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CRO ey oR eee OI 7 Pen area en ROOM Cen rey ore ere Pere ere eeeretia er Or ce ee eee] Sey Ce ne eee ere cee fim, que permitam ee errr etn Se ae eer ne een oe) eee CO rd Ce eee eee ee Rec eee Ser eee in-Macison, da London Sehoo| of Economies, da Universidade eon eC ee a Cee aninonrs eco ena ren fea oor Pena eet tte) nar erat 8 fro comme Sern eraronis Serene! (Machid, Sequitur, 1999 A CRITICA DA RAZAO INDOLENTE: contra © desperdicio da experiéncia 1 VOLUME Oe eee ea fom do, mesmo que a trago ret pore Ce ae cet ets Pag CU ee ee Ce a ee ee coer erry mare rer arent re Uae ae A plobalizagao #0 tema central deste volume, Pare-se de ideia de que ha diferentes modos de producto ee ee eres m= ee da a cabo pelos grupos sociaise minantes, contrapée-se a globalizagBo aren eee ere ser ierernrr rr) ee enh ete een ae ne eer ty 4° VOLUME a a Ld Ro a eee ome condi ree See rea ere 7 peers eet er epee aya ue haje domine, so propostas formas de democraca de See ear) Dados Internacionais de Catalogagiio na Publicagdo (CIP) {Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Santos, Boaventura de Sousa Para um nove sens comum : 2 Géncia,o direte &a politica na ransigho paradigmatica / Goaventura de Sous Santos. ~ 4. ed. ~ Sao Paulo : Cater, Done. Conte: V1. A erica da raze indolente : contra 0 despercio da experigncia, Bibliogafia ISBN B5-249.0738-X 1, Géncia e direito 2. Diteite ¢ politica 3. Paradigmas (Ciencias socilsb 4, Pésemudemidade 5. Sociologia uridica 6. Teoria citca 1. Titulo. Indices para catélogo sistematico: 1. Direito @ sociologia 34:301 2. Sociovogia do dire 34:30 Boaventura de Sousa Santos A CRITICA DA RAZAO INDOLENTE: contra 0 desperdicio da experiéncia Para um novo senso comum A.ciéncia, o direito e a politica na transigao paradigmatica VOLUME # edicio Sesion ACRITICA DA RAZAC NDOLINTE: conta 9 especie da expen Para urs oem senso comumn. A cient © 3 poite m8 (rmigge Bards, Volume 1 aventura de Sous Sonos Capa: Pedio Cabrta Reis, Sléncoe Vetigem, 19M0, Fotograta cle Paulo Cinta Laura Casa Calan feiss: Agpalde Ales Cnnpanigte: Dany tora tia Coonan Flori: amis A, Morales For eecomendagso do autor, manila a enogaiavgerte on Por ‘Obes publiadla simutaneamecte pela Feighes Aturtamonio, Paro ~Rertu Nenhurna pane desta obra pace se repeauzida ou duplcad som auteiegio expresa do autor eo editor ©2000 by Autor ‘Divetas par eta ecig8o CORTEZ EDITORA ie Boia, 317 ~ Pence {0509-000 ~ Sao Paulo SP Tol: (11) 3640111 Fox (11) 3864-47500 E-mail careni@conezedtor.cora.be wireicorezedtors cembr Impresso 50 Bas eur de 2002 Para MLR. few ne VOLUME 1 A critica da razao indolente: contra 0 desperdicio da experiéncia VOLUME 2 direito da rua: ordem e desordem nas sociedades subalternas VOLUME 3 Os trabalhos de Atlas: regulamentagao © emay VOLUME A © milénio Grféo: para um futuro da cultura politica PARA UM NOVO SENSO COMUM A ciéncia, o diteito e a politica na transicdo paradigmtica Preficio Geral Inteodugio Geral Por que 6 tzo dificil construie uma teoria ertica? As dificuldades Possiveis causas Para uma teoria ertica pés-madema Concuséo VOLUME 1 A.CRITICA DA RAZAO INDOLENTE: Contra 0 despericio da experiéncia Prefécio PARTE | Epistemologia das estétuas quando olham para os pés a ciéncia e o dieito na transicdo paradigmstica = Inrxopucko (Cvinxo 1 — Da ciéncia moderna ao novo senso comum De regresso As perguntas simples © paradigma dominante A ase epistemoldgica do paradigma dominante © paradigma emergente As representagies inacabadas da modernidade, 74; Do conheci- ‘mento-regulago a0 conhecimento-emancipagio, 78; O sujeto 0 cbjecto: todo 0 conhecimento & autoconhecimento, 81; Natureza e cultura: toda a natureza é cultura, 85; Uma ciéncia ocidental 15 2B 2B 2B 26 29 36 a 45 47 55 55 60 68 ™ we noi ceapltalisa, 85; Lina cléncis sexsta, 87; Todas as cifocias so ciéne clas souias, 88 Argumentagao, relativismo © emocentrésmo a ‘A retérica da cléncia moderna, 98: A navlisma eetérca e o conte. Cimento pssmodema, 103; Motos « acgces, 104: Uma retorica dalogica, 105; O auditério na retsrica dildgica, 106. [Uma tépica de emancipagdo: para um novo senso comum Para uo novo senso commun étco: um senso comum soldidio, 117; Fara um nove senso comum poltico: um senso comum partiypativo, 1133; Para um nove senso comumn estético: um senso comum reencaniad, 114 Conelusso Cin 2 = Para uma concepeao pos-madema do dirvito A tonsio ene reguiagdo e emancipagso Areceptio doco roman, 120; dito naira raconalst, 124; 1s teortas de conirato social, 129 A modiernidade poltico-juridica ¢ 0 capitaisme ‘imei periods, 140: Segundo period, 145; ere prod 153. Para desepensar 0 dicito a rransiao epistemologien & tansigaa societal, 164; 0 Estado eo sistema mundial, 169; O direito © a sociedad poitica, 172; Ente 2 utopia juridica ¢ 0 praginatamo utdpico, 175. Conetusio PARTE As armadilhas da palsagem: para uma epistemalogia de espaco-tempo Inmoougi0 Cartuto 3 — Uma cartogratia simbélica das repreentagies socials: 0 ¢350 do dirite ' Compreender os mapas. Escala, 201; Projecyio, 203: Simbolizagdo, 204. Uma cartagratia simblica do direto O direto wa esala 20%; O dro © a projecgia, 213; © drt © 4 simbolizacio, 217, Para uma concepcio pés-modema das representagées socias Carino 4~ Para uma epistemologia da ceyueita: por que razdo & que as novas formas de “adequagio cerimental” naa regula nem femancipam’t r Inteodgéo 94 107 117 119 139 164 185 189 195 wr 200 205 220 225, BS AGHA DARIZAO NOONE, CONTRA COHSERDICI DAEAHRTNLA HY A representagao dos lites an ns A determinagdo da relovdncia, 229; A determinaczo dos graus de relevineia, 232; A determinacio da identiicazio, 234: Aimpossibi- lidade da duragin, 237; A deteceinagan da itarpretay30 # da ave liagan, 248, Da cpiszemologia da ceguera & eplatemologia do visio: a represenlaglo disvorcida das ‘onsequéncias. st . 243 Para uma episteenologia da visao.. 246 Aepsterolgia dos conhecimentos ausente, 246; A epiterolog los agentes ausenies, 249: Revistanch os limites do represertagi, 250. PARTE WH (95 hovizomtas 820 humanes: da regulag3o 2 emancipagio sn 255 Iyrnopue o 257 {ino 8~ Os mado de producto do ps dots ¢ ns comurn tn 261 Inodugio 261 Poder, patenciar e despotenciar 264 Um mapa de edrutre-accio das soceades captain sera nunc 22 Uma leitura do mapa de estrtura-acgio soosines 27 (Os espagos estruturas € as suas dimensdes, 277: Furmas de poder, 284; Formas de direto, 290; Formas dle conhcimenta, 303, Sobre a determinacdo earutural: assimetrias ¢ bifurcagties 308 Expandir 0 jrfico @ « poltico 34 Conclusio .. 325 Carmina 6 ~ Nido disparem sobre 0 atopista 329 Introdugéo sn 329 Mapas da transiglo paradigmatica: emancipacoes, 333 Comunidades domésticas exoperativas, 336; Produco eco-secilis- ta, 226; Necessidades humanas e consumo soldat, 338; Come dades-Amiba, 338; Socialismo-como-demoeracia-sem-fim, 339: Sustentabilidade cemacratica © soberanias dispersas, 347; Latas aradigmsticas & subparaclgméticas, 342, Vinjantes paradigmaticas: subjectvidades ‘A fronteira, 347: O barroco, 356; O sul, 367; Constelaghes 144 t6picas, 380. Conclusso z aan BMocRAR cae 7 ct rene MO Para um novo senso comum A ciéncia, 0 direito e a politica na transico paradigmatica Diz 0 fildsofo grego Epicarmo que “os mortais deviam ter pensamentos mor- {ais, nao, imortais”. ste livro trata de pensamentas mortais. Parte da ideia de que os paradigmas s6cio-culturais nascem, desenvoliem-se e morrem. Ao contrario do que se pzssa com a morte dos individuos, a morte de um dado paradigma traz dentro de si o paradigma que ihe ha-de suceder. Esta passagem da morte para a vida nao dispae de pilares iimes para ser percorrida em seguranga. O que nasce € incamensurével com 0 que morre, no havendo, pois, nem ressurreicées nem reencamagies. © problema é que ndo ha passaem sendo entre pensamentos comensurdveis, Por outto lado, também ao contrario do que sucede com os indi- viduos, 56 muitos anos, senév mesmo séculos, depois da morte de um paradigma sécio-Cultural, 6 possivel afirmar com seguranga que morreu e determinar a data, sempre aproximada, da sua morte, A passagem entre paradiginas — a transigio paradigmatica — 6, assim, semi-cega ¢ semi-invisivel. S6 pode ser percorrida por tum pensamenta construido, ele proprio, com economia de pilares e habituado a transfotmar silencios, sussturros e ressaltos insignificantes em preciosos sinals de orientagao. Esse pensamenta é a utopia e dela trata também este livro, Enire a morte ¢ a utopia, este livro tem como tema central a ‘iransicio paradigmética. A partir dos séculos XVI e XVII, a modernidade ocidental emergia ‘como umn ambiciaso © revolucionério paradigma s6cio-cultural assente numa ten- so dindmica entre regulacdo social e emancipacéo social. A partir de meadios do século XIX, com a consolidagio da convergencia entre o paradigma da modemidade € 0 capitalismo, a tensio entre regulacdo @ emancipagzo entrou num longo pro- desafia do conhecimento-emancipacao as ciéncias socials em geral e & socaTogja em especial. Este desafio pode formularse assim: da acco conformista & acgio rebelde. A teoria critica moderna tal como a sociologia convencional centrou-se na dicotomia _estrutura/acgio_e sobre ela construiu 0s seus quadros analiticos e teéricos. NBo ‘quéstiono a uitilidade da dicotomia mas observo que com o tempo sla se.transfor- mou mais num debate sabre a ordem do que num debate sobre a solidariedade. (Ou seja foi absorvida pelo campo epistemolégico do conhecimento-regulacao. © methor sinal desta absorgdo tem sido a sorte da dicotomia determinismo/ ccontingéncia. Perante a aceteracio do tempo histérico e a crise do tempo linear, a emergéncia da teoria das catéstrofes e da complexidade, 0 determinismo na sua concepg#o tradicional tansformou-se numa mancira preguicosa de penser, quer a transformacao social, quer a impossibilidade desta, Por outro lado, as ideias de ‘CICADA RAD NOOLENTE: CONTRA @SRRDINO DA ARENA 34 contingéncia ¢ fragmentagio que ocuparam o espago deixado pelo determinismo transformaram-se numa maneira irresponsdvel de pensar a transformagao social ou, 2 impossibilidade dela. A renovacio da teoria ontica passa, neste dominio, por duas ideias, A primei- ra € que as estruturas sio tio dindmicas quanto as accées que elas consolidam. No seu Conjunto, criam horizontes de possibilidades e, por isso, tanto excluem como ppotenciam. A segunda ideia ¢ que a determinac4o ou indeterminagao deixaram de ser conceitos filos6ficos para serem varidveis empiticas, Como diria René Thom, 105 pracessos so mais ou menos determinados e um processo dado pode passar ‘por momentos de maior ou de menor determinagio. A variacao depende de muitos factotes, mas depende sobretudo de tipos de accao ¢ de subjectividade que inter- vém nos processos. As acgies € as subjectividades sao tanto produtos como produ- tores dos processos sociais. As determinagoes consolidam-se na medida em que cdominam subjectividades orientadas para identificar limites © se conformarem com eles, quer porque os acham naturais, quer porque os acham inultrepassaveis. Pelo contririo, as determinagoes desestabilizam-se na medida em que predominam subjectividades orientadas para identificar possibilidades ¢ as ampliarem para além do que € possivel sem esforgo, Daf que, para a teoria critica pés-moderna, soja necessério centrarmo-nos numa outra dualidade que ndo a determinacéocontingéncia ou estrutura/accdo: a * dualidade entre.a acgdo conformista ¢ a acgso rebelde. Tanto no dominio da pro- ducao como no.dominio do consumo, a sociedade capitalsta afirma-se cada vez “mais coma uma sociedade fragrentadi, plural ¢ miltpla, onde a fronteiras pare- ‘cem existir apenas para poderem ser ultrapassadas. A substituicao relativa da pro- visa de bens e servigos pelo mercado de bens e servicos cria campos de escalha que facilmente se confundem com exercicios de autonornia e libertagdo de dese- jos. Tudo isto ocorre dentro de limites estreitos, os da selecgao das escolhas € 0s da solvéncia para as tornar efectivas, mas tais limites sio facilmente construidos simbolicamente coma oportunidades, sejam elas a fidelizacao 3s escolhas ou 0 consumo a crédito, Nestas condigies, a acyéo conformista passa facilmente por acgio rebelde. E, concomitantemente, a acgio rebelde parece tio facil que se transforma num modo de conformismo alternativo. E neste contexto que a teoria critica pés-moderna procura reconstruir 2 ideta «a praca da transformagao social emancipatéria. As especificagbes das formas de socializagéo, de educagéo e de trabalho que promovem subjectividades rebeldes ‘ou, a0 contrério, sabjectividades conformistas é a tarefa primordial da inquirigio crtica pés-modema. A construgio social da rebeldia.e, portanto, de subjectividades inconformistas .€ capazes.de indignagao. é, ela. propria, um_pracesso. social contexiualizada, O ‘contexto do inicio do milénio criatrés grandes desafios 2 tal construgio. O primel- ro desafio é a discrepancia entre as experiéncias e as expectativas. A nf colncl 4 INTROOUGAO GERAL dencia entre experiéncias ¢ expectativas ¢ a grande novidade histérica do paradigma da modernidade. Trata-se da ideia de que as experiéncias do presente serdo exce- dlidas pelas expectativas quanto ao futuro. Ao excesso das expectativas em relacao as experiéncias foi dado 0 nome de progresso. A teoria critica foi uma mensagem privilegiada dessa discrepancia, e se algo a distinguia da teoria convencional era exactamente a sua predilecgao por ampliar esse excesso e, com ele, a diserepancia entre experiéncias mediocres e expectativas exaltantes, No final do século, a globalizagio neoliberal e 0 capitalismo neo-selvagem vieram alterar esta condigdo. Para a esmagadora maioria da populacio, a discre~ pancia entre experiéncias e expectativas mantém-se, mas invertida: as expectativas so agora negativas e deficitérias em relagdo as experiéncias. As experiéncias de hoje, por mais mediocres, teme-se que se sigam outras no futuro ainda mais me- diocres. Neste contexto, a teoria critica vé-se na contingéncia de defender as ex- petiéncias de hoje contra as expectativas deficitérias e com isso 0 seu programa de transformagio social pode acabar por redundar na defesa do status quo. Mas, neste «aso, 0 que distingue a teoria critica da teoria convencional? E nao sera esta mais adequada para dar conta da nossa condigao? € como pode uma teoria critica que defende o status quo promover credivelmente a constituicio de subjectividades rebeldes? De algum modo, a realidade ¢ menos dilematica do que parece nesta for- mulagéo. € que se a teoria critica convencional procurou, no passado, minimizar a discrepancia entre experiéncias e expectativas, quando estas eram positivas e ex cessivas, hoje, quando estas se tornam negativas e deficitrias, procura maximizar a discrepaincia entre elas e as experiéncias. Deixou, pois, de defender o status quo para defender a sua transformacao conservadora. A versio extrema desta orienta- (30 € a do conservadorismo revolucionario com poder crescente nos Estados Uni- dos da América e nas agéncias multlaterais dominadas pelos EUA. Se com isto 0 status quo muda de qualidade politica e a teoria critica pode encontrar nele um factor de credibilizacdo, por outro lado a teoria critica tem de especiticar cultural € politicamente 0 que distingue a subjectividade e acco rebelde que quer promo- ver da que & promovida pelo revolucionarismo conservador. segundo desafio pode ser formuladora dicotomia consensolresignagao. O, concéito central neste desafio 6 0 conceito de hegemonia. Na/peugada de Marx e de Gramsci, a teoria critica sempre entendeu por hegemonia a capacidade das classes dominantes em transformarem as suas ideias em ideias dominantes. Por via dessa transformagio, as classes dominadas acreditam estar a ser governadas em rnome do interesse geral, e com isso consentem na governacao. A teoria critica teve tum papel central em denunciar 0 cardcter repressivo deste consenso a misifica- Go ideologica em que assentava. E, a0 fazé-lo, suscitou maior conflitualidade so- ial embriu campo para alternativas sociais e politicas para além do consenso hegemnico. Aco AZAD NDOLENTE CONTRA 0 DSSERDIOD OA EERE, 35 ‘© que é novo, no contexto actual, € que as classes dominantes se desinteres- saram do consenso, tal é a confianca que tém em que néo hé altemativa as ideias, e solugdes que defenclem. Por isso, nao se preocupam com a vigéncia possivel de ideias ou projectos que Ihes so hosis, j4 que estdo convictos da sua itrelevan € da inevitabilidade do seu fracasso. Com isto, a hegemonia transformou-se e pas- sou a conviver com a alienagio social, e em vez de assentar no consenso, passou a assentar na resignacdo. O que existe ndo tem de ser aceite por ser bom. Bom ou mau, 6 inevitavel, e & nessa base que tem de se aceitar. ‘A teoria critica foi desenvolvida para lutar contra 0 consenso como forma de questionar a dominacao e criar © impulso de lutar contra ela. Como proceder numa situagio em que o consenso deixou de ser necessério e, portanto, a sua desmistficacao deixou de ser a mola do inconformismo? £ possivel lutar contra a resignaco com as mesmas armas tebricas, analticas e politicas com que se lutou contra o consenso? Este desafio € enorme. A resignacio, quando desestabilizada, tende a dar} lugar a rupturas radicais com 0 que existe. € de algum modo 0 que verificamos “hoje nos movimentos religiosos milenaristas ou apocalipticos, nos movimentos eco“ logicos fundamentalistas e em certas correntes mais radicais dos movimentos feri- nistas. Estas rupturas radicais sao dificilmente inteligiveis para a teoria critica ou apropridveis por ela. A teoria critica moderna, sob a influéncia da cientificidade e do determinismo das suas premissas, sempre procurou ligar 0 presente a0 futuro, as continuidades as descontinuidades, Promoveu a discrepancia entre experiéncias expectativas, mas manteve-as sempre articuladas, precisamente pela ideia de progresso. Como conceber rupturas progressistas fora da ideia de progresso? ‘A ruptura radical representa um excesso de presente em relaco ao passado que & indiferente ao futuro, quer porque se pretende efémera, quer porque o futuro que visiona é inevitavelmente catastrofico, A exacerbacao tanto da resigna- {¢20 como da ruptura radical questiona os principios dé determinagdo e de direc fem que se findou a teoria critica, Para enfrentar este desafio a teoria critica tera de saber compensar a determinacao e a direccao pela exigéncia do compromisso atico E isto me conduz ao terceiro ¢ iltimo desafio, 0 qual se pode formular na dicotomia, esperalesperanca. © contexto actual 6 0 da maximizacao € maxima indeterminagao do risco, Vivernos numa sociedade de riscos individuais e colectivos insegurdveis. So eles acima de tudo que minam a ideia de progresso ¢ a linearidade © cumulatividade do tempo histérico. Sao eles os responsiveis pelo retorno da ideia do tempo ciclico, da decadéncia, da escatologia milenarista. © carécter ca6- tico dos riscos toma-os presas faceis de designios divinos ou, 0 que & 0 mesmo, de contingéncias absolutas. Esta situagao traduz-se sociologicamente_ por uma atitude _de espera sem esperanca. Uma atitude de espera, porque a concretizacao do risco ¥6 simultaneamente totalmente certa e totalmente incerta. 56 resta prepararmo-nos 6 NROOUOCEEN, _para esperar sem estarmos preparados, F uma afitude sem esperanga porque o.que ‘vem nao bom e nao tem alternativa ‘A teoria critica moderna foi sempre fundamental a ideia de espera, pois 36 com esia atitude € possivel manter em aberto a possibilidade de alternativas crediveis. Mas por serem progressistas ou melhores que 0 que existe, tais alterna- tivas foram’ também o motivo. da esperanca. Assim foi possivel esperar com espe- Tanga. A teoria critica modema representou uma secularizagao fiel da esperanca bfplica. Num contexto de espera sem esperanca, a tearia critica tem apenas a alternativa de lutar contra a inevitabilidade dos riscos. Para isso, porém, tem de assumir uma posiglo explicitamente ut6pica, uma posigio que sempre teve, mas {que durante muito tempo clamou nio ter. Recuperar a esperanca significa, neste contexto, alterar 0 estaluto da espera, tormando-a simultaneamente mais activa & mais ambigua. A utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite lutar pelo conteddo da espera, nfo em geral mas no exacto lugar e tempo fom que se encontra.,A esperanga nao reside, pois, num principio geral que pro vvidencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de nacho social onde seja possivel resistir localmente as evidencias inevitabilidade, promovendo.com éxito alternativas que parecem ut6picas e ddos 0s tempos © lugares excepto naqueles em que ocorteram efectivament * este 0 realisfio utépico que preside as iniciativas dos grupos oprimidos que, mundo onde parece ter desaparecide a altemativa, vdo construinda, um poucd spor toda a parte, altemativas locais que tornam possivel uma vida digna e decente. A teoria critica compete, em vez de generalizar a partir dessas altemativas fem busca da Altemativa, torné-las conhecidas para akim dos locais e criar, avavés da teoria da traducéo, inteligibilidades © cumplicidades reciprocas entre diferentes alternativas em diferentes locals. A criagio de redes translocais entre alternativas locais € uma forma de globalizacio contrachegeménica — a nova face do cosmopolitismo. Disse Manx que cada sociedade s6 se coloca em cada época os problemas que pode resolver. Compreendo as razGes que levaram Marx a tal afitmacéo, mas discordo. O que faz mudar as sociedades e as €pocas € precisamente 0 excesso de problemas que suscitan em relagao as solugoes que tornam possiveis. A teoria critica & a consciéncia desse excesso.. Sua aspiragio utépica ndo reside em pro- por solugées desproporcionadas para 0s problemas postos, mas antes na capacida- de para formular problemas novos para os quais nfo existem ou nao existern ainda solugdes, concusio. Admito que nao 6 dificil ver no pds-modemo de oposigao aqui proposto ‘mais uma posicio moderna do que pés-modema, Isto deve-se em parte ao facto -ACRTICA DA RAO INDOLENT: CONTRA ODESEDIO DA ERENCL 7 de a versio dominante do pés-maderno ser 0 pis-modemo celebratério. $6 isso explica que um intelectual t80 sério como Terry Eagleton se deixe tentar por uma critica t8o superficial quanto descabelada do pés-modemo (Eagleton, 1996). Por: que © pés-modemo celebratorio reduz a transformagao social & repetigao acelera- da do presente e se recusa a distinguir entre verses emancipatérias e progressstas de hibridagio e versies reguiat6rias e conservadoras, tem sido facil & teoria crit moderna reivindicar para si o monopolio da ideia de uma “sociedade melhor” & da accéo normativa. Pelo contririo, 0 p6s-modemno de oposigio questiona radical~ mente este monopélio. A ideia de uma “Sociedade melhor” éelhe central, mas, 20 cuntrério da teoria critica moderna, concehe 0 socialismo como uma aspiragio de ddemocracia radical, um futuro entre outros futuros possiveis, que, de resto, nunca send plenamente realizado. Por outro lado, a normatividade a que aspita é construida sem referencia a universalismos abstractos em que quase sempre se ocultam pre- ‘conceitos racistas e eurocéntricos. E uma normatividade construida a partir do chao «las latas sociais, de modo pantcipativo e multicultural Dada a crise da teoria critica modema, tenho razées para pensar que 0 an- tagonismo enire pos-modemno de oposigdo @ pOs-moderno celebratorio tera gya- «luslmente consequéncias politicas € tedricas mais importantes do que 0 antago- nismo entre © moderno € 0 pés-moderno, Infelizmente, o primeiro antagonismo tem sido ocultado pelo segundo devido a uma intrigante convergéncia entre 0 discurso de modernistas irredutiveis € 0 discurso de pés-modernistas hiperdesconstruidos fste livro visa definir uma abordagem pés-modemna de eposigéo, uma abor: dagem que articula 2 crtica da morleridade com a critica da teora cra da modemidade. © abject analiticas € conceptuais qué cedibildern esta alifude critica sobretudo junto da- “queles, presumivelmente muitos, que sentem que as razGes da indignscao € do apoiadas pela indignacio € 0 inganiormismo da.razdo, Porque recusa 0 vanguardismo, a teoria critica pés-moderna visa transformar: hunt senso comum emancipatério. Porque € auto-reflexiva, sabe que ndo é através «la teoria que a teoria se transforma em senso comum, A teoria é a oes ‘artografiea do caminho que vai sendo percorrido pelas lutas polticas sociais Culturais que ela inluencia tanto quanto ¢ influenciada por elas, VOLUME A critica da razao indolente: contra o desperdicio da experiéncia Ha um desassossego nto ar. Temas a sensagio de estar na orta do tempo, entre um presente quase a terminar © um futuro que ainda nao nasceu. © desas- sossego resulta de uma experiéncia paradoxal: a vivencia simuktanea de excessos de determinismo e de excessos de indeterminismo, Os primeiros residem na ace- leragio da rotina. As continuidades acumulam-se, a repeticio acelera-se. A vivencia da vertigem coexiste com a de bloqueamento. A vertigem da aceleragéo é tam- bém uma estagnagio vertiginosa. Os excessos da indeterminismo resider na desestabilizacio das expectativas. A eventualidade de catastrofes pessoais e colectivas parece cada vez mais provavel, A ocorréncia de rupturas e de descontinuidades na ‘vida e nos projectos de vida é correlato da experiencia de acumulagio de riscos inseguravels. A coexisténcia estes excessos confere ao nosso tempo um per pecial, 0 tempo. cadtica ‘onde ordem ¢ desordem se misturam em combinagies: Iurbulentas. Os dois excessos suscitam polarizagées extremas que, paradoxalmen- te, se toca. AS rupturas © as descontinuidades, de téo frequientes, tarnam-se ro- (ina @ a rotina, por sua vez, toma-se catastrofica Pode pensar-se que este desastossego € tipico dos tempos de passagem de século e, sobretudo, de passage de milénio, sendo por isso um fenémeno super- ficial e passageiro. A tese deste livio & que, pelo contririo, © desassossego que ‘experienciamos nada tem a ver com ldgicas de calendario. Nao 6 o calendério quee ‘nos empurra para a orla do tempo, ¢ sim a desorientagao dos mapas cognitivos, interaccionais e societais em que até agora temas confiado. Os mapas que nos sto familiares detxaram de see confidvels. Os novos mapas so, por agora, linhas ténuts, pouco menos que indecifréveis. Nesta dupla desfamiliarizago estd a origem do nosso desassossego, Vivernos, pois, numa sociedade intervalar, uma sociedade de transigan paradigmética. Esta condigio e os desafios que ela nos coloca fazem apelo a uma taclonalidade activa, porque em transito, tolerante, porque desinstalada de cert. 2 roo 7s paradigméticas, inquieta, porque movida pelo desassossego que deve, ela pr6- ria, potenciar A luz disto, entende-se facilmente o titulo deste volume inspirado em Leibniz. No Prefacio da Teodiceia [1719 (19851), Leibniz cefere a perplexidade que desde sempre tem causado 0 sofisma que 05 antigos chamavam a *razio indolente” ow *razdo preguicosa”: se o futuro & necessério e 0 que tiver de acontecer acontece independenterente do que fizermos, é preferivel no fazer nada, nao cuidar de nada e gozar apenas 0 prazer do momento. Esta raz30 ¢ indolente porque desiste de pensar perante a necessidade e 0 fatalismo de que Leibniz distingue tres ver! s6es: 0 Fatum Mahometanum, o Fatarn Stoicurn « 0 Fatum Christianum. Neste volume, a razéo critcada & uma razo cuja indoléncia ocorte por duas vias aparentemente contraditérias: a razio inerme perante a necessidade que s6 ela pode imaginar como Ihe sendo exterior; a razéo displicente que nao sente necessidade de se exercitar por se imaginar incondicionalmente livre e, portanto, livre da necessidade de provar a sua liberdade. Bloqueada pela impaténcia auto- infigida e peta displicéncia, a experiéncia da razio indolente & uma experiencia limitada, t30 limitada quanto a experiéncia da mundo que ela procura fundar. € por isso que a crttica da razao indolente & também uma dentincia do desperdicio dda experiencia. Numa fase de transicio paradigmética, os limites da experiéncia fandada na cazio indolente s40. particularmente grandes, sendo correspondentemente maior 0 desperdicio da experigncia. € que a experiéncia, limitada a0 paradigma dominante nao pode deixar de ser uma experiéncta fimita- da deste éltimo, Neste volume analiso a natureza e os termos da transi¢io paradigmatica, a transigao entre o paradigma sécio-cultaral da modemidade ocidentale o paradigma emergente. Na Parte |, defino © paradigma dominante e os tragos gerais da sua rise. A tese central 6 que a complexa matriz das energias regulatérias e das ener- gias emancipatérias inscrita na modemidade ocidental foi sendo reduzida, a medi- dda que esia convergiu com © desenvolvimento capitalista, a dois grandes instru- mentos de racionalizagao da vida colectiva, a ciéncia modema ¢ 0 direito estatal modemo, A crise de ambos coincide, por isso, com a crise do paradigma domi- rnante, uma crise episternotigica e societal. No Capitulo 1, centro-me na andlise da Ciencia moderna e, no Capitulo 2, na analise do direity maderno. Na Parte Il, prossigo, a partir de uma perspectiva diferente, a identificacao dos limites de representagao da ciéncia e do direito, Por esta via, pretendo mostrar 6 impacto destes limites na intervengio cientfica e juridica na sociedade, um im- pacio tanto maior quanto menor € o recanhecimento dos limites. Para esta andlse, recorma 3s ciéncias e outras praticas que, devido a natureza dos seus abjectivos, lesenvolveram um reconhecimento mais apurado dos limites da representacio, luis como a cartografia © a arqueologia, mas também a fotografia ¢ a pintura. No Capitulo 3, parto da cartografia para analisar os limites da reprentago juridica AGIA DARNZAO NDDLENTE CONTRA DESFERDOO DAREBRENCIS 43 da realidade social. No Capitulo 4, tendo por alyo a ciéncia modema com menos consciéncia dos limites ce representacdo, a economia convencional, analiso os li rites da representacio cientfica da realidade cam recurso & arqueologia, & foto- srafia e 8 pintura, Na Parte Il, apresento uma alternativa teérica ¢ analitica do paracigma societal dominante, um procedimento que visa desnaturalizar e desnormalizar as formas de conhecimento, de poder e de direito que a modernidade ocidental transfor mou num cnone inexpugndvel. Esta desnatutalizagio e desnormalizacao visa abrit novos espagos para novas lutas de resisténcia &s diferentes faces da opressio cau- cionadas pelo paradigma dominante. Tais lutas pressupdem a reinvencio da eman- Cipaggo social, feita a partir de escavaghes nas tradigies marginalizadas ou supri midas pela modernidade ocidental. No Capftulo 5, apresento uma teoria da regulagio social segundo o paradigma dominante e, no Capitulo 6, recorra ae pensamento ut6pico para definiralgumas das linhas do paradigma emergente, quer relativamente & emancipagio social por ele tornada possivel, quer &s subjectividades, capazes de transformar a passbilidade em realidade. No prefécio geral ao livro agradeci 05 apoios que recebi na sua preparacio, No que respeita ao 18 Volume, sio devidos alguns agradecimentos especiais. Ma- ria Paula Meneses, arquedioga e antropdloga la Universidade Eduardo Mondiane, orientou pacientemente o meu estuide da arqueologia, e Antonio Gama foi uma fonte inesgotavel de informagies cartograticas / Epistemologia das estatuas quando olham para os pés: a ciéncia e o direito Na transigdo paradigmatica Dineen Gragas @ investigacdo e & teoria feministas, sabe-se hoje que os espelhos, sendo um objecto de uso corrente desde ha muitos sécutos, s4o usados de modo diferente pelos homens e pelas mulheres e que essa diferenga é uma das marcas da dominagdo masculina. Enquanto os homens usam o espelho por razbes utilits- rias, fazemeno pouco frequentemente ¢ ndo confundem a imagem do que véem com aquilo que so, as mulheres tém de si proprias uma imager mais visual, mais ‘dependente do espelho, e asam-no mais frequentemente, para construir uma iden- tidade que thes permita funcionar numa sociedade erm que no ser narcisistico Considerado no feminino Gontag, 1972: 34}, Como diz Susan Sontag, “as mullhe- ‘es nfo tém apenas faces como os homens” (1972: 351, e La Belle acrescenta: “toxlos os homens tém faces; muitas mulheres sio as suas faces” (1968: 24), Esta diferenca, que & uma marca da discriminagdo sexual, tem vindo a ser reconstruida plas ferinistas como ponta de pertida para afirmacao de uma identidede femini- fa libertada que reivindique o espelho como uma forma propria de conhecer & aceitar 0 corpo (La Belle, 1988: 173 € ss. Esta diferenca nio tem nada de essencial. Expressa tendéncias diferentes, cuja diferenca, als, talvez venha a¥sbater-se & medida que progride a esteticizacao do consumo e do corpo tanto dz mulher como do homem. Menciono estes pa- drdes de utilizagdo de espelhos porque penso que as sociedades, tal como 0 in- dividuos, usam espelhos e fazem-no de um modo mais ferninina do que masculi- no. Ou seja, as sociedades s20 2 imagem que tém de si vistas nos espelhos que _consltgem ata. teproduzi as identificagGes dominantes num dado. momento his: {Goriea, So os espelhos que, ao criar sistemas e préticas de semelhanca, correspon= déncia e identidade, asseguram as rotinas que sustentam a vida em sociedade. [Uma sociedacle sem espelhos é uma sociedade aterrorizada pelo seu préprio tertor. H4 duas dlferencas fundamentais entre 0 uso dos espelhos pelos individuos 0 uso dos espelhos pela sociedade. A primeira diferenga & obviamente, que os 8 wRoDuG expos a scidade nto so ices, de vio, S80 conjrtos de nse, normatividades, ideologias que estabelecem correspondéncias e hierarquias ent campos infinitamente vastes de praticas socials, So essas correspondéncias e hie- targus que permite reterar ideas at 20 pono de sas Se tanorme rem em identidades, A ciéncia, 0 dreito, a educagao, a informagao, a religiao e a wdgo eto ere os mas imports espe is soles conterporincs (© que eles reflectom o que as sociedades sio. Por detrés ou para alm dees, nao ha nada sede pirsp dlferenga € que os espelhos sociais, porque sao eles préprios pro ces ea th de oy Conngdncas dese ie peso ses Po. fundaente a sua fanconalidade ena expen. Acne com ees 0 que aconteceu com 0 espelho da personagem da peca Happy Days de Samuel “Leva o meu expelho, ele nao precisa de mim”. Quanto maior & 0 uso de um dado espa e quanto mais importante ¢ ese we, mar #3 probit de ue ele adquira vida propria. Quando ito acantece, em vez de a sociedad se ver ae it rn, Goa, vei do olhar, passa a ser ele proprio, lhar. Um olhar imperial e imperscrutivel, por- {que se, por um lado, a sociedade deixa de se reconhecer nele, por outro néo centende sequer 0 que o espelho pretende reconhecer nela. £ como se 0 espelho pasase de objeto val a enigmaico upe-sjl, de epeo passe 3 et tua, Perante a estitua, a sociedade pode, quando muito, imaginar-se como foi ou, lo contri, como nunca foi. Dea, no entart, de ver nela uma imagem credvel {8 que imagina ser quando olha. A actualidade do olhar dea de corresponder A actualidade da imagem Cuando io acoece, a secede ena rua crs que paemosdesnar como cis da consi esperar de um lao, ooha da sociedad ber do terror de nao ver reflectida nenhuma imagem que reconhega como sua: do lado, 0 olhar monumental, tio fixo quanto opaco, do espelho tornado estatua que parece atrair 0 olhar da sociedade, no para que este veja, mas para que seja Vigiado. ras, dois deles, pela impor. Enire 0s muitos espethos das sociedades modernas, dois tincia que adquirram, parecem fer passado de espelhos a esttuas: a cin Siveto, © processo histérico em que tal acoreeu é 0 resultado da com entre dois processos histéricos distintos: 0 paradigma da modemade octet € ‘Nesta Pate | analso a ciéncia¢ 0 direto madernos no processo da su asormagio de epics eens Esa ani ea, por, re ted ipo min onto de fap, Non wun ee omer 9 momento de desequilbrio no pedesal. £ 0 momento em que o olhar imperial, fixo & opaco sobre o mundo, tem de repente de olhar para os pés. Os pés nfo tm suxquer de ser de barro para que a estua corra entio 0 isco de cai. A andlse que te Seu aposa ree Fac, nao porque se compraza em detrubareéuas, cas ACRTCADK taco ADDLINE CONTRA ODEOIOD OA ERERCA 49 . aPenas para reinventar novos espelhos que tornem possivel ultrapassar a crise de consciénela especular em que nos encontramos. Esse proceso de reinvengfo esté "pens no comego, Por enguanto, os indicios de novos espelhos sio ainda dispersos As imagens que € possivel obter sio fragmentirias e convulas ¢, nessa medida, ‘opacas. Mas a sua opacidade, ao contrério da das estétuas, nao é imperial, existe para ser superada, ‘A moderidade ocidental e 0 capitalismo sao dois processos histéricos dife- Fentes e auténomes. © paradigma sécio-cultural da modernidade surgia entre o sécuilo XVI e 0s finais do século XVII, antes de o capitalismo industrial se ter ton, nadlo dominante nos actuais patses centrals. A partir dai, 05 dois processos conven siram @ entrecruzaram-se, mas, apesar disso, as condligoes o a dindmica do desen. volvimento de cada um mantiveram-se separadas e celativamente auténomas'. A ‘modernidade néo pressupunha 0 capitalsmo como mado de preslucéo proprio, Na verdade, concebido enquanto modo de produgéo, 0 socialismo marxista & tam. bém, tal como o capitalsmo, parte consttutiva da modemidade. Por outro lado, 0 capitalism, longe de pressupor as premissas socio-culturais da modernidade para se desenvolver, coexistiu e até progrediu em condigdes que, na perspectiva do Paradigma da moclemidade, seriam sem duvida consideradas pré-modernas ou mesmo antimodernas, ZTenho vindo a defender que estamos a entrar num periodo de transigdo paradigmtica (Santos, 1994}, Resume aqui o argumento jé conhecido porque parto dele pare avangar na formulacio da natureza da transiglo paradligmtica apresen. fada nesta Parte. © paradigma socio-cultural da modernidade, constituide antes de 0 capitalsmo se tet convertide no mode de praducio industrial dominante, clesaparecera provavelmente antes de 0 capitalisma perder a sua posigio domi. rrante. Esse desaparecimento é um fenémeno complexo, jf que € simultaneamen, {te um jprocesso de superacdo e um proceso de obsolescéncia, £ superacio na medida em que a modernidade cumpria algumas das suas promesss, nalgns casos até em excesso. € obsolescéncia na medida em que a modernidade ja ndo conse: Bue cumpri outras das suas promessas. Tanto 0 excesso como o défce de cumpris "mento das promessas histéticas explicam.a nossa siuagio presente, que aparece, 3 superficie, como um period. de crise, mas que, a nivel mais profundo, ¢ uny {Perfoda de transicéo paradigmatica, Como todas as transigbes sao simultencamen. “te semi-invsiveis € semicegas, 6 impossivel nomear com exactidao a situagio actual: "Talves seja por iso que a designagao inadequada de “pés-maderno" se tornou tad “popular. Mas, por essa mesma razio, este termo € auténtico na sua inadequayao. 1. A relaio ere a madernidadee ocaptalsmo & em sium proces hitérico que est ge de pila Je repulagso sofreu um desenvolvimento desequilibrado, ortentado para'o neereade A redlucao da emancipagio moderna & racionalidade cognitvo-ina arcade cone mi en las pela converséo da ciéncia na principal fora produtva, constuers oe condi: bes determinantes do processo histérico que levou a emmancipagse marks renderse a regulagio moderna. Em vez de se disolver no plar da regulacien a nilar da emancipacto continuou a ba, mas com uma it ue noe oe 4k tensio dalcica inca ene reglacéo e emancipagio — tensdo que ainda pode er percebia,j sob 0 crapscalo, na diva do postive oltecentsta "or diem e progest” —, mas sim dos ferents espethos que releciam a replat. Proceso, a emancipagio deixou de ser o outro da regulagio para se com yerter no seu duplo, Assim se compreende a sndroma de esgotamento © loqueamento gobais a proileracdo dos espetnos da rgulagio di kiirs prateas socials cada vez mis contingentes e convencionais, mas essa Contingent Convencionafidade coexistem, a nivel global, om umn gras cada ver town devin ez deinfeiidade. Tudo pace posse! na arte ena cient a regio oa mor ma, pout lad, nada ce novo parece ser vel 30 nivel da sca AA absorcdo da emancipagio pela regulagio — iruto da hipercientiicizagso da emancipagto combinada com a hipermercadovieacio da regulon neu, zou eficazmente os receios outrora associados & perspectva de ume tarcoma, io social profunda e de futuros alterativos. Todavia, produits a0 mesmo tern Luma nova sensacio de inseguranga, motivada pelo reveio de desemvolvimenne incontroléveis, que pudessem ocorrer aqui e agora, precisamente como tecatade dda contingéncia e da convencionalidade generalizacas de priticas scion, sectorats A propria regulagdo desacteditou-se ideologicamente enguanto pilar da, meden, nidade, devido as suas contradicbes internas. Por outras palavras 9 contingee global ¢ a convencionalidade minaram a reguligio sem promover a emuncieagae, Fqvoto a tegalagdo se torn impose, a emanc)pact tomnase imran ‘A.um nivel mats profundo, esta sensagio de inseguran : na crescenteassimeia ene a capacidade de agit 4 eapacionde de proce tals equa err rnipo do mercado eho Earn octane set te at cen moo 4. ir, Off (1987) para ama anise da er 5,01 OMe 1987) para uma andlise da sersagao de esgotements ebloqueament total dos pes Sk O\cNIAODERM AO NONOSENEO COMIN [A cidncia e a tecnologia aumentaram a nossa capacidade de acgSo de uma forma ‘sem precedentes, e, com isso, fizeram expandiir a dimensso espicio-temporal dos rnossos actos. Enquanto anteriormente 05 actos sociais parthavam a mesma di- mensio espécio-temporal das suas consequéncias, hoje em dia a intervencio ca pode prolongar as consequéncias, no tempo € no espago, muite para além da dimensio do proprio acto através de nexos de causalidade cada vez mais complexos © opacos. A expansio da capacidade de acgéo ainda nao se fez acompanhar de uma expansio semelhante da capacidade de previsio, e, por isso, a previsio das consequéncias da acco cientifica € necessariamente muito menos cientifica do, que a accio cientifica em si mesma, Esta assimetria tanto pode ser considerada um excesso como um défice: a capacidade de accao & excessiva relativamente & capa- cidade de previsio das consequéncias do acto em si ou, pelo contrat, a capaci dade de prever as consequéncias € deficitdria relativamente & capacidade de as produzir. Estas duas leituras nao so interinutveis, dado que se referem a proces- 505 distinlos e evidenciam preocupacées diferentes. A primeira poe em causa a nogio de progresso cientifico @ a segunda limita-se a exigir mais progresso cientf- fico. Foi a segunda leitura (um défice de ciéncial que prevaleceu até agora, estan- do alicergada no que Hans Jonas chamou utopismo automstico da tecnologia: © futuro como repetigin “clinica” do presente (Jonas, 1985). A primeita leitura (a cigncia como excesso) é ainda uma leitura marginal, mas a preocupacéo que sus cita esté a ganhar uma credibilidade cada vez maior: como 6 que a ciéncia moder- na, em vez de erradicar os riscos, as opacidades, as violéncias e as ignordncias, que antes eram associados & pré-modernidade, esté de facto a recrié-os numa forma hipermoderna? © risco ¢ actualmente o da destruicao maciga através da guerta ou do desasire ecol6yicu; a opacidade é actualmente a opacidade dos nexos de cau salidade entre as acyies e as suas consequéncias; a violencia continua a ser a velha violencia da guerra, da fome e da injustice, agora associada & nova violencia da Autbris industrial relativamente 20s sistemas ecoldgjcos e a violencia simbdlica que as redes mundiais da comunicagdo de massa exercem sobre as suas audiéncias cativas. Por dtimo, a ignorancia 6 actualmente a ignordncia de uma necessidade (0 tutopismo automético da tecnologia) que se manifesta como 0 culminar do live exercicio da vontade (a oportunidade de criat escolhas potencialmente infinitas). ‘Optar por uma destas duas leturas da situagdo presente da ciéncia moderna do € tarefa fAcil, Os sintomas so profundamente ambiguos e conduzem a diag- Inéslicos contraditérios. Se uns parecem sustentar, de modo convincente, que a ciéncia moderna é a soluga0 dos nosso problemas, outras parecem defender, com Igual persuasio, que a ciéncia modema é ela propria parte dos nossos problemas. Recorrendo & teoria sinergética do fisico tesrico Hermann Haken (1977), podemos lizor que vivemos num sistema visual muito instdvel em que a minima futuagao ‘ncnca. Da AZO WOOUETE: CONTRA ODESFEIDICO DA DMLRENLA $1 4a nossa percepgo visual provoca rupturas na simetria do que vemos. Assim, olhan= do a mesma figura, ora vemos urn vaso grego branco recortado sobre um fundo Preto, ora vemos dois rastos gregos de perfil frente a frente, recortados sobre um fundo branco. Qual das imagens & verdadeira? Ambas ¢ nenhuma. £ esta a ambiguidade e a complexidade da situagio da tempo presente. Tal como noutres periodas de transiggo, difceis de entender e de percorrr, € necessirio voltar as coisas simples, 2 capacidade de formular perguntas simples, Perguntas que, como Einstein costumava dizes, s6 uma crlanga pode fazer mas ue, depois de feitas, io capazes de trazer uma luz nova & nossa perplexidade, A ‘minha crianga preferida vivew ha mals de duzentos anos ¢ fez algurres perguntas simples sobre as ciéncias e os cientistas. Fé-las no inicio de um ciclo de produgio Gentfica que muitos de nés julgam estar agora a chegar ao fim, Essa crianga € Jean-Jacques Rousseau. No seu célebre Discurso sobre as Citncias e as Artes (1750), Rousseau formula varias questGes enquanto responde a questio, também razoa- Yelmente infant, que Ihe fora posta pela Academia de Dijon Rousseau, 1971: 52). Esta thtima questao rezava assim: 0 progresso das ciéncias e das artes contr buicd para purficar ou para corromper os nossos costumes? Tratase de ura pe! junta elementar, a0 mesmo tempo profunda e facil de entender. Para Ine dar res- posta — do modo elaquente que the mereceu o primeiro prémio e algumas inimi- zades — Rousseau fez as seguintes perguntas no menos elementares: hi alguma relacdo entre a ciéncia e a virtude? Ha alguma razi0 de peso para substitirmos 0 conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida € que partlhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento cienifico produzida por poucos e inacessivel 4 maioria? Contribuiré a ciéncia para diminuir 0 fosso rescente na nossa sociedade entre a que se 6 © o que se aparenta set, 0 saber dizer ¢ o saber fazer, entre a teoria ¢ a prtica? Perguntas simples a que Rousseau responde, de modo igualmente simples, com um redondo. néo Estivamos enti em meados do século XVIII, numa altura em que a ciéncia modema, saida da revolugio clentfica do século XVI pelas mios de Copérnico, Galileu © Newton, comecava a deixar o$ caiculas exotéricos dos seus cultores para se transformer no fermento de uma ttansformagao técnica & social sem preceden- stria da humanidade. Uma fase de transigio, pois, que deixava perplexos tos mais atentos e os faziareflectir sobre os fundamentos da sociedade em ue viviam e sobre 0 impacto das vibragdes a que eles iam ser sujeitos por via da orem cientifica emergente. Hoje, duzentos anos volvides, somos todos protago- nisias e produtos dessa nove ordem, testemunhos vivos das transformacées que ela produziu. Mas estamos de novo perplexos, perdemos a confianca epistemoldgica; instalou-se em nds uma vensa¢ao de pera imeparével tanto mais estranha quanto no sabemos a0 certo 0 que estamos em vias de perder; admitimos mesmo, nou: {os momentos, que essa sensacio de perda seja apenas © medo que sempre pre- cede os ditimos ganhos do progresso cientfica. No entanto, existe sempre a per plexidade de ndo sabermos © que havers, de facto, a ganhar, 4 OAC MODENA AO NOHO SSO-COMLM Dat a ambiguidade e complexidade do tempo presente. Daf também a ideia, hoje parithada por muitos, de eslarmos numa fase de transicao. Dat, finalmente, ‘a ungéncia de dar resposta a perguntas simples, elementares, inteligivels. Uma per- [gumia elementar € uma pergunta que atinge o magma mais prolundo da nossa perplexidade individual e colectiva com a transparéncia técnica de uma fisga. Fo- ram assim as perguntas de Rousseau; terdo de ser assim as nossas. Mais do que jss0, duzentos e tal anos depots, as nossas perguntas continuam a ser as de Rousset, Estamos de novo regressados & necessidade de perguntar pelas relacdes entre a Giéncia e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordindrio ou vulgar que 1s, sujeitos individuais ou colectivos,criamos e usamos pata dar sentido 3s nossas praticas © que a ciéncia teima em considerar irrelevante, ilusério e falso; e temos, finalmente, de perguntar pelo papel de todo 0 conhecimenta cientifico acurmula- do no enriquecimento. ou no empobrecimento pritico das nossas vidas, ou seja, pelo contributo postive ou negativo da ciéncia para a nossa felicidade, A nossa iferenga em relagio a Rousseau € que, se as nossas perguntas sto simples, as respostas sé-lo-do muita menos. Rousseau viveu 10 inicio de um ciclo de hegemonia cde uma certa ordem cientifica com cujo fim provavelmente nos confrontamos hoje. ‘As condigies epistémicas das noséas perguntas estao inscritas no avesso dos con- ceitos que utlizamos para thes dar resposta, Questionar 0 paradigma da ciéncia moderna nao é, em si, uma questio cientifica e pode facilmente transformar-se numa falsa questo ou, quando muito, no objecto de outra questéo cientfica (a sociologia da ciéncials porque é que, afinal de contas, a questao paradigmatica se levanta? TTeremos forgosamente de ser mais rousseaunianos no perguntar do que no responder. Numa época de hegemonia quase indiscut'vel da ciéncia moderna, a resposta & pergunta sobre o significado sdcio-cultural da crise da ciéncia moderna, ‘ou seja, a démarche da hermenéutica critica, nfo pode obter-se sem primeiro se ‘questionarom as pretensGes opistemolgicas da ciéncia moderna. £ 0 que a seguir faremos. (© PARADIGMA DOMINANTE (© modelo de racionalidade que preside a ciéncia modema constituiu-se a partir da revolucio cientifica do século XVI € foi desenvolvidlo nos séculos seguin- tes basicamente no dominio das ciéncias naturais. Ainda que com alguns prentn- ios no século XVII, é 36 no século XIX que este modelo de racionalidade se es- tendo as ciéncias sociais emergentes. A partir de entao pode falar-se de um mode- la global isto é, ocidental) de racionalidade cientiica que admite variedade inter- nna, mas que se defende ostensivamente dé duas formas de conhecimento no ‘sentific (¢, portanto, potencialmente perturbadoras): o-senso comum-e as cha- ACHICA DA AZO WNOOKNTE CoNMRAC EESREDIOO DA ENA 6 :madas humanidades ou estudos humanist estado haeos Hho nani em que incu, entre outs, icos, lteririos,flosofices € teolégi ; ico), Sendo um modelo global, a nova racionalidade cientifica é também um Inethor simboliza a ruptura do nova paradigma cintifico com ox que v preveden Est8 consubstanciada, com cre: “a com crescente definiclo, na teotia heliocéntrica Trento dex Blnetas de Copsimico, nas leis de Kepler sobre a titan dos pane : ce Nena et sobre a suds dos corps, na prande sinese da ordem amie cee 2 finalmente, a consciécia filesfca que Ihe eonterem Bacon e Des Gates. Esta preocupacio em testemunhar uma ruptura fundante qu 2 tana $6 uma forma de conhecimento verdadeiro ests bem patente ate renal raga no se espanto perante as propras descobertas « na ces 2 rena arrogincla com que se medem com 05 seus Fara citar apenas dois exemplos, Kepler escreve mo seu livt sobre a Harmo- nia do Mundo publicado em 1619, a pray Drs noe ce ablical em 1679, apps das harmonias naturals que deseo. Perse, mses es se we ese on aga pone) Om fa pr mtn ape mene Baste gece iquetes que pudessern contemplar 0 seu trabalho (Kepler, 1939: 280%, Por outro lado, Descartes, nes Discurso do Método e a que volar si encontrado: 4 maravilhasa autobiogratia espir ia esitagl que € 0 mais tard, dig seferindo se 90 motos por Fong if cot dle afte gue, enbor n a Bou sempre inne mas prs lad do dsconfanes deo an ye Lunco «ambors hands cm alm de fo weve soos nents tse ads: hres a use eas a megs cy a ee ra exe sido tao progreso ue jlo ter foe eae fl ds cone a extant pa eo tem cope sesh es alura he se salon bose eee que € aquela que escolhi (Descartes, 1984: 6), me eq firs comprcender esta confianca epistemoligica & necessério descrever Intamente, Os principais tragos do novo paradig vent teed Ms ai a titi aue'o gue 0 separa do saber asco metitl ana damane se gee ms “n ‘tanto, ome melhor observagao dos factos como sobretudo uma. nove © da vida, 0s protagonistas do novo patadigma condusem wma 2 ACEC MODERN AD NOHO SEO COM luta apatxonada contra todas as formas de dogmatism ¢ de autoridade. O caso de Galileu € paricularmente exemplar, ou ainda a afirmacao de independéncia intelectual de Descartes: “Eu no podia escolher ninguém cujas opinides me pare- cessem dever ser preferidas as dos outros, € encontrava-me como que obrigado a procurar conduzi-me a mim pr6prio” (Descartes, 1984: 16). Esta nova visio do mundo e da vida conduz a duas distingées fundamentals, entre conhecimento ci- entifco e coahecimento do senso comum, por um lado, ¢ entre natureza e pessoa humana, por outro, ‘Ao contritio da ciéncia aristotélica, a ciéncia modema descontia sistematica- mente das evidéncias da nossa experiéncia Imediata. Tals evidéncias, que esta0 na base do conhecimento vulgar, so ilusdrias. Como bem salienta Einstein no preta- cio a0 Diitogo sobre os Grandes Sistemas do Mundo, Galileu esforca-se denodada- mente por demonstrar que a hipétese dos movimentos de rotagéa e de translagio da Terta nao é refutada pela facto de ndo observarmos quaisquer efeitos mecani- ‘cos desses mavimentos, Ou seja, pelo facto de a Terra nos parecer prada e quieta Einstein, 1970: si). Por outro lado, ¢ total a separacéo entre a natureza e 0 ser hhumano. A natureza é to-s6 extensdo e movimento; € passiva, eterna e reversivel, rmecanismo cujos elementos se pocem desmontar e depots relacionar sob a forma de leis; nda tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeca de des- vendar os seus mistérios, desvendamento que no é contemplative, mas antes activo, j8 que visa conhecer a natureza para a dominar ¢ controlar. Como diz Bacon, a Giéncia fard da pessoa humana “o senhor ¢ 0 possuidor da natureza” (19333 ‘Com base nestes pressupostos, © conhecimento cientfico avanga pela obser- ‘yagio descomprometida e livre, sistemdtica e tanto quanto possivel rigorosa dos fenémenos naturais. © Novum Organum opde a incerteza da razao entregue a si mesma a certeza da experigncia ordenada ‘Koyré, 1981: 30). Ao contrério do que pensa Bacon, a experiéncia nao dispensa a teoria prévia, o pensamento dedutivo ‘ou mesmo a especulagio, mas forga qualquer deles a nao dispensarem, enquanto instincia de confirmagio dltima, a observagao empirica dos factos. Calileu 86 refu- ta as dedugées de Aristételes na medida em que as ache insustentaveis e & ainda Einstein quem nos chama a atencao para 0 facto de os métodos experimentais de Galileu serem to imperieitos que s6 por via de especulagdes ousadas poder preencher as lacunas entre os dados empfricos (basta recordar que néo havia medicées de tempo inferiores 20 segundo) (Einstein, 1970: xix), Descartes, por seu {umno, vai inequivocamente das ideias para as coisas ¢ nao das coisas para as ideas e estabelece a prioridade da metafisica enquanto fundamento dltima da ciéncia. 5, Para Bacon “a senda que cundus « hamem ao poder €2 que o conduz a ciénciaestio Muto Iximas, endo qusse a meu” (1933: 170). Bacon também afrma que se 0 abjecivo da ciénca € thea rte i eon vee un 26 pees vrezarfrzn edict 933 Iitilve rea ve nem sempre lem silo devidomende sentado nas imeapreagtes da teria de Maun i a ea, -ACiIICADAAZHO NDOLENTE-COMTRKO DEEDIOOOA BREEN $b As ideias que presidem a observagio e 2 experimentagao sao as ideias claras € simples a partir das quais se pode ascender a um conhecimento mais profundo € rigoroso da natureza, Essas ideias sfo as ideias matematicas. A matemstica forne- ce a ciéncia moderna, nao 36 0 instrumento privilegiado de andlise, como também a ligica da investigagdo, e ainda o modelo de representacéo da propria estrutura da matéria, Para Galileu, 0 livra da natureza esté inscrito em caracteres geométri- cos" € Einstein no pensa de modo diferente”, Deste lugar central da matomdtica a ciéncia.moderna.derivam duas cansequéncias principais. Em primeira lugar, conhecer significa quantificac.0 rigor cientiico afere-se pelo rigor das medigoes, As qualidades intrinsecas do objecto sto, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar a5 quantidades em que eventualmente se podem traduzi © que nao € quantificivel 6 cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, 0 m6 todo cientifico assenta na redugao da complexidade,’O mundo é complicado ea ‘mente humana nao 0 pode compreender completamente, Conhecer significa divi- dir e dassificar para depois poder determinar relagSes sistematicas entre 0 que s@ separou. }i em Descartes uma das tegras do Método consiste precisamente em ‘dividit cada uma das dificuldades... em tantas parcelas quanto for possivel e {querido para melhor as resolver” (Descartes, 1984: 17). A divisio primordial é a que distingue entre “condigbes iniciais” e “eis da natureza". As condicoesiniciais sao © reino da complicacio, do acidente ¢ onde € necessirio seleccionar as que estabelecem as condigdes relevantes dos factos a observar; as leis da natureza S50 © reino da simplicidade e da regularidade, onde 6 possivel observar e medit com ‘igor. Esta distingso entre condigoes iniciaise leis da natureza nada tem de “natue ral". Como bem observa Eugene Wigner, é mesmo completamente arbirdria (Wigner, 1970; 3}. No entanto, é nela que assenta toda a ciGncia moderna, A natureza teérica do conhecimento cientifico decorte das pressupostos epistemol6gicos @ das regras metodolégicas ja referidas. E um conhecimento cau- sal que aspita a formulagio de leis, & luz de regularidades observadas, com visa a prever 0 comportamento futuro dos fendmencs. A descoberta das leis da natureza ge oie MRD ps do Dg sobre us incest do nd, et a Se temo “entender tm nace de “ates spa composi ien- sta, so pov, de ens da opi oh eo gue crteniment han compose de alga proposes ta preter ang una catega to asotia ges 9 open raturcn Tl € 0 cs por entmpdss popes das canas mated puas,2 er & fomera 3 anne mtn dn cane un nomro intone dace ae Evite tvs, sts 0 tec amano cece pases ge qu econo Gla {em uly om ere object. o connect cea, pst ciegaa compres ea ‘side 9a ako FU eras Call, 187 1 7, Aart de Esta por Cate et ber patete no pico ie reves pa de Cale modo ‘aac Finn “ee raters maletben dy bus atess ope ‘rm pate ss ln aah sobre area da neces cuties espedaente ona 8 ter Preach de Copentag A ete prinout ser Hatin 975 376 4 pAGEaN Monee AoNoUD N50 COM assenta, por um lado, ¢ como jé se referiu, no isolamento das condigées inici relevantes (por exemplo, no caso da queda dos corpos, a posigaa inicial e a velo cidade do corpo em queda) , por outro lado, no pressuposto de que o resultado se produzirs independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condigées iniciais. Por outras palavras, a descoberta das lets da natureza assenta no principio de que a posigio absoluta ¢ o tempo absoluto nunca sda condigdes ini Ciais relevantes. Este principio 6, segunda Wigner, o mais importante teorema da invariancia na fisica dassica (Wigner, 1970: 226). As leis, enquanta categorias de inteligibilidade, repousam num conceito de causalidade escolhido, no arbitrariamente, entre 0s oferecidos pela fisica aristotélica. Aristoteles distingue quatro tipos de causa: a causa material, a causa formal, a ‘causa eficiente @ a causa final. As leis da ciéncia modema s&0 um tipo de causa formal que privilegia 0 como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ‘ou qual o fim das coisas. E por esta via que 0 conhecimento cientifico rompe com ‘0 conhecimento do senso comum. £ que enquanto no senso comum, e portant ro conhecimento pratico em que ele se traduz, a causa e 2 intengéo convivern sem problemas, na ciéncia, a determinagio da causa formal obtém-se ignorando, a intengao. £ este ipo de causa formal que permite prever e, portanto, inter no real e que, em tikima instncia, permite a ciéncia madera responder a pergunta sobre 05 fundamentos do seu rigor ¢ da sua verdade com o elenco dos seus éxitos ‘na manipulagio ¢ na transformacio do realy” Um conhecimento baseado na formulagao de leis tem como pressuposto metatesrico a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, a ideia de que o pas- sado se repete no futuro, Segundo a mecdnica newtoniana, o mundo da matéria é Uma maquina cujas operaces se podem determinar exactamente por meio de leis, figicas e matematicas, um mundo estético € eterno a flutuar num espago vazio, um ‘mundo que © racionalismo cartesiano toma cognoscivel por via da sua decompo- sigo nos elementos que © constituem. Esta ideia do. mundo-maquina é de tal todo poderosa que vai transformar-se ra. grande hipGtese universal da época mo- deena. Pode parecer surpreendente @ até paradoxal que uma forma de conheci- mento assente numa tal visio do mundo tenha vindo a constituir um dos pilares da idela de progresso que ganha corpo no pensamento europeu a partir do século XVIII e que 6 0 grande sinal intelectual da ascenséo da burguesiat. Mas a verdade € que g.ordem ¢ a eslabilidade do mundo sio a pré-condicéo da translormagao, Fecnolégica do real. O determinismo mecanicista ¢ o horizonte certo de uma for- ‘ma de conhecimento que se pretende utilitério € funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que pela capacidade ‘de 0 dominar e transformar, No plano social, ¢ esse também o horizonte cognitivo mais adequado aos interesses da burguesia ascendente, que via na sociedade, em 1, Mes ote muitos Palle (1971 39 ‘RETO DA RATIO NDOLENTE CONTRA ODEPEDIOD OXBPERENCA. 55 que comecava a dominay, 0 estidio final da evolucso da humanidade (0 estado positivo de Comte: a sociedade industrial de Spencer; a solidariedade orginica de Durkheim), Dai que o prestigio de Newton ¢ das leis simples a que reduzia toda 2 complexidade da ordem césmica tenham convert a ciéncia moderna no modelo de racionalidade hegeménica que a pouco e pouco transbordou do estude da natureza para o estudo da sociedad. Tal como foi possivel descobrir as leis da natureza, seria igualmente possivel descobrir as leis da sociedade. Bacon, Vico © Montesquieu sio os grandes precursores. Bacon atirma al plastiZidade da natureza humana e, portanto, a sua perfeciblidade, dads as con- digbes sociais, juridicas e politicas adequadas, condigbes que é possivel determinar ' ccom rigor (Bacon,1933}. Vico sugere a existéncia de leis que governam deterministicamente a evolucio das sociedadles ¢ tornam possivel prever os resule tados das acqdes colectivas. Com extraordinaria premonigao, Vico identifica © re- solve a contradigio entre a iberdade e a imprevisiblidade da acgio humana indi- vidual e a determinagio e previsibilidade da accao colectiva (Vico, 1953}, ‘Montesquieu pode ser Consiclerado um precursor da sociologia do direto ao esta- belecer a relacdo entre as leis do sistema juridico, feitas pelo homem, ¢ as leis inescapaveis da natureza (Montesquieu, 1950). No século XVIlL, este espitito precursor & ampliado e aprofundado, ¢ 0 fer mento intelectual que dat resulta, a Luzes, vai criar as condic6es para a emergén- cia das ciéncias sociais no século XIX. A consciénca filossfica da ciéncia moderna, gue tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulagbes, veio a condensar-se no positvismo oitocentista. Dado que, segundo este, 66 hd duas formas de conhecimento cientificn — as disciplinas formals da l6gica e da matematica e as ciéncias empiticas segundo 0 modelo mecanicista das Ciéncias naturais — as ciéncias sociais nasceram para ser empiricas, © modo como © modelo mecanicsta fo1 assumido teve, no entanto, algumas variantes. Distingo dduas vertentes principais: a primeira, sem dévida dominante, consistia em aplicat, nna medida do possivel, a0 estudio da sociedade, todos as principios epistemolégicos ‘© metodolégicos que comtinavam o estudo da natureza desde o século XVI; a se ganda, durante muito tempo marginal mas hoje cada vez mais seguida, cons {em reivindicar para as ciéncias socials um estatuto epistemolégico © metodolégico préprio, com base na especifcidade do ser humano e na sua disingSo radical em ‘elagéo & natureza, Eslas duas concepgies tém sido considevadas antaginicas, primeira sujeita ao jugo postvista, a segunda liberta dele, e ambas reivindicando © monopélio do conhecimento cientfico-social. Apresentarei adiante uma inter- pretagio diferente, mas para jé caracterizarel sucintamente cada uma destas vari- antes, {A primeira variante — cujo compromisso epistemoldgico esté bem simboliza- do no nome de, “isica social’; com que inicialmente se. designaram os estudos cientfcos da sociedade parte do pressuposto de que as ciéncias naturais $20 6 DACENCKNODEENA AO NUN INGO COMM uma aplicagdo au concretizagio de um modelo de conhecimento universalmente vlido e, de resto, » Gnico valido. Portanto, por maiores que sejam as diferencas ‘entre 0s fendmenos naturals € 05 fendmenos sociais, 6 sempre possivel estudar os titimos como se fossem as primeiras. Reconhece-se que essas diferencas actuam ‘contra 08 fenémenos sociais, ou seja, tornam mais dificil o cumprimento do cénone metodolégico e menos rigoroso © conhecimento a que se chega, mas nao ha dife- rengas qualitativas entre 0 processo cientifico neste dominio e © que preside a0 ‘esludo dos fenémenos naturals. Para estudar os fendimenos sociais como se fossem fenémenos naturals, ou seja, para conceber 0s factos sociais como coisas, como jretendia Durkheim, o fundador da sociologia académica, € necessirio reduzit os factos sociais is suas dimensées externas, observaveis e mensurdveis (1980). Assim, por exemplo, as causas do aumento da taxa de suicidio, na Europa do virar do século, ndo so procuradas nos motivos invocados pelos suicidas e deixados em ccartas, como é costume, mas antes 2 partir da verificagio de regularidades em funcdo de condigies tais como o sexo, o estado civil, a existéncia ou no de filhos, a religiéo dos suicides (Durkheim, 1973) Porque essa redugio nem sempre & facil ¢ nem sempre se consegue sem istorcer grosseiramente 0s factos ou sem os reduzir & quase intelevancia, as cién-

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