, 1994).
uma espécie de “ ponte lançada entre mim e os 1.2 – Diferentes vozes nos discursos: polifonia
outros”. A enunciação é um produto social, um O dialogismo bakhtiniano está
ato de fala determinado pela situação imediata e relacionado aos diálogos que se estabelecem
pelo contexto social. entre discursos no interior dos textos produzidos
A dinâmica viva da palavra pode ser pelos interlocutores, isto é, vozes que polemizam
observada, segundo Castro (1993), na realidade entre si, se completam ou respondem umas às
efetiva da comunicação, isto é, em enunciados outras (BARROS e FIORIN, 1999).
concretos, realizados em situações concretas de Esse cruzamento de vozes constitui a
interação verbal. polifonia. Nela, a alteridade é necessariamente
Portanto, a interação verbal constitui a atestada pela presença do interdiscurso, cuja
realidade fundamental da língua, e ocorre no ato fonte é explicitamente mencionada ou presente
da enunciação pela palavra, entendida como uma no texto.
ilha emergindo de um oceano de signos sem Em se tratando de leitura, Geraldi (1999,
limites e que se efetiva num determinado p. 113) afirma que o leitor, “na parceria do jogo”
contexto social. A palavra sempre quer ser que estabelece com o autor, através do texto,
ouvida, sempre busca a compreensão responsiva, nenhuma jogada é em si e de per si
daí a ocorrência dessa relação dialógica nos neutra: em cada jogada calculam-se
possibilidades, correm-se riscos. E os vozes, nem sempre harmoniosas, que
parceiros tornam-se co-agentes. E apontam insistentemente, para a
cúmplices. O outro é a medida das natureza constitutivamente dialógica da
minhas jogadas. (...) Com o outro linguagem.
compartilhamos um universo comum de O conflito de vozes na interação verbal
referências, códigos de ética, de caracteriza a ocorrência da polifonia nos
comportamento, etc e, na história do discursos (ou textos) produzidos nas práticas
vivido, construímos também sociais de uso da linguagem.
cumplicidade. Portanto, é indispensável que uma
Segundo Barros e Fiorin (1999), o
análise da interação verbal estabelecida entre
conceito de polifonia caracteriza um tipo de
professor e alunos no contexto escolar seja
texto “aquele em que o dialogismo se deixa ver,
aquele em que são percebidas muitas vozes por observada, pois, nessa prática social de uso da
oposição aos textos monofônicos que escondem linguagem ocorre a presença de outras vozes que
os diálogos que os constituem.” entram em conflito para estabelecer ou contestar
O termo polifonia designa, dentro de um os sentidos. Esse conflito verbal, representado
conceito enunciativo de sentido, as diversas pelo diálogo, conduz à constituição do sentido
perspectivas, pontos de vista, vozes ou posição do texto, em se tratando de aulas de leitura.
que se fazem presentes, que se deixam falar nos
enunciados produzidos na interação verbal. DISCUSSÃO DOS DADOS E
(DUCROT, 1984) COMENTÁRIOS SOBRE OS
Segundo Bakhtin (1997) toda palavra RESULTADOS
provoca “conflito de discursos” ou “vozes
sociais” e encontra-se na dinâmica dos signos e, Como afirmamos anteriormente, nosso
se existem discursos “lutando”, buscando um objetivo consistiu em descrever, após a
centro, esse(s) centro(s) são múltiplos, devido às transcrição das aulas, a ocorrência da polifonia
relações contraditórias entre valores socialmente no discurso do professor na interação com os
estabelecidos pelas comunidades lingüísticas. A alunos em aulas de leitura. Muitas seqüências
polifonia é uma situação desse contexto da das transcrições permitem-nos afirmar que,
heterologia, desse universo de discursos embora trabalhem no mesmo colégio e tenham
conflitantes. noções das concepções de leitura, as professoras
Segundo o que afirmou o professor
envolvidas na pesquisa conduziram as aulas de
Faraco, durante o mini-curso sobre as
forma diferente, isto é, os procedimentos
concepções dialógicas de discurso na UFRJ, em
metodológicos de condução do debate em sala
outubro de 1999, no III Encontro Franco-
brasileiro de Análise do Discurso, se possuímos de aula de leitura não conduziram integralmente
livre arbítrio para viver na “selva de signos”, os alunos à constituição do(s) sentido(s) do
absorvendo a lógica dos discursos, não nos texto, pois os mesmos ficaram dependentes das
constituímos como sujeitos alienados ou perguntas formuladas pelas professoras, de
subordinados, mas como possuidores do senso forma que as respostas fossem previsíveis,
crítico e da consciência de enfrentar o “conflito estivessem na superfície do texto ou, ainda,
de vozes” a que nos deparamos no dia-a-dia. provocassem o silenciamento dos sentidos que,
Para Brait (1997, p. 101), pelo diálogo, poderiam entrar no jogo da
descortinar um projeto de estudo das interação verbal.
formas de construção e produção do O excesso de perguntas, cujas respostas
sentido no conjunto dos escritos já são previsíveis, ou que se constituem na
bakhtinianos é uma tarefa árdua, mas superfície do texto, não colabora com o processo
não impossível, uma vez que tanto o de interação verbal que, supostamente, deveria
estar instalado em sala de aula, em que seres
texto como o ouvido do leitor são
humanos com identidades próprias jogam, de
sempre provocados por um conjunto de
forma colaborativa, através da língua, uma busca ProfC(58) – o que vocês acharam da
de construção de sentidos. Vejamos, a título de pesquisa desse professor ?
exemplificação, a passagem transcrita de uma Alxxx – silêncio
das aulas gravadas: Al(38) - interessante
S10: ProfC(48) – recomenda também o
ProfC(59) – interessante / cinqüenta e
engajamento dos professores na
quatro por cento das escolas brasileiras
educação num processo mais amplo do
que apenas instruir // tem professores tiveram problemas de vandalismo / o que
que são amigos de vocês ? vocês entendem por problemas de
Alxxx – (silêncio) vandalismo?
ProfC(49) – vocês estão no primeiro ano Al(39) – má educação
na escola / como é que foi o ProfC(60) – má educação
comportamento dos professores com Alxxx – (silêncio)
vocês? / foi exatamente o que vocês ProfC(61) – só ?
esperavam / pode ser melhor // não Alxxx – (silêncio).
pode? Na seqüência dez (S10), percebemos que
Alxxx – (silêncio)
as perguntas feitas pela professora exigem dos
Al(34) – (inc.)
alunos respostas previsíveis e ou silêncio. Esse
ProfC(50) – pode ser melhor ? / o que
que falta / pra vocês terem amizade com silêncio exagerado dos alunos é uma das formas
os professores / uma confiança maior ? que os alunos encontraram para não participar do
Al(35) – (inc.) debate, pois se sentiam preocupados com a nossa
ProfC(51) – vocês sentem que os presença na sala.
professores descontam os problemas Segundo Marcuschi (1999, p. 29) ocorre o
em vocês ? “desinteresse pelo tópico em andamento e rarefação
Al(36) – nem todos nas contribuições dos parceiros do diálogo” e o
ProfC(52) – deixa vocês revoltados ? “baixo engajamento no assunto” dos alunos,
Alxxx – (inc.) devido à “ação-muleta” isto é, o “trampolim para
ProfC(53) – afeta no aprendizado
a construção das condições de possibilidades de
também ?
compreensão com efeito auto-aplicativos”
Alxxx – (silêncio)
ProfC(54) – podem vocês fazer uma praticado pela professora contribui para a não
reclamação / como eu falei a voz de ocorrência da interação verbal, minimizando os
vocês não tá bem identificada objetivos potenciais que seriam possíveis
Alxxx – (silêncio) construir em aulas de leitura. Segundo o autor
Al(37) – cada vez mais a pessoa vai (op.cit., p. 30), “sempre há algo a dizer na
desgostando de falar (inc.) interação verbal, mas as expectativas com
ProfC(55) - isso também / talvez / respeito ao que será dito não são as mesmas.”
explicasse a violência / pois vocês estão Já os silêncios exagerados foram
meio tristes com os professores / enfim provocados pela professora que, de um modo
...
geral, convoca seus alunos a falar, utilizando-se
Alxxx – (silêncio)
de diversas estratégias, cujo resultado foi
ProfC(56) – essas escolas pequenas
negativo, pois a insistência, a repetição ou
teriam realmente uma solução ? / pra
reformulação de questões reforçaram a
acabar hoje em dia a violência ? / e a
assimetria dos diálogos e, conseqüentemente, a
nossa escola ? é uma escola pequena ?
subordinação dos alunos à autoridade do
Alxxx – razoável
professor.
ProfC(57) – razoável
Alxxx – Inc.
Alxxx – silêncio
CONSIDERAÇÕES FINAIS alunos, incentivá-los a falar ou ordenar que se
calem e, especialmente, motivá-los a
O propósito do trabalho foi não só participarem do processo ensino-aprendizagem,
observar em sala de aula o papel do professor de ou seja, cabe ao professor provocar a
Língua Portuguesa durante uma aula de leitura, e participação dos seus alunos. O excesso de
de que maneira ele introduz, desenvolve e respostas previsíveis e os silêncios corroboram a
encerra a aula, como também verificar as vozes ineficiência discursiva da pergunta do locutor-
que acompanham o discurso do professor e dos professor, caracterizando a assimetria e a
alunos. subordinação dos alunos, além de cristalizar o
A partir das observações e das análises, discurso escolar muitas vezes já presente com o
podemos afirmar que as professoras que uso tradicional do livro didático.
participaram da pesquisa, em sua formação Portanto, o papel do professor precisa
didático-pedagógica, mesmo conhecendo alguma ser encarado sob novos olhares, as posturas
concepção de leitura, aplicam metodologias pedagógicas precisam ser reorientadas para uma
tradicionais que dependem exclusivamente do transformação do ensino, pois é preciso
texto, e os alunos não chegam a constituir o(s) evidenciar a leitura como instrumento de
sentido(s) do texto a partir do seu conhecimento socialização e conscientização, formadora de
de mundo e de suas experiências vividas nas cidadãos críticos perante o seu mundo e perante
práticas sociais de uso da linguagem, os textos que lêem.
dependendo passivamente da interferência A partir dessas observações, concluímos
(ajuda) do professor. que o professor, durante uma aula de leitura,
Duas perspectivas constituem o discurso pode e deve permitir aos alunos a troca de
do professor na interação verbal em aulas de experiências e idéias para constituírem
leitura: a) perspectiva polifônica proveniente da criticamente o sentido, pois, conforme Geraldi e
formação pessoal e sócio-cultural, como os Citelli (1997), na sala de aula como espaço de
juízos de valor e depoimentos pessoais, por interação verbal, aluno e professor confrontam-
exemplo; e b) perspectiva polifônica proveniente se, por meio de seus textos, com saberes e
da formação escolar e profissional, como o papel conhecimentos. São os sentidos socialmente
da autoridade e da consciência do imaginário constituídos os verdadeiros objetos do processo
ideal do papel do professor. de ensino e aprendizagem.
Sem uma concepção de leitura a partir Cada acontecimento histórico e social
da perspectiva da interação verbal, por exemplo, tem uma certa repercussão no âmbito da escola e
com o “conflito de vozes” através do discurso, para ser tratado com o aluno, exige do professor
os alunos continuarão expostos a metodologias reflexão e postura crítica. Portanto, cabe ao
tradicionais, isto é, expostos a perguntas cujas professor mediar a leitura dos alunos sem tomar
respostas já são previsíveis e encontram-se na nas mãos as rédeas do processo de forma
superfície do texto, submissos às idéias do autoritária, mas conduzir os alunos à construção
professor, como “autoridade” em se tratando de dos sentidos do texto à partir da herança cultural
aula de leitura, impossibilitados de construir acumulada socialmente.
criticamente o sentido. Embora as atividades Observamos que muitas perguntas
realizadas em sala de aula sejam consideradas no formuladas pelas professoras seguiram o cliclê
ato da interação, ressaltamos que muitas não tradicional já criticado por Meserani (1998) – o
levam os alunos a construir o sentido do texto, que o texto quer dizer ? – deixando os alunos
pois se encontram presas ao discurso do submissos às suas perguntas ou a análises
professor ou do livro didático. parciais, como, por exemplo, buscando o
Os dados analisados permitem-nos
significado de algumas palavras, ignorando o
apontar para a necessidade de o professor refletir
sobre o seu discurso em sala de aula para todo do texto.
verificar se é claro e atende aos objetivos da aula Escolher um texto com tema atual,
de leitura, pois, segundo Silva (1998), ao motivar a leitura dos alunos, ordenar a leitura
professor cabe atrair e manter a atenção de seus silenciosa, ler oralmente o texto intercalando-o
com discussões, solicitar a participação dos Parece-nos que, agir interativamente, a
alunos, oportunizar essa participação, discutir as partir da perspectiva da interação verbal,
aplicações da aula de leitura, propor atividades pressupõe ao professor, pelo menos, a
diversas após a realização da leitura, foram implementação da resposta a duas perguntas em
algumas das alternativas metodológicas aula: como trabalhar com estratégias de leitura,
observadas nas aulas. Os encaminhamentos conforme o modelo interacionista de leitura?
metodológicos conduziram parcialmente os Como dar espaço aos alunos para que atuem
alunos à construção do sentido, pois muitas como sujeitos sociais na interlocução que deve
perguntas formuladas pelas professoras estavam caracterizar a leitura?
subordinadas ao texto, ou, ainda, elaboradas de Agindo interativamente, com certeza, o
forma muito abrangente ou confusa, provocando professor conduzirá os alunos à constituição
o silenciamento nos alunos. do(s) sentido(s) do texto, pois, segundo Geraldi
O professor precisa permitir que o aluno (1991, p. 171) “a leitura incide sobre a palavra
utilize o discurso para expressar a sua do outro, onde o leitor pode descobrir outras
contrapalavra buscando o sentido que é formas de pensar que, contrapostas, poderão
construído na compreensão responsiva. O levar à construção de novas formas, fazendo da
professor deve possuir uma concepção clara de leitura uma verdadeira atividade de produção de
leitura e de metodologias coerentes, sentidos”. Caso contrário, o professor continuará
especialmente compreender o processo de ritualizando atividades e estratégias
interação verbal, isto é, desencadear descontextualizadas.
procedimentos que atendam aos objetivos da O trabalho traz à tona indagações que
aula de leitura e que o professor não monopolize constituirão as nossas futuras reflexões em
a discussão e nem formule perguntas cujas relação à formação de professores: parece-nos
respostas ou já são previsíveis aos alunos ou são que, tradicionalmente, a escola e seus
incompreensíveis, como foi verificado nas aulas professores têm por objetivo a transmissão de
analisadas. Na maioria das situações de interação experiências do passado, sistematizado em forma
observadas, as professoras não oportunizaram de saberes, conhecimentos, valores e conteúdos.
aos alunos a defesa de pontos-de-vista próprios, Vivemos, portanto, um paradoxo: projetar uma
apenas direcionaram o debate, presos à sociedade futura sustentada em fundamentos do
superfície do texto. Na caracterização das passado e que constituem a herança cultural
professoras, afirmamos que todos se diziam (GERALDI; CITELLI, 1997). E o presente?
leitores, possuidores de uma concepção de Algumas reflexões carecem ser colocadas: a)
leitura, e reconheciam a importância do papel qual o futuro que desejamos para os nossos
que desempenham como leitores em relação aos alunos? b) quais as experiências do passado que
alunos, embora a gravação das aulas permita são suficientemente significativas e imagináveis
supor certa incoerência entre teoria e prática para instrumentar a construção dessa sociedade
docente. futura? c) e no presente, pode o professor pensar
As professoras que participaram da o inimaginável e arriscar-se a extrair da atenção
pesquisa não souberam transferir a teoria para a ao acontecimento os “conteúdos” para o futuro?
prática. Segundo os Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Médio, o professor pode ABSTRACT
oportunizar aos alunos a reflexão, a
argumentação e a defesa de pontos de vista What is the role of the teacher and his
acerca dos fenômenos sociais que os cercam e discourse in the interaction with the learners in
que lhes são indispensáveis ao uso efetivo das reading classes? In order to answer this question
práticas sociais de leitura e, por conseguinte, da we carried out an observation work on how some
escrita. high school teachers introduce, develop and
conclude their reading classes so that, from the
data transcription, we could describe the BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São
occurrence of polyphony, i.e., controversial Paulo: Martins Fontes, 1992.
voices, which complete or respond to one
another; the varied perspectives, or points of ______. Marxismo e filosofia da linguagem. 8
view that are present, which are allowed to speak ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
by means of the utterances produced in verbal
interaction (according to Bakhtin, 1929; Ducrot, BRAIT, B.(Org.) Bakhtin, dialogismo e
1984). From the analyses, we can say that two construção do sentido. Campinas: Editora da
polyphonic perspectives coexist in the teacher’s Unicamp, 1997.
discourse: a) the polyphonic perspective which is
a result of personal and socio-cultural formation, BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de
that means, the values judgments, personal Educação Média e Tecnológica. Parâmetros
statements, beliefs, ethnic-religious, political and Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília:
cultural conviction; b) the polyphonic MEC, 1999.
perspective which is a result of formal and
professional education, that is, the conscience of CASTRO, G. Em busca de uma lingüística
authority and of what is imagined as the ideal sociológica: contribuições para uma leitura de
role of the teacher. This intersection of voices Bakhtin. 1993. Dissertação (Mestrado em
leads the learners, many times, to silence, that is, Lingüística)-Faculdade de Letras, Universidade
to their complete subordination to the teacher’s Federal do Paraná, Curitiba.
discourse, having no possibility of interlocution.
The teacher should also allow the learner to CORACINI, M. J. Um fazer persuasivo: o
make use of his own discourse in order to discurso subjetivo da ciência. São Paulo:
express his counterword, searching for the Pontes/Educ, 1991.
meaning of the text, which is built in responsive
comprehension, in verbal interaction, in the _______. O jogo discursivo na aula de leitura:
dialogic process. The classroom activities should língua materna e língua estrangeira. Campinas:
be interactive, made of confrontations of Pontes, 1995.
information and knowledge which were socially
gathered, and not only crystallized activities of DUCROT, O. Esboço de uma teoria polifônica
subordination to the textbook and or causing the da enunciação. In: ______. O dizer e o dito.
silence of the learners’ voices. Campinas: Pontes, 1984. p.161-218.

KEY WORDS: interaction; reading classes; FREITAS, M. T. Vygotski e Bakhtin –


polyphony. Psicologia e Educação: Um intertexto. São
Paulo: Ática, 1994.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GERALDI, J. W. Portos de passagem. São
BARROS, D. Contribuições de Bakhtin às Paulo: Martins Fontes, 1991.
teorias do Discurso. In: BRAIT, B. (Org.)
Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. _______. Linguagem e ensino: exercícios de
Campinas: Editora da Unicamp, 1997 p. 27-36. militância e divulgação. Campinas: Mercado de
Letras, 1999.
______.; FIORIN, J. L.(Orgs.) Dialogismo, _______; CITELLI, B. Aprender e ensinar com
polifonia e intertextualidade: em torno de textos de alunos. São Paulo: Cortez, 1997. v. 1
Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1999.
_______. Atividades de compreensão na
interação verbal. In: PRETI, D. Estudos de
língua falada: variações e confrontos. São SILVA, E. T. Criticidade e leitura. Campinas:
Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP, Mercado de Letras, 1998.
1999. p.15-45.

MESERANI, S. C. O intertexto escolar: sobre Acir Mário Karwoski é Mestre em Lingüística


leitura, aula e redação. São Paulo: Cortez, 1998. Aplicada pela Universidade de Taubaté

Você também pode gostar