Você está na página 1de 95

UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

RAFAELA MARCON

HOMICÍDIO PRATICADO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL NA DIREÇÃO DE


VEÍCULO AUTOMOTOR: DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE?

Tubarão
2008
RAFAELA MARCON

HOMICÍDIO PRATICADO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL NA DIREÇÃO DE


VEÍCULO AUTOMOTOR: DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE?

Monografia apresentada ao Curso de Direito, da


Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito
parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Denise Silva de Amorim Faria, Msc.

Tubarão
2008
RAFAELA MARCON

HOMICÍDIO PRATICADO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL NA DIREÇÃO DE


VEÍCULO AUTOMOTOR: DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE?

Esta monografia foi julgada adequada à obtenção do


título de Bacharel em Direito e aprovada em sua forma
final pelo Curso de Direito da Universidade do Sul de
Santa Catarina.

Tubarão, 26 de novembro de 2008.

_________________________________________________________
Profª. e orientadora Denise Silva de Amorim Faria, Msc.
Universidade do Sul de Santa Catarina

_________________________________________________________
Prof. Lírio Hoffmann Junior, Esp.
Universidade do Sul de Santa Catarina

_________________________________________________________
Prof. Edir Josias Silveira Beck
Universidade do Sul de Santa Catarina
Dedico este trabalho aos meus pais, Elizabeth
e Alberto (in memorian), e à minha irmã
Daniela, pelo incentivo durante todo o curso,
compreensão, carinho, e esforço prestados em
todos os momentos, sem os quais eu jamais
teria chegado até aqui.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço a Deus, por ter me dado vida, saúde e muita força para
enfrentar todos os obstáculos que surgiram durante a minha caminhada
Agradeço toda a minha família, em especial minha mãe Elizabeth Dalponte
Marcon, exemplo de pessoa, a quem muito devo, tendo em vista seu sacrifício e afeto, os
quais eu jamais conseguirei retribuir da mesma forma. Ela que sempre me incentivou a não
desistir diante dos obstáculos que surgiam ao longo desta caminhada.
Meu pai Alberto Felipe Marcon (in memoriam), que mesmo não estando mais
presente, sempre me incentivou a estudar, e com certeza estaria muito orgulhoso neste
momento.
Minha irmã Daniela Marcon, que também muito me ajudou e colaborou para que
eu conseguisse chegar até aqui.
Agradeço de forma especial a professora e orientadora Denise Silva de Amorim
Faria, por ter aceitado o meu convite e me ajudado nesta tarefa. Também pela sua atenção,
dedicação, conhecimento e tempo despendidos para prestar os ensinamentos necessários na
concretização deste trabalho.
À minha tia, Itinha, que bastante colaborou na concretização deste sonho.
Agradeço, também, todos os meus colegas, que durante a caminhada, sempre me
ajudaram nos momentos em que eu encontrava alguma dificuldade. Aqueles que se tornaram
grandes amigos e confidentes, os quais deixarão muitas saudades.
Enfim, a todos que de um modo ou de outro, participaram desta caminhada
contribuindo de forma significante na realização deste sonho.
Obrigada a todos vocês!
“A coragem é a primeira qualidade humana, pois garante todas as outras.”
(Aristóteles)
RESUMO

Este trabalho foi elaborado com o objetivo de verificar se um sujeito que pratica homicídio no
trânsito sob influência de álcool deve ser punido na forma culposa, na espécie de culpa
consciente, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro ou na forma dolosa, na
modalidade de dolo eventual e julgado pelo Tribunal do Júri. Para realização deste trabalho
utilizou-se a pesquisa bibliográfica, com o estudo e análise de legislação, doutrinas e artigos
sobre o tema, bem como pesquisa documental, onde foram analisados acórdãos colhidos do
Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina e do Superior Tribunal de Justiça. Com este
estudo observou-se que o problema do álcool e direção é bastante complexo e há muito se
discute esta questão, uma vez que cresce diariamente o número de veículos em circulação.
Também se verificou que existem entendimentos nos dois sentidos, tanto no Tribunal de
Justiça de Santa Catarina, como no Superior Tribunal de Justiça e que atualmente há uma
tendência em se punir esses motoristas na forma dolosa. Observou-se, também, que não é
necessariamente a maneira de punir o condutor do veículo que vai reduzir esse número que a
cada dia cresce mais. Assim, concluiu-se que a questão dos homicídios praticados por
motorista sob influência de álcool é um problema social. Os Tribunais estão se mostrando
favoráveis em pronunciar o motorista para que o mesmo seja julgado pelo Tribunal do Júri,
como uma maneira de intimidar outros motoristas no intuito de que não desenvolvam esta
conduta, mas por outro lado, também se mostram favoráveis à punição na forma culposa, uma
vez que não é a punição mais severa que intimidaria estes motoristas. Medidas preventivas e
uma educação para o trânsito também poderiam auxiliar na redução desse número de
motoristas que praticam homicídios quando embriagados.

Palavras-chave: Homicídio. Bebidas e acidentes de trânsito. Culpa (Direito).


ABSTRACT

This work was developed with the goal of verifying if a person that practice murder in the
traffic under influence of alcohol should be punished as culpable, in the kind of conscious
guilt, according to the Brazilian Traffic Code, or deceit, in the form of eventual deceit and
judged by the Court of Justice. To develop this work, it was used literature research, with the
study and analysis of the legislation, doctrines and articles about the subject, as well as a
documentary research where were analyzed judgments collected to the Court of Justice of the
Santa Catarina and the High Court of Justice. With this study, it was observed that the
problem related to alcohol and driving is quite complex and the issue has been studied for a
long time, since the number of vehicles on the streets has grown every day. It was also
verified that there are understandings in both ways, as in the Court of Justice of the Santa
Catarina as in the High Court of Justice, and currently, there is a tendency in punishing those
drivers as malicious. It was also observed that it is not the way of punishing the driver that
will reduce that number which grows every day. So, it is concluded that the issue about the
homicides practiced by drunk drivers is a social problem. The Courts have been favorable
when they take the driver to the Court of Jury, as a way to intimidate the other drivers; on the
other hand, Courts have been favorable to the culpable prosecution, since it is not the most
severe punishment to intimidate those drivers. Preventive ways and a good education related
to transit could also reduce the number of drunk drivers who practice homicides.

Keywords: Murder. Beverages and traffic accidents. Guilt (Law).


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10
2 DIREITO PENAL E PENA.......................................................................................... 12
2.1 CONCEITO DE DIREITO PENAL ............................................................................. 12
2.2 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL .............................................................................. 14
2.2.1 Funções legítimas ou declaradas ............................................................................. 16
2.2.2 Funções ilegítimas ou não declaradas..................................................................... 18
2.3 CONCEITO DE PENA ................................................................................................. 20
2.4 FUNÇÕES DA PENA................................................................................................... 22
2.4.1 Teorias absolutas ...................................................................................................... 22
2.4.2 Teorias relativas........................................................................................................ 23
2.4.2.1 Prevenção geral ....................................................................................................... 24
2.4.2.2 Prevenção especial................................................................................................... 26
2.4.3 Teorias mistas ........................................................................................................... 27
3 HOMICÍDIO................................................................................................................... 29
3.1 CONCEITO .................................................................................................................. 29
3.2 OBJETIVIDADE JURÍDICA ...................................................................................... 30
3.3 SUJEITOS ..................................................................................................................... 31
3.3.1 Sujeito ativo............................................................................................................... 31
3.3.2 Sujeito passivo........................................................................................................... 32
3.4 ELEMENTO SUBJETIVO ........................................................................................... 33
3.4.1 Culpa.......................................................................................................................... 34
3.4.1.1 Culpa consciente...................................................................................................... 38
3.4.1.2 Culpa inconsciente................................................................................................... 40
3.4.2 Dolo ............................................................................................................................ 41
3.4.2.1 Dolo direto............................................................................................................... 42
3.4.2.2 Dolo indireto............................................................................................................ 43
3.4.2.2.1 Dolo alternativo.................................................................................................... 44
3.4.2.2.2 Dolo eventual........................................................................................................ 45
4 HOMICÍDIO PRATICADO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL NA DIREÇÃO DE
VEÍCULO AUTOMOTOR: DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE..... 48
4.1 O TRÂNSITO BRASILEIRO ...................................................................................... 48
4.2 ASPECTOS DO CRIME DE HOMICÍDIO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO
CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO ......................................................................... 50
4.3 A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL E OS CRIMES DE TRÂNSITO - ALTERAÇÕES
DA LEI 11.705 DE 19 DE JUNHO DE 2008 .................................................................. 54
4.4 A CELEUMA ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DOS CRIMES DE
HOMICÍDIOS PRATICADOS NO TRÂNSITO POR MOTORISTA EMBRIAGADO .. 57
4.4.1 Homicídio culposo (culpa consciente) ..................................................................... 57
4.4.2 Homicídio doloso (dolo eventual) ............................................................................ 59
4.5 POSIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA
EM RELAÇÃO AOS CASOS DE HOMICÍDIO PRATICADO NO TRÂNSITO POR
MOTORISTA EMBRIAGADO.......................................................................................... 60
4.6 POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM RELAÇÃO AOS CASOS
DE HOMICÍDIO PRATICADO NO TRÂNSITO POR MOTORISTA EMBRIAGADO.63
4.7 MEDIDAS PREVENTIVAS PARA A REDUÇÃO DOS CASOS DE HOMICÍDIO NO
TRÂNSITO ......................................................................................................................... 66
5 CONCLUSÃO................................................................................................................. 70
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 73
ANEXOS ........................................................................................................................... 78
ANEXO A – Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que trata
sobre dolo eventual ............................................................................................................ 79
ANEXO B – Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça que trata sobre
culpa consciente ................................................................................................................. 83
10

1 INTRODUÇÃO

Os crimes de homicídio praticados por motoristas sob influência de álcool causam


repercussão social todas as vezes que aparecem nos noticiários, bem como geram grande
discussão entre os operadores do direito, com relação à natureza jurídica deste delito.
Este trabalho monográfico abordará aspectos relativos ao consumo de álcool e os
homicídios causados pelos motoristas que praticam este delito em estado de embriaguez, uma
vez que há entendimentos de que este crime configura dolo eventual e entendimentos de que
configura culpa consciente.
Para tanto, inicia-se o estudo apresentando considerações gerais acerca do Direito
Penal, mostrando o conceito deste ramo do direito e as suas funções legítimas e ilegítimas,
tendo em vista que é ele o responsável por impor regras e aplicar sanções aos membros da
sociedade com intuito de manter a harmonia entre todos.
Ainda neste capítulo, abordar-se-ão o conceito das penas e quais as funções que
estas cumprem, sob a ótica de três teorias que se ocupam em explicar qual seria a função da
pena na sociedade.
No segundo capítulo, discorrer-se-ão sobre o crime de homicídio, destacando-se o
conceito deste delito, qual o objeto jurídico, ou em outras palavras, qual o bem jurídico
tutelado neste caso, os sujeitos ativo e passivo, necessários para a configuração do delito.
Analisar-se-ão, ainda, o elemento subjetivo norteador da conduta do sujeito ativo no momento
que pratica a infração penal, que no caso do homicídio poderá ser a culpa, consciente ou
inconsciente e o dolo, direto ou indireto, sendo este dividido em eventual ou alternativo.
Após esse apanhado, o terceiro capítulo, se ocupará do tema desta monografia,
sendo enfoque de estudo o trânsito brasileiro e a atual situação de violência que se encontra
nas rodovias brasileiras, onde uma das causas preponderantes é o álcool.
Essa violência no trânsito acaba gerando inúmeros homicídios, delito este que, em
se tratando de crimes de trânsito, é tipificado pelo artigo 302 do Código de Trânsito
Brasileiro, que apresenta alguns aspectos, sendo estes destacados no último capítulo.
Pertinente apresentar algumas alterações que a Lei n. 11.705/08 efetuou no
Código de Trânsito Brasileiro, relativas aos delitos de trânsito praticados por motorista
embriagado, incluindo-se aí, o delito de homicídio.
Os argumentos utilizados para enquadrar o homicídio praticado no trânsito por
motorista sob influência de álcool sob o ponto de vista daqueles que entendem se tratar de
11

homicídio doloso, na modalidade de dolo eventual e aqueles que entendem se tratar de


homicídio culposo, na espécie de culpa consciente, é um dos tópicos abordado no último
capítulo.
Essa divergência entre homicídio doloso e homicídio culposo será demonstrada,
também, através de alguns julgados oriundos do Tribunal de Justiça do Estado de Santa
Catarina e também do Superior Tribunal de Justiça, sendo que existem decisões nos dois
sentidos.
E, por último, elencam-se algumas medidas preventivas que deveriam ser
colocadas em prática como uma tentativa de solução dos problemas do trânsito, tentando
afastar um pouco do Direito Penal a função de resolver todos os conflitos sociais.
Este trabalho monográfico foi elaborado através de pesquisa bibliográfica e
documental, buscando-se investigar o problema com base em doutrinas, artigos, legislação e
jurisprudências.
O principal instrumento de controle da situação do trânsito brasileiro atualmente,
é o Código de Trânsito Brasileiro, editado exclusivamente para este fim, haja vista o crescente
número de veículos em circulação e os números cada vez maiores de mortos e feridos no
trânsito.
A celeuma envolvendo a natureza jurídica dos crimes de homicídio praticados por
motoristas embriagados foi o ponto principal que deu ênfase na elaboração deste estudo.
12

2 DIREITO PENAL E PENA

Diante do tema proposto - Homicídio praticado sob influência de álcool na


direção de veículo automotor: dolo eventual ou culpa consciente? - no presente capítulo far-
se-ão breves considerações acerca do conceito de Direito Penal e suas funções legítimas ou
declaradas, quais sejam, as funções ético-sociais e preventivas e as ilegítimas ou não
declaradas, divididas em função simbólica e promocional.
Neste capítulo, ainda, analisar-se-ão o conceito e as funções da pena, sob o
enfoque das três teorias que a explicam: as teorias absolutas, as teorias relativas, estas
baseadas na prevenção geral e prevenção especial e as teorias mistas.

2.1 CONCEITO DE DIREITO PENAL

Os bens essenciais ao convívio em sociedade, por serem extremamente valiosos,


precisam ser constantemente tutelados pelo Estado, e, por esta razão, surgiu o Direito Penal,
ramo específico do Direito que visa à proteção de todos os cidadãos.
As sociedades precisam de um sistema de controle social capaz de assegurar sua
estabilidade e sobrevivência, bem como garantir que os indivíduos sejam submissos às
normas de convivência (disciplina social), que contemple, também, modelos de conduta,
castigando-os (penalmente) quando praticados fatos que (de modo intolerável) coloquem o
grupo em perigo.1
Diante desta necessidade, surge o direito penal, que nas palavras de Noronha é o
“conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os
fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica.” 2
Welzel apud Bitencourt também conceitua o direito penal como “aquela parte do
ordenamento jurídico que fixa as características da ação criminosa, vinculando-lhe penas ou
medidas de segurança.” 3

1
GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio García-Pablos de; BIANCHINI, Alice. Direito penal: introdução e
princípios fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 25.
2
NORONHA, E. Magalhães. Introdução e parte geral. In: ______ Direito penal. 34. ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 1999, v. 1, p. 4.
3
BITENCOURT, Cezar Roberto. Parte geral. In: ______ Tratado de direito penal. 11 ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 2007, v. 1, p. 2.
13

O direito penal, portanto, apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que


regulam o poder punitivo do Estado quando há ofensa a um bem jurídico. Neste sentido
Bitencourt afirma que:
O Direito Penal apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por
objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções
correspondentes – penas e medidas de segurança. Esse conjunto de normas e
princípios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornar possível a
convivência humana, ganhando aplicação prática nos casos ocorrentes, observando
rigorosos princípios de justiça. Com esse sentido, recebe também a denominação de
Ciência Penal, desempenhando igualmente uma função criadora, libertando-se das
amarras do texto legal ou da dita vontade estática do legislador, assumindo seu
verdadeiro papel, reconhecidamente valorativo e essencialmente crítico, no contexto
da modernidade jurídica.4 (grifos do autor)
Percebe-se, assim, que o direito penal possui um papel fundamental na sociedade,
tendo em vista que regula as relações sociais, impondo regras que possibilitem uma
convivência harmoniosa entre os membros de uma sociedade e, também, aplicando sanções
àqueles que desviaram sua conduta, praticando alguma infração de natureza penal.
Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli, o direito penal, ainda, pode ser
conceituado como:
[...] o conjunto de leis que traduzem normas que pretendem tutelar bens jurídicos, e
que determinam o alcance de sua tutela, cuja violação se chama “delito”, e aspira a
que tenha como conseqüência uma coerção jurídica particularmente grave, que
procura evitar o cometimento de novos delitos por parte do autor.5 (grifo do autor)
Os autores prosseguem afirmando que “com a expressão ‘direito penal’ se
designam – conjunta ou separadamente – duas entidades diferentes: 1) o conjunto de leis
penais, isto é, a legislação penal; ou 2) o sistema de interpretação desta legislação, isto é, o
saber do direito penal.” 6 (grifos do autor)
O direito penal se ocupa de penalizar os indivíduos que praticam infrações com
natureza penal. Essa penalização dos delitos é exercida pelo Estado, que possui a função de
garantir o bem estar dos membros da sociedade. Gomes, Molina e Bianchini preconizam:
[...] três são as instituições penais básicas do Direito Penal: (a) o delito, como
antecedente ou pressuposto lógico da resposta criminal; (b) a sanção penal (pena ou
a medida de segurança, como conseqüência jurídica derivada da infração penal) e
(c) as normas (instrumento por meio do qual são formulados os mandamentos ou as
proibições legais).7 (grifos do autor)
Ainda, conceituando o direito penal, Gomes, Molina e Bianchini afirmam que este
ramo do direito apresenta dois conceitos distintos: um sob o enfoque dinâmico e social e outro
sob o enfoque estático e formal:

4
BITENCOURT, 2007, p. 1-2.
5
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral.
2 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 86.
6
Ibid., p. 85.
7
GOMES; MOLINA; BIANCHINI, 2007, p. 28.
14

Pode-se definir o Direito penal, do ponto de vista dinâmico e social, como um dos
instrumentos do controle social formal por meio do qual o Estado, mediante um
determinado sistema normativo (leia-se: mediante normas penais), castiga com
sanções de particular gravidade (penas e outras conseqüências afins) as condutas
desviadas (crimes e contravenções) mais nocivas para a convivência, visando a
assegurar, dessa maneira, a necessária disciplina social bem como a convivência
harmônica dos membros do grupo.
Sob o enfoque estático e formal pode-se afirmar que o Direito penal é um conjunto
de normas (normas jurídico-públicas) que definem certas condutas como infração,
associando-lhes penas ou medidas de segurança assim como outras conseqüências
jurídicas (indenização civil, por exemplo). 8 (grifos do autor)
Deste modo, observa-se que o direito penal apresenta diversos conceitos, mas de
um modo geral todos possuem a mesma essência, qual seja, o poder punitivo do Estado em
impor regras e aplicar sanções aos membros de determinada sociedade.

2.2 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

O Direito Penal trata de situações em que as pessoas extrapolam os limites do


razoável, agindo de forma totalmente liberal e, assim, atingindo direitos de terceiros. Em
decorrência disso, a resposta jurídica vem em forma de punição dos desvios. Deste modo,
discute-se quais seriam as funções do direito penal.
Em toda sociedade existe uma estrutura de poder e segmentos ou setores mais
próximos do poder, sendo necessário assim, um controle social com uma parte punitiva para
sustentar essa estrutura. O sistema penal é o alicerce dessa estrutura, ou seja, é uma das
formas de sustentação mais violentas, e cumpre esta função mediante a criminalização
seletiva dos marginalizados, para conter aos demais. Também quando os outros meios de
controle social fracassam o sistema penal não tem dúvida em criminalizar pessoas, a fim de
que de sejam mantidos no seu rol, e não venham a desenvolver condutas prejudiciais à
hegemonia dos grupos a que pertencem.9
Consabidamente, uma das funções primordiais do Direito Penal é proteger os bens
jurídicos, que nas palavras de Bitencourt seriam “todo valor da vida humana protegido pelo
Direito”.10 Quando um bem jurídico é ofendido, e os outros ramos do direito não se mostram
suficientes para resolver o conflito, por se tratar de infração penal, o direito penal tem função
precípua na tentativa de solução do problema.

8
GOMES; MOLINA; BIANCHINI, 2007, p. 24.
9
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 77-78.
10
BITENCOURT, 2007, p. 7.
15

Queiroz assinala que “o direito penal não é senão um dos muitos instrumentos de
política social de que se vale o Estado para a realização dos fins que lhe são
constitucionalmente assinalados.” 11
Se uma concepção predominantemente liberal concede ao Direito Penal uma
função protetora de bens e interesses, uma concepção social, em sentido amplo, pode, por sua
vez, adotar uma concepção predominantemente imperialista e, portanto, reguladora de
vontades e atitudes internas, como ocorreu, por exemplo, com o nacional-socialismo alemão.
A primeira concepção destaca a importância do bem jurídico; a segunda apóia-se na infração
do dever, na desobediência, na rebeldia da vontade individual contra a vontade coletiva.
Agora, se um Estado Social pretende ser também um Estado de Direito terá de outorgar
proteção penal à ordem de valores constitucionalmente assegurados, rechaçando os
postulados funcionalistas protetores de um determinado status quo. 12 (grifos do autor)
Corroborando com a idéia de que o direito penal busca proteger os bens jurídicos
dos indivíduos e proporcionar uma convivência harmoniosa entre os mesmos, Queiroz
assevera que:
[...] sob o manto de um Estado a que se defere funções relativas, exclusivamente,
não pode ser fim da pena o retribuir por retribuir, nem o pretender fazer justiça sobre
a terra, mas simplesmente possibilitar, em termos mui relativos e limitados, isto é,
subsidiariamente, e dentro duma política social de largo alcance (intervenção de
caráter etiológico), a convivência social, condicionando o exercício da liberdade,
coibindo o arbítrio e, por conseqüência, a violência mesma. Ao declarar, pois, o
Estado determinados comportamentos como delituosos, pretende-se prevenir, mais
energicamente, sua reiteração, protegendo determinados bens jurídicos; busca-se
controlá-lo, enfim, quando semelhante fim não se possa lograr por outros meios
menos onerosos à liberdade, e para cuja finalidade possa o direito penal concorrer
utilmente.13 (grifos do autor)
Cumpre destacar, ainda, que o direito penal possui funções e missões, sendo umas
distintas das outras, conforme extrai-se da lição de Gomes, Molina e Bianchini, que abaixo
elencam quais seriam as missões do direito penal:
As missões do Direito Penal, isto é, suas finalidades, suas metas, são as
conseqüências queridas e buscadas oficialmente pelo sistema (proteção de bens
jurídicos, diminuição da violência estatal, diminuição da violência individual etc.).
Funções são as conseqüências (efetivas) não desejadas (oficialmente,
ostensivamente), mas reais do sistema. [...]14
Destarte, percebe-se que a função primordial do direito penal é a proteção dos
bens jurídicos essenciais para se viver da forma mais harmoniosa possível na sociedade, e este

11
QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal.
Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 122.
12
COBO DEL ROSAL, Manuel; ANTON VIVES, R.S. apud BITENCOURT, 2007, p. 7.
13
QUEIROZ, op. cit., p. 127.
14
GOMES; MOLINA; BIANCHINI, 2007, p. 222.
16

direito entra em cena quando os outros ramos do direito não se mostram razoáveis na solução
dos conflitos sociais.
Além desta função precípua, Gomes faz uma distinção bipartida das funções reais
do direito penal em funções legítimas ou declaradas e ilegítimas ou não declaradas15, objeto
de estudo dos próximos tópicos.

2.2.1 Funções legítimas ou declaradas

Dentre as funções legítimas ou declaradas, também chamada de funções ético-


social e preventiva, ressaltam-se as de maior relevância, quais sejam: a) proteção (subsidiária
e fragmentária) de bens jurídicos; b) proteção do indivíduo contra a reação social que o crime
desencadeia; c) construção de um sistema normativo dotado de garantias que lhe concedem
racionalidade. Em outras palavras, significa dizer que o direito penal tem como função
proteger a pessoa dos ataques (da violência) de outras pessoas e também, de protegê-las da
própria violência do poder estatal.16
A função ético-social é exercida por meio da proteção dos valores fundamentais
da vida social, que deve configurar-se com a proteção de bens jurídicos. Esses bens jurídicos
são de vital importância para a sociedade e para os indivíduos, merecendo assim, proteção
legal. Em decorrência da função ético-social surge a função preventiva, porque sempre que os
indivíduos violarem limites de liberdade, e esta violação adequar-se aos princípios de
tipicidade e culpabilidade, acarretará responsabilidade penal do agente. Essa conseqüência
jurídico-penal da infração ao ordenamento produz um efeito preventivo, que caracteriza a
função preventiva.17
Neste ínterim, percebe-se que o direito penal primeiramente busca garantir a
segurança da sociedade e, posteriormente, aplica uma sanção àquele que violou uma norma
penal, reagindo frente a uma situação, em que ocorreu o descumprimento das normas ético-
sociais.
As funções legítimas basicamente visam proteger os indivíduos da violência
praticada por outros indivíduos, bem como a violência do próprio Estado. Neste norte, Gomes

15
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 92 - 98.
16
Ibid., p. 92.
17
BITENCOURT, 2007, p. 7-8.
17

e Bianchini asseveram que o direito penal:


[...] é poder punitivo, é sancionador, é castigo, mas também Direito (e Direito do
“Estado Constitucional e Democrático de Direito”). É ius puniendi (poder de impor
sanções a quem descumprir a norma ofendendo o bem jurídico tutelado), mas
também ius poenale (conjunto de normas dotado de garantias e racionalidade). É
Direito penal subjetivo (ius puniendi), mas também objetivo (conjunto de garantias).
Em suma: o poder punitivo do Estado nunca é limitado; sempre encontrará (ou deve
encontrar) as barreiras típicas (do contrapoder) do Direito Penal do Estado de
Direito. 18 (grifo do autor)
O ius puniendi tem como objeto a proteção dos bens jurídicos, dando segurança a
todos, protegendo os inocentes, bem como o descumpridor da norma, sobre o qual pode recair
reações sociais decorrentes do delito praticado e o ius poenale deve estar estruturado para
minimizar a violência, eliminar os abusos e a arbitrariedade, inerentes ao exercício do poder
de investigar, castigar e executar.19
Gomes e Bianchini também afirmam que o direito penal, quando cumpre suas
funções legítimas, serve de instrumento para redução das violências:
O delito, de um lado, bem como o poder punitivo estatal, de outro, representam
ambos duas formas de violência. O Direito penal deve servir de instrumento de
redução dessas duas violências, tanto contendo os abusos (dos particulares: uns
contra os outros) como evitando as arbitrariedades (do poder estatal). 20
Destarte, extrai-se que o direito penal tem legítima função quando protege o ser
humano tanto dos ataques de outra pessoa como da violência estatal, tornando-se, assim,
instrumento capaz de intervir na realidade social, evitando qualquer ameaça de perigo ou
lesão aos bens jurídicos mais fundamentais, como a vida, a honra, a integridade física, a
liberdade individual, dentre outros.
Em resumo, acerca das funções legítimas do Direito Penal, Roxin assinala que “o
direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de intervenção do Estado e para
combater o crime. Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado,
mas protege igualmente a sociedade e seus membros dos abusos do indivíduo.” 21
Gomes e Bianchini preconizam, ainda, que “o efeito que se espera do Direito
penal, por conseguinte, é o de preservar a segurança indispensável para a convivência em
sociedade, criminalizando-se ou punindo-se exclusivamente os ataques mais intoleráveis à
pessoa.” 22
Portanto, as funções legítimas que o direito penal cumpre, envolvem a tutela dos
bens jurídicos mais importantes para o ser humano e a proteção contra a violência, tanto entre

18
GOMES; BIANCHINI, 2002, p. 93.
19
Ibid., p. 94.
20
Ibid., p. 95.
21
ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução Ana Paula dos Santos Luís
Natscheradetz. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 76.
22
GOMES; BIANCHINI, op. cit., p. 97.
18

os indivíduos, como a violência arbitrária do Estado, buscando sempre uma harmonia entre os
seres humanos.

2.2.2 Funções ilegítimas ou não declaradas

Além de cumprir funções legítimas ou declaradas, o direito penal também cumpre


funções ilegítimas ou não declaradas, quando a norma penal assume sentido promocional e
simbólico.
Quando o direito penal cumpre funções promocionais, pretende mudar e
transformar a sociedade, ou seja, quer incidir na vida social, não se limitando apenas a
conservar o status quo. Como exemplos dessa função promocional tem-se a situação em que o
direito penal foi utilizado como instrumento moralizador, criminalizando o assédio sexual
(art. 216-A, introduzido pela Lei 10.224/200123). Não que o bem jurídico não merecesse ser
protegido, mas houve um exagero punitivo em demonstrar o valor do bem jurídico. O mesmo
ocorreu com a Lei Ambiental (Lei 9.605/98) e com a Lei de Preconceito Racial (Lei
7.716/89), quando as sanções penais aí impostas, se comparadas com àquelas previstas para
outras condutas igualmente graves, se acham desproporcionais.24
Mazzacuva apud Gomes e Bianchini justifica que o “o direito penal não pode criar
os interesses que pretende tutelar; a concepção promocional do Direito penal é incompatível
com o requisito da preexistência dos bens jurídicos.” 25
Também dispondo acerca das funções promocionais do direito penal, Basoco
apud Gomes e Bianchini assim dispõe:
[...] o direito “promocional” preconizado por Bobbio orienta-se mais para a idéia de
estímulo (motivação positiva) que pela de contra-estímulo (motivação negativa) e
por isso é um Direito que propicia rápida evolução social ou é, ao menos,
compatível com ela. De qualquer modo, a comunicação penal é somente uma
condition sine qua non dessa função: só pode aspirar e restringir, não incentivar.26
(grifo do autor)

23
O artigo 216-A do Código Penal assim dispõe: Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter
vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou
ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
Cf. BRASIL. Decreto-lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm >. Acesso em: 20 out. 2008.
24
GOMES; BIANCHINI, 2002, p. 100-101.
25
Ibid., p. 100.
26
Ibid., p. 102.
19

Destarte, fala-se em função promocional quando o direito penal é utilizado para


promover excessivamente determinado bem jurídico e, assim, aquietar os ânimos da
sociedade.
A função promocional (querer infundir na sociedade o respeito a valores por
intermédio do Direito penal) apresenta-se como o caminho mais imediato para se chegar a
outra função patológica do direito penal, qual seja a função simbólica ou retórica 27, como a
seguir demonstrar-se-á.
A chamada função simbólica ou retórica da pena se opõe às funções instrumentais
do direito penal, e é o meio pelo qual não se objetiva a solução de um dado conflito de
interesses, mas sim produzir uma impressão tranqüilizadora na opinião pública, de um
legislador atento e decidido. E mais, por meio da edição e aplicação das normas penais, cria-
se uma segurança jurídica, de modo a se restabelecer o status quo ante.28
Zaffaroni e Pierangeli destacam que o direito penal acaba sempre cumprindo uma
função simbólica, entretanto esta não pode ser a única função por ele cumprida:
É lógico que a pena, ainda que cumpra em relação aos fatos uma função preventiva
especial, sempre cumprirá também uma função simbólica. No entanto, quando só
cumpre esta última, será irracional e antijurídica, porque se vale de um homem
como instrumento para a sua simbolização, o usa como meio e não como um fim em
si, “coisifica” um homem, ou, por outras palavras, desconhece-lhe abertamente o
caráter de pessoa, com o que viola o princípio fundamental em que se assentam os
Direitos Humanos.29 (grifo do autor)
É muito comum o legislador recorrer à norma penal para apontar aos seus
destinatários uma impressão tranqüilizadora. No Brasil encontram-se alguns exemplos, tais
como a lei dos crimes hediondos (Lei n° 8.072/90), que aumentou consideravelmente as penas
30
dos crimes nela previstos. Posteriormente veio a Lei n° 9.426/96 , agravando as penas de
determinados delitos, dentre tantas outras leis que surgiram imediatamente à divulgação de
crimes que tiveram repercussão social na imprensa, levando o legislador a editar normas
penais que acalmassem o impacto das notícias veiculadas. Também é comum a decretação de
prisões provisórias, em razão da comoção social gerada pelo delito cometido. Entretanto, é
certo que estas normas penais, sejam ela simbólicas ou não, costumam causar, pelo menos
imediatamente à sua publicação, certa impressão de conforto e tranqüilidade. 31

27
GOMES; BIANCHINI, 2002, p. 102-103.
28
QUEIROZ, 2001, p. 54.
29
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 108.
30
A lei 9.426/96 aumentou a pena de alguns crimes, tais como furto de veículos, receptação e receptação
qualificada, dentre outros crimes, Cf. BRASIL. Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996. Altera dispositivos
do Decreto-lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal - Parte Especial. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9426.htm. Acesso em: 25 out. 2008.
31
QUEIROZ, op. cit., p. 55.
20

Ademais, conceber o direito penal com função simbólica significa inegavelmente


atribuir-lhe um papel pervertido, uma vez que o direito penal simbólico desatende-se da eficaz
proteção de bens jurídicos em função de outros fins que lhe são alheios, porque não visa ao
infrator potencial, para dissuadir-lhe, senão ao cidadão que cumpre as leis para tranqüilizar-
lhe, para acalmar a opinião pública.32
Um direito penal com função simbólica, não é legítimo, porque não cumpre com
suas funções primordiais. Deste modo García-Pablos apud Queiroz assevera que:
[...] um direito penal simbólico carece de toda legitimidade porque manipula o medo
ao delito e à insegurança, reage com rigor desnecessário e desproporcionado e se
preocupa exclusivamente com certos delitos e infratores, introduz um sem fim de
disposições excepcionais, a despeito de sua ineficácia ou impossível cumprimento e,
em médio prazo, desacredita o próprio ordenamento, minando o poder intimidatório
de suas prescrições. 33
Entretanto, afirmar que o direito penal possui função simbólica, necessariamente
não significa dizer que não produza efeitos, conforme se extrai da lição de Pereira de
Andrade:
Afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que ele não
produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes
predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica (e não
empírica) destas. A função simbólica é assim inseparável da instrumental à qual
serve de complemento e sua eficácia reside na aptidão para produzir certo número de
representações individuais ou coletivas, valorizantes ou desvalorizantes, com função
de “engano”. 34 (grifo do autor)
Portanto, um direito penal com função simbólica não protege necessariamente os
bens jurídicos. Visa alcançar apenas efeitos políticos que satisfaçam a coletividade,
descumprindo a sua função legítima e criando uma função enganadora que faz cessar a
confiança da população.

2.3 CONCEITO DE PENA

Desde o surgimento da raça humana, sempre existiram meios de punir aqueles


que desviassem sua conduta em relação aos demais indivíduos que fazem parte de
determinada sociedade.

32
GOMES; BIANCHINI, 2002, p. 103-104.
33
QUEIROZ, 2001, p. 56.
34
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do
controle penal. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 1997, p. 293.
21

As sociedades sempre tiveram seus meios para punir os transgressores de


condutas e, portanto, em cada sociedade a pena possui um significado. Segundo Lyra apud
Ferreira:
Não é certa a origem da palavra pena. Para uns viria do latim poena, significando
castigo, expiação [...], ou ainda do latim punere (por) e pondus (peso), no sentido de
contrabalançar, pesar [...]. Para outros, teria origem nas palavras gregas ponos,
poiné, de penomai, significando trabalho, fadiga, sofrimento e eus, de expiar, fazer o
bem, corrigir, ou no sânscrito (antiga língua clássica da Índia) punya, com a idéia de
pureza, virtude. Há quem diga que derive da palavra ultio empregada na Lei das XII
Tábuas para representar castigo como retribuição pelo mal praticado a quem
desrespeitar o mando da norma.35
Porém, ainda que não se tenha uma origem exata, tem-se notícia que desde a
criação do mundo, sempre foram impostas penas àqueles que descumprissem com seus
deveres, conforme assevera Greco:
A primeira pena a ser aplicada na história da humanidade ocorreu ainda no paraíso,
quando após ser induzida pela serpente, Eva, além de comer do fruto proibido, fez
também com que Adão o comesse, razão pela qual, além se serem aplicadas outras
sanções, foram expulsos do jardim do Éden. 36
Prossegue o autor afirmando que a pena imposta a Adão e Eva foi apenas o início,
tendo em vista que a partir de então o homem passou a viver em comunidade, e
conseqüentemente, adotou um sistema de aplicação de penas:
Após a primeira condenação aplicada por Deus, o homem, a partir do momento em
que passou a viver em comunidade, também adotou o sistema de aplicação de penas
toda vez que as regras da sociedade na qual estava inserido eram violadas.
Assim, várias legislações surgiram ao longo da existência da raça humana, que
tinham por finalidade esclarecer as penalidades cominadas a cada infração por elas
previstas [...].37
Segundo Ferreira, a pena “é a conseqüência jurídica – o mal que se impõe – que
implica a diminuição de bens jurídicos, ao autor imputável de fatos descritos na lei como
crimes.” 38
Consabidamente, a pena sempre fez parte da história das civilizações e continuará
fazendo, pois toda vez que alguém cometer um delito, a este será aplicado uma punição, haja
vista ter desviado sua conduta perante os demais indivíduos que compõem a sociedade.
Greco também observa que “a pena é a conseqüência natural imposta pelo Estado
quando alguém pratica uma infração penal. Quando o agente comete um fato típico, ilícito e
culpável, abre-se a possibilidade para o Estado de fazer valer o seu ius puniendi.” 39
Vê-se que a pena é a sanção imposta pelo Estado ao agente que pratica uma

35
FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 3.
36
GRECO, Rogério. Parte Geral. In ______ Curso de direito penal. 5. ed. rev. amp. e atual. Rio de Janeiro:
Impetus, 2005, v. 1, p. 543-544.
37
Ibid., p. 544.
38
FERREIRA, op. cit., p. 5.
39
GRECO, op. cit., p. 542.
22

infração penal. Nesse sentido Bitencourt acrescenta que “é quase unânime, no mundo da
ciência do Direito Penal, a afirmação de que a pena justifica-se por sua necessidade.” 40
Para Zaffaroni e Pierangeli “a pena não pode perseguir outro objetivo que não seja
o que persegue a lei penal e o direito penal em geral: a segurança jurídica. A pena deve aspirar
a prover segurança jurídica, pois seu objetivo deve ser a prevenção de futuras condutas
delitivas.” 41
Assim, percebe-se que a pena é a conseqüência imposta ao indivíduo, após um
devido processo penal, quando este praticar uma infração penal e violar as normas jurídicas.

2.4 FUNÇÕES DA PENA

Três são as teorias mais importantes que explicam quais são as funções da pena.
São elas: teorias absolutas, que vêem na pena a retribuição por um mal cometido; teorias
relativas, que atribuem à pena um caráter preventivo, seja em caráter geral ou especial e as
teorias mistas, que unem a idéia de retribuição e prevenção.

2.4.1 Teorias absolutas

As teorias absolutas são aquelas que entendem que a pena tem caráter retributivo.
Os defensores das teorias absolutas são Imannuel, Kant e Hegel e, segundo esses pensadores,
o mais importante é esclarecer qual a essência de punir ou qual a natureza. Para eles, só é
legítima a pena que seja justa, ainda que esta pena não seja útil. Tanto em Kant como em
Hegel, a justificação da pena é uma justificação idealista, quer dizer, que o direito que aí se
trata não corresponde com o direito como ele é, histórica e praticamente, mas como deve ou
deveria ser, idealmente falando. 42.
A pena é vista, sob o enfoque das teorias absolutistas, como uma forma de
retribuir um mal cometido. Pune-se o cometimento de um mal com a imposição de outro.
Neste sentido Queiroz dispõe que:

40
BITENCOURT, 2007, p. 80.
41
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 103-104.
42
QUEIROZ, 2001, p. 18-19.
23

As teorias absolutas, assim chamadas em contraposição às teorias relativas, ou


finalistas da pena, recebem tal denominação por verem, embora sob perspectivas
distintas e sob uma também distinta argumentação, a pena como um fim em si
mesmo, pena que, quer como realização da justiça, quer como expiação de um mal,
quer por razões de outra índole, se justifica pura e simplesmente pela verificação de
uma [sic] fato criminoso, cuja punição se impõe categoricamente; independendo,
pois, de considerações finais. A pena se justifica quia peccatum est, nisto esgotando
seu conteúdo. 43 (grifos do autor)
No mesmo sentido, Jescheck apud Bitencourt preconiza que:
O fundamento ideológico das teorias absolutas baseia-se no reconhecimento do
Estado como guardião da justiça terrena e como conjunto de idéias morais, na fé, na
capacidade do homem para se autodeterminar e na idéia de que a missão do Estado
perante os cidadãos deve limitar-se à proteção da liberdade individual. Nas teorias
absolutas co-existem, portanto, idéias liberais, individualistas e idealistas. 44
Para Kant apud Queiroz a pena é uma maneira de realização da justiça, e assim
preleciona que:
A pena atende a uma necessidade absoluta de justiça, que deriva de um “imperativo
categórico”, isto é, de um imperativo moral incondicional, independente de
considerações finais ou utilitárias. A pena basta a si mesma, como realização da
justiça, pois “as penas são, em um mundo regido por princípios morais (por Deus),
categoricamente necessárias”.45 (grifos do autor)
Confirmando a idéia defendida por Kant, Roxin preleciona que as teorias
absolutas também chamadas de teorias da retribuição, têm a pena como um fim em si mesma:
Pela chamada teoria da retribuição [...] o sentido da pena assenta em que a
culpabilidade do autor seja compensada mediante a imposição de um mal penal. A
justificação de tal procedimento não se depreende, para esta teoria, de quaisquer fins
a alcançar com a pena, mas apenas para a realização de um fim: a justiça. A pena
não serve, pois, para nada, contendo um fim em si mesma. Tem de existir para que a
justiça impere. 46
Logo, as teorias absolutas recebem também a denominação de teorias retributivas,
porque entendem que a pena tem o fim de retribuir ao agente que cometeu um mal, ou seja,
descumpriu uma norma penal, impondo-lhe outro mal e isto é feito através da restrição de um
bem jurídico.

2.4.2 Teorias relativas

De outro norte, também informando quais são as funções da pena, existem as


teorias relativas, que vêem a pena como a prevenção para que novos delitos não venham a ser
cometidos. Com base nestas teorias, Queiroz assevera que:

43
QUEIROZ, 2001, p. 18.
44
BITENCOURT, 2007, p. 83.
45
QUEIROZ, op. cit., p. 20.
46
ROXIN, 1998, p. 16.
24

Em oposição às absolutas, as teorias relativas são marcadamente teorias finalistas, já


que vêem a pena não como um fim em si mesma, mas como um meio a serviço de
determinados fins; considerando-a, pois, utilitariamente. Fim da pena, em suas
várias versões, é a prevenção de novos delitos, seja em caráter geral, atuando sobre a
generalidade dos seus destinatários, seja em caráter especial, dirigida a atuar sobre o
ânimo daqueles que já tenham incorrido na prática de crime.47
Zaffaroni e Pierangeli destacam que “as teorias relativas desenvolveram-se em
oposição às teorias absolutas, concebendo a pena como um meio para obtenção de ulteriores
objetivos.” 48
Ferreira ao tratar sobre as teorias relativas alega que “muito ao contrário das
teorias absolutas, [...] as teorias relativas se voltam para o futuro atingindo o delinqüente não
para lhe impingir um mal, mas para evitar que volte a delinqüir ou que incentive outros a
fazê-lo, pelo seu mau exemplo.” 49
Prossegue o autor afirmando que “a punição visa à prevenção, como meio de
segurança social e defesa da sociedade. A pena, pois, não é retribuição, e sim um instrumento
útil capaz de evitar crime, pelo temor que impõe. Pune-se ne peccetur.” 50
As teorias relativas se opõem às teorias absolutas, por entender que a função da
pena não é retribuir um mal cometido com a imposição de outro, mas sim prevenir que novos
delitos venham a ser cometidos.
Estas teorias se opõem as teorias absolutas e prevêem uma efetiva finalidade para
a pena. Na concepção destas teorias, a pena se explica por seus efeitos de prevenção geral,
atuando sobre a generalidade dos destinatários e prevenção especial, dirigindo-se ao agente
que já delinqüiu.51
Destarte, observa-se que as teorias relativas, vêem a pena como meio de
prevenção, e não de retribuição. Esta prevenção pode ser exercida de duas formas: em caráter
geral e em caráter especial.

2.4.2.1 Prevenção geral

A prevenção geral busca prevenir que novos delitos sejam cometidos. Neste
sentido Feuerbach apud Bitencourt defende que:
47
QUEIROZ, 2001, p. 35-36.
48
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 120.
49
FERREIRA, 1995, p. 26
50
Ibid., 26-27
51
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 131.
25

É através do Direito Penal que se pode dar uma solução ao problema da


criminalidade. Isto se consegue, de um lado, com a cominação penal, isto é, com a
ameaça da pena, avisando aos membros da sociedade quais as ações injustas contra
as quais se reagirá; e, por outro lado, com a aplicação da pena cominada, deixa-se
patente a disposição de cumprir a ameaça realizada.52
Prossegue o autor afirmando que “para a teoria da prevenção geral, a ameaça da
pena produz no indivíduo uma espécie de motivação para não cometer delitos.” 53
No mesmo sentido Queiroz justifica que a “função, pois, da pena, é prevenção
geral de delitos, por meio de uma “coação psicológica” exercitada sobre a comunidade
jurídica, a intimidar ou contramotivar a generalidade das pessoas às quais a norma se
dirige.”54
Essa prevenção geral que atua como uma forma de intimidação para que outros
delitos não sejam praticados, é encarada de duas formas: a prevenção geral negativa e a
prevenção geral positiva.
De acordo com Shecaira e Corrêa Júnior pela “teoria da prevenção geral, em seu
sentido negativo, a pena deve produzir efeitos de intimidação sobre a generalidade das
pessoas, atemorizando os possíveis infratores a fim de que estes não cometam quaisquer
delitos.” 55
Corroborando com a idéia, Greco justifica que a prevenção geral negativa produz
um efeito de intimidação:
Pela prevenção geral negativa, conhecida também pela expressão prevenção por
intimidação, a pena aplicada ao autor da infração penal tende a refletir junto à
sociedade, evitando-se, assim, que as demais pessoas, que se encontram com os
olhos voltados a condenação de um de seus pares, reflitam antes de praticar
qualquer infração penal. 56 (grifos do autor)
De outro norte, a teoria da prevenção geral é encarada em sentido positivo.
Shecaira e Corrêa Júnior prelecionam a respeito do assunto:
Por outro lado, a prevenção geral pode ser encarada no sentido positivo ou de
integração; não pela gravidade da pena com fim de intimidação – o que implicaria
um dever moral de graduá-la ao máximo -, mas como resultado de eficaz atuação da
justiça e da consciência que a sociedade passará a ter sobre esta realidade. 57
Seguindo o mesmo raciocínio, Queiroz demonstra que a prevenção geral positiva
busca incutir na consciência dos indivíduos que compõem a sociedade, o respeito a alguns
valores:
Para os defensores da prevenção integradora ou positiva, a pena presta-se não à
prevenção negativa de delitos, demovendo potenciais infratores, tampouco
dissuadindo aqueles que já tenham incorrido na prática de delito; seu propósito vai,

52
BITENCOURT, 2007, p. 89-90.
53
Ibid., p. 90.
54
QUEIROZ, 2001, p. 36.
55
SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, 2002, p. 132.
56
GRECO, 2005, p. 548.
57
SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, loc. cit.
26

além disso: infundir, na consciência geral, a necessidade de respeito a determinados


valores, exercitando a fidelidade ao direito; promovendo, em última análise, a
integração social. 58
A prevenção geral positiva pode ser definida, ainda, nas palavras de Hassemer
apud Shecaira e Corrêa Júnior como a “reação estatal ante fatos puníveis para a proteção da
consciência social da norma; ajuda ao agente do delito para reinserção social; e a limitação
dessa ajuda imposta por critérios de proporcionalidade.” 59
Assim, denota-se que a prevenção geral positiva busca ponderar a racionalidade
do homem, para que continue esperando que seus bens jurídicos sejam protegidos e também
fazendo com que os indivíduos que cumprem as leis, continuem cumprindo e não venham a
delinqüir.

2.4.2.2 Prevenção especial

As teorias relativas entendem que a pena tem função de prevenção. Esta


prevenção pode ser geral, como já demonstrado no tópico anterior ou especial, conforme se
extrai da lição de Queiroz:
Para os teóricos desta corrente, a intervenção penal serve à neutralização dos
impulsos criminosos de quem já incidiu na prática de crime, o delinqüente,
impedindo-o de praticar novos delitos. Dito mais claramente: fim da pena é evitar a
reincidência. A prevenção de novos delitos já não se dirige, portanto, à generalidade
das pessoas, mas ao infrator da norma em particular. 60
A prevenção especial visa o indivíduo que já delinqüiu e busca impedir que o
mesmo venha a praticar novos delitos. Deste modo Roxin assinala que:
[...] a teoria da prevenção especial “não pretende retribuir o facto [sic] passado,
assentando a justificação da pena na prevenção de novos delitos do autor. Tal pode
ocorrer de três maneiras: corrigindo o corrigível, isto é, o que hoje chamamos de
ressocialização; intimidando o que pelo menos é intimidável; e finalmente, tornando
inofensivo mediante a pena de privação de liberdade os que não são nem corrigíveis
nem intimidáveis. 61
A função da pena diante da prevenção especial, nas palavras de Shecaira e Corrêa
Júnior “tem um caráter humanista, pois põe um acento no indivíduo, considerando suas
peculiaridades, permitindo uma melhor individualização do remédio penal. Além disso, sua
atuação específica permite o aperfeiçoamento do trabalho de reinserção social.” 62

58
QUEIROZ, 2001, p. 40.
59
SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, 2002, p. 132.
60
QUEIROZ, op. cit., p. 56.
61
ROXIN, 1998, p. 20.
62
SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, op. cit., p. 133-134.
27

A teoria da prevenção especial dirige-se exclusivamente àquele indivíduo que já


cometeu algum delito, tentando evitar com que o mesmo volte a infringir as normas.
Vários são os vocábulos usados para designar a prevenção especial, inclusive,
Zaffaroni e Pierangeli destacam que “vocábulos como “reeducação”, “ressocialização”, etc. e,
freqüentemente, a sua instrumentalização na forma de “tratamento penitenciário”, ao qual se
atribui uma função bastante análoga à do tratamento médico. [...] Com isso denotamos que a
prevenção penal é prevenção especial [...]” 63 (grifos do autor)
Compartilhando também da idéia de que a prevenção especial visa o indivíduo
que já delinqüiu, Queiroz preleciona ainda:
Em sua versão mais radical, a teoria da prevenção especial pretende a substituição
da justiça penal por uma “medicina social”, cuja missão é o saneamento social, seja
pela aplicação de medidas terapêuticas, visando ao tratamento do delinqüente,
tornando-o, por assim dizer, dócil, seja pela sua segregação, provisória ou definitiva,
seja, enfim, submetendo-o a um tratamento ressocializador que lhe anule as
tendências criminosas.64 (grifos do autor)
A prevenção especial não busca a intimidação do grupo social nem a retribuição
de fatos já praticados. Ela visa tão somente o indivíduo que praticou algum delito, buscando
com que o mesmo não venha a transgredir novamente as normas jurídico-penais. Não se
busca o castigo ou a intimidação, mas sim a correção e a ressocialização.65
Portanto, quando se fala em prevenção especial, logo vem uma idéia de correção,
de reeducação do agente que praticou o delito, na tentativa de evitar que o mesmo volte a
delinqüir.

2.4.3 Teorias mistas

Além das teorias absolutas e relativas, encontram-se as teorias mistas ou unitárias,


que por sua vez o Código Penal brasileiro adotou, conforme consta no artigo 59, caput, in
verbis:
Art. 59. O juiz, atendendo a culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias do crime, bem como ao
comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime. 66

63
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 108.
64
QUEIROZ, 2001, p. 57.
65
BITENCOURT, 2007, p. 94.
66
BRASIL, 1940, loc. cit.
28

Nas palavras de Ferreira as teorias mistas atuam “como meio termo entre as
teorias absolutas e relativas, que, conciliando, atribuem duplo fundamento à pena. Para elas,
portanto, a pena tem duas razões: a retribuição, manifestada através do castigo; e a prevenção,
como instrumento de defesa da sociedade.” 67
Estas teorias não visam especificamente retribuir ou prevenir, mas sim retribuir e
prevenir ao mesmo tempo. Corroborando com esta teoria Jescheck apud Queiroz justifica que:
As teorias unitárias intentam, assim, [...] mediar entre as teorias absolutas e
relativas, não, naturalmente, somando sem mais suas contraditórias idéias básicas,
mas mediante a reflexão prática de que a pena, na realidade de sua aplicação, pode
desenvolver a totalidade de suas funções frente à pessoa afetada e seu mundo
circundante, de maneira que o que importa é conseguir uma relação equilibrada
entre todos os fins da pena (método dialético), servindo assim de ponte entre umas e
outras.68
As teorias mistas ou unificadoras tentam agrupar em um conceito único os fins da
pena. Tais teorias partem da crítica às soluções monistas, ou seja, às teses sustentadas pelas
teorias absolutas ou relativas da pena. Aceitam a retribuição e o princípio da culpabilidade
como critérios limitadores da intervenção da pena como sanção jurídico-penal. Assim, a pena
não pode, pois, ir além da responsabilidade decorrente do fato praticado.69
Porém, quer seja para fins de retribuição ou de prevenção “em realidade, a pena,
hoje, só se justifica, se tiver por objetivo evitar o cometimento de novos crimes.
ressocializando o criminoso. O punir por punir em obediência cega a um dogmatismo ético
não tem mais sentido.” 70
Portanto, observa-se que as teorias mistas, como o próprio nome pressupõe, unem
a idéia de retribuição, defendida pelas teorias absolutas e a idéia de prevenção, fundamento
das teorias relativas, idéia esta adotada pelo Código Penal brasileiro.

67
FERREIRA, 1995, p. 29.
68
QUEIROZ, 2001, p. 66.
69
BITENCOURT, 2007, p. 95-96.
70
FERREIRA, op. cit., p. 30.
29

3 HOMICÍDIO

Neste capítulo, busca-se elencar os principais aspectos do delito de homicídio,


crime este que está inserido no Código Penal como o primeiro do rol dos crimes praticados
contra a vida.
Este capítulo apresenta o conceito, a objetividade jurídica, os sujeitos do crime e,
precipuamente, os elementos subjetivos do tipo penal, quais sejam, a culpa, que se subdivide
em consciente e inconsciente e o dolo, que pode ser direto e indireto, podendo ser este
eventual e alternativo.
Estas considerações são de fundamental importância para a análise e compreensão
do tema proposto.

3.1 CONCEITO

O delito de homicídio é um crime que ocorre com bastante freqüência nas


sociedades, sempre causando muita repercussão por atentar contra a vida de um ser humano.
Este delito está inserido no artigo 121 caput do Código Penal brasileiro, que assim
dispõe, in verbis: “Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos.” 1
O conceito deste crime é de fácil compreensão, uma vez que consiste na morte de
uma pessoa, provocada por outra. Corroborando com este entendimento, Jesus define o
homicídio como “a destruição da vida de um homem praticada por outro.” 2
Prado preconiza que “o homicídio consiste na destruição da vida humana alheia
3
por outrem.” Portanto, apenas quando um ser humano tira a vida de outro, há o delito de
homicídio.
Compartilhando deste conceito, Hungria e Fragoso também dispõem que:
O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na
orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinqüência violenta
ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas

1
BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em 14 out. 2008.
2
JESUS, Damásio E. de. Parte especial: dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio. In: ______
Direito penal. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, p. 17.
3
PRADO, Luiz Regis. Parte especial, arts. 121 a 183. In: ______ Curso de direito penal brasileiro. 2. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 2, p. 43.
30

[...]. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada.4


(grifos do autor)
Portanto, o delito de homicídio previsto no artigo 121 caput do Código Penal,
descreve apenas a conduta matar alguém, ou seja, é o crime praticado contra a vida de um ser
humano. Sempre que um homem tirar a vida de outro homem, sem levar em consideração as
circunstâncias que levaram a prática desta conduta, tem-se a prática do delito de homicídio.

3.2 OBJETIVIDADE JURÍDICA

Apresentado o conceito do delito de homicídio, este tópico busca demonstrar qual


o objeto jurídico, ou seja, qual o bem jurídico atingido pela conduta criminosa.
O objeto jurídico de um crime é o bem jurídico, quer dizer, o interesse que a
norma penal protege. A disposição dos títulos e capítulos da Parte Especial do Código Penal
obedece a um critério que leva em consideração o objeto jurídico do crime e coloca em
primeiro lugar os bens jurídicos mais importantes, como a vida, a integridade corporal, a
honra, etc. O homicídio é o crime que inaugura a Parte Especial do Código Penal e tem como
objeto jurídico a vida humana extra-uterina.5
Quando dispõe acerca da objetividade jurídica do delito de homicídio, Noronha
preconiza que “como deixa claro o nome do capítulo – Dos crimes contra a vida – é esta o
objeto jurídico tutelado, não só pelo art. 121 [do Código Penal] como também por todos que
integram aquele, com a nuança de vida intra-uterina ou biológica no crime de aborto.” 6 (grifo
do autor)
O objeto jurídico do delito de homicídio, qual seja, a vida de um ser humano, é de
tamanha importância que já se encontra disposto no próprio nome do capítulo no qual o artigo
121 do Código Penal está inserido.
De acordo com Fukassawa “no caso de homicídio, o bem jurídico tutelado pela
norma é a vida humana, o supremo “bem individual” no dizer magistral de Nelson Hungria.”7

4
HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal: Decreto-Lei n. 2.848, de 7
de dezembro de 1940. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, v. 5, p. 25.
5
CAPEZ, Fernando. Parte especial. In: ______ Curso de direito penal. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2003, v.2, p. 3
6
NORONHA, E. Magalhães. Dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio. In: ______ Direito
penal. 34. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 16.
7
FUKASSAWA, Fernando Y. Crimes de trânsito: de acordo com a Lei nº 9.503, de 23-9-1997, Código de
Trânsito Brasileiro. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 116.
31

Toda vez que ocorre um crime de homicídio, uma pessoa perde a vida. Portanto,
necessariamente o objeto jurídico neste caso é a vida de um ser humano, bem jurídico este
tutelado pela Constituição da República Federativa do Brasil como um dos mais importantes.
Neste sentido, Prado esclarece:
O bem jurídico tutelado é a vida humana independente. A proteção de tão relevante
bem jurídico é imperativo de ordem constitucional. Com efeito, o bem jurídico vida
humana é assegurado pela Constituição Federal, que expressamente estabelece:
“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à segurança e à propriedade” (art. 5°, caput, CF).8 (grifos do autor)
Prado também afirma que “a garantia da vida humana não admite restrição ou
distinção de qualquer espécie. Ou seja, protege-se a vida humana de quem quer que seja,
independentemente da raça, sexo, idade ou condição social. [...] configura o delito de
homicídio a morte dada a qualquer pessoa [...].” 9
Logo, o bem jurídico tutelado no delito de homicídio é a vida humana, sendo
irrelevante para tanto, o meio empregado para se obter o resultado e as condições em que o
crime ocorreu, que podem constituir circunstâncias qualificadoras.

3.3 SUJEITOS

Os sujeitos de um crime são os agentes que praticam a conduta e também os


agentes que sofrem os resultados desta.
No homicídio, assim como em todos os crimes previstos na legislação pátria,
existem o sujeito ativo e o passivo, sem os quais é impossível a caracterização do delito.

3.3.1 Sujeito ativo

O sujeito ativo de um crime é aquele que pratica a conduta descrita na lei, ou seja,
o fato típico. Apenas o homem, quer seja sozinho ou associado a outros (co-autoria ou

8
PRADO, 2002, p. 43-44.
9
Ibid., p. 44.
32

participação) pode ser sujeito ativo de um crime.10


Tratando-se do sujeito ativo no caso do delito de homicídio, Capez preconiza:
Sujeito ativo da conduta típica é o ser humano que pratica a figura típica descrita na
lei, isolada ou conjuntamente com outros autores. O conceito abrange não só aquele
que pratica o núcleo da figura típica (quem mata), como também o partícipe, que é
aquele que, sem praticar o verbo (núcleo) do tipo, concorre de algum modo para a
produção do resultado.11
Noronha observa que o sujeito ativo “é quem pratica a figura típica descrita na lei.
É o homem, é a criatura humana, isolada ou associada, isto é, por autoria singular ou co-
autoria. Só ele pode ser agente ou autor do crime.” 12 (grifos do autor)
Segundo Prado “qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de homicídio. O
tipo penal não exige nenhuma qualificação especial (delito comum).” 13
Observa-se que o homicídio não exige nenhum requisito específico para legitimar
o sujeito ativo. Qualquer pessoa que tira a vida de outra pessoa será considerada sujeito ativo,
tendo em vista ser um delito comum, que qualquer ser humano pode praticar.
O homicídio é um tipo comum que não contém nenhuma exigência especial da
pessoa do sujeito ativo ou passivo. Por não ser crime próprio, não exige legitimidade ativa ou
passiva. Este tipo de delito pode ser cometido por qualquer pessoa.14
Destarte, por se tratar de crime comum que pode ser cometido por qualquer ser
humano, a figura do sujeito ativo não exige qualquer requisito específico. Basta que o
indivíduo pratique determinada conduta que tire a vida de outro indivíduo.

3.3.2 Sujeito passivo

Assim como é necessária a figura do sujeito ativo no delito de homicídio, a figura


do sujeito passivo também é imprescindível para a caracterização deste.
O sujeito passivo, nas palavras de Bitencourt “é o titular do bem jurídico atingido
pela conduta criminosa. Sujeito passivo do crime pode ser: o ser humano (ex. crimes contra a

10
MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Parte Geral, arts. 1º a 120 do CP, conforme Lei n. 7.209,
de 11-07-84. In: ______ Manual de direito penal. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2007, v. 1, p. 110.
11
CAPEZ, 2003, p. 10.
12
NORONHA, E. Magalhães. Introdução e parte geral. In: ______ Direito penal. 34. ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 1999, v. 1, p. 113.
13
PRADO, 2002, p. 45.
14
JESUS, 2007, p. 20.
33

pessoa), o Estado (ex: crimes contra a Administração Pública); [...] e, inclusive, pode ser a
pessoa jurídica (ex: crimes contra o patrimônio).” 15 (grifos do autor)
Mirabete e Fabbrini complementam justificando que o “sujeito passivo do crime é
o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa. Nada impede que, dois
ou mais sujeitos passivos existam: desde que tenham sido lesados ou ameaçados em seus bens
jurídicos referidos no tipo, são vítimas do crime.” 16
No caso do delito de homicídio Hungria e Fragoso preconizam que “o sujeito
passivo do homicídio é o “ser vivo, nascido da mulher”. A destruição do embrião ou feto
humano no útero materno não é homicídio, contemplando-a a lei penal sob o nomem juris de
abôrto [sic], menos severamente punido.” 17 (grifos do autor)
O sujeito passivo, assim como o sujeito ativo, pode ser qualquer pessoa que tenha
nascido com vida. Não há exigência de nenhum requisito especial para legitimação do sujeito
passivo, conforme se extrai da lição de Prado:
Basta, para a caracterização do delito em tela que o sujeito passivo esteja vivo. Não
importa seu grau de vitalidade ou a existência ou não de capacidade de
sobrevivência. A presença de condições orgânicas precárias que impeçam a
continuidade da vida não afasta a configuração do delito.18
Complementando o entendimento de que não importa o grau de vitalidade do
indivíduo, e que qualquer ser humano pode ser sujeito passivo no homicídio, Capez
preleciona:
[...] não é importante perquirir o grau de vitalidade da vítima, ou seja, se ela tem
poucos minutos de vida, ou então, se apresenta um quadro clínico vegetativo por
não mais haver solução médica para o seu caso. Enquanto houver vida, ainda que
sem qualidade, o homem será sujeito passivo do delito de homicídio. 19
Logo, o sujeito passivo no delito de homicídio pode ser qualquer pessoa que esteja
vivo, não interessando quais as condições físicas ou o grau de vitalidade no momento em que
o crime se consuma.

3.4 ELEMENTO SUBJETIVO

Todos os crimes dispostos no Código Penal apresentam um elemento subjetivo,

15
BITENCOURT, Cezar Roberto. Parte geral. In: ______ Tratado de direito penal. 11 ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 2007, v. 1, p. 231.
16
MIRABETE; FABBRINI, 2007, p. 114.
17
HUNGRIA; FRAGOSO, 1981, p. 36.
18
PRADO, 2002, p. 46.
19
CAPEZ, 2003, p. 11.
34

que nas palavras de Wessels apud Bitencourt “são dados ou circunstâncias que pertencem ao
20
campo psíquico-espiritual e ao mundo de representação do autor.” No caso do delito de
homicídio não é diferente, pois sempre haverá um elemento subjetivo quando este ocorrer.
No caso de homicídio, os elementos subjetivos necessários para a caracterização
do delito são a culpa ou o dolo. Sem a existência de um deles não há crime.
Este tópico abordará os elementos subjetivos culpa, na forma consciente e
inconsciente e o dolo, direto ou indireto, este subdividido em eventual e alternativo, conforme
a seguir se demonstrará.

3.4.1 Culpa

O direito penal se interessa apenas pela conduta humana quando esta agir culposa
ou dolosamente. A ausência de culpa ou dolo pressupõe ausência de fato típico e,
conseqüentemente, inexistência de infração penal.
No caso do delito de homicídio a regra é que este seja doloso, entretanto, o artigo
18, parágrafo único do Código Penal dispõe que “salvo os casos expressos em lei, ninguém
pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.” 21
Destarte, a possibilidade do delito de homicídio ser culposo, está expressa nos
artigos 121, § 3° do Código Penal que dispõe: “Art. 121 – Matar alguém: Pena - reclusão, de
seis a vinte anos. [...] § 3°: Se o homicídio é culposo: Pena - detenção, de um a três anos” 22 e
no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, in verbis: “Art. 302. Praticar homicídio
culposo na direção de veículo automotor: Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão
ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” 23, ou
seja, estes são casos que a lei autoriza a punição do sujeito ativo na modalidade culposa.
No momento, interessa apenas discorrer sobre a culpa e suas espécies, culpa
consciente e inconsciente, sendo que o elemento subjetivo dolo será apresentado no tópico
subseqüente.
Primeiramente, vale ressaltar os ensinamentos de Noronha quando dispõe acerca
da diferenciação da culpa em lato sensu e stricto sensu. Segundo o autor “o vocábulo culpa,

20
BITENCOURT, 2007, p. 263.
21
BRASIL, 1940, loc. cit.
22
Ibid.
23
Id. Lei n° 9.503 de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9503.htm> Acesso em: 26 out. 2008
35

em sentido amplo (lato sensu) equivale à culpabilidade, compreendendo o dolo e a culpa em


sentido estrito (stricto sensu). Conseqüentemente esta é uma das formas da culpabilidade
[...].” 24 (grifos do autor)
Discorrendo sobre a culpa em sentido estrito Bataglini apud Bitencourt dispõe que
“culpa é a inobservância do dever de cuidado manifestada numa conduta produtora de um
resultado não querido, objetivamente previsível.” 25
Hungria e Fragoso, por sua vez, informam que a culpa “é a omissão da atenção ou
diligência normalmente empregadas para prever ou evitar a lesão de bens ou interesses
jurídicos alheios.” 26
Confirmando a idéia de que a culpa consiste na omissão do dever de cuidado
Capez dispõe que, se tratando da modalidade culposa “há uma ação voluntária dirigida a uma
finalidade lícita, mas, pela quebra do dever de cuidado a todos exigido, sobrevém um
resultado ilícito não querido, cujo risco nem sequer foi assumido.” 27
Para configuração do elemento subjetivo culpa é necessário que o agente tenha
deixado de agir com zelo e diligência necessários, e assim, cometido o delito.
Mirabete e Fabbrini conceituam a culpa como “a conduta voluntária (ação ou
omissão) que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente
previsto, que podia, com a devida atenção, ter evitado.” 28
A violação de um dever de cuidado para configuração da culpa é também
defendida por Zaffaroni e Pierangeli:
O tipo culposo não individualiza a conduta pela finalidade e sim porque na forma
em que se obtém essa finalidade viola-se um dever de cuidado, ou seja, como diz a
própria lei penal, a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por imprudência,
negligência ou imperícia. [...] 29
A realização de uma conduta sem o cuidado necessário, resultando em lesão ou
perigo a um bem jurídico, protegido pela norma penal, é o que caracteriza o elemento
subjetivo culpa.
Na modalidade culposa, o resultado final não é o pretendido pelo agente. Neste
sentido Costa Júnior apud Greco justifica que: “A ação culposa caracteriza-se por uma
deficiência na execução da direção final. E esta deficiência se deve ao fato de a orientação dos

24
NORONHA, 1999, p. 140.
25
BITENCOURT, 2007, p. 278.
26
HUNGRIA; FRAGOSO, 1981, p. 47.
27
CAPEZ, 2003, p. 62-63.
28
MIRABETE; FABBRINI, 2007, p. 136.
29
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral.
2 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 506.
36

meios não corresponder àquela que deveria em realidade ser imprimida para evitar as lesões
aos bens jurídicos.” 30
Deste modo, entende-se que para a configuração do delito na modalidade culposa,
alguns elementos são necessários. Greco assim destaca:
[...] para a caracterização do delito culposo é necessário a conjugação de vários
elementos, a saber:
a) conduta humana voluntária, comissiva ou omissiva;
b) inobservância de um dever objetivo de cuidado (negligência, imprudência ou
imperícia);
c) o resultado lesivo não querido, tampouco assumido pelo agente;
d) nexo de causalidade entre a conduta do agente que deixa de observar o seu dever
de cuidado e o resultado lesivo dele advindo;
e) previsibilidade;
f) tipicidade. 31
Com relação à conduta humana voluntária comissiva ou omissiva, basta que o
agente pratique uma ação (comissão) ou deixe de praticar (omissão), e dessa ação resulte
ofensa a um bem jurídico.
No tocante ao dever objetivo de cuidado, Bitencourt assevera que tal elemento
consiste “em reconhecer o perigo para o bem jurídico tutelado e preocupar-se com as
possíveis conseqüências que uma conduta descuidada pode produzir-lhe, deixando de praticá-
la, ou, então, executá-la, somente depois de adotar as necessárias [...] precauções para evitá-
lo.” 32
O resultado final deve ser diverso daquele pretendido pelo agente e,
principalmente deve ser conseqüência da inobservância do cuidado devido. Em outras
palavras, é indispensável que a inobservância do cuidado devido seja a causa do resultado
tipificado como crime culposo.33
Também fazendo parte da definição da culpa, encontramos a previsibilidade, que
segundo Noronha consiste:
Na possibilidade de se prever um fato. Diz-se haver previsibilidade quando o
indivíduo, nas circunstâncias em que se encontrava, podia ter-se representado como
possível a conseqüência de sua ação. Distingue-se da previsão, porque esta a
contém. O previsto é sempre previsível. A previsão é o desenvolvimento natural da
previsibilidade. 34

30
GRECO, Rogério. Parte Geral. In: ______ Curso de direito penal. 5. ed. rev. amp. e atual. Rio de Janeiro:
Impetus, 2005, v. 1, p. 198.
31
Ibid., p. 197.
32
BITENCOURT, 2007, p. 281.
33
Ibid., p. 282-283.
34
NORONHA, 1999, 141.
37

O elemento subjetivo culpa, está previsto no artigo 18, inciso II, do Código Penal,
in verbis: “Art. 18 - Diz-se o crime: [...] II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado
por imprudência, negligência ou imperícia.” 35
Conforme se extrai da leitura do artigo 18 do Código Penal brasileiro, existem três
modalidades de culpa: imprudência, negligência e imperícia.
A primeira delas, a imprudência é apresentada por Bruno apud Greco como a
modalidade de culpa que “consiste na prática de um ato perigoso sem os cuidados que o caso
36
requer.” Logo, o agente age de forma perigosa, abrindo mão do zelo que deveria ter em
determinada situação.
A imprudência é caracterizada pela prática de uma conduta de maneira arriscada,
perigosa e tem caráter comissivo. É uma imprevisão ativa, que se caracteriza pela
precipitação, insensatez ou imoderação do agente.37
Outra modalidade de culpa, também insculpida no artigo 18 do Código Penal, é a
negligência. A respeito desta modalidade, Noronha preconiza que:
[...] é inação, inércia e passividade. Decorre de inatividade material (corpórea) ou
subjetiva (psíquica). Reduz-se a um comportamento negativo. Negligente é quem,
podendo e devendo agir de determinado modo, por indolência ou preguiça mental,
não age ou se comporta de modo diverso.38
Corroborando com o entendimento de que a negligência consiste em indiferença
quando da prática de certa conduta, Bitencourt assevera que “negligência é a displicência no
agir, falta de precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar as cautelas necessárias,
não o faz. É a imprevisão passiva, o desleixo, a inação (culpa in ommitendo). É não fazer o
que deveria ter feito. 39
Por último, como terceira modalidade da culpa, denota-se a imperícia,
caracterizada pela “falta de capacidade, despreparo ou insuficiência de conhecimentos
técnicos para o exercício de arte, profissão ou ofício.” 40
Também contemplando a idéia, Greco dispõe que “fala-se em imperícia quando
ocorre uma inaptidão, momentânea ou não, do agente para o exercício de arte, profissão ou
ofício. Diz-se que a imperícia está ligada, basicamente, à atividade profissional do agente.” 41
(grifo do autor)

35
BRASIL. 1940, loc. cit.
36
GRECO, 2007, p. 205.
37
BITENCOURT, 2007, p. 285.
38
NORONHA, 1999, p. 144.
39
BITENCOURT, loc. cit.
40
Ibid., p. 286.
41
GRECO, loc. cit.
38

Destarte, vislumbra-se que a culpa consiste na prática de certa conduta sem o


dever de cuidado necessário, quer seja por imprudência, imperícia ou negligência, e o
resultado dessa conduta acaba lesando um bem jurídico, o que não era objetivado pelo agente,
mas previsível para o homem médio.
O elemento subjetivo culpa apresenta duas espécies: culpa consciente e culpa
inconsciente, sendo ambas objeto de estudo nos próximos tópicos.

3.4.1.1 Culpa consciente

Neste tópico abordar-se-ão os principais aspectos da culpa consciente, apresentada


como uma das espécies da culpa e tão debatida atualmente, por ser um elemento que muitas
vezes está presente quando ocorre um homicídio.
A culpa consciente pode ser definida também como a culpa com previsão, pois o
agente deixa de observar a diligência a que estava obrigado, prevê um resultado, previsível,
mas confiante em sua habilidade, tem a certeza que ele não ocorrerá. Embora prevendo o
resultado, acredita que este não acontecerá. 42
Ao tratar sobre o assunto, Noronha preconiza que “na culpa consciente ou com
previsão (culpa ex lascivia), o sujeito ativo prevê o resultado, porém espera que não se
efetive. Avizinha-se bastante do dolo eventual, mas nem por isso constitui modalidade mais
grave do que aquela [culpa inconsciente].” 43 (grifos do autor)
Esta espécie de culpa sempre é motivo de acirradas discussões, por se assemelhar
ao dolo eventual, uma vez que o sujeito age convicto de que não produzirá o evento lesivo,
entretanto não se preocupa muito em tentar evitá-lo, pois acredita que o mesmo não vai
ocorrer.
Confirmando este posicionamento, Hungria e Fragoso vislumbram a figura da
culpa consciente “quando, previsto o evento como possível, não procurou o agente evitá-lo
(pressuposta a sua evitabilidade), esperando, sincera, mas levianamente, que não ocorresse.”44
Para Zaffaroni e Pierangeli a culpa consciente é também chamada de culpa com
representação, e assim se manifesta:

42
BITENCOURT, 2007, p. 287.
43
NORONHA, 1999, p. 143.
44
HUNGRIA; FRAGOSO, 1981, p. 47.
39

Chama-se culpa com representação ou culpa consciente aquela em que o sujeito


ativo representou para si a possibilidade da produção do resultado, embora a tenha
rejeitado, na crença de que, chegado o momento, poderá evitá-lo ou simplesmente
ele não ocorrerá. Este é o limite entre a culpa e o dolo (dolo eventual). Aqui há um
conhecimento efetivo do perigo que correm os bens jurídicos, que não se deve
confundir com a aceitação da possibilidade de produção do resultado [...]. Na culpa
com representação, a única coisa que se conhece efetivamente é o perigo. 45 (grifos
do autor)
No caso de homicídio, observa-se que o sujeito age com a chamada culpa
consciente quando tem conhecimento que o resultado morte poderá ocorrer, entretanto,
confiante em sua habilidade, acredita que pode evitá-lo, daí também chamá-la de culpa com
previsão.
Em se tratando de culpa consciente, o valor negativo do resultado é para o agente,
mais forte do que o valor que atribui à prática da ação. Portanto, se estivesse convencido de
que o resultado lesivo pudesse ocorrer, certamente desistiria da ação. Mas, não estando
convencido dessa possibilidade, calcula mal e age.46
Jesus observa que “a previsão é elemento do dolo, mas que, excepcionalmente
pode integrar a culpa em sentido estrito. A exceção está na culpa consciente.” 47
O autor prossegue afirmando que “o agente não quer o resultado, não assume o
risco de reproduzi-lo e nem lhe é tolerável ou indiferente. O evento lhe é representado
(previsto), mas confia em sua não produção.” 48
Na culpa consciente, embora prevendo o possível resultado, o agente acredita
sinceramente na sua não-ocorrência. O resultado previsto não é assumido ou querido pelo
mesmo, pois confia em suas habilidades pessoais.49
O entendimento de que na culpa consciente o sujeito ativo prevê o resultado, mas
não o assume, é corroborado com Costa Júnior apud Shecaira e Corrêa Júnior. Vejamos:
[...] na culpa consciente o agente não aceita a realização do evento: repele
mentalmente o resultado previsto, agindo na esperança ou na persuasão de que o
evento não irá verificar-se. Na culpa consciente há uma previsão negativa. O evento
não se verificará. [...] Na culpa consciente o que ocorre é um erro de cálculo,
decorrente de uma falsa representação.50
Portanto, na culpa consciente o agente não busca o resultado, tampouco assume o
risco de produzi-lo. Confia em sua habilidade e tem a certeza que o evento morte será evitado,
ainda que tenha consciência da possibilidade de ocorrência.

45
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 517.
46
BITENCOURT, 2007, p. 288.
47
JESUS, 2007, p. 81.
48
Ibid., p. 82.
49
GRECO, 2007, p. 207.
50
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 397-398.
40

3.4.1.2 Culpa inconsciente

A outra espécie de culpa definida pela doutrina é a chamada culpa inconsciente,


que se opõe à culpa consciente, e como o próprio nome já pressupõe, não é prevista pelo
agente.
Nas palavras de Noronha a culpa inconsciente é definida como a conduta na qual
“o resultado previsível não é previsto pelo agente. São os casos comuns de crimes culposos
[...]. É a chamada culpa ex ignorantia. 51 (grifos do autor)
Mirabete e Fabbrini compartilham deste conceito afirmando que “a culpa
inconsciente existe quando o agente não prevê o resultado que é previsível. Não há no agente
52
o conhecimento efetivo do perigo que sua conduta provoca para o bem jurídico alheio.”
(grifo do autor)
A ausência de previsão, embora presente a previsibilidade, também é afirmada
por Bitencourt:
A previsibilidade do resultado é o elemento identificador das duas espécies de culpa.
A imprevisibilidade desloca o resultado para o caso fortuito ou força maior. Na
culpa inconsciente, no entanto, apesar da previsibilidade, não há previsão por
descuido, desatenção ou simples desinteresse. A culpa inconsciente caracteriza-se
pela ausência absoluta de nexo psicológico entre o autor e o resultado de sua ação. 53
(grifos do autor)
Esta idéia de que na culpa inconsciente o sujeito ativo não tem conhecimento do
perigo, e com a sua conduta lesiva acaba ocasionando um delito, é defendida por Zaffaroni e
Pierangeli:
Na culpa inconsciente ou culpa sem representação não há um conhecimento efetivo
do perigo que, com a conduta, se acarreta aos bens jurídicos, porque se trata da
hipótese em que o sujeito podia e devia representar-se a possibilidade de produção
do resultado e, no entanto, não o fez. Nestes casos há apenas um conhecimento
“potencial” do perigo aos bens jurídicos alheios.54 (grifos do autor)
A culpa inconsciente difere da culpa consciente porque nesta o agente até prevê o
resultado, mas espera sinceramente que este não irá ocorrer, enquanto que na culpa
inconsciente o agente conhece apenas o perigo, mas não prevê o resultado lesivo, embora este
seja previsível para o homem médio.
Nesta linha de raciocínio, a culpa inconsciente pode ser também entendida como
culpa comum, manifestada pela imprudência, negligência ou imperícia, onde a morte do

51
NORONHA, 1999, p. 143.
52
MIRABETE; FABBRINI, 2007, p. 141.
53
BITENCOURT, 2007, p. 287.
54
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 517.
41

sujeito passivo não é prevista, embora seja previsível. 55


Logo, embora o agente pudesse ter previsto o resultado lesivo, não o fez, e deste
modo um bem jurídico foi lesado, uma vida foi interrompida. Assim é a chamada culpa
inconsciente; o resultado não é querido e nem previsto, entretanto era previsível.

3.4.2 Dolo

Após discorrer sobre a culpa e suas espécies, este tópico tratará do dolo, que
também é um dos elementos subjetivos do crime de homicídio. Como já mencionado, a
conduta que interessa para o direito penal é a culposa ou dolosa. Sem a presença de um destes
elementos não há infração penal.
O dolo está previsto no artigo 18, inciso I, do Código Penal que reza: “Art. 18 -
Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
[...]” 56
O dolo pode ser conceituado como a vontade de concretizar os elementos
objetivos do tipo, ou seja, é a consciência e a vontade da realização de uma conduta descrita
como tipo.57
A consciência do que está sendo feito e a vontade na obtenção do resultado,
também são preconizadas por Wezel apud Greco:
Toda ação consciente é conduzida pela decisão da ação, quer dizer, pela consciência
do que se quer – momento intelectual – e pela decisão a respeito de querer realizá-lo
– momento volitivo. Ambos os momentos, conjuntamente, como fatores
configuradores de uma ação típica real, formam o dolo (= dolo do tipo). 58
O dolo é o elemento nuclear e primordial do tipo subjetivo, e muitas vezes é o
único componente do tipo. Pode ser definido como querer o resultado típico, a vontade
realizadora do tipo objetivo. No caso do homicídio, é querer matar um homem, que pressupõe
que saiba que a conduta do objeto é um homem. Logo, é a vontade realizadora do tipo
objetivo, guiada pelo conhecimento dos elementos deste no caso concreto. 59
Essa vontade na realização do tipo objetivo que caracteriza o dolo é também
observada por Noronha:

55
JESUS, 2007, p. 81.
56
BRASIL, 1940, loc. cit.
57
BITENCOURT, 2007, p. 266.
58
GRECO, 2007, p. 183.
59
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 481.
42

[...] para agir com dolo, não basta que o evento tenha sido previsto pelo indivíduo, é
mister seja querido. Esse resultado é a meta, o fim que o sujeito ativo busca com sua
atividade consciente e dirigida. Costuma dizer-se, por isso, abreviando o conceito,
que o dolo é a vontade de executar um fato que a lei tem como crime. 60
Existem algumas teorias que explicam a definição do dolo. Neste momento,
apresentam-se três teorias: teoria da vontade, teoria da representação e teoria do
consentimento.
A teoria da vontade é defendida por Carrara apud Bitencourt o qual justifica que o
dolo “consiste na intenção mais ou menos perfeita de fazer um ato que se conhece contrário à
lei” 61, em outras palavras, o dolo seria a vontade dirigida à obtenção do resultado.
A teoria da representação, defendida por Liszt e Frank, entende que para
existência do dolo, basta a representação subjetiva ou a previsão do resultado como certo ou
provável. Esta teoria acabou caindo em descrença e seus defensores aderiram à teoria da
vontade. 62
E por último, a teoria do consentimento, que une a idéia de representação e
vontade. Tavares apud Greco afirma que:
A teoria do consentimento ou da assunção é a teoria dominante e tem por base uma
vinculação emocional do agente para com o resultado. Vale dizer, exige não apenas
o conhecimento ou a previsão de que a conduta e o resultado típicos podem realizar-
se, como também que o agente se ponha de acordo com isso ou na forma de
conformar-se ou de aceitar ou de assumir o risco de sua produção. 63
A teoria da vontade foi adotada pelo Código Penal quando dispõe na primeira
parte do artigo 18, inciso I, que “o agente quis o resultado” e a teoria do consentimento na
parte final, quando preconiza “[...] ou assumiu o risco de produzir o resultado”. 64
Assim, percebe-se que o dolo é a consciência e a vontade de realizar certa conduta
que acaba produzindo o resultado morte. O dolo, assim como a culpa, apresenta duas
espécies, o dolo direto e o dolo indireto, conforme se discorrerá na seqüência.

3.4.2.1 Dolo direto

O dolo direto é uma das espécies de dolo, encontrado tanto na doutrina como no
Código Penal, conforme se extrai da leitura do artigo 18, inciso I, anteriormente citado.

60
NORONHA, 1999, p. 136.
61
BITENCOURT, 2007, p. 267.
62
Ibid., p. 268.
63
GRECO, 2007, p. 186.
64
BITENCOURT, op. cit., p. 268.
43

O dolo direto é definido por Zaffaroni e Pieangeli como “aquele em que o autor
quer diretamente a produção do resultado típico, seja como o fim diretamente proposto ou
como um dos meios para obter este fim” 65
Corroborando este conceito Hungria e Fragoso preconizam que o dolo direto
ocorre “quando o agente prevê como certo o resultado, para cujo evento precisamente
empreende o ato de vontade.” 66
O dolo direto pode ser entendido como aquele que corresponde com a vontade do
sujeito ativo quando da ocorrência do evento lesivo.
Extrai-se da lição de Greco que o dolo direto é aquele querido pelo agente:
Diz-se direto o dolo quando o agente quer, efetivamente, cometer a conduta descrita
no tipo, conforme preceitua a primeira parte do art. 18, I, do Código Penal. O
agente, nesta espécie de dolo, pratica sua conduta dirigindo-se finalisticamente à
produção do resultado por ele pretendido inicialmente. 67
Nesta espécie de dolo, o agente quer produzir diretamente o resultado lesivo. Sua
conduta é dirigida à realização de um fato típico, descrito como infração penal.
Seguindo este raciocínio, Bitencourt informa que o dolo direto compõe-se de três
aspectos, a saber: “1) a representação do resultado, dos meios necessários e das
conseqüências secundárias; 2) o querer o resultado, bem como os meios escolhidos para a sua
consecução; 3) o anuir na realização das conseqüências previstas como certas, necessárias ou
possíveis [...]” 68 (grifos do autor)
No caso do delito de homicídio, o sujeito ativo age com dolo direto quando sua
conduta é destinada a matar o sujeito passivo. Suas atitudes dirigem-se exclusivamente na
morte de um indivíduo. Ele busca o resultado morte e, para tanto, anui com este resultado.
Neste sentido, o dolo direto é visto como aquele decorrente da vontade do ser
humano em ocasionar um resultado lesivo a outro ser humano. Sua vontade é dirigida para
este fim.

3.4.2.2 Dolo indireto

O dolo apresenta como espécies o dolo direto e o dolo indireto, sendo que o direto
foi abordado no tópico anterior, e o dolo indireto será abordado neste tópico.

65
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 497.
66
HUNGRIA; FRAGOSO, 1981, p. 45-46.
67
GRECO, 2007, p. 188.
68
BITENCOURT, 2007, p. 268.
44

O dolo indireto é bastante discutido, uma vez que, conforme se demonstrará no


momento oportuno, ele abrange o dolo alternativo e o dolo eventual, este que é motivo de
acirradas discussões quando o assunto é homicídio praticado no trânsito.
Para Noronha há dolo indireto “quando, apesar de querer o resultado, a vontade
não se manifesta de modo único e seguro em direção a ele, ao contrário do que sucede na
espécie anterior [dolo direto].” 69
Confirmando a idéia de que no dolo indireto a vontade do agente não se manifesta
exclusivamente para o fim de cometer o delito, Jesus leciona que “há dolo indireto quando a
vontade do agente não se dirige exclusivamente ao resultado morte.” 70
O dolo indireto ou indeterminado, portanto, é aquele em que o agente, deseja o
resultado, entretanto, não há um querer específico na sua conduta delituosa.
Costuma-se subdividir o dolo indeterminado em dolo alternativo e dolo eventual.
O primeiro deles consiste na previsão de resultados diversos, que reciprocamente se excluem,
propondo-se o agente realizar qualquer deles, indiferentemente, enquanto que o segundo
ocorre quando o agente, prevendo como provável ou possível o resultado, assume o risco de
produzi-lo. 71

3.4.2.2.1 Dolo alternativo

Vislumbra-se a figura do dolo indireto alternativo quando o agente deseja obter


qualquer dos resultados possíveis para aquela conduta típica.
Preleciona Noronha que o dolo alternativo “dá-se quando o agente quer um dos
eventos que sua ação pode causar: atingir para matar ou ferir” 72
Hungria e Fragoso, por sua vez, admitem que “no dolo alternativo, não há
indeterminação da vontade: quando se querem, indiferentemente, resultados diversos,
sabendo-se que um excluirá os outros, a vontade é tão determinada como quando se quer um
resultado único.” 73

69
NORONHA, 1999, p. 138.
70
JESUS, 2007, p. 36.
71
HUNGRIA; FRAGOSO, 1981, p. 46-47.
72
NORONHA, loc. cit.
73
HUNGRIA; FRAGOSO, op. cit., p. 47.
45

O que distingue o dolo alternativo dos demais é o fato de que, como o próprio
nome já diz o agente alterna entre os resultados e tanto faz se, por exemplo, o disparo da arma
de fogo irá ferir ou matar a vítima.
O dolo indireto alternativo mostra-se quando o aspecto volitivo do agente
encontra-se direcionado de maneira alternativa, quer seja em relação ao resultado ou em
relação à pessoa contra a qual o crime é cometido. Se essa alternatividade disser respeito ao
resultado, fala-se em alternatividade objetiva, mas se referir-se à pessoa contra qual o agente
direciona sua conduta, a alternatividade será subjetiva.74
A figura do dolo alternativo também é preconizada por Capez como a espécie de
dolo em que “o agente não se importa em produzir este ou aquele resultado (quer ferir ou
matar)” 75, ou seja, o agente busca um resultado lesivo, mas necessariamente não se importa
qual será este resultado.
Enfim, pode-se afirmar que o dolo alternativo é aquele em que o sujeito ativo não
deseja um resultado específico. Ele age consciente de sua conduta lesiva e aceita a
possibilidade de ocorrência de qualquer resultado, seja apenas ferir ou matar.

3.4.2.2.2 Dolo eventual

Como já mencionado, o dolo indireto subdivide-se em dolo alternativo e dolo


eventual. O dolo alternativo fora abordado no tópico anterior, e neste tópico apresentar-se-ão
os aspectos destacados acerca da figura do dolo eventual.
Primeiramente cumpre transcrever o artigo 18, inciso I do Código Penal: “Art. 18
- Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-
76
lo. [...].” (o grifo não é original) Como se observa, a parte final do inciso I do artigo 18
utiliza a expressão assumir o risco, que por sua vez representa a essência do dolo eventual.
Neste sentido Bruno leciona:
[...] no dolo eventual a vontade não se dirige propriamente ao resultado, mas apenas
ao ato inicial , que nem sempre é ilícito, e o resultado não é representado como
certo, mas só como possível. Mas o agente prefere que a conduta ocorra, a desistir
do seu ato. [...] No dolo eventual, a previsão é de uma possibilidade, e a vontade, em
relação ao resultado, se manifesta apenas como a aceitação do possível.77

74
ROCHA, Fernando Galvão da. apud GRECO, 2007, p. 188.
75
CAPEZ, 2003, p. 13.
76
BRASIL, 1940, loc. cit.
77
BRUNO, Aníbal. Parte geral. In: ______ Direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, v. 2, p. 73-74.
46

Bitencourt assevera que no “dolo eventual o agente anui ao advento desse


resultado, assumindo o risco de produzi-lo, em vez de renunciar à ação.” 78 (grifos do autor)
O sujeito ativo sabe do risco que corre praticando a conduta, entretanto não deixa
de prosseguir e assume o risco. Neste norte Greco dispõe que a figura do dolo eventual
aparece “quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se
abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido
previsto e aceito.” 79
A aceitação do resultado como uma das possibilidades, assim é justificada por
Zaffaroni e Pierangeli:
O dolo eventual, conceituado em termos correntes, é a conduta daquele que diz a si
mesmo “que agüente”, “que se incomode”, “se acontecer, azar”, “não me importo”.
Observe-se que aqui não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua
aceitação como possibilidade, como probabilidade. 80 (grifos do autor)
É importante trazer à colação os ensinamentos de Shecaira e Corrêa Júnior acerca
das teorias sobre o dolo eventual:
Para a nossa lei ocorre o dolo eventual quando o “agente assume o risco de produzir
o resultado” (art. 18, I, última parte do CP). Podemos citar, basicamente, três teorias
tradicionais sobre o tema. Pela teoria da probabilidade, devida a Sauer, existe dolo
eventual quando ao agente se representa o resultado como provável. Para Mayer,
mentor da teoria do sentimento, diz-se que há dolo eventual quando o sujeito tem
um sentimento de indiferença com o resultado que se apresenta ao autor. Para Frank,
defensor da teoria do consentimento, haverá dolo eventual quando ao agente se
representa o resultado e ele o aceita. 81
Ainda que algumas teorias expliquem o que venha a ser dolo eventual, o certo é
quem em todas elas, o agente tem como provável a ocorrência do resultado, porém não se
abstém de praticar a conduta criminosa, assumindo o risco de produzi-lo.
Na hipótese de dolo eventual o valor positivo que atribui à prática da ação é mais
importante para o agente do que a importância negativa da previsão do resultado e, entre
desistir da ação ou praticá-la, o agente opta pela segunda opção, mesmo correndo o risco da
produção do evento lesivo. 82
No dolo eventual o sujeito ativo, mesmo sabendo que pode matar um ser humano,
não desiste da ação e prossegue sendo-lhe indiferente se o evento morte ocorrer ou não.
Acompanhando estas considerações, Jesus observa a ocorrência do dolo eventual
quando:
[...] o sujeito assume o risco de produzir a morte, isto é, admite e aceita o risco de
produzi-la. Ele não quer a morte, pois se assim fosse haveria dolo direto. Prevê a
morte da vítima e age. A vontade não se dirige ao resultado (o sujeito não quer o

78
BITENCOURT, 2007, p. 268.
79
GRECO, 2007, p. 190.
80
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 498.
81
SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, 2002, p. 395-396.
82
BITENCOURT, op. cit., p. 288.
47

evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Prevê que é
possível causar o resultado e, não obstante, pratica o comportamento. Entre desistir
da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza.
A figura do dolo eventual pode ser compreendida através das fórmulas de Frank,
ilustradas por Hungria e Fragoso que preconizam:
A primeira delas assim decide: a previsão do resultado como possível somente
constitui dolo, se a previsão do mesmo resultado como certo não teria detido o
agente, isto é, não teria tido o efeito de um decisivo “motivo de contraste”. É esta a
fórmula denominada da “teoria hipotética do consentimento”, a que o próprio Frank
acrescentou esta outra (chamada “teoria positiva do consentimento”): se o agente se
diz a si próprio: seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir, é
responsável a título de dolo. 83 (grifos no autor)
Jescheck apud Shecaira e Júnior argumenta que “o dolo eventual se integra assim
pela vontade de realização concernente à ação típica [...], pela consideração séria do risco de
produção do resultado [...], e, em terceiro lugar, pelo conformar-se com a produção do
resultado típico como fator da culpabilidade.” 84
No dolo eventual não é vaga a vontade do agente, pois esta é dirigida a um certo
resultado. O sujeito não recua diante da prevista possibilidade de um resultado diverso,
consentindo no seu advento. 85
Deste modo, conclui-se que o dolo eventual é aquele em o sujeito ativo prevê o
resultado, mas não o deseja diretamente. Porém, prossegue na sua conduta criminosa
assumindo o risco de causar um evento lesivo, qual seja a morte de um ser humano, que lhe é
indiferente.

83
HUNGRIA; FRAGOSO, 1981, p. 51.
84
SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, 2002, p. 396.
85
HUNGRIA; FRAGOSO, op. cit., p. 47.
48

4 HOMICÍDIO PRATICADO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL NA DIREÇÃO DE


VEÍCULO AUTOMOTOR: DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE?

No presente capítulo, será abordado o tema deste trabalho: homicídio praticado


sob influência de álcool na direção de veículo automotor: dolo eventual ou culpa consciente?
Destacando-se primeiramente o trânsito brasileiro, que lesiona e mata tantos seres humanos
diariamente.
Posteriormente analisar-se-ão alguns aspectos do delito de homicídio disposto no
artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, bem como a influência do álcool nos crimes de
trânsito, frente à Lei 11.705/08 que introduziu algumas alterações no Código de Trânsito
Brasileiro.
Ainda com relação aos crimes de homicídio praticados sob influência de álcool,
será demonstrada a celeuma que envolve o elemento subjetivo do delito de homicídio
praticado no trânsito, se é dolo eventual ou culpa consciente.
Também serão objeto de análise algumas decisões exaradas pelo Tribunal de
Justiça do Estado de Santa Catarina e pelo Superior Tribunal de Justiça, acerca do tema.
E por fim, também pertinentes a este trabalho, apresentam-se algumas medidas
preventivas que poderiam auxiliar na redução dos acidentes envolvendo motoristas
embriagados e, assim, reduzir o número de homicídios no trânsito brasileiro.

4.1 O TRÂNSITO BRASILEIRO

Este tópico ocupa-se em fazer breves anotações acerca do trânsito brasileiro, que
dia-a-dia fica mais intenso e com maiores problemas, uma vez que o número de automóveis
fabricados cresce diariamente, assim como são facilitadas as condições para a sua aquisição.
Inicialmente cumpre transcrever o conceito de trânsito, consoante se extrai do
artigo 1°, § 1º do Código de Trânsito Brasileiro:
Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional,
abertas à circulação, rege-se por este Código.
§ 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais,
isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada,
49

estacionamento e operação de carga ou descarga.1


O trânsito brasileiro hodiernamente é o responsável por um grande número de
mortes. Cada vez que se assiste aos noticiários ou se lê um jornal, é muito comum encontrar
notícias de pessoas que se envolveram em acidentes de trânsito, nos quais muitos perdem a
vida e outros sofrem lesões.
Tem-se notícia de que o primeiro acidente envolvendo veículo automotor no
Brasil ocorreu por volta de 1897, quando José do Patrocínio importou um veículo da França e
o deu para Olavo Bilac dirigir, que sem possuir habilitação, bateu na primeira árvore que
encontrou. O veículo andava a uma velocidade de 3 quilômetros por hora e o acidente ocorreu
na rua da Passagem, em Botafogo, no Rio de Janeiro. 2
A partir de então, o número de veículos em circulação no país começou a crescer
rapidamente e a máquina inventada pelo homem para ajudar no desenvolvimento do país,
tornou-se um dos maiores problemas sociais. De acordo com Nogueira:
Aumenta, a cada dia, de maneira assustadora, o número de acidentes ocorridos com
o automóvel. E essas cifras só tendem a recrudescer, em decorrência do aumento da
fabricação de carros nacionais, que infestam nossas estradas, nossas cidades, e todos
os setores onde se desenvolve a atividade humana.3
Com relação aos veículos em circulação, a Associação Nacional de Transportes
Públicos (ANTP) informa que no Brasil há cerca de 40 milhões de veículos registrados, sendo
que 27 milhões se encontram em circulação, dos quais um terço é revendido anualmente - ou
seja, cerca de 9 milhões de automóveis trocam de proprietários todos os anos. Por ano,
também, quase 3 milhões de veículos (1 milhão só de motocicletas) entram no mercado
brasileiro, e estima-se que o setor movimente R$ 100 bilhões. 4
Com esse grande número de veículos em circulação, a Organização Mundial de
Saúde informa que morrem no trânsito, anualmente, 1,2 milhão de pessoas – 34 mil só no
Brasil, o que equivale a 85 Boeings 747 cheios. Os feridos passam de 350 mil; desses, 80 mil
ficam com seqüelas permanentes. O custo anual da tragédia brasileira: 28 bilhões de reais. 5
Essa situação acaba colocando o Brasil como um dos países com maior índice de
acidentes automobilísticos. Segundo Holanda:
As negras estatísticas pátrias colocam o Brasil no grupo dos países que apresentam
os piores índices de violência no trânsito. A formação deficiente do condutor,

1
BRASIL. Lei n° 9.503 de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9503.htm> Acesso em: 02 nov. 2008
2
TAWIL, Marc. Trânsito assassino: as mortes aumentam: ninguém liga. São Paulo: Terceiro Nome, 2007, p.
09-10.
3
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Delitos do automóvel. 5. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 1.
4
ACIDENTES de trânsito no Brasil dão prejuízo anual de R$ 28 bilhões, mostra ANTP. A tarde on line.
Salvador, 18 set. 2007. Disponível em: <http://www.atarde.com.br/brasil/noticia.jsf?id=790375#>. Acesso em:
01 nov. 2008.
5
TAWIL, op. cit., p. 11-12.
50

somada ao precário estado de conservação de nossas vias, redunda em um alarmante


número de pessoas lesionadas ou mortas. 6
As causas dos acidentes de trânsito são diversas, entretanto podemos citar
algumas mais determinantes: a) falta de educação dos motoristas; b) ausência de fiscalização;
c) má sinalização nas vias públicas; d) uso de bebidas alcoólicas estimulado por propaganda
nociva; e) excesso de velocidade; f) ultrapassagem perigosa, dentre outras. 7
Em relação ao álcool, Nogueira afirma que este tem papel importante na violência
no trânsito:
[...] o álcool tem influência preponderante na criminalidade em geral, não havendo
dúvida de que é um grande mal da humanidade e um fator criminógeno [...] o que se
nota é uma campanha nos órgãos de comunicação, mormente na televisão,
estimulando o uso de bebida alcoólica, cujo imposto gera uma grande arrecadação
para o País. 8
Assim, frente a este problema social, o legislador percebeu a necessidade de editar
leis que tornassem o trânsito mais seguro e, assim o fez, editando a Lei n° 9.503 de 23 de
setembro de 1997, ou seja, o Código de Trânsito Brasileiro, criada com o intuito de tornar o
trânsito brasileiro um pouco mais seguro, mais humano, tendo em vista os índices estatísticos
catastróficos de mortos e feridos que assolavam o país no final da década de 90.
Entretanto, nem todos os problemas foram solucionados com a edição do Código
de Trânsito Brasileiro, e até hoje a violência no trânsito continua sendo um problema que gera
muitas discussões, principalmente quando ocorrem acidentes com vítima fatal e o motorista se
encontra sob influência de álcool. Rapidamente surge a indagação acerca da maneira como
este condutor deve ser penalizado, se ele deve responder pelo homicídio culposo, previsto no
Código de Trânsito Brasileiro ou se deve responder por homicídio doloso previsto no Código
Penal.

4.2. ASPECTOS DO CRIME DE HOMICÍDIO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO


DE TRÂNSITO BRASILEIRO

Diante do grande número de acidentes com vítimas fatais que ocorrem nas
rodovias de todo o país, o legislador editou o Código de Trânsito Brasileiro, e inaugurou o rol
dos crimes em espécie com o homicídio culposo disposto no artigo 302.

6
HOLANDA, Cornélio José. O dolo eventual nos crimes de trânsito. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 326, 29
maio 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5263>. Acesso em: 02 nov. 2008.
7
NOGUEIRA, 1988, p. 7.
8
Ibid., p. 11.
51

Primeiramente, cumpre ressaltar que o delito de homicídio previsto no artigo 121


do Código Penal já fora abordado no capítulo anterior, sendo que este tópico tratará apenas de
algumas questões envolvendo o delito de homicídio culposo praticado na direção de veículo
automotor.
No caso do delito de homicídio previsto no Código de Trânsito Brasileiro, o
objeto jurídico tutelado é a vida humana, sem qualquer distinção, assim como no homicídio
previsto no Código Penal. 9
Em relação ao sujeito ativo, exige-se uma capacidade especial, ou seja, é
necessário que ocupe ele uma posição ou condição de fato e esteja na direção de veículo
automotor quando da realização típica.10
O sujeito passivo, por sua vez, pode ser qualquer pessoa que tenha nascido com
vida, assim como também o é no homicídio previsto no Código Penal.
No tocante ao elemento subjetivo, Fukassawa observa que é a “culpa strictu
sensu, informada pela imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II, do Código Penal),
afastando-se assim, a hipótese de o automotor ser utilizado como meio para a prática de crime
doloso.” 11
O crime de homicídio praticado no trânsito ocorre por atropelamento de pedestres
ou colisão entre veículos, e é sem sombra de dúvidas, um dos crimes de maior incidência
dentre os chamados crimes de trânsito. Os prejuízos e conseqüências dele resultantes, sejam
de ordem material ou moral, são imensuráveis.12
Diferentemente do disposto no artigo 121 do Código Penal, no artigo 302 do
Código de Trânsito Brasileiro o legislador assim dispôs: “praticar homicídio culposo na
direção de veículo automotor” 13 (grifo nosso) enquanto no artigo 121 do Código Penal prevê
como homicídio apenas a conduta “matar alguém”.14
A forma diferenciada de tratar o homicídio culposo do artigo 302 do Código de
Trânsito Brasileiro é entendida por Leal como incorreta:
[...] não foi feliz o legislador ao descrever o novo tipo da forma como o fez:
“praticar homicídio culposo” (...). Nunca foi de boa técnica legislativa utilizar-se do
nomen juris para descrever a conduta que se pretende incriminar. É claro que o
aplicador da lei penal conhece o sentido semântico e jurídico penal de homicídio
culposo. Mas isto não é suficiente, porque a lei destina-se a todos os cidadãos e o

9
FUKASSAWA, Fernando Y. Crimes de trânsito: de acordo com a Lei nº 9.503, de 23-9-1997, Código de
Trânsito Brasileiro. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998. p. 116-117.
10
Ibid., p. 117.
11
Ibid., p. 121.
12
Ibid., p. 114.
13
BRASIL, 1997, loc. cit.
14
Id. Decreto-lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 02 nov. 2008.
52

princípio da legalidade exige a descrição clara, objetiva e precisa da conduta


criminosa, o que não foi respeitado pelo dispositivo em exame. Se assim fosse
admissível, bastaria a lei penal dizer: praticar furto, estupro, estelionato etc., fixar a
respectiva sanção e o sistema punitivo seria facilmente construído. Mas sem a
precisão que a regra da taxatividade impõe, por exigência do Estado Democrático de
Direito. 15 (grifos do autor)
O legislador acabou definindo uma mesma conduta de duas formas diferentes, em
outras palavras, o homicídio culposo previsto no Código Penal recebe denominação diferente
daquele previsto no Código de Trânsito Brasileiro, sendo que nos dois casos a conduta refere-
se à morte de um ser humano por um ato culposo, conforme já elucidado no capítulo anterior.
Fukassawa também se posiciona acerca do assunto por entender que esta
diferenciação fere princípios constitucionais:
O legislador não fez conveniente descrição típica das condutas proibidas: fazê-lo
com maior precisão possível em homenagem e para preservação do princípio da
legalidade. Posto que o tipo penal deva descrever a conduta que se quer proibir, é ele
formulado através de verbos (matar, ofender, subtrair, constranger, etc.) [...] Ao
invés de assim proceder, contrariando recomendações científicas, não utilizou os
verbos identificadores dos núcleos típicos, “matar” alguém e “ofender” a integridade
corporal, [...] como se encontra no art. 121 do mesmo diploma legal; mas
arrevesadamente utilizou o verbo “praticar homicídio culposo (art. 302) na direção
de veículo automotor, vale dizer, verbo genérico que vulgarmente pode ser
empregado para todos os atos da vida que significam exercício, atividade ou
realização [...] 16 (grifos do autor)
Também dissertando sobre a diferenciação na tipificação da conduta do homicídio
culposo, Lopes apud Fukassawa dispõe que “é mister que a lei defina o fato criminoso, ou
melhor enuncie com clareza os atributos essenciais da conduta humana de forma a torná-la
17
inconfundível com outra, e lhe comine pena balizada dentro de limites não exagerados.”
(grifo do autor)
A definição do que seja o delito de homicídio culposo não foi fornecida pelo
artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro e sua área de abrangência terá de ser buscada no
Código Penal. Não se afirma existir uma cópia carbonada da figura criminosa do Código
Penal no que tange ao fato objetivo e ao fato subjetivo porque o crime do artigo 302 do
Código de Trânsito Brasileiro não é crime comum, mas sim próprio, porque apenas e tão-
somente aquela pessoa que esteja na direção de veículo automotor pode praticá-lo.18
Essa questão envolvendo a descrição do tipo, também é observada por Sampaio
Andrade, que assim preconiza:

15
LEAL, João José. Homicídio culposo de trânsito: a impropriedade de duas normas incriminadoras para uma
mesma conduta típica. DireitoNet, Sorocaba, 13 mar. 2005. Disponível em:
<http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/44/1944/#perfil_autor>. Acesso em: 03 nov. 2008.
16
FUKASSAWA, 1998. p. 115-116.
17
Ibid., p. 116.
18
NINNO, Jefferson. Crimes de trânsito (L. 9.503/97). In: FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (Coord.) Leis
penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. v. 1, p. 961-962.
53

A nova lei apresenta uma imprecisão na descrição dos tipos penais, por serem
descritas utilizando o próprio nomen juris da conduta. Em verdade, o núcleo do
crime de homicídio não é "praticar homicídio", mas "matar alguém". O ideal seria se
o novo tipo fosse descrito como "causar a morte de alguém, culposamente, na
direção de veículo automotor". [...] 19 (grifos do autor)
Outro aspecto que merece ser observado é com relação à pena prevista para o
delito culposo previsto no Código de Trânsito Brasileiro e a pena prevista para o homicídio
culposo previsto no Código Penal.
A nova lei chegou com rigor dobrando a pena mínima detentiva do homicídio
culposo, uma vez que no homicídio culposo do artigo 121, § 3°, do Código Penal ela é de 1
(um) a 3 (três) anos e no homicídio previsto no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro
oscila entre 2 (dois) e 4 (quatro) anos, além de prever outras penas como suspensão ou
proibição para se obter permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor.20
A respeito dessa desproporcionalidade entre as penas previstas para o homicídio
culposo Leal observa que:
[...] o sistema opera com dois pesos e duas medidas para punir um mesmo tipo de
conduta delituosa. Para o Direito Penal vigente, se alguém causa a morte
involuntária de uma pessoa, mediante grave negligência ou imperícia ao manejar
uma arma de fogo; ao montar um cavalo, [...] o crime praticado será necessariamente
o de homicídio culposo simples.
[...] por mais intenso que tenha sido o grau da culpa, seja qual for a circunstância
desfavorável que torne o crime mais grave e reprovável, a pena mínima será de um
ano e a máxima de três anos de detenção.
No entanto, basta uma simples e trivial negligência ao volante de um veículo
automotor, causadora de um homicídio, para que este seja punido com uma pena
mínima de dois anos e máxima de quatro anos de detenção. Há aí, uma diferença
quantitativa significativa que estabelece uma injustificável e desnecessária
assimetria no sistema punitivo. 21 (grifos do autor)
O autor ainda assevera que esta desproporcionalidade entre as penas gera:
[...] uma impropriedade jurídico penal que fere o princípio da razoabilidade, porque
não tem lógica, nem é de bom senso partir da presunção jurídica de que todo o
homicídio culposo de trânsito é necessariamente mais grave do que qualquer outro,
que não tenha sido praticado na direção de um veículo automotor.22
Tanto no homicídio culposo previsto no Código Penal, como no homicídio
culposo previsto no Código de Trânsito Brasileiro, o elemento subjetivo que norteia a ação do
sujeito ativo, é a culpa, seja por imprudência, negligência ou imperícia, o que, a princípio fere
o princípio da proporcionalidade e o princípio da igualdade, tendo em vista que se atribui
desvalores diferentes a condutas idênticas.

19
ANDRADE, Paulo Gustavo Sampaio. Homicídio e lesão corporal: forma culposa qualificada no CTB. Jus
Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1736>. Acesso em: 03 nov. 2008.
20
FUKASSAWA, 1998, p. 112-113.
21
LEAL, loc. cit.
22
Ibid.
54

Seguindo este raciocínio, Stoco apud Jobim preleciona que "nada justifica que
para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal ofende o princípio constitucional da
isonomia, e o direito subjetivo do réu a um tratamento igualitário." 23
A natureza dos crimes culposos do Código Penal e do Código de Trânsito
Brasileiro é a mesma, tendo em vista que o desvalor da ação praticada gera igual resultado
lesivo. Sabe-se que o agente não quer o resultado, nem assume o risco de produzi-lo.
Entretanto a não observação dos deveres de cuidado, quando da prática da conduta, para
evitar lesão ao bem jurídico vida, acarreta responsabilidade pelo agravo praticado. 24
Entretanto, ainda que a capitulação não esteja correta e a pena prevista esteja
desconforme com o homicídio culposo previsto no Código Penal, o certo é que, quando
ocorrer um homicídio no trânsito, este será regulado pelo Código de Trânsito Brasileiro, ante
o princípio da especificidade.

4.3 A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL E OS CRIMES DE TRÂNSITO – ALTERAÇÕES DA


LEI N° 11.705 DE 19 DE JUNHO DE 2008.

Após tecer algumas considerações acerca do homicídio praticado no trânsito, este


tópico abordará a questão dos delitos de trânsito causados pelo consumo de bebidas alcoólicas
após a edição da Lei 11.705/08 que alterou o Código de Trânsito Brasileiro.
Inicialmente cumpre esclarecer o conceito de embriaguez, que nas palavras de
Loureiro Neto “é o estado em que se encontra a pessoa que introduziu no organismo
substâncias inebriantes.” 25
Com a nova legislação, conduzir veículo automotor, com concentração de álcool
inferior a 6 (seis) decigramas por litro de sangue, configura infração de trânsito gravíssima,
conforme se extrai da leitura dos artigos 165 e 276 do Código de Trânsito Brasileiro:
Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância
psicoativa que determine dependência:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze)
meses;
Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor
habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

23
JOBIM, Eduardo Schmidt. A inaplicabilidade do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Jus Navigandi,
Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2444>. Acesso
em: 03 nov. 2008.
24
NINNO, 2002, p. 962.
25
LOUREIRO NETO, José da Silva. Embriaguez delituosa. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 6.
55

[...]
Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às
penalidades previstas no art. 165 deste Código. 26
O motorista que for parado em uma fiscalização e, após a realização do teste do
bafômetro, ficar provado que se encontra com concentração alcoólica inferior a 6 (seis)
decigramas de álcool por litro de sangue, não importando qual seja a concentração, será
penalizado com multa e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses, não se levando
em consideração qual seja a real situação do condutor.
No caso desta infração, o legislador não levou em consideração se o condutor
oferece algum perigo para o trânsito, e muito menos estabeleceu um valor de multa
diferenciado de acordo com o grau de concentração alcoólica.
Referida Lei também alterou o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, o qual
trata sobre o crime de embriaguez no volante, e que a partir de então passou a ter a seguinte
redação:
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de
álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência
de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se


obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos


testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo. 27
Deste modo, percebe-se que, o motorista que dirigir sob efeito de álcool, com
concentração alcoólica inferior à 6 (seis) decigramas, comete uma infração gravíssima, e será
punido de acordo com o artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro.
Por outro lado, se a concentração alcoólica for superior a 6 (seis) decigramas por
litro de sangue, o motorista será enquadrado na conduta descrita como delito de embriaguez
no volante, expressa no artigo 306 do Código de Trânsito, e sofrerá as sanções ali previstas.
Não há exigência de que o condutor esteja colocando a vida de outras pessoas em
perigo. Neste sentido Gomes observa que:
A nova redação do artigo 306 (dada pela Lei 11.705/2008) não exige a comprovação
de nenhuma exposição da vítima a dano potencial (isto é: a perigo). Em outras
palavras: definitivamente não exige uma vítima concreta (uma pessoa concreta que
tenha corrido risco). Não requer um perigo concreto determinado (como é o caso,
por exemplo, do art. 132 do CP).28

26
BRASIL, 1997, loc. cit.
27
Ibid.,
28
GOMES, Luiz Flávio. Reforma do Código de Trânsito (Lei nº 11.705/2008): novo delito de embriaguez ao
volante. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11453>. Acesso em: 08 nov. 2008.
56

E por último, relacionado aos crimes de trânsito sob influência de álcool,


encontramos a figura do homicídio praticado por motorista em estado de embriaguez.
Até a edição da Lei em comento, este crime tinha a pena prevista no artigo 302 do
Código de Trânsito Brasileiro acrescida de 1/3 (um terço) à metade, conforme o que dispunha
29
o inciso V do referido artigo, também chamado de homicídio culposo qualificado. Porém
este inciso foi revogado pela Lei 11.705/08.
Com a revogação do inciso V do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, em
caso de homicídio praticado por motorista embriagado, não há mais o aumento de pena, o que
em tese, supõe que a este tipo de homicídio será aplicada apenas a pena prevista para o
homicídio culposo, qual seja de 2 (dois) a 4 (quatro) anos de detenção, além da suspensão ou
proibição para dirigir veículo automotor.
Entretanto, a revogação deste inciso também é entendida como uma maneira de
facilitar o enquadramento desses casos em homicídio doloso, na modalidade de dolo eventual.
Pois, caso continuasse aquela circunstância, em tese, todos os casos de homicídios praticados
por motorista embriagado deveriam seguir o Código de Trânsito Brasileiro, e seriam punidos
a título de culpa.
Essa idéia é apresentada por alguns doutrinadores, sendo oportuno transcrever a
idéia que Alferes apresenta:
O inciso V (revogado) induzia a autoridade policial (Delegado de Polícia) a
considerar o homicídio na condução de veículo automotor, estando o agente sob
influência do álcool, como um crime culposo. Porém, com a sua revogação, torna-se
mais fácil a fundamentação e a tipificação do fato descrito como crime doloso e não
culposo, sendo coerente o entendimento da existência de dolo eventual, ou seja, o
condutor ao ingerir bebida alcoólica acima dos níveis permitidos, assume o risco de
produzir um resultado danoso, qual seja, a morte. 30
Porém, esta idéia não é pacífica, e na prática, tudo depende da situação, porque o
Código de Trânsito Brasileiro apresenta a forma culposa como a única maneira de punir os
motorista embriagados que venha a pratica homicídio.
Destarte, ainda que algumas alterações tenham sido realizadas no tocante às
infrações e medidas administrativas, com relação ao motorista que, sob influência de álcool,
pratica um homicídio no trânsito, o Código de Trânsito Brasileiro apenas revogou o inciso V
do artigo 302, mas não trouxe inovações expressas.

29
O inciso V do parágrafo único do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, previa um acréscimo de 1/3 à
metade da pena para o agente que praticasse homicídio na direção de veículo automotor estivesse “sob
influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos.” Cf. BRASIL, 1997, loc. cit.
30
ALFERES, Eduardo Henrique. Novas normas de embriaguez ao volante. Âmbito jurídico, Rio Grande, ano
11, n. 55, 31 jul. 2008. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=
revista_artigos_leitura&artigo _id=3038.>. Acesso em: 08 nov. 2008
57

4.4 A CELEUMA ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DOS CRIMES DE HOMICÍDIO


PRATICADOS NO TRÂNSITO POR MOTORISTA EMBRIAGADO

Os crimes de homicídio praticados por motorista embriagado, como já


mencionado, são os crimes de trânsito que provocam mais discussão em toda a sociedade,
assim como também são os que geram maiores controvérsias acerca da sua natureza jurídica.
Alguns casos são denunciados e julgados de acordo com o Código de Trânsito
Brasileiro, ou seja, são punidos a título de culpa, na espécie de culpa consciente. Entretanto,
outros casos são denunciados e julgados consoantes o Código Penal, e punidos a título de
dolo, na modalidade de dolo eventual.
Assim, neste tópico, apresentam-se alguns argumentos utilizados pelos que
defendem este delito como homicídio culposo e outros que defendem como homicídio doloso.

4.4.1 Homicídio culposo (culpa consciente)

O delito de homicídio previsto no Código de Trânsito Brasileiro é culposo, por


entender o legislador que as pessoas não têm a vontade de matar outras pessoas quando da
ocorrência dos acidentes de trânsito.
Quando o assunto é motorista que dirige sob influência de álcool, a doutrina
entende que a espécie de culpa é a consciente. Nas palavras de Fukassawa “é a culpa com
previsão e tem características mais graves que a culpa sem previsão. O agente prevê como
possível o resultado, mas sem tê-lo desejado, embora devesse preveni-lo e tomando as
precauções necessárias para evitá-lo, abstendo-se da ação.” 31
O motorista que pratica homicídio sob influência de álcool deve responder por
homicídio culposo, conforme dispõem Corrêa Junior e Shecaira:
Não se deve, sob a influência da pressão da mídia, reconhecer qualquer alteração na
estrutura do delito, para mandar alguém a júri. Por mais grave que tenha sido a
conduta culposa não pode ela ser transformada em dolosa, sob pena de criarmos um
direito penal do terror que venha a satisfazer interesses punitivos. Ademais, a
avaliação distintiva entre dolo eventual e culpa consciente – é de difícil apreciação
por jurados leigos – e exige um deslinde puramente técnico [...] 32

31
FUKASSAWA, 1998, p. 75
32
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 401-402.
58

A idéia de que estes delitos devem ser punidos a título de culpa, é defendida por
Wunderlich apud Pepeu:
[...] é totalmente equivocada e divorciada dos novos paradigmas do Direito Penal
moderno a tentativa de se levar os crimes de trânsito ao plenário do Júri e, com isso,
aplicar a reprimenda mais gravosa. Não podemos permitir que seja dada demasiada
elasticidade à ficção jurídica dolus eventualis, nem que tripudiem sobre a teoria
geral do delito, para suprir uma legislação inadequada ou para atender os ´ditos´
reclamos sociais. 33 (grifos do autor)
Biasotti apud Pepeu se posiciona afirmando que:
Em verdade, ainda que em números discretos, conhecem-se casos de motoristas que
respondem a processo perante o Júri, por haver causado a morte de pedestres. Tê-la-
iam causado por inobservância desmarcada de regras de trânsito, como: dirigir em
estado de embriaguez, trafegar em velocidade incompatível com a segurança,
desobedecer ao sinal fechado ou à parada obrigatória, disputar corrida por espírito de
emulação etc. [...] a afirmação de que o autor de morte no trânsito, naquelas
circunstâncias, deve ser julgado pelo Júri, porque praticou o delito dolosamente,
contém falsa premissa. Deveras, não foi dolo o que aí pudera ter existido, nem
sequer dolo eventual, senão culpa (ainda consciente). No dolo eventual, de feito, a
doutrina imprimiu sempre esta nota conspícua: não basta a caracterizá-lo tenha o
agente assumido o risco de produzir o resultado lesivo; necessita que nela haja
consentido. Vindo ao nosso ponto: motorista, de quem se afirmasse que obrara com
dolo eventual, cumpria a que, além de ter assumido o risco de causar a morte da
vítima, com isso mesmo houvera concordado, o que repugna ao bom senso e afronta
a lição da experiência vulgar.34
Percebe-se que aqueles que defendem a culpa consciente como elemento objetivo
norteador da conduta do agente que pratica o homicídio sob influência de álcool, assim o
fazem por entender que o fato de unir o álcool a direção não é elemento suficiente para
demonstrar que o condutor não se importou com o resultado.
De acordo com Aguiar “a crescente consideração do dolo eventual nos crimes de
trânsito demonstra simplesmente que o Judiciário, implicitamente, percebe o descompasso
entre a lei e as demandas da sociedade e utiliza um artifício para atender à opinião pública.” 35
O Poder Judiciário acaba utilizando-se do dolo eventual para levar esses
motoristas a julgamento pelo Tribunal do Júri, e também os condena a penas mais severas
para acalmar a sociedade, prevenir a impunidade ou aplicar um tratamento profilático aos
condutores em geral.
Wunderlich complementa:
Diga-se, então, que o dolo eventual nos crimes de trânsito é uma ficção jurídica
utilizada fantasiosamente para compensar uma legislação inadequada e, assim,
atender aos reclamos da mídia. Diga-se, ainda, que serve para acabar com aquilo que
a mídia (odiosa imprensa leiga) e os profetas dos "movimentos", mais das vezes

33
PEPEU, Sérgio Ricardo Freire. O dolo eventual e a culpa consciente em crimes de trânsito. Jus Navigandi,
Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1731>. Acesso
em: 08 nov. 2008.
34
Ibid.
35
AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O dolo eventual nos crimes de trânsito e a navalha de
Occam. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1607, 25 nov. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10694>. Acesso em: 09 nov. 2008.
59

emulados pela mesquinhez de ideologias "baratas", classificam de impunidade. Mas,


não se diga que, com base na teoria do delito existe fundamento jurídico plausível e
consolidado sobre a demarcação do conceito de dolo eventual, mormente, no sentido
amplo, chegando a cogitar-se que o agente consinta com seu possível suicídio. 36
(grifos do autor)
Ademais, o Código de Trânsito Brasileiro foi editado para tratar apenas dos
crimes de trânsito, e em nenhum momento dispôs acerca da figura do dolo eventual, nem
mesmo com as alterações da Lei 11.705/08 mencionou-se a figura do homicídio doloso, sendo
este criação doutrinária e jurisprudencial.

4.4.2 Homicídio doloso (dolo eventual)

Contrariando a idéia de que os homicídios praticados no trânsito por motoristas


embriagados são culposos, muitos defendem a idéia do dolo eventual como elemento
subjetivo norteador da conduta daquele que pratica o delito.
Fukassawa observa que “no dolo eventual há por parte do agente, a representação
da probabilidade do resultado e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a
sua eventual produção.” 37
Segundo Rizzardo haverá dolo eventual:
Diante do quadro que presentemente se descortina, há dolo eventual sempre que se
dá a adesão ao resultado previsível, e assim quando alguém arremessa um veículo
contra outrem, quando se imprime desenfreada velocidade em via perigosa e com
pedestres em seu leito, quando o motorista se lança na direção encontrando-se
embriagado, dentre outras hipóteses. 38
Os defensores do dolo eventual como instrumento da moralização do trânsito no
país, alegam que aquele que dirige embriagado está assumindo o risco de matar uma pessoa,
ou seja, qualquer pessoa que ingerir bebidas alcoólicas e após sai com seu veículo, não está se
preocupando se vai ou não matar uma ou mais pessoas naquele momento.
Holanda preconiza que “o reconhecimento do dolo eventual, quando
perfeitamente delineados seus elementos conformadores, caracteriza uma resposta justa aos

36
WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de trânsito: uma tentativa frustrada. Jus
Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1732>. Acesso em: 08 nov. 2008.
37
FUKASSAWA, 1998, p. 95.
38
RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao código de trânsito brasileiro. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, p. 608.
60

alarmantes índices apresentados pelo trânsito brasileiro, configurando-se como importante


elemento de pacificação social.” 39
A caracterização do dolo eventual muitas vezes serve como instrumento para
aquietar a sociedade e passar uma impressão tranqüilizadora, conforme observa Fukassawa:
[...] não tão raramente, alguns casos de homicídio no trânsito, posto identificado
corretamente ou não o dolo eventual, são levados ao julgamento popular do júri, não
sem antes ser decretada prisão preventiva, de um lado, amarga para o autor que não
pode compreender um antecipado enclausuramento por causa de sua negligência e,
de outro lado, necessária aos sentimentos e anseios do povo que não compadece com
a aparente impunidade daquele que, sob certas e incomuns circunstâncias ou
condições, à direção de um veículo vitima uma ou várias pessoas, quando haveria de
ser exemplarmente punido. 40
Rodrigues por sua vez afirma que “é pacífico na Jurisprudência que, na dúvida
entre o dolo e a culpa, prevalece o dolo, pois a competência do Júri é Constitucional (“ in
dubio pro societate”).” 41
Para os adeptos da teoria do dolo eventual nestes crimes, a mistura explosiva –
álcool e direção – é suficiente para caracterização da conduta dolosa, e, portanto, o agente
deve ser punido consoante o artigo 121 do Código Penal e ser julgado pelo Tribunal do Júri,
para que cause intimidação nos condutores em geral.
Destarte, a aceitação, em alguns casos, de homicídio doloso em delitos de trânsito,
serve como pedagogia ou remédio contra a violência no trânsito. O fato de o motorista ser
punido a título de dolo implica necessariamente em uma pena mais severa, porque o crime
será punido de acordo com o artigo 121 do Código Penal e julgamento pelo júri, passando
uma idéia à população de justiça e tranqüilidade.

4.5 POSIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA EM


RELAÇÃO AOS CASOS DE HOMICÍDIO PRATICADO NO TRÂNSITO POR
MOTORISTA EMBRIAGADO

Apresentados os dois entendimentos com relação à natureza jurídica do crime de


homicídio praticado no trânsito por motorista sob influência de álcool, cabe, neste momento,
mostrar o posicionamento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre o assunto.

39
HOLANDA, loc. cit.
40
FUKASSAWA, 1998, p. 98.
41
RODRIGUES, Décio Luiz Rodrigues. Crimes do código de trânsito. São Paulo: Lemos e Cruz, 2007, p. 24
61

Deste modo, primeiramente apresentam-se algumas decisões proferidas pelo


Tribunal de Justiça de Santa Catarina que comprovam a assertiva de que a culpa consciente é
o elemento subjetivo norteador da conduta do sujeito que pratica homicídio no trânsito
quando embriagado.
Um dos casos trata-se de um sujeito que foi denunciado como incurso nas sanções
do artigo 121, caput, do Código Penal (por duas vezes) e artigo 306 do Código de Trânsito
Brasileiro após envolver-se em um acidente no qual o mesmo se encontrava em estado de
embriaguez e resultou na morte de duas pessoas. O magistrado pronunciou o réu por entender
que houve configuração do dolo eventual. Entretanto, inconformado com a sentença de
pronúncia, o réu interpôs Recurso em Sentido Estrito, o qual foi julgado e assim decidido pelo
Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

PROCESSUAL E PENAL - JÚRI - HOMICÍDIO - ACIDENTE DE TRÂNSITO -


PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE REJEITADA - PRAZO CONTADO A
PARTIR DA ÚLTIMA INTIMAÇÃO - DOLO EVENTUAL NÃO
CONFIGURADO - AGENTE QUE NÃO ADMITIU A OCORRÊNCIA DO
RESULTADO - ELEMENTO SUBJETIVO COMPROVADO ESTREME DE
DÚVIDA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA A FORMA CULPOSA - RECURSO
PROVIDO - PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS.
O prazo para interposição de recurso em sentido estrito, previsto no artigo 586 do
CPP, deve ser contado a partir da última intimação do réu ou de seu defensor.
Comprovada estreme de dúvida a ausência de dolo eventual, a desclassificação para
a forma culposa é medida que se impõe.
Excesso de velocidade e embriaguez, por si só, não configuram dolo eventual. 42

Em outro Recurso Criminal dirigido ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa


Catarina, o réu foi denunciado como incurso nas sanções dos crimes capitulados nos artigos
121, caput, (duas vezes) e 129, § 1º, I e II, e § 2º, V, ambos do Código Penal, e
posteriormente o magistrado operou a desclassificação do crime para a modalidade culposa,
prevista no art. 302, por duas vezes, e no art. 303, ambos do Código de Trânsito Brasileiro,
por entender que não houve a ocorrência de dolo eventual. O órgão Ministerial, inconformado
com a decisão, apresentou recurso pleiteando a reforma da decisão. Decidindo, assim
manifestou-se o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:

DIREITO MATERIAL E PROCESSUAL PENAL - DUPLO HOMICÍDIO E


LESÕES CORPORAIS GRAVÍSSIMAS DECORRENTES DE ACIDENTE
AUTOMOBILÍSTICO - DESCLASSIFICAÇÃO PARA CRIMES DE TRÂNSITO
- RECURSO CRIMINAL OBJETIVANDO A PRONÚNCIA, A TÍTULO DE
DOLO EVENTUAL - SUPOSTO ESTADO DE EMBRIAGUEZ QUE, POR SI SÓ,
NÃO IMPLICA EM ACEITAÇÃO DO RESULTADO - AGENTE QUE ACIONA
O FREIO ANTES DA COLISÃO - CARACTERIZAÇÃO DE CULPA- RECURSO
NÃO PROVIDO.

42
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Recurso criminal n. 2005.039710-4. Relator: Des. Amaral e
Silva. Florianópolis, SC, 31 de janeiro de 2006. Disponível em:
< http://tjsc6.tj.sc.gov.br/cposg/pc. jsp?CDP=010007O9K0000 >. Acesso em: 05 nov. 2008.
62

1 No momento do judicium acussationis é necessária a análise do elemento


subjetivo do tipo, para pronunciar, tão-somente, os crimes contra a vida cometidos
com dolo (direto ou eventual); evitando, pois, lançar à sorte, em nome do princípio
do in dubio pro societate, os crimes cometidos a título de culpa (consciente ou
inconsciente). Caso contrário, seriam totalmente infundadas as hipóteses de
desclassificação, impronúncia ou absolvição sumária.
2 "A atitude ética da indiferença é o elemento nuclear ou, pelo menos, o ponto de
passagem obrigatório para a global compreensão do dolo eventual" (José de Faria
Costa).
3 "Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e
com velocidade excessiva não se importem em causar a morte ou mesmo lesões em
outras pessoas, [...] o clamor social no sentido de que os motoristas que dirigem
embriagados e/ou em velocidade excessiva devem ser punidos severamente, quando
tiram a vida ou causem lesões irreparáveis em pessoas inocentes, não pode ter o
condão de modificar toda a nossa estrutura jurídico-penal" (Resp n. 705.416/SC, rel.
Min. Paulo Medina, j. em 23/5/2006).43 (grifo do autor)
Como asseverado pelo relator do acórdão, somente devem ser pronunciados os
crimes em que o sujeito agiu com dolo, com intenção de matar outra pessoa. Casos em que o
elemento subjetivo consiste na culpa, não merecem ser julgados pela sociedade.
Entretanto, percebe-se um direcionamento das decisões no sentido de que o
elemento subjetivo no caso de homicídio no trânsito praticado por motorista sob influência de
álcool, é o dolo eventual, conforme alguns julgados que a seguir serão apresentados.
O Tribunal entendeu estar configurado o dolo eventual no caso do motorista que
foi denunciado pela infração estabelecida no artigo 121, caput, do Código Penal, haja vista
que, em estado de embriaguez, atropelou um ciclista, que veio a falecer. Concluída a
instrução processual, o réu foi pronunciado como incurso na sanção do artigo 121, caput, do
Código Penal. Irresignado recorreu em sentido estrito, pleiteando sua absolvição por falta de
provas ou, alternativamente, a desclassificação para a modalidade culposa. A Primeira
Câmara Criminal do Tribunal de Santa Catarina, assim decidiu:
RECURSO CRIMINAL - ACIDENTE DE TRÂNSITO - ART. 121, CAPUT, DO
CÓDIGO PENAL - MATERIALIDADE COMPROVADA - INDÍCIOS
SUFICIENTES DE AUTORIA - DOLO EVENTUAL EM TESE CONFIGURADO
- PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMÍCIDIO CULPOSO -
DÚVIDA QUE SE RESOLVE EM FAVOR DA SOCIEDADE - NECESSIDADE
DE APRECIAÇÃO DAS TESES DEFENSIVAS PELO TRIBUNAL DO JÚRI -
RECURSO DESPROVIDO.
Na sentença de pronúncia, exige-se apenas prova da existência do crime e indícios
da autoria, invertendo, assim, a regra do in dubio pro reo para o in dubio pro
societate. 44

Em outro acidente, o motorista foi denunciado como incurso nas sanções do artigo
121, § 2º, inciso III, parte final, c/c os artigos 13, caput, e 18, inc. I, 2º parte, todos do Código

43
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Recurso criminal n. 2007.063865-9. Relator: Des. Moacyr de
Moraes Lima Filho. Florianópolis, SC, 17 de junho de 2008. Disponível em:
<http://tjsc6.tj.sc.gov.br/cposg/pc. jsp?CDP=01000AYXC0000>. Acesso em: 05 nov. 2008.
44
Id. Tribunal de Justiça. Recurso criminal n. 2008.014724-7. Relator: Des. Sólon d’Eça Neves. Florianópolis,
SC, 10 de julho de 2008. Disponível em:
< http://tjsc6.tj.sc.gov.br/cposg/pc. jsp?CDP=01000BEST0000>. Acesso em: 06 nov. 2008.
63

Penal tendo em vista que no momento do acidente que resultou na morte de duas pessoas, o
mesmo encontrava-se embriagado. Concluída a instrução processual o réu restou pronunciado
nas sanções do artigo 121, § 2º, inciso III (parte final), na forma do artigo 70 (duas vezes), c/c
os artigos 13, caput, e 18, inciso I (segunda parte), todos do Código Penal, em concurso
material (art. 69, CP) com os delitos dos artigos 305 e 306, ambos da Lei 9.503/97.
Inconformado com a decisão interpôs Recurso em Sentido Estrito, o qual foi decidido pela
Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
ACIDENTE DE TRÂNSITO - HOMICÍDIOS DOLOSOS (DUAS VEZES) -
EMBRIAGUEZ AO VOLANTE - DIREÇÃO EM ZIGUEZAGUE - INVASÃO DA
CONTRAMÃO - INDÍCIOS QUE, SOMADOS, APONTAM PARA A
CONFIGURAÇÃO DE DOLO EVENTUAL - DÚVIDA QUE DEVE SER
DIRIMIDA PELO CONSELHO POPULAR.
ACIDENTE DE TRÂNSITO - HOMICÍDIOS QUALIFICADOS PELO PERIGO
COMUM - INOCORRÊNCIA - SUPRESSÃO DA QUALIFICADORA QUE SE
MOSTRA DESTITUÍDA DE FUNDAMENTO JURÍDICO.
CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO (LEI N. 9.503/97) - AFASTAMENTO
DO LOCAL DO DELITO (ART. 305) - CONFIGURAÇÃO, EM TESE -
ANÁLISE QUE DEVE SER FEITA PELOS JURADOS - CONDUÇÃO DE
VEÍCULO SOB EFEITO DE ÁLCOOL (ART. 306) - DELITO DE MERA
CONDUTA QUE É ABSORVIDO PELO DE HOMICÍDIO DOLOSO (CP, ART.
121, CAPUT) - COMINAÇÃO AFASTADA PELA APLICAÇÃO DA
SUBSIDIARIEDADE - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.45
Destarte, percebe-se que muitas vezes o Tribunal entende que homicídio praticado
no trânsito por motorista embriagado deve ser punido de acordo com a legislação especial, ou
seja, o Código de Trânsito Brasileiro, editado com fim de punir exclusivamente os crimes de
trânsito na modalidade culposa.
Porém, em outros casos, pune o condutor do veículo de acordo com o Código
Penal, por entender que há configuração de dolo eventual na conduta do mesmo, e assim, o
motorista que praticou o homicídio, é levado a julgamento pelo Tribunal do Júri.

4.6 POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM RELAÇÃO AOS CASOS DE


HOMICÍDIO PRATICADO NO TRÂNSITO POR MOTORISTA EMBRIAGADO

Os homicídios praticados no trânsito por motorista embriagado sempre são crimes


de repercussão, pois o condutor do veículo praticou a conduta após ter ingerido bebidas
alcoólicas, que sempre causam alterações nos reflexos de uma pessoa, e a sociedade

45
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Recurso criminal n. 2006.002066-0. Relator: Des. Irineu João da
Silva. Florianópolis, SC, 21 de março de 2006. Disponível em:
< http://tjsc6.tj.sc.gov.br/cposg/pc. jsp?CDP=010007ULW0000>. Acesso em: 06 nov. 2008.
64

imediatamente clama pela condenação daquele condutor pela modalidade de dolo eventual,
pois se entende que ele assumiu o risco de produzir o resultado lesivo.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou afirmando que nestes
casos, mesmo diante da embriaguez do condutor, há culpa consciente e não dolo eventual.
Um dos casos trata-se de um réu que fora denunciado perante a 1ª Vara Criminal
de Florianópolis como incurso nos artigos 121, caput, c/c artigo 70, ambos do Código Penal e
artigo 304 do Código de Trânsito Brasileiro, pela prática de homicídio na direção de veículo
em estado de embriaguez. O juízo de 1° grau afastou a possibilidade de dolo eventual
desclassificou as condutas imputadas para os delitos inscritos no artigo 302, parágrafo único,
inciso III, e artigo 306, ambos da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro).
Irresignado, o órgão do Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito,
pleiteando a reforma da sentença de desclassificação, pleito este que foi acatado em 2° grau,
onde a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça Catarinense reformou a decisão para
pronunciar o réu nas sanções do artigo 121, caput, do Código Penal, determinando seu
julgamento pelo Tribunal do Júri.
O réu por sua vez, apresentou Recurso Especial, dirigido ao Superior Tribunal de
Justiça, que então decidiu pela desclassificação para a modalidade culposa:
PENAL. PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS
DECLARATÓRIOS. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE
TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. REVALORAÇÃO DE
PROVAS. POSSIBILIDADE. PRONÚNCIA. APLICAÇÃO DO BROCARDO IN
DUBIO PRO SOCIETATE. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DO DOLO
EVENTUAL. DÚVIDA NÃO CARACTERIZADA. DESCLASSIFICAÇÃO DA
CONDUTA QUE SE IMPÕE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
Inexistente qualquer ambigüidade, obscuridade, contradição ou omissão no aresto
impugnado, insubsistente a alegada contrariedade ao art. 619 do CPP.
A revaloração do contexto probatório firmado pelo Tribunal a quo, diferente do
reexame de provas vedado pela Súmula 7/STJ, é permitida em sede de recurso
especial.
A pronúncia do réu, em atenção ao brocardo in dubio pro societate, exige a presença
de contexto que possa gerar dúvida a respeito da existência de dolo eventual.
Inexistente qualquer elemento mínimo a apontar para a prática de homicídio, em
acidente de trânsito, na modalidade dolo eventual, impõe-se a desclassificação da
conduta para a forma culposa.46
Noutro caso trata-se de competência originária, em que um desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul praticou homicídio na direção de veículo
automotor, em estado de embriaguez e velocidade incompatível com o local do acidente.
Denunciado pela prática do crime previsto no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro,
decidiu a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça:
46
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 705416. Relator: Min. Paulo Medina. Brasília,
DF, 23 de maio de 2006. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurispr.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=embriaguez&&b=ACOR&p=tru
e&t=&l=10&i=21>. Acesso em: 05 nov. 2008.
65

DIREITO PENAL – AÇÃO PENAL – CRIME DE TRÂNSITO – HOMICÍDIO


CULPOSO – MATERIALIDADE COMPROVADA PELOS LAUDOS DO
EXAME CADAVÉRICO E DO LOCAL DA OCORRÊNCIA, BEM COMO PELA
PROVA TESTEMUNHAL – AUTORIA DEMONSTRADA EM FACE DA
PRISÃO EM FLAGRANTE – CONFIRMADAS A EMBRIAGUEZ DO
DENUNCIADO E A VELOCIDADE SUPERIOR À PERMITIDA NO LOCAL DO
ACIDENTE – OMISSÃO DE SOCORRO – OCORRÊNCIA – PROCEDÊNCIA,
EM PARTE, DA DENÚNCIA – DETENÇÃO MAJORADA DE 1/3 (TERÇO) –
SUBSTITUIÇÃO PELAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS –
DELEGAÇÃO PARA EXECUÇÃO DA PENA.
I - Em ação penal, comprovada a materialidade do crime de trânsito, pelos laudos de
exame cadavérico, do local da ocorrência e pela prova testemunhal, do qual resultou
atropelamento com vítima fatal, configura-se o cometimento de homicídio culposo,
cabendo ser imposta a condenação do responsável pelo acidente nas penas do artigo
302 da Lei nº 9.503, de 23/09/97 (Código Nacional de Trânsito).
II – A autoria do crime resta demonstrada, se houve auto de prisão em flagrante e
prova de que o motorista estava dirigindo embriagado, imprimindo velocidade
superior à permitida para o local.
III – Ocorrente, na espécie, omissão do socorro (artigo 302, parágrafo único, inciso
III do Código Nacional de Trânsito), a pena poderá ser majorada de 1/3 (um terço).
[...]
VI – Decisão por maioria. 47 (grifo nosso)
Observa-se que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar a Ação
Penal, entendeu que a embriaguez do motorista não é causa determinante para configuração
do dolo eventual. O Código de Trânsito Brasileiro é a lei especial que regula os crimes de
trânsito e, portanto, é ela que deve ser aplicada.
De outro norte, em alguns casos o réu restou pronunciado por entender que no
momento do delito, o elemento subjetivo norteador da conduta do motorista foi o dolo
eventual, como a seguir será demonstrado.
Em um dos casos, o motorista foi denunciado como incurso na sanção dos artigos
121, caput, e 129, § 2º, III, c⁄c o artigo 70, todos do Código Penal, porque, na direção de
veículo automotor, sob efeito de bebida alcoólica e desenvolvendo velocidade incompatível
com a via em que transitava, teria provocado o atropelamento e morte de uma pessoa e lesões
em outra.
Pronunciado, o réu interpôs Recurso em Sentido Estrito ao Tribunal de Justiça de
Minas Gerais que desclassificou o delito para a modalidade culposa, sob fundamento de não
reconhecimento da modalidade de dolo eventual nos delitos de trânsito. Inconformado com a
decisão, o Ministério Público interpôs Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça,
pugnando pelo reconhecimento de dolo eventual, sendo o recurso conhecido e provido nos
seguintes termos:

47
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ação penal n. 189. Relator: Min. Garcia Vieira, Brasília, DF, 05 de
setembro de 2001. Disponível em:
< http://www.stj.jus.br/SCON/jurispr. jsp?livre=embriaguez&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=62>. Acesso
em: 05 nov. 2008.
66

CRIMINAL. RESP. DELITO DE TRÂNSITO. PRONÚNCIA. DOLO


EVENTUAL. EXCLUSÃO PELO TRIBUNAL A QUO. GENERALIZAÇÃO.
INADMISSÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
I. É incabível a desclassificação do delito de trânsito para sua forma culposa, ao
fundamento de que, nessa modalidade de crime, não se admite a hipótese de dolo
eventual, uma vez que o agente não assume o risco de produzir o resultado.
II. Inadmissível a generalização no sentido de que os delitos decorrentes de
acidentes de trânsito são sempre culposos. Precedentes.
III. Recurso conhecido e provido, nos termos do voto do Relator. 48
Deste modo, percebe-se que no Superior Tribunal de Justiça também há decisões
em que o motorista que pratica homicídio estando sob influência de álcool, é punido a título
de culpa consciente como também, em outros casos, é punido a título de dolo eventual, onde a
decisão final fica nas mãos dos jurados que compõem o Tribunal do Júri.
Destarte, após apresentar alguns julgados oriundos do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina e do Superior Tribunal de Justiça, nos quais os réus foram condenados pela prática
de homicídio no trânsito sob influência de álcool, na modalidade culposa ou dolosa, no
próximo tópico elencam-se algumas medidas que devem ser tomadas a fim de reduzir os
acidentes.

4.7 MEDIDAS PREVENTIVAS PARA REDUÇÃO DOS CASOS DE HOMICÍDIO NO


TRÂNSITO

O direito penal é um instrumento que deve ser utilizado apenas quando os outros
meios de controle social fracassam, e também quando os outros ramos do direito não se
mostram razoáveis na solução do conflito.
Entretanto, muitas vezes não é o que se vê, e o direito penal acaba sendo utilizado
de maneira simbólica ou promocional, cumprindo funções ilegítimas, servindo apenas para
acalmar os ânimos da sociedade frente aos problemas sociais que poderiam ser solucionados
de outro modo, conforme demonstrado no primeiro capítulo.
Tratando-se de crimes de trânsito, a pena não possui função contra motivacional,
onde os motoristas se intimidariam diante de uma pena mais severa que foi imposta àquele
motorista que praticou homicídio no trânsito quando se encontrava embriagado, tendo em

48
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 719477. Relator: Min. Gilson Dipp, Brasília, DF,
04 de agosto de 2005. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurispr.jsp?livre=tr%E2nsito+dolo+eventual&data=%40DTDE+%3E%3D+2002
0101+e+%40DTDE+%3C%3D+20081107&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=7 >. Acesso em: 06 nov. 2008.
67

vista que as pessoas não ingerem bebidas alcoólicas e saem às ruas destinadas a cometerem
homicídios.
Quando a questão envolve o trânsito brasileiro e o grande número de homicídios,
dentre os quais inúmeros deles têm como fator determinante a embriaguez do condutor do
veículo, é importante salientar algumas medidas preventivas, para evitar que esses infortúnios
aconteçam.
O homem precisa ser educado no bom sentido, ou seja, ser orientado. É preciso
educá-lo para o aprimoramento do espírito e para uma convivência social pacífica,
indispensável e necessária a todo ser humano. O homem não pode viver só e para viver em
comunidade, precisa se enquadrar e respeitar as regras sociais, indispensáveis à convivência
harmônica e construtiva. 49
Nogueira prossegue afirmando que:
O grande problema do nosso trânsito é justamente a falta de educação dos nossos
motoristas, que não estão devidamente preparados para a função. Todo mundo
reclama e proclama que a educação é considerada fator primordial para a disciplina
do trânsito, pretendendo alguns inclui-la como matéria curricular a ser ministrada
nas escolas, principalmente de primeiro grau. 50 (grifos do autor)
A colocação do autor é de todo correta, uma vez que o primeiro passo para educar
os futuros motoristas, seria colocar como disciplina da grade escolar dos alunos do ensino
fundamental, matérias relacionadas à educação no trânsito, o que já vem sendo feito em
algumas escolas, porém poucas. Esta medida deveria ser implantada em toda a rede pública e
particular.
Shimoishi apud Tawil corrobora com a idéia de que a educação no trânsito deve
iniciar desde as séries do ensino fundamental e afirma:
Há saídas para o trânsito do Brasil. A primeira delas é a implementação da educação
para o trânsito desde os primeiros anos do ensino fundamental, de maneira clara e
contínua. A segunda é preparar os instrutores dos órgãos de trânsito, porque serão
eles que formarão os futuros motoristas. Uma fiscalização eficiente também é
fundamental para um trânsito mais humano. E, por fim, um Poder Judiciário que
faça os culpados ou infratores cumprirem as penas cabíveis, sem exceção. 51
A educação já nas séries iniciais é sem dúvida uma das principais medidas
preventivas que devem ser adotadas no combate à redução na violência no trânsito. Mas
existem outras, conforme observa Nogueira:
Fiscalização ou policiamento não deixa de ser uma exigência indispensável à
segurança no trânsito que, infelizmente, também não deixa de ser deficitária, tanto
nas rodovias como nas cidades [...]. O problema da segurança no trânsito terá
melhores soluções, quando houver mais educação e melhor fiscalização. 52

49
NOGUEIRA, 1988, p. 16.
50
Ibid., p. 16.
51
TAWIL, 2007, p. 87.
52
NOGUEIRA, op. cit., p. 19.
68

A fiscalização no trânsito se distribui por diversos setores, cabendo ao governo


dotá-los de meios capazes de reprimir os abusos e de elementos preparados para o exercício
das funções. O pessoal da fiscalização deve ser devidamente preparado para suas funções,
pois não se admite mais elementos improvisados, principalmente no trânsito, que requer
conhecimentos específicos.53
Percebe-se que falta fiscalização nas estradas do país. Uma boa vigilância
produziria melhores resultados para a população em geral do que o endurecimento de leis
penais.
Essa fiscalização deveria ser direcionada ao grande consumo de álcool nas
rodovias, tendo em vista que o uso de álcool associado a veículos cada vez mais velozes é um
dos fatores preponderantes nas mortes no trânsito. Vidal apud Tawil justifica que:
São poucas as campanhas ‘anti-álcool’ no trânsito e todas se limitam à iniciativa do
Denatran, por meio de inserções nos horários livres da TV. Isso não forma
consciência do perigo da embriaguez ao volante. Há necessidade, principalmente, do
envolvimento das dezessete indústrias automobilísticas do Brasil. 54
Uma das maneiras mais importante para coibir o uso de álcool é a prevenção, que
deve ser feita através de campanhas educativas em todos os meios de comunicação. Algumas
campanhas já vêem sendo realizadas. Entretanto é preciso fazer mais.
Leal também destaca a importância dos meios de comunicação e demais entidades
no combate ao uso do álcool:
Os meios de comunicação social podem dar uma grande contribuição, pois são
importantes formadores de opinião. As escolas e as entidades representativas dos
diversos segmentos da sociedade devem também fazer a sua parte. Enfim, no plano
da prevenção educativa, é preciso que toda a sociedade civil se conscientize de que
bebida alcoólica e direção de um veículo são coisas incompatíveis. 55
Jesus por sua vez, elenca algumas medidas pertinentes que deveriam ser adotadas
para redução dos acidentes de trânsito decorrentes do consumo de álcool:
a) Inspeção veicular obrigatória anual (que tem por objetivo a verificação das
condições do veículo para trafegar).
b) Inspeção veicular obrigatória aleatória (a qual tem por objetivo a verificação das
condições do veículo, do condutor e dos passageiros).
c) desenvolver campanhas de prevenção;
d) celebrar convênios (com os Municípios) para a delegação de atividades de
fiscalização;
e) fixar programa de atividades fiscalizatórias: locais, horários, freqüências. A
fiscalização (inspeção aleatória) poderia ser realizada em praças de pedágio e trevos
de acesso aos Municípios, envolvendo a utilização de "bafômetros" ou de outros
instrumentos de aferição. 56

53
NOGUEIRA, 1988, p. 21.
54
TAWIL, 2007, p. 91.
55
LEAL, João José. Alcoolismo e acidentes de trânsito. Boletim jurídico, Uberaba, ano 3, n. 116, fev. 2005.
Disponível em: < http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=536>. Acesso em: 08 nov. 2008.
56
JESUS, Damásio E. de. Limites à prova da embriaguez ao volante: a questão da obrigatoriedade do teste do
bafômetro. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 344, 16 jun. 2004. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5338>. Acesso em: 08 nov. 2008.
69

Além de educação e conscientização dos motoristas para o trânsito, é necessário


também melhorar as rodovias do país, e também propiciar ao pedestre melhores condições,
uma vez que os atropelamentos são freqüentes.
A educação para o trânsito deve ser efetivada pelo Poder Público, haja vista que o
Capítulo VI do Código de Trânsito Brasileiro trata exclusivamente de educação para o
trânsito, pois a mudança comportamental é fator fundamental para um trânsito mais seguro, a
médio e longo prazo.
Enfim, a realização de campanhas no combate ao uso de álcool pelos motoristas,
melhor fiscalização e policiamento nas estradas, políticas específicas para formação e
treinamento dos condutores, ações educativas nas escolas, desde as séries inicias, reduziriam
os números de homicídios envolvendo motoristas alcoolizados.
Rasgando a teoria geral do delito e tudo o que ela representa não se estará
resolvendo o problema, mas apenas utilizando-se novamente do direito penal de uma forma
espúria, transmitindo uma falsa impressão tranqüilizadora à população e deixando de buscar
soluções, que, a médio e longo prazo, possam efetivamente resolver a problemática do
trânsito.
70

5 CONCLUSÃO

Com o presente estudo monográfico buscou-se demonstrar como os crimes de


homicídio praticados por motoristas sob influência de álcool vêm sendo entendidos pelos
doutrinadores e operadores do direito, bem como estes motoristas são responsabilizados
penalmente.
Inicialmente, entendeu-se que o Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas
impostas a fim de limitar a conduta dos membros da sociedade, e quando estes limites são
ultrapassados, o Direito Penal atua punindo àquele que infringiu as normas jurídicas.
O Direito Penal cumpre funções legítimas, que dizem respeito, basicamente, à
proteção do indivíduo contra violências de outras pessoas, bem como da violência estatal, pois
também se pode cumprir funções ilegítimas, quando atua como instrumento de promoção ou
então, atua simbolicamente perante a sociedade, a fim de aquietar os ânimos e mostrar que as
leis estão sendo devidamente cumpridas.
Verificou-se que a pena é o instrumento que o Direito Penal dispõe para impor um
mal àquele que praticou outro. Perante o sistema, segundo as teorias absolutas, a pena cumpre
função retributiva, enquanto para as teorias relativas, possui caráter preventivo, atuando como
prevenção geral, perante toda a sociedade ou prevenindo de maneira especial, em relação
àquele que já delinqüiu na tentativa de ressocializá-lo. Já para as teorias mistas, a pena
funciona como retribuição e prevenção, teoria esta que foi recepcionada pelo Código Penal
Brasileiro.
Observou-se, ainda, que o homicídio é intitulado como um dos crimes contra a
vida, no qual um ser humano tira a vida de outro, e tem como objeto jurídico a vida de
qualquer ser humano.
O delito de homicídio pode ser praticado por qualquer pessoa, exceto nos crimes
de trânsito, em que o sujeito ativo só poderá ser aquele que esteja na direção de veículo
automotor. De outro norte, qualquer pessoa pode ser sujeito passivo deste crime.
No tocante ao elemento subjetivo norteador da conduta do sujeito ativo, há duas
possibilidades: culpa e dolo. A culpa é entendida como a ausência de cuidado necessário
quando ocorre o evento danoso, e essa culpa pode ser inconsciente, decorrente da ausência de
previsão, embora previsível o resultado ou consciente, também chamada de culpa com
previsão, na qual o agente embora tenha possibilidade de prever o resultado, confia em sua
71

habilidade e prossegue na execução da tarefa. Esta é a espécie de culpa que envolve os


homicídios praticados por motorista embriagado.
Além da culpa, encontramos o dolo, que nos casos de homicídio, geralmente é a
regra. O dolo é dividido em dolo direto, ou seja, quando o agente busca o resultado morte e
dolo indireto, no qual o agente não busca diretamente o resultado, porém sua conduta se dirige
a um resultado lesivo.
O dolo indireto se subdivide em dolo alternativo, onde a conduta do agente se
dirige a um resultado lesivo, porém o sujeito não se preocupa com o resultado, e dolo
eventual, no qual o agente assume o risco de provocar o resultado lesivo e sabe que este pode
ocorrer, porém, não se abstém de praticar a conduta. Esta modalidade de dolo enseja tantas
discussões nos casos de homicídio no trânsito, praticado por motorista embriagado.
Vislumbrou-se que os crimes de homicídio vêm ocorrendo com mais freqüência
no trânsito brasileiro, e diversos fatores contribuem para isso. Dentre eles, podemos citar a
falta de educação dos motoristas para o trânsito, excesso de velocidade, falta de campanhas,
consumo de álcool, entre outros fatores, que colocam o Brasil como um dos países com maior
índice de violência no trânsito.
Entretanto, o grande vilão dos acidentes de trânsito, é o consumo de álcool, que
aliado à direção de veículo automotor, acaba causando muitas mortes no trânsito. Diante dessa
problemática envolvendo o consumo de álcool, recentemente o legislador editou a Lei
11.705/08 que alterou alguns dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, dentre os quais se
pode mencionar alguns referentes ao índice de concentração alcoólica no sangue dos
motoristas e as penalidades impostas.
Destacou-se que se a concentração alcoólica for inferior a 6 (seis) decigramas por
litro de sangue, o motorista responde por infração gravíssima, com multa e outra sanções.
Entretanto se a concentração for igual ou superior a 6 (seis) decigramas, será considerado
crime de trânsito, com as sanções previstas no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
Em relação ao homicídio praticado por motorista embriagado, o legislador
revogou o inciso V do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, o que segundo alguns
doutrinadores, abriu caminho para aplicação do dolo eventual nestes casos de homicídio.
Entendeu-se que o homicídio deve ser considerado doloso, segundo alguns
autores e operadores do direito, porque o motorista que ingere bebidas alcoólicas e sai às ruas,
já está assumindo o risco de matar uma pessoa. Este motorista não está preocupado com o
resultado que poderá advir da sua conduta e, conseqüentemente, deve ser julgado pelo
Tribunal do Júri, uma vez que nestes casos deve vigorar o princípio do in dubio pro societate.
72

Por outro lado, percebeu-se que há entendimentos de que a legislação especial


deva ser aplicada, e o homicídio ser considerado culposo, sob pena de se elastecer de maneira
desmesurada o conceito de dolo eventual, uma vez que no trânsito, salvo raríssimos casos, não
há dolo na conduta do agente, pois o fato de beber e dirigir não significa que o agente esteja
assumindo o risco de matar uma pessoa.
Acerca destes dois posicionamentos, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal
de Justiça do Estado de Santa Catarina, já decidiram diversos casos, encontrando decisões que
classificam a conduta como culposa e outras inclinando para a conduta dolosa, na qual o
condutor do veículo é pronunciado e julgado pelo júri.
Esta tendência em enquadrar os homicídios de trânsito praticados por motoristas
embriagados na forma dolosa, evidencia que o Direito Penal está sendo utilizado como um
meio de tratamento profilático aos condutores em geral, buscando intimidá-los por meio de
penas severas e tentando coagi-los, transferindo à sociedade o poder de julgar e condenar.
Observou-se que não é o enquadramento como dolo eventual ou culpa consciente
que vai reduzir esse número de mortos nas rodovias. Pois se assim fosse, tantas pessoas não
perderiam suas vidas por motivos tão banais, uma vez que a Lei de Crimes Hediondos trouxe
profundas alterações no crime de homicídio.
Contudo, nota-se que a culpa consciente ainda se mostra a melhor alternativa de
penalizar estes motoristas, que não são assassinos pré-dispostos a matar qualquer transeunte
que encontrar a sua frente ou então se chocar contra qualquer veículo que cruzar a sua
direção. Além do mais, se pararmos para analisar, vamos observar que o simples fato de
colocar um veículo em circulação, já pressupõe que se corre o risco de matar alguém ou de ser
morto.
Por fim, conclui-se que algumas medidas preventivas devem ser tomadas para
evitar que esse número de homicídios no trânsito continue crescendo, incutindo na cabeça das
crianças, desde as séries iniciais sobre a importância do trânsito e sobre as maneiras de criar
um trânsito seguro. Além do mais, é necessário a realização de mais campanhas de
conscientização, bem como maior fiscalização e policiamento nas rodovias, a fim de reduzir o
consumo de álcool entre os motoristas.
Deste modo, o Direito Penal cumpriria funções legítimas, de proteção à sociedade,
deixando um pouco de lado esta função promocional e simbólica que vem cumprindo,
editando leis rigorosas e até consideradas inconstitucionais, com o intuito de amedrontar os
motoristas e criar uma falsa sensação de tranqüilidade na população.
73

REFERÊNCIAS

ACIDENTES de trânsito no Brasil dão prejuízo anual de R$ 28 bilhões, mostra ANTP. A


tarde on line. Salvador, 18 set. 2007. Disponível em:
<http://www.atarde.com.br/brasil/noticia.jsf?id=790375#>. Acesso em: 01 nov. 2008.

AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O dolo eventual nos crimes de trânsito e a
navalha de Occam. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1607, 25 nov. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10694>. Acesso em: 09 nov. 2008.

ALFERES, Eduardo Henrique. Novas normas de embriaguez ao volante. Âmbito jurídico,


Rio Grande, ano 11, n. 55, 31 jul. 2008. Disponível em: < http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link= revista_artigos_leitura&artigo _id=3038.>. Acesso
em: 08 nov. 2008.

ANDRADE, Paulo Gustavo Sampaio. Homicídio e lesão corporal: forma culposa qualificada
no CTB . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1736>. Acesso em: 03 nov. 2008.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da


violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 1997.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Parte geral. In ______ Tratado de direito penal. 11 ed.
atual. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 1.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 19 out.
2008.

______. Decreto-lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm >. Acesso em: 20
out. 2008.

______. Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996. Altera dispositivos do Decreto-lei n°


2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal - Parte Especial. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9426.htm>. Acesso em: 25 out. 2008.

______. Lei n° 9.503 de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Disponível


em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9503.htm> Acesso em: 02 nov. 2008.
74

______. Superior Tribunal de Justiça. Ação penal n. 189. Relator: Min. Garcia Vieira,
Brasília, DF, 05 de setembro de 2001. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=embriaguez&&b=ACOR&p=true
&t=&l=10&i=62>. Acesso em: 05 nov. 2008.

______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 705416. Relator: Min. Paulo
Medina. Brasília, DF, 23 de maio de 2006. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=emb
riaguez&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=21>. Acesso em: 05 nov. 2008.

______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 719477. Relator: Min. Gilson
Dipp, Brasília, DF, 04 de agosto de 2005. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=tr%E2nsito+dolo+eventual&data=
%40DTDE+%3E%3D+20020101+e+%40DTDE+%3C%3D+20081107&&b=ACOR&p=true
&t=&l=10&i=7 >. Acesso em: 06 nov. 2008.

BRUNO, Aníbal. Parte geral. In: ______ Direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984,
v. 2.

CAPEZ, Fernando. Parte especial. In ______ Curso de direito penal. 5. ed., rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2003, v.2.

FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

FUKASSAWA, Fernando Y. Crimes de trânsito: de acordo com a Lei nº 9.503, de 23-1997,


Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998.

GOMES, Luiz Flávio. Reforma do Código de Trânsito (Lei nº 11.705/2008): novo delito de
embriaguez ao volante. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11453>. Acesso em: 08 nov. 2008.

______; BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.

______; MOLINA, Antônio García-Pablos de; BIANCHINI, Alice. Direito penal: introdução
e princípios fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1.

GRECO, Rogério. Parte Geral. In ______ Curso de direito penal. 5. ed. rev. amp. e atual.
Rio de Janeiro: Impetus, 2005, v. 1.
75

HOLANDA, Cornélio José. O dolo eventual nos crimes de trânsito. Jus Navigandi, Teresina,
ano 8, n. 326, 29 maio 2004. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5263>. Acesso em: 02 nov. 2008.

HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal: decreto-lei


n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, v. 5.

JESUS, Damásio E. de. Limites à prova da embriaguez ao volante: a questão da


obrigatoriedade do teste do bafômetro. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 344, 16 jun. 2004.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5338>. Acesso em: 08 nov.
2008.

______. Parte especial: dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio. In ______
Direito penal. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2.

JOBIM, Eduardo Schmidt. A inaplicabilidade do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro.


Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2444>. Acesso em: 03 nov. 2008.

Leal, João José. Alcoolismo e acidentes de trânsito. Boletim jurídico, Uberaba, ano 3, n. 116,
fev. 2005. Disponível em: < http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=536>.
Acesso em: 08 nov. 2008.

______. Homicídio culposo de trânsito: a impropriedade de duas normas incriminadoras para


uma mesma conduta típica. DireitoNet, Sorocaba, 13 mar. 2005. Disponível em:
<http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/44/1944/#perfil_autor>. Acesso em: 03 nov.
2008.

LOUREIRO NETO, José da Silva. Embriaguez delituosa. São Paulo: Saraiva, 1990.

MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Parte Geral, arts. 1º a 120 do CP,
conforme Lei n. 7.209, de 11-07-84. In ______ Manual de direito penal. 24. ed. rev. e atual.
São Paulo: Atlas, 2007, v. 1.

NINNO, Jefferson. Crimes de trânsito (L. 9.503/97). In: FRANCO, Alberto Silva; STOCO,
Rui (Coord.) Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. 1.

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Delitos do automóvel. 5. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1988.
76

NORONHA, E. Magalhães. Introdução e parte geral. In ______ Direito penal. 34. ed. atual.
São Paulo: Saraiva, 1999, v. 1.

______. Dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio. In ______ Direito
penal. 34. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2.

PEPEU, Sérgio Ricardo Freire. O dolo eventual e a culpa consciente em crimes de trânsito.
Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1731>. Acesso em: 08 nov. 2008.

PRADO, Luiz Regis. Parte especial, arts. 121 a 183. In ______ Curso de direito penal
brasileiro. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 2.

QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do


sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao código de trânsito brasileiro. 6. ed. rev., atual. e


ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

RODRIGUES, Décio Luiz Rodrigues. Crimes do código de trânsito. São Paulo: Lemos e
Cruz, 2007.

ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução Ana Paula dos Santos
Luís Natscheradetz. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998.

SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Recurso criminal n. 2005.039710-4. Relator:


Des. Amaral e Silva. Florianópolis, SC, 31 de janeiro de 2006. Disponível em:
<http://tjsc6.tj.sc.gov.br/cposg/pcpoResultadoConsProcesso2Grau.jsp?CDP=010007O9K000
0 >. Acesso em: 05 nov. 2008.

______. Tribunal de Justiça. Recurso criminal n. 2007.063865-9. Relator: Des. Moacyr de


Moraes Lima Filho. Florianópolis, SC, 17 de junho de 2008. Disponível em:
<http://tjsc6.tj.sc.gov.br/cposg/pcpoResultadoConsProcesso2Grau.jsp?CDP=01000AYXC000
0>. Acesso em: 05 nov. 2008.

______. Tribunal de Justiça. Recurso criminal n. 2008.014724-7. Relator: Des. Sólon d’Eça
Neves. Florianópolis, SC, 10 de julho de 2008. Disponível em:
<http://tjsc6.tj.sc.gov.br/cposg/pcpoResultadoConsProcesso2Grau.jsp?CDP=01000BEST000
0>. Acesso em: 06 nov. 2008.
77

______. Tribunal de Justiça. Recurso criminal n. 2006.002066-0. Relator: Des. Irineu João
da Silva. Florianópolis, SC, 21 de março de 2006. Disponível em:
<http://tjsc6.tj.sc.gov.br/cposg/pcpoResultadoConsProcesso2Grau.jsp?CDP=010007ULW000
0>. Acesso em: 06 nov. 2008.

SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades,


direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.

TAWIL, Marc. Trânsito assassino: as mortes aumentam: ninguém liga. São Paulo: Terceiro
Nome, 2007.

WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de trânsito: uma tentativa


frustrada. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1732>. Acesso em: 08 nov. 2008..

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal


brasileiro: parte geral. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
78

ANEXOS
79

ANEXO A – Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que trata
sobre dolo eventual

Recurso Criminal n. 2008.014724-7, de Curitibanos

Relator: Des. Solon d'Eça Neves


RECURSO CRIMINAL – ACIDENTE DE TRÂNSITO – ART. 121, CAPUT, DO
CÓDIGO PENAL – MATERIALIDADE COMPROVADA – INDÍCIOS
SUFICIENTES DE AUTORIA – DOLO EVENTUAL EM TESE CONFIGURADO
– PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMÍCIDIO CULPOSO –
DÚVIDA QUE SE RESOLVE EM FAVOR DA SOCIEDADE – NECESSIDADE
DE APRECIAÇÃO DAS TESES DEFENSIVAS PELO TRIBUNAL DO JÚRI –
RECURSO DESPROVIDO.
Na sentença de pronúncia, exige-se apenas prova da existência do crime e indícios
da autoria, invertendo, assim, a regra do in dubio pro reo para o in dubio pro
societate.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Criminal n. 2008.014724-7,
da comarca de Curitibanos (Vara Criminal, Infância e Juventude), em que é recorrente José
Adelino Gonçalves, e recorrida a Justiça, por seu Promotor:

ACORDAM, em Primeira Câmara Criminal, por votação unânime, negar


provimento ao recurso. Custas legais.

RELATÓRIO

O representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra José Adelino


Gonçalves por infrações ao estabelecido no artigo 121, caput, do Código Penal, pelos fatos
assim descritos na exordial:
"No dia 06 de setembro de 2003, na BR 116, km 179,4, no Município de São
Cristóvão do Sul, nesta comarca, por volta das 14h, o denunciado conduzia o veículo
caminhão basculante Ford/F600, placa LZF 9225, de propriedade de Ulysses
Gaboardi, sob influência de álcool, expondo a dano potencial a incolumidade de
pedestres e demais motoristas, quando, em razão da embriaguez, perdeu o controle
da direção do veículo e, saindo da pista, atropelou os ciclistas, João Pinto Fernandes
e a filha deste Sabrina de Lima Fernandes, com nove anos de idade, os quais
transitavam pelo acostamento, causando, no primeiro, os ferimentos descritos no
auto de exame cadavérico de fls. 18/19, sendo estes a causa eficiente de sua morte,
bem como as lesões corporais na criança. Em razão do impacto, restaram feridas
também as vítimas Audivan Kraieski Batista (criança) e Avelino Martin Batista, que
estavam na caçamba do veículo. Dirigindo seu veículo em total estado de
embriaguez, o denunciado assumiu o risco de provocar a colisão que ceifou a vida
da vítima João Pinto Fernandes."
Concluída a instrução criminal, o acusado foi pronunciado, como incurso nas
sanções do art. 121, caput, do Código Penal.
Inconformado, recorreu em sentido estrito requerendo a sua absolvição por falta
de provas. Alternativamente, pleiteia a desclassificação do delito de homicídio para a sua
forma culposa.
Com as contra-razões e o despacho de manutenção, os autos ascenderam a esta
Instância, e a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. Raul Schaefer
Filho, manifestou-se pelo conhecimento e não provimento do recurso.
80

VOTO

O recurso não merece prosperar.


Primeiramente, convém esclarecer que, em sede de pronúncia, veda-se à
autoridade judiciária a profunda valoração do acervo probatório, e cabe a essa tão-somente o
exame da viabilidade da acusação; para tanto, basta a prova da materialidade e indícios
suficientes da autoria.
A materialidade é inconteste e advém do Boletim Circunstanciado (fl. 13), da
Ficha de Ocorrência Policial Militar (fl. 17), do Auto de Exame de Teor Alcoólico (fl. 19), do
Auto de Exame de Corpo de Delito (fls. 21, 24-26) e do Laudo Pericial (fls. 22-23).
No tocante à autoria, na situação dos autos, desses despontam elementos
nebulosos. Em outras palavras, o caso dos autos não comporta absolvição sumária, posto que
não se pode afastar desde logo a ocorrência de dolo eventual ou excludente de culpabilidade.
Com efeito, o próprio recorrente não nega a participação nos fatos; aduz, contudo,
que não se encontrava embriagado, nem estava em alta velocidade (fls. 7-8 e 53-54).
Por outro vértice, as testemunhas policiais José Vilmar Souza de Moraes e Nécio
Lúcio Amorim, policiais que atenderam à ocorrência, afirmaram que puderam observar que o
réu se encontrava embriagado, pois "o contato pessoal mostrava que o réu havia bebido
bastante, o que constatava por seu hálito e também pela conversa do acusado".
Outra testemunha de nome Roselane Apareceida Carmargo de Souza (fl. 28), por
sua vez, informou que o recorrido invadiu a pista contrária e provocou o abalroamento, in
verbis:
"(...) há uns vinte metros na sua frente seguiam os dois ciclistas, pai e filha, no
mesmo sentido da depoente; Que em sentido contrário, na direção do centro para o
meu Postinho, vinha uma caçamba fazi um 'zig zag' e chamou a atenção da depoente
que seguia com sua filha e uma amiga, (...) Que, quanto ao impacto foi tudo muito
rápido e a depoente não pode especificar exatamente como teria ocorrido, apenas
que, realmente a caçamba seguia desgovernada, invadiu o acostamento na mão de
direção que seguia, por onde seguiam a depoente, outros pedestres e os ciclistas que
foram vítimas; que tanto os ciclistas quando os pedestres seguiam na direção
contrária do veículo;(...)".
Ora, em regra, os delitos que ocorrem na circulação e condução de veículos
automotores nas vias públicas são culposos. Contudo, há aqueles que ultrapassam os limites
ponderáveis das normas para a segurança do trânsito, tais como a embriaguez voluntária, a
velocidade demasiada e outras que retratam conduta além do risco compatível com a
normalidade da disciplina do trânsito. Esses constituem, por conseguinte, uma categoria
denominada dolo eventual.
É, sem dúvida, tormentosa a distinção entre culpa consciente e dolo eventual. Na
prática, muito fina a linha limítrofe entre ambos. Entrementes, os efeitos penais resultantes do
reconhecimento de um ou outro, pelo elemento subjetivo, implica em distância considerável,
pela gravidade da sanção.
Nesse ínterim, vale ponderar que o presente caso até poderá ser entendido como
culposo; tal particularidade, contudo, deverá ser analisada pelo Tribunal do Júri como dispõe
o art. 5º, inciso XXXVIII, da CF e as disposições dos arts. 406 a 497 do CPP, se doloso.
Entretanto, sabe-se que a pronúncia é juízo de admissibilidade da acusação, logo,
se as provas indicam ser possível, pelas circunstâncias, o dolo eventual, mesmo que a morte
tenha sido causada na circulação de trânsito por veículo automotor, cabe ao Juiz monocrático
pronunciar a fim de que os jurados, na sessão de julgamento, dentro da soberania garantida
81

pela Constituição, examinem amplamente todos os elementos reunidos no processo, ofertando


o veredicto que entenderem plausível. Maior análise, salvo melhor juízo, importaria em
usurpação da competência dos jurados para análise do elemento subjetivo da conduta do
apelado.
Esta Corte de Justiça já decidiu:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – PRONÚNCIA CRIME DE TRÂNSITO –
PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO –
IMPOSSIBILIDADE – PRESENTES PROVA DA MATERIALIDADE E
INDÍCIOS DA AUTORIA – DUPLICIDADE DE VERSÕES SOBRE OS FATOS
QUE APONTAM, EM TESE, A OCORRÊNCIA DO DOLO EVENTUAL –
INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE – NECESSIDADE
DE REMESSA AO TRIBUNAL DO JÚRI – [...] (Recurso Criminal n.
2001.024631-7, de Indaial, rel. Des. José Carlos Carstens Köhler).
Analisando o processado, verifica-se que existem indícios suficientes de que o réu
assumiu o risco de produzir o resultado em questão, uma vez que se constatou a embriaguez e
a aparente velocidade incompatível com a permitida no local.
Importante ressaltar que a tese da defesa dando conta de que a culpa foi exclusiva
da vítima não foi amplamente demonstrada no processado, ao revés, em princípio, não
encontra o devido respaldo no corpo probatório para uma desclassificação de plano.
Sendo assim, conclui-se que as teses desclassificatórias ou de culpa exclusiva da
vítima, apresentadas pela defesa são inviáveis, ao menos nesta fase.
No mais, do exame acurado do acervo probatório, não se permite afirmar, com
absoluta certeza, qual teria sido o elemento subjetivo que determinou a conduta do agente no
evento denunciado, isto é, se o réu agiu assumindo o resultado da sua conduta (dolo eventual),
ou se ele se postou com mera culpa, e deve a matéria, por conseguinte, ser decidida pelo
Conselho de Sentença, que, na sua soberania, escolherá a hipótese que entender melhor se
adequar à realidade fática exposta nos autos.
Nesse sentido, decidiu este Sodalício:
“Recurso Criminal – Pronúncia – Delito de trânsito – Homicídio consumado e
tentativa de homicídio – Pretendida desclassificação para a figura culposa (art. 121,
§ 3º, do CP) – Agente que, conduzindo automóvel, sem habilitação, em excesso de
velocidade e em condições climáticas adversas (noite de intensa neblina), após
ultrapassar veículo pela direita, provoca atropelamento, do qual resultaram falecidos
três jovens e feridos outros três – Dolo eventual em tese configurado – Existência de
duas versões dos fatos – Dúvida que se resolve em favor da sociedade, nesta fase
procedimental – Manutenção da decisão provisional que se impõe – Situação que
deve ser dirimida pelo Tribunal do Júri. Recurso desprovido” (Recurso Criminal n.
9.986, rel. Des. Jorge Mussi).
Ainda:

“ACIDENTE DE TRÂNSITO – HOMICÍDIO – OPERADA


DESCLASSIFICAÇÃO PARA A MODALIDADE CULPOSA – DEPOIMENTOS
DANDO CONTA DO EMPREGO DE VELOCIDADE EXCESSIVA – SINISTRO
QUE OCORREU EM VIA PREFERENCIAL QUE REÚNE VÁRIOS
ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS, COM MAIOR FLUXO DE PESSOAS –
INDÍCIOS, CONTUDO, DE QUE O AGENTE CAUSADOR NÃO TENHA
VISUALIZADO A PEQUENA VÍTIMA – ANÁLISE DO ELENCO
PROBATÓRIO QUE DEIXA DÚVIDAS A RESPEITO DO RECONHECIMENTO
DO DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE – SOLUÇÃO A SER
DIRIMIDA PELO CONSELHO POPULAR – POSSIBILIDADE DA
PRONÚNCIA – DECISÃO REFORMADA – RECURSO PROVIDO (Recurso
Criminal n. 2003.014116-2, de Caçador, rel. Des. Jorge Mussi).
82

Ademais, é sabido que a impronúncia consiste num julgamento de


inadmissibilidade de encaminhamento da imputação para julgamento perante o Tribunal do
Júri, porque o juiz não se convenceu da existência da prova da materialidade do crime ou de
indícios de autoria, ou até mesmo, nenhum dos dois.
Dessa feita, havendo prova da materialidade e indícios suficientes da autoria, e
não se podendo afastar de plano a configuração do dolo eventual para os crimes previstos nos
arts. 121, caput, 129, § 1°, inciso I, c/c o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, a
pronúncia do recorrente é medida imperativa.

DECISÃO

Ante o exposto, por unanimidade, nega-se provimento ao recurso.


O julgamento, realizado no dia 3 de junho de 2008, foi presidido pelo Exmo. Sr.
Des. Souza Varella, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Subs. Victor Ferreira.
Funcionou como representante do Ministério Público o Exmo. Sr. Dr. Sérgio Antônio Rizelo.

Florianópolis, 10 de julho de 2008.

Solon d'Eça Neves


RELATOR
83

ANEXO B – Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça que trata sobre culpa
consciente

RECURSO ESPECIAL Nº 705.416 - SC (2004/0155660-5)


RELATOR : MINISTRO PAULO MEDINA
RECORRENTE : GIULIANO GUGLIELMI
ADVOGADO : ANTÔNIO NABOR AREIAS BULHÕES E OUTROS
RECORRIDO : VITOR HUGO UGUSTO GARCEZ
ADVOGADO : IRINEU LEMOS DA LUZ - ASSISTENTES DO MINISTÉRIO
PÚBLICO
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA

RELATÓRIO

EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA(Relator): O Ministério Público do


Estado de Santa Catarina denunciou, perante o Juízo da 1a Vara Criminal da Comarca de
Florianópolis - SC, GIULIANO GUGLIELMI e FABIANO DE OLIVEIRA como incursos,
o primeiro, nas sanções do art. 121, caput, em combinação com o art. 70, ambos do Código
Penal e art. 304 do Código de Trânsito Brasileiro, e o segundo, tão-somente nas penas do
último dispositivo, pela suposta prática dos seguintes fatos:
"...na madrugada de 1o de maio de 1999, por volta das 04:28 horas, na terceira
pista da (...) 'Avenida Beira-Mar Norte', mais precisamente na via secundária, em
frente ao estabelecimento comercial denominado 'Restaurante e Choperia
Bierplatz', nesta cidade e comarca, o denunciado GIULIANO GUGLIELMI , após
a prévia ingestão de bebidas alcoólicas, embriagando-se voluntariamente, e estando
sob medicação desaconselhável para dirigir, conduzia o veículo marca BMW,
modelo 328i/AM51, ano de fabricação 1998/98, cor prata, placa LZC-0007,
desenvolvendo velocidade absurda e inimaginável para o local - mínima superior a
130,87 km/h, conforme laudo pericial de fls. 180/251, trazendo ao seu lado como
caroneiro o também denunciado FABIANO DEOLIVEIRA. Pouco se importando
com as conseqüências, consoante caráter compulsório de sua vontade, assim
manifestado: 'dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir, vou em frente' o
denunciado GIULIANO em busca de intensas e perigosas emoções, trafegava em
espantosa velocidade (superior a 130,87 Km/h), em via onde também transitavam
outros veículos, em inequívoca demonstração de total desrespeito pela legislação de
trânsito, bem como pela segurança e vida alheias, já que protegido em veículo
fabricado com alta tecnologia, possuindo avançados itens de segurança (Controle
Automático de Estabilidade e Tração, Freios ABS e Airbags frontais, laterais e para
cabeça – Laudo pericial, fl. 184), assumindo, com sua irresponsável conduta, o
risco de matar, colidiu violentamente com a traseira do veículo marca VW, modelo
Gol-1000, ano de fabricação 1995/95, cor preta, placa BUF-4405, que seguia
normalmente à sua frente, no mesmo sentido da citada via, conduzido pela vítima
SHIGEO CESAR SUGAHARA , acompanhado no banco carona pela vítima
ADRIANA DE LOURDES GARCEZ. Com a energia desprendida pela violenta
colisão, o veículo Gol-1000 (...) foi arremessado à impressionante distância de 65
(sessenta e cinco) metros do local de impacto (laudo pericial, fl. 191),provocando a
destruição de toda a sua estrutura,resultando tragicamente na morte de seus
ocupantes,sendo que, com o rompimento do tanque de combustível e o vazamento de
seu conteúdo, incendiou-se por completo (...) Os denunciados GIULIANO
GUGLIELMI e FABIANO DE OLIVEIRA, que saíram ilesos, em flagrante
indiferença para com a vida alheia, insensíveis ao sofrimento das vítimas, sem
esboçar qualquer gesto humanitário em relação ao trágico fato, voluntariamente,
preferiram a fuga do local, deixando de prestar socorro imediato às vítimas que
ardiam em chamas" (fls. 2/4). GRIFEI
84

O Juízo sumariante, afastando a existência de dolo na atuação de GIULIANO


GUGLIELMI, desclassificou as condutas imputadas para os delitos inscritos no art. 302,
parágrafo único, inciso III, e art. 306, ambos da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro).
Asseverou o magistrado ao afastar a competência do Tribunal do Júri:
"Na espécie, pelo exame superficial que a fase procedimental permite, observando
'o complexo total de realização e não simplesmente, o resultado' trágico dela
decorrente, tenho que os indícios aflorados do conjunto probatório coligido não
sustentam uma qualificação jurídica sob o ângulo do dolo eventual, mas levam ao
exame da imputação em tese, sob o crivo da culpa consciente , pois, não veio da
observação do fatos, no dizer de Aníbal Bruno, 'resultar a convicção da existência
daqueles elementos necessários ao julgamento da situação psíquica do agente em
relação ao fato, como dolo eventual', a justificar seja o Acusado mandado a
julgamento perante o Tribunal do Júri da Comarca." (fl.1.042, vol.4). GRIFEI

Interposto Recurso em Sentido Estrito pelo Ministério Público, a Segunda Câmara


Criminal do Tribunal de Justiça Catarinense reformou a decisão para pronunciar GIULIANO
GUGLIELMI nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal, determinando seu julgamento
pelo Tribunal do Júri.
De ofício foi declarada a prescrição da pretensão punitiva em relação a ambos os
réus, no tocante ao crime do art. 304 do Código de Trânsito Brasileiro.
O aresto em destaque recebeu a seguinte ementa:
"ACIDENTE DE TRÂNSITO - HOMICÍDIO - RECONHECIMENTO DE CULPA
CONSCIENTE - DESCLASSIFICAÇÃO PARA A MODALIDADE CULPOSA -
VELOCIDADE EXCESSIVA EMPREGADA - INDÍCIOS DE OUTRAS
CIRCUNSTÂNCIAS QUE, SOMADAS, APONTAM PARA A CONFIGURAÇÃO DE
DOLO EVENTUAL - DÚVIDA QUE DEVE SER DIRIMIDA PELO CONSELHO
POPULAR - DECISÃO REFORMADA - RECURSO MINISTERIAL PROVIDO." (fl.
1208, Vol. 5).

Opostos embargos declaratórios, foram parcialmente acolhidos, tão-só para afastar


a nulidade argüida pelo réu por violar os princípios do contraditório, da ampla defesa e do
devido processo legal (fls. 1260/1270, vol. 5).
Daí a interposição do Recurso Especial por GIULIANO GUGLIELMI, com
fundamento nas alíneas "a" e "c" do inciso III do artigo 105 da Constituição da República.
Afirma, a princípio, negativa de vigência aos arts. 381, incisos II, III e V, e 619,
todos do Código de Processo Penal, em vista da ausência de apreciação de teses suscitadas
pela defesa, dentre as quais a existência de culpa da vítima.
Pugna o recorrente, outrossim, pelo reconhecimento da violação aos arts. 18,
incisos I e II, e 121, caput, do Código Penal, assim como ao art. 302 da Lei 9.503/97.
Requer, em síntese, a reforma do aresto para restabelecer a decisão
desclassificatória, ao fundamento de que o réu não teria assumido o risco de produzir o
resultado lesivo, o que afasta a prática do homicídio na modalidade dolo eventual.
Sustenta a contrariedade aos dispositivos de lei federal diante da declaração, pelo
Tribunal Catarinense, da existência de
85

"séria dúvida a respeito da caracterização do dolo eventual ou da


culpa consciente, mesmo se estando diante de fatos certos que
induzem a ocorrência dessa última hipótese, partindo-se do pior
cenário traçado pelos acórdãos recorridos." (fl. 1273, vol. 6).

Nessa linha de raciocínio, conclui que a aplicação do brocardo in dubio pro


societate foi utilizado de forma equivocada, porquanto demonstrou "grave violação dos
parâmetros valorativos que informam o dolo eventual e a culpa consciente" (fl. 1273, vol. 6).
Assevera, por fim, a existência de dissídio entre julgados.
Traz à colação acórdãos paradigmas que afirmam a inexistência de dolo eventual
no homicídio a decorrer de acidente de trânsito, pela existência de excesso de velocidade e
embriaguez voluntária ou culposa (fls. 1272/1302).
Em contra-razões, o advogado do assistente afirma, em preliminar, que a
pretensão recursal implica em reexame de provas, providência inadmissível em sede de apelo
especial, nos termos da Súmula 7 deste Superior Tribunal de Justiça.
No mérito ressalta que a pronúncia do réu está em harmonia com a prova dos
autos, a apontar, de forma inconteste, existência de dolo eventual na conduta do recorrente
(fls. 1342/1350, vol. 6).
Admitido o recurso na origem (fls. 1399/1402, vol. 6), vieram-me os autos
conclusos para exame.
O Ministério Público Federal opina pelo não-conhecimento do recurso:
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO. TRÂNSITO. DOLO
EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE. PRONÚNCIA PELO TRIBUNAL DE
ORIGEM. PRETENSÃO DE DESCLASSIFICAÇÃO. RECURSO CONHECIDO
APENAS COM RELAÇÃO AO DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. PARADIGMAS
QUE NÃO GUARDAM SIMILITUDE COM O CASO DOS AUTOS. DÚVIDAS
QUANTO A CLASSIFICAÇÃO. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE, QUE
DEVE IMPERAR NA FASE DA PRONÚNCIA (ART. 408, DO CPP). PELO NÃO-
CONHECIMENTO DO APELO ESPECIAL.
1. Se o Apelo Especial foi manejado com fundamento no art. 105, III, 'c', da Carta
Magna, e os casos paradigmas não guardam similitude com o caso
dos autos razão não há para o conhecimento do recurso.
2. In casu, o recorrente no intuito de demonstrar o alegado dissídio pretoriano
partiu do pressuposto de que v. acórdão teria reconhecido que o agente estava
conduzindo o veículo embriagado e em velocidade incompatível com o local do
sinistro. Contudo, em nenhum momento, tal circunstância foi reconhecida pelo
Tribunal de Origem. O motivo ensejador da pronúncia foi, na verdade, a dúvida que
surgiu para se identificar exatamente se o delito foi cometido com culpa consciente
ou dolo eventual, por isso, achou por bem, o d. julgador, resolver a questão 'em
benefício da sociedade, relegando ao Corpo de Jurados a oportunidade de decidir
se agiu ou não o acusado com dolo eventual no homicídio denunciado'. (fls. 1216).
3. Havendo dúvida quanto a classificação do crime deve vigorar o princípio do in
dubio pro societate, eis que a sentença de pronúncia não possui a natureza de
decisum final, o que, aliás, é, inclusive, defeso aojuízo que pronuncie o réu, eis que
o julgamento final e decisivo somente ocorre no Tribunal do Júri, quando será
julgado, não pelo Juiz da pronúncia, nem tampouco pelo Tribunal de Justiça, mas
sim pelos Jurados, nos precisos termos do art. 74, § 1º, do CPP.
4. Pelo não-conhecimento do presente Recurso Especial." (fl. 1520/1521, vol. 6).

É o relatório.
86

RECURSO ESPECIAL Nº 705.416 - SC (2004/0155660-5)


RELATOR : MINISTRO PAULO MEDINA
RECORRENTE : GIULIANO GUGLIELMI
ADVOGADO : ANTÔNIO NABOR AREIAS BULHÕES E OUTROS
RECORRIDO : VITOR HUGO UGUSTO GARCEZ
ADVOGADO : IRINEU LEMOS DA LUZ - ASSISTENTES DO MINISTÉRIO
PÚBLICO
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA

EMENTA

PENAL. PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS


DECLARATÓRIOS. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE
TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. REVALORAÇÃO DE
PROVAS. POSSIBILIDADE. PRONÚNCIA. APLICAÇÃO DO BROCARDO IN
DUBIO PRO SOCIETATE . INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DO DOLO
EVENTUAL. DÚVIDA NÃO CARACTERIZADA. DESCLASSIFICAÇÃO DA
CONDUTA QUE SE IMPÕE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

Inexistente qualquer ambigüidade, obscuridade,contradição ou omissão no aresto


impugnado, insubsistente a alegada contrariedade ao art. 619 do CPP.
A revaloração do contexto probatório firmado pelo Tribunal a quo, diferente do
reexame de provas vedado pela Súmula 7/STJ, é permitida em sede de recurso
especial.
A pronúncia do réu, em atenção ao brocardo in dubio pro societate, exige a presença
de contexto que possa gerar dúvida a respeito da existência de dolo eventual.
Inexistente qualquer elemento mínimo a apontar para a prática de homicídio, em
acidente de trânsito, na modalidade dolo eventual, impõe-se a desclassificação da
conduta para a forma culposa.
VOTO

EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA(Relator): Analiso, a princípio, a


alegação de contrariedade aos arts. 381, incisos II, III e V, e 619, ambos do CPP.
Afirma o recorrente que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina teria permanecido
em omissão por não se manifestar sobre a existência de possível culpa concorrente entre o réu
e a vítima que conduzia o veículo atingido.
Fundamental a transcrição de excertos do voto condutor do aresto, proferido no
julgamento do Recurso em Sentido Estrito, verbis :
"(...)

Na situação enfocada, despontam elementos nebulosos acerca do estreito liame


entre a culpa consciente e o dolo eventual, de que o réu tenha se predisposto a
aceitar o resultado do seu comportamento, não obstante exista uma versão de que
o veículo da vítima tenha invadido a mão de direção onde o réu trafegava, em
velocidade que afirma não ter sido excessiva. Não obstante, como se sabe, não
existe compensação de culpas na seara penal." (fls. 1.211/1.213/1.216).

No julgamento dos Embargos Declaratórios ressaltou-se:

"Ainda, o laudo pericial que refere ter o veículo da vítima invadido a via
preferencial, por onde o acusado transitava, e que o choque seria inevitável mesmo
87

que trafegasse a 80 km/h, evidentemente, foi o confeccionado pelos peritos


particulares, pois o laudo dos peritos oficiais indica duas hipóteses para a
dinâmica do acidente" (fl. 1.266, Vol. 5).

Depreende-se do exame de ambos recursos que o Tribunal de origem analisou, de


forma percuciente, controvérsia a respeito de possível culpa da vítima.
Inexiste qualquer ambigüidade, obscuridade, contradição ou omissão que possa
caracterizar a contrariedade aos mencionados dispositivos do Código de Processo Penal.
Nesse sentido:

"CRIMINAL. RESP. HOMICÍDIO QUALIFICADO. AFRONTA AO ART. 619 DO


CPP. INOCORRÊNCIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ANALISADOS NOS
LIMITES DO RECURSO . RSE CONTRA SENTENÇA DE PRONÚNCIA.
EXCLUSÃO DE QUALIFICADORAS. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO
TRIBUNAL DO JÚRI. RECURSO
CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
I. Não procede a alegação de violação ao art. 619, do CPP, se os embargos de
declaração foram suficientemente analisados pela Corte a quo nos limites do
recurso interposto – que se destina a sanar eventual obscuridade, omissão ou
contradição da decisão recorrida.
(Omissis..)
III. Recurso conhecido e parcialmente provido, para determinar o restabelecimento
da sentença de pronúncia." (REsp. 506.274/GO, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ
de 24/05/2004)

Não prospera o apelo especial nesse primeiro ponto, pois a matéria supostamente
não apreciada pelo Tribunal a quo, - possível culpa da vítima no sinistro - foi analisada tanto
no Recurso em Sentido Estrito quanto nos Embargos Declaratórios.
No que tange ao dissídio jurisprudencial, tenho-o por comprovado na espécie.
O recorrente traz à colação acórdãos paradigmas que, diante de circunstâncias
similares a do aresto impugnado - colisão de veículos automotores com resultado morte, na
presença de embriaguez do condutor e excesso de velocidade - terminaram por reconhecer a
presença de homicídio culposo (fls. 1304/1314, vol. 6).
É o que atesta o precedente do Supremo Tribunal Federal:
"DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE. 1. O DOLO EVENTUAL DO ART.
15, I, IN FINE, DO CÓDIGO PENAL, PRESSUPÕE CONSCIÊNCIA E ANUÊNCIA
DO AGENTE, AINDA QUANDO NÃO QUEIRA O RESULTADO. 2. O DOLO
EVENTUAL CONFINA-SE, MAS NÃO SE CONFUNDE COM A CULPA
CONSCIENTE, NA QUAL, PREVENDO OU DEVENDO PREVER O RESULTADO,
O AGENTE ESPERA LEVIANAMENTE QUE ELE NÃO SE REALIZE. 3. A
EMBRIAGUEZ, SEJA VOLUNTÁRIA OU CULPOSA, POR SI SÓ NÃO
CARACTERIZA O DOLO EVENTUAL" (HC 46.791/RS, Relator o Ministro Aliomar
Baleeiro, RTJ 51/668).
Assim, diante da identidade de matéria discutida neste caso e no acórdão apontado
e, demonstrada a divergência, de pleno cabimento o Recurso, com base no art. 105, inciso III,
alínea "c", da Constituição da República.
No mérito, o Recurso Especial busca a revaloração dos fatos apurados nas
instâncias inferiores, porquanto não estariam a apontar, em momento algum, a existência de
indícios mínimos de que teria o acusado agido com dolo eventual.
88

Não quer o recorrente, segundo afirma, combater a máxima in dubio pro


societate, mas apenas demonstrar que não há elementos nos autos que façam surgir dúvida a
respeito da configuração de dolo eventual, a ser dirimida pelo Júri Popular (fls. 1.273, vol. 6).
Cumpre salientar que ao Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso
Especial, admite-se reexaminar a decisão recorrida sob o prisma do conceito de dolo eventual
e culpa consciente na interpretação do Tribunal a quo quanto ao conjunto probatório, definido
e irrescindível.
A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de ser possível nova valoração
do fato probante - delimitado no acórdão recorrido - o que não se confunde com reexame de
provas vedado pelo Enunciado n.º 7/STJ.
Nesse sentido, confira-se:
"(...) A revaloração da prova delineada no próprio decisório recorrido, suficiente
para a solução do caso, é, ao contrário do reexame, permitida no recurso especial.
(Precedentes).
(...)
Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, provido." (REsp 765.593/RS,
Relator o Ministro Felix Fischer, DJ de 19.12.2005). GRIFEI
Diante da possibilidade de revalorar os fatos apreciados pela Corte Estadual,
necessário concluir se os elementos constantes nos autos permitem a configuração de dúvida
sobre a existência de dolo eventual, e a conseqüente pronúncia do réu em atenção ao brocardo
in dubio pro societate.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina ao pronunciar o recorrente, utilizou-se
dos fundamentos a seguir:
"Para a viabilidade da acusação em crimes dolosos contra a vida, exigem-se a
prova da materialidade da infração e indícios de que o acusado seja o seu autor.

No caso, a materialidade restou comprovada através dos laudos periciais de exames


cadavéricos, onde os Srs. Peritos afirmaram que as vítimas Shigueo César
Sugahara e Adriana de Lourdes Garcez faleceram em decorrência de
queimaduras, hemotórax, hemoperitôneo e lacerações traumáticas (fls. 78 e 83). A
autoria, por sua vez, é confirmada pelo acusado, ouvido nas duas fases da
persecutio criminis (fls. 51/52 e 315/318).

O recurso em sentido estrito interposto pela ilustre representante do Ministério


Público manifesta a inconformidade com a desclassificação operada na fase do
art. 408, do Código de Processo Penal, do artigo 121, caput, do CP, para aquela
enquadrável no artigo 302, da Lei 9.503/97, em face da admissão, pelo
magistrado, de que o réu agiu, no máximo, com culpa consciente, e não com dolo
eventual.

Segundo ela, o recorrido, em visível estado de embriaguez, aliado à circunstância


de fazer uso de medicação psicoterapêutica, em velocidade excessiva, extrapolou
os limites da culpa consciente, não havendo prova nos autos no sentido de que a
vítima teria invadido a pista de rolamento em que ele seguia.

(...)

As dúvidas residem, pois, nas demais circunstâncias que, aliadas à essas,


poderiam apontar para o reconhecimento de dolo eventual na conduta do agente.
Primeiro: a produção de efeitos colaterais decorrentes da ingestão do
medicamento Aropax, no caso concreto, não é certa. (...)
89

Segundo: a embriaguez do acusado não restou comprovada através de laudo


pericial. (...)
(...)

Nesse contexto, na hipótese de versões antagônicas, conflitantes ou dúvidas


acerca da classificação ou culpabilidade, tal há que se resolver sempre em
benefício da sociedade, relegando ao Corpo de Jurados a oportunidade de decidir
se agiu ou não o acusado com dolo eventual no homicídio denunciado.

Na situação enfocada, despontam elementos nebulosos acerca do estreito liame


entre a culpa consciente e o dolo eventual, de que o réu tenha se predisposto a
aceitar o resultado do seu comportamento, não obstante exista uma versão de que
o veículo da vítima tenha invadido a mão de direção onde o réu trafegava, em
velocidade que afirma não ter sido excessiva. Não obstante, como se sabe, não
existe compensação de culpas na seara penal.

Em regra, os delitos que ocorrem na circulação e condução de veículos


automotores, nas vias públicas, são culposos, porém, não se exclui que, reunidas
circunstâncias que escapam aos limites da inobservância das normas para a
segurança do trânsito e fogem do previsível mesmo indesejado, tais como a
embriaguez voluntária, a velocidade incompatível, e outras que retratam conduta
além do risco incompatível com a normalidade da disciplina do trânsito,
classificando-se o delito entre os dolosos, pela presença de dolo eventual.

É, sem dúvida, tormentosa a distinção entre culpa consciente e dolo eventual. Na


prática, muito fina a linha limítrofe entre ambos, porém, os efeitos penais
resultantes do reconhecimento de um ou outro, pelo elemento subjetivo, implica
em distância considerável, não só pela gravosidade da sanção, mas, também, pela
maior formalidade da sistemática processual, garantido o julgamento pelo júri
como dispõe o artigo 5º, XXXVIII da CF, e disposições dos artigos 406 a 497 do
CPP, se doloso.

(...)

Embora dolo e culpa sejam elementos subjetivos desencadeados pela vontade, são
as circunstâncias concretas e não a expressão volitiva que determinam a
classificação no tipo doloso ou
culposo.(...)

Sendo assim, conclui-se que a decisão desclassificatória era inviável, nesta fase,
pois o acervo probatório não permite afirmar, com absoluta certeza , qual teria
sido o elemento subjetivo que determinou a conduta do réu no evento denunciado,
isto é, se agiu assumindo o resultado de sua conduta (dolo eventual), ou se postou-
se com mera culpa, devendo a matéria, por conseguinte, ser decidida pelo
Conselho de Sentença (...)" (fls. 1.212/1.219, vol. 5). GRIFEI

A questão central debatida neste recurso, diante do exposto, é saber se os


elementos coligidos pela Corte Estadual são suficientes para configurar a possibilidade de
existência de dolo eventual na conduta do réu.
Diz a letra da lei (CP, art. 18, I) que o crime é doloso quanto o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
A assunção do risco de produzir o resultado não se exaure na sua literalidade,
recebendo da doutrina a acepção exata.
Nesse sentido:
"Assumir o risco é alguma coisa mais que terconsciência de correr o risco: é
consentir previamenteno resultado, caso venha este, realmente a
90

ocorrer."(HUNGRIA, Nélson . Comentários ao Código Penal, 4ª ed., volume I,


tomo II, Rio de Janeiro, Forense, 1958, p.122).
Há dolo direto quando a consciência e a vontade do agente se dirigem a um fim
determinado: o resultado.
O dolo eventual configura-se quando a consciência e a vontade do agente estão
vinculados à aceitação do resultado como evento possível ou até provável.
Aproxima-se da culpa consciente, pela previsibilidade do resultado existente em
ambos.
Distinguem-se, no entanto, porque no dolo eventual o resultado é tolerado,
indiferente, há assentimento, aquiescência do agente.
Na culpa consciente, o resultado, embora previsível, não é indiferente ou tolerado
para o agente, que não confere a sua anuência para o evento danoso, pelo contrário, espera
que não aconteça e até mesmo que seja capaz de evitá-lo.
"Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas,
enquanto no dolo eventual o agente presta anuência ao advento desse resultado,
preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar-se à ação, na culpa
consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese
de superveniência do resultado, e empreende a ação na esperança ou persuasão de
que este não ocorrerá." (HUNGRIA, Nélson . Comentários ao Código Penal, 4ª
ed., volume I, tomo II, Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 116-117).
O quadro delineado no aresto recorrido é o seguinte: 1) excesso de velocidade
comprovado; 2) inexistência de prova conclusiva da embriaguez do agente; 3) "a produção de
efeitos colaterais decorrentes da ingestão do medicamento Aropax, no caso concreto, não é
certa;"; 4) dúvida acerca do elemento volitivo do agente.
O excesso de velocidade, conquanto possa demonstrar negligência em relação às
normas de trânsito, não autoriza a conclusão de que o condutor do veículo tenha assumido o
risco de causar a morte de outrem.
A embriaguez, como a própria Corte Estadual ressaltou, não foi comprovada,
havendo versões divergentes sobre o consumo de álcool pelo recorrente.
De outra parte, a existência de efeitos colaterais provenientes da ingestão do
medicamento AROPAX também não ficou caracterizada, sendo que o aresto impugnado
ressalta as informações trazidas por profissional da área médica:
"Consoante as declarações da Dra. Myriam de Souza Longo Thorman, médica do
recorrido, a pessoa que toma Aropax não fica impedida de dirigir e os efeitos
colaterais da paroxetina não são verificados em todas as pessoas, o que, de fato, é
circunstância que deve ser considerada. No site dos Consultórios da Saúde Mental -
Psicosite, o "aropax é uma medicação segura com baixa incidência de efeitos
colaterais" (fl. 1.214, vol. 5).
A utilização de medicamento, associada ao consumo de bebida alcoólica antes de
assumir a direção de automóvel não demonstram, de forma alguma, a existência de
assentimento ou aquiescência do agente no que tange ao resultado lesivo.
A doutrina, a respeito da distinção entre dolo eventual e culpa consciente, afirma:
"Os limites da fronteira entre o dolo eventual e a culpa consciente constituem um
dos problemas mais tormentosos da Teoria do Delito. Há entre ambos um traço em
comum: a previsão do resultado proibido. Mas, enquanto no dolo eventual o agente
anui ao advento desse resultado, assumindo o risco de produzi-lo, em vez de
renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, repele a hipótese de
superveniência do resultado, na esperança convicta de que este não ocorrerá.
91

Na hipótese de dolo eventual, a importância negativa da previsão do resultado é,


para o agente, menos importante do que o valor positivo que atribui à prática da
ação. Por isso, entre desistir da ação ao praticá-la, mesmo correndo o risco da
produção do resultado, opta pela segunda alternativa. Já na culpa consciente, o
valor negativo do resultado possível é, para o agente, mais forte do que o valor
positivo que atribui à prática da ação. Por isso, se estivesse convencido de que o
resultado poderia ocorrer, sem dúvida, desistiria da ação. Não estando convencido
dessa possibilidade, calcula mal e age.

O fundamento é que o dolo eventual apresente dois componentes: representação da


possibilidade do resultado e anuência à sua ocorrência, assumindo o risco de
produzi-lo. Enfim, como sustenta Wessels , haverá dolo eventual quando o autor
não se deixar dissuadir da realização do fato pela possibilidade próxima da
ocorrência do resultado e sua conduta justifique a assertiva de que, em razão do fim
pretendido, ele se tenha conformado com o risco da produção do resultado ou até
concordando com a sua ocorrência, ao invés de renunciar à prática da ação.

Duas teorias, fundamentalmente, procuram distinguir dolo eventual e culpa


consciente: teoria da probabilidade e teoria da vontade ou do consentimento. Para
a primeira, diante da dificuldade de demonstrar o elemento volitivo, o querer o
resultado, admite a existência do dolo eventual quando o agente representa o
resultado como de muito provável execução e, apesar disso, atua, admitindo ou não
a sua produção. No entanto, se a produção do resultado for menos provável, isto é,
pouco provável, haverá culpa consciente. Para a segunda é insuficiente que o
agente represente o resultado como de provável ocorrência, sendo necessário que a
probabilidade da produção do resultado seja incapaz de remover a vontade de agir.
Haveria culpa consciente se, ao contrário, desistisse da ação, estando convencido
da probabilidade do resultado. No entanto, não estando convencido, calcula mal e
age, produzindo o resultado. Como se constata, a teoria da probabilidade
desconhece o elemento volitivo, que é fundamental na distinção entre dolo eventual
e culpa consciente, e que, por isso, é melhor delimitado pela teoria do
consentimento.

Por fim, a distinção entre dolo eventual e culpa consciente resume-se à aceitação
ou rejeição da possibilidade de produção do resultado. Persistindo a dúvida entre
um e outra, dever-se-á concluir pela solução menos grave: pela culpa consciente.
(BITENCOURT, Cezar Roberto; Tratado de Direito Penal, Ed. Saraiva, 2006, vol. 1,
p. 360-361) GRIFEI
Aplicando-se ao caso concreto a teoria da vontade ou do consentimento, não
resulta a possibilidade de ter agido o acusado com dolo eventual.
A existência de dolo eventual não se limita à previsão do resultado. Deve ser
somada ao elemento intelectual (conhecimento da possibilidade do resultado lesivo), o
componente volitivo (aceitar a ocorrência do resultado).
Assim, não basta que o agente tenha consciência de que sua conduta poderá gerar
um dano, deverá ele, na posse desse conhecimento, permanecer no intento de agir,
desconsiderando as implicações.
Na culpa consciente, de forma diversa, o agente pode até prever o resultado, mas
não o aceita. Acredita, sinceramente, que o evento lesivo não ocorrerá.
Dentro desse contexto, é inadmissível que GIULIANO GUGLIELMI, ao tomar a
direção de seu veículo, na hipótese de estar embriagado ou sob efeitos de medicamento,
estaria de acordo com o resultado morte de duas pessoas.
Considerar que o acusado tenha, de forma indiferente, admitido a possibilidade de
se envolver em sinistro automobilístico, provocando a morte de outrem, implicaria na absurda
conclusão de que ele teria assumido o risco de causar sua morte.
92

Vislumbro uma incongruência até mesmo de ordem semântica no raciocínio do


acórdão recorrido quando afirma:
"Na situação enfocada, despontam elementos nebulosos acerca do estreito liame
entre a culpa consciente e o dolo eventual, de que o réu tenha se predisposto a
aceitar o resultado do seu comportamento(...)"
Ora, possível ou provável refere-se a acontecimento incerto – o resultado -, e não
à aceitação, elemento psíquico, independente de elemento externo, condicionante da
possibilidade e da probabilidade.
A possibilidade e a probabilidade estão no resultado, e não na sua aceitação.
A aceitação do resultado, fator psíquico definido, é que distingue o dolo eventual
da culpa consciente.
Ademais, a corriqueira fórmula: velocidade excessiva + embriaguez = dolo
eventual, não pode ter aplicação indiscriminada a todos os acusados que respondam por
delitos de trânsito, mormente quando causam a morte ou lesões gravíssimas em suas vítimas.
Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e
com velocidade excessiva não se importem em causar a morte ou mesmo lesões em outras
pessoas.
O dolo eventual, como visto, reside no fato de não se importar o agente com a
ocorrência do resultado por ele antecipado mentalmente, ao contrário da culpa consciente,
onde este mesmo agente, tendo a previsão do que poderia acontecer, acredita, sinceramente,
que o resultado lesivo não venha a ocorrer.
No dolo eventual, o agente não se preocupa com a ocorrência do resultado lesivo
porque o aceita. Para ele, tanto faz. Na culpa consciente, ao contrário, o agente não quer e não
assume o risco de produzir o resultado porque se importa com a sua ocorrência. O agente
confia que, mesmo atuando, o resultado previsto será evitado.
O clamor social no sentido de que os motoristas que dirigem embriagados e/ou em
velocidade excessiva devem ser punidos severamente, quando tiram a vida ou causem lesões
irreparáveis em pessoas inocentes, não pode ter o condão de modificar toda a nossa estrutura
jurídico-penal.
Não podemos, simplesmente, condenar o motorista por dolo eventual quando, na
verdade, cometeu a infração na modalidade culposa.
Tenho que o aresto impugnado, ao declarar a possibilidade de ter agido o
recorrente com dolo eventual, em vista da velocidade excessiva praticada no momento da
colisão, somada a embriaguez não comprovada, feriu o disposto nos arts. 18, incisos I e II, e
121, caput, do Código Penal, assim como no art. 302 da Lei 9.503/97.
A inexistência de qualquer elemento que aponte, de forma razoável, para a
possibilidade de ter o acusado concordado com a morte das vítimas, afasta de forma perene a
hipótese de dolo eventual.
Inaplicável, pois, o aforismo in dubio pro societate , que só poderia ser utilizado
para remeter o julgamento do feito ao Tribunal do Júri no caso de dúvida consistente sobre a
existência de crime doloso ou culposo.
Para se emitir juízo de pronúncia, o Magistrado não pode ter dúvidas a respeito da
existência do dolo, posto que deve, ao fundamentá-la, ser econômico com suas palavras para
não influir na convicção dos jurados.
93

A dúvida deve ser sempre dirimida em favor do réu, e não como está na decisão
atacada, em que se invocou o brocardo 'in dubio pro societate ' para pronunciar o recorrente,
tendo em vista a impossibilidade de se estabelecer o elemento subjetivo do tipo.
De outra parte, o decisum desclassificatório, constitui precedente lógico e
necessário o juízo de certeza declaratório, com ampla análise das questões de fato contidas
nos elementos probatórios, âmbito no qual o magistrado deve exercer com profundidade o seu
racional convencimento motivado.
Se na pronúncia tem-se um juízo de prelibação, de admissibilidade, de suspeita,
de probabilidade, sob pena de usurpação de competência, uma vez que o processo toma curso
distinto, o juízo natural: Tribunal do Júri, para julgamento daquela mesma infração, na
desclassificação, o juízo é definitivo específico, de certeza, tornando-se imprescindível a
cognição profunda dos fatos contidos nas provas coligidas.
Admissível, pois, a análise exaustiva do elemento subjetivo do tipo no âmbito do
decisum de desclassificação, em que se emite um juízo de certeza, e não de suspeita, como na
pronúncia, em que visa salvaguardar a competência constitucional do Júri.
A doutrina corrobora o entendimento:
"(...) a expressão in dubio pro societate não exibe o menor sentido técnico. Em tema
de direito probatório, afirmar-se: 'na dúvida em favor da sociedade' consiste em
absurdo lógico-jurídico. Veja-se: em face de contingente dúvida, sem remédio, no
tocante à prova – ou melhor, imaginada incerteza – decide-se em prol da sociedade.
Dizendo de outro modo: se o acusador não conseguiu comprovar o fato, constitutivo
do direito afirmado, posto que conflitante despontou a prova; então, se soluciona a
seu favor, por absurdo. Ainda, porque não provou ele o alegado, em face do
acusado, deve decidir-se contra o último. Ao talante, por mercê judicial o vencido
vence, a pretexto de que se favorece a sociedade: in dubio contra reum”
(PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Pronúncia e in dubio pro societate - Boletim
dos Procuradores da República, n.º 45, janeiro de 2002, p. 26)."

A decisão de pronúncia deve ter um mínimo substrato no sentido da ocorrência de


crime doloso contra a vida. Se da prova dos autos não exsurge qualquer elemento que
possa apontar para a prática de crime doloso, não há de se remeter o julgamento do
feito ao Tribunal do Júri.
O controle judiciário sobre a admissibilidade da acusação necessita ser firme e
fundamentado, tornando-se inadequado remeter a julgamento pelo Tribunal do Júri um
processo sem qualquer viabilidade de haver condenação do acusado por homicídio na
modalidade dolo eventual.

"A dúvida razoável, que leva o caso ao júri, é aquela que permite tanto a absolvição
quanto a condenação. Assim, não é trabalho do juiz togado 'lavar as mãos' no
momento de efetuar a pronúncia, declarando, sem qualquer base efetiva em provas,
haver dúvida e esta dever ser resolvida em favor da sociedade, remetendo o
processo a julgamento pelo Tribunal Popular. Cabe-lhe, isto sim, filtrar o que pode
e o que não pode ser avaliado pelos jurados, zelando pelo respeito ao devido
processo legal e somente permitindo que siga a julgamento a questão realmente
controversa e duvidosa. Esta, afinal, é a função do judicium acusationis – fase de
instrução – pela qual passaram as partes, produzindo provas sobre o crivo do
contraditório e da ampla defesa. (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo
e Execução Penal. Ed. Revista dos Tribunais, p. 672, 2005)
94

Conclui-se, pois, ser vedada a pronúncia do réu, ausente contexto probatório que
indique a prática de crime doloso contra vida. Não há de se falar na aplicação do aforismo in
dubio pro societate .
Resulta de todo o explicitado que o Recurso Especial de GIULIANO
GUGLIELMI deve ser provido, porquanto o acórdão impugnado, ao entender pela
possibilidade de existência de dolo eventual teria, além de ensejado dissídio entre julgados,
violado dispositivos de lei federal.
Posto isso, DOU PROVIMENTO ao Recurso Especial para, reformando o
acórdão recorrido, desclassificar a infração penal de homicídio doloso para homicídio culposo
cometido na direção de veículo automotor (art. 302 da Lei 9.503/97), devendo ser os autos
remetidos ao Juízo competente.

Você também pode gostar