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“GAPITULOL. (+ SERVICO SOCIAL: A ILUSAO DE SERVIR A conscigncia, portanto, é desde o inicio um produto so- cial e continuara sendo, enquanto existirem homens. Mars e Engels Capitalismo industrial e polarizacao social Todas as palavras so-portadoras de idéias, so plenas de significados. Estes, porém, alojados em seu interior, ndo se manifestam de pronto nem se revelam de modo imediato. E preciso procuré-los na dinamica do processo historico, descobri-los nas tramas constitutivas do real. Quanto ao Capilalisiia, termo de uso tao constante e de forma tao heterogénea, tal procura se torna indispensAvel, pois a propria diversidade de acep- ¢6es a ele atribuida é reveladora de que nao ha acordo sobre o seu signifi- cado. Na historiografi ccondémica ha pelo menos trés grandes ver- } tentes que devem ser examinadas, segundo Dobb!, quando se pretende i obter uma compreensao efetiva do capitalismo enquanto categoria his- torica. 7 A primeira é a proposta pelo economista alemao Werner Sombart (1863 - 1941), que partindo de uma concep¢ao idealista considera que o -capitalismo, como forma econémica, ¢_ do ‘‘espirito capitalista’’, o qual por sua vez constitui uma sintese “de es) c W preendedore racional. Assim, a génese do capitalismo e seu aparecimen- x _ fo no cenario histérico devem ser tributados ao desenvolvime af © dos de espirito que, inspirando a vida de toda uma época. -a, produzii am formas e relacdes econdmicas que-caracterizam o sistema capitalista. A “‘idéia fundamental’? de Sombart, conforme ele mesmo a definiu e des- creveu em sua obra Der Moderne Kapitalismus, 1928, era que “em épo- 1 Dobb (1983:5) assim se refere a essa questo: “Por terem exercido forte intluéncia so- bre a pesquisa ea interpretacdo histérica, trés significados separados airibuides & no- do de capitalismo surgem com destaque”’ cas diferentes tém reinado sempre atitudes econdmicas diferentes, e que é esse espirito que tem criado a forma que lhe corresponde e com isso uma organizacao econémica”’ (id.,ib.,p.6). A pergunta precedente, so- bre a génese do proprio espirito capitalista, nao obteve porém uma res- posta concludente, abrindo um debate de certa forma estéril uma vez que apoiado na tese, sem sustentacdo histérica, de que o protestantismo ha- via produzido o espirito capitalista. Nao obstante definida por Max We- ber e seus seguidores, tal tese nao reunia evidéncias hist6ricas que a rati- ficassem; ao contrario, era por elas demolida. Tanto os registros histéri- cos disponiveis como as opinides dos historiadores a respeito permitiam que se concluisse que o capitalismo, como uso aquisitivo do dinheiro — portanto n4o como sistema historico especial —, antecedia em muito a (WY Refor Reforma?, bergo do protestantismo. v\9 A segunda vertente descende historicamente da Escola Histérica Ale- ¥ zt ma, também chamada Escola Classica Alema, e acentua 0 carater de sis- Fy oy tema comercial do capitalismo, situando-o como uma forma de organi- . Zacdo da producdo que se move entre o mercado € 0 lucro. Nedse sentido, a énfase recai mais sobre 0 uso da moeda ¢ a Area do mercado, visualizando-se ai o capitalismo, fundamentalmente em sua dimensdo de categoria econémica. Na verdade, esta nao se separa da di- mensiio histérica, mas nessa vertente, que se detém primordialmente no carater comercial do sistema capitalista, em sua condicao de produgdo para. mercado, a histéria acaba por ficar relegada a um plano secunda- rig.e distante. Corre-se o risco, em conseqiiéncia, de se caminhar para uma abordagem tautoldgica e reducionista, em que a origem do capita- lismo est4 no préprio capitalismo, e seus estagios de crescimento econé- mico se relacionam t40-somente com as ampliacdes do mercado ou do volume de investimentos. Karl Biicher e Gustav von Schmoller, partida- rios da Escola Histérica, deixam claro em suas principais obras, respecti- vamente Industrial evolution (1893) e Principes d’economie politique (1890), que ‘‘o capitalismo é um sistema de atividade econémica domi- nado por um certo tipo de motivo, o motivo lucro” (id.,ib.,p.7). Segun- + do Bucher, 0 critério essencial para identificar o capitalismo é a ‘“‘relacao existente entre producdo e consumo de bens ou, para ser mais exato, a extensdo da rota percorrida pelos bens, ao passarem do produtor ao con- sumidor”’ (id.,ib.,p.6-7). Assim sendo, é pequena a contribuicdo ofere- cida por essa finhagem A busca de compreensdo do capitalismo como ca- tegoria de interpretacdo histérica, como chave heuristica para desvendar 2 Pirenne (1914:163) declara que ‘‘as fontes medievais situam a existéncia do capitalismo no século XII fora de qualquer divida"' (cf, Dobb, 1983:7), 18 a estrutura social e as distintas instituigdes econdmicas que lhe corres- pondem. ‘A terceira vertente, fundada sob 0 pensamento de Karl Marx, amplia de modo considerayel a questdo, pois parte Vos pressupostos. A es- séncia do capitalismo deixa de ser buscada na natureza das transagdes =~ monetdrias ou em seus fins lucrativos, o capital nao € mais encarado co- ante mo uma coisa e a modalidade de propriedade dos meios de producao ga-" nha novo sentido. A partir dos significados que Ihe sao atribuidos, ini- ©") 2 cialmente por Marx3, e que ‘configuram os. s fundamentos dessa terceira Bee o vertente, ofcapital’é uma 1a relacdo. sociale @ capitalismoum determinado ‘ va fe modo de prodtgao, marcado naovapenas ‘pela troca moneétaria, mas es- a sencialmente pela\ do: 1¢aio_do_processo_de produgao bel capital. O a conceito de modo de produgao, conforme uiilizado por Marx, abrangia tanto a natureza técnica da producao — por ele chamada de estagio de de- senvolvimento das forcas produtivas — como a maneira pela qual se defi- ei nia a propriedade dos meios de producao e as relacGes sociais entre as. +” i. pessoas, decorrentes de suas implicagdes com o processo de producdo. O ee et io modo de producdo-capitalista definia, assim, uma forma especifica e pe- ae culiar de relagdes sociais‘entre os homens, centre estes € as forgas produ- Ae tivas, relages mediatizadas pela posse privada dos meios de producao. 4’ ./ Definia também, como conseqiléncia, uma nova estrutura social, pois a b concentracdo da propriedade dos meios de produgao mas maos deuma o classe que representava apénas uma minoria da sociedade determinava o ~, sh aparecimento de uma outra classe, constituida por aqueles que nada ti- we e _-~nham, a nao ser a sua propria forga de trabalho. Nesse contexto, e aqui se acentua a enfase dessa terceira vertente, a sua marca peculiar, o capi- talismo como modo de producfo passa a-se assentar em relagdes sociais de_producao capitalista, marcadas fundamentalmente pela compra ¢ venda da forga de trabalho, tornada mercadoria como qualquer outra, pois essa é a base desse sistema que traz como exigéncias implicitas a existéncia de meios de produgdo sob a forma de mercadoria e 0 trabalho livre assalariado. Os significados atribuidos ao capitalismo por esta ver- tente, que faz das formulagdes de Marx os seus fundamentos, deixam { Nig claro que compreender_o capitalismo como categoria histérica implica xp" yy visualiz4-lo nfo apenas como um perfodo hist6rico ou uma ordem éco- 9 némica_distinta. E preciso considera-lo em sua condi¢ao de categoria y,1" hue hist6rica, social € econ6émica, como um modo de 'producao as associado a sor Peed i 3 Para efeito de precisdo, ¢ importante que se esclareca que a origem do termo capita . mo ndo se deve a Marx. Segundo 0 Diciondrio Oxford, seu surgimento data de 1854, quando foi empregado em um texto do romancista inglés William M. Trackeray (cf. Bottomore, 1988:51). um sistema de idéias e a uma fase histérica. O elemento crucial de tal concepcaotnao 8) pois, o carater comercial do capitalismo, ou o espirito capitalista empreendedor ¢ aventureiro ao mesmo tempo que racional € disciplinado, como 0 queria Sombart; éna verdade o modo de producéo capitalista e as relacdes sociais que Ihe sao préprias, determinando a rup- tyra entre o capital e o trabalho ¢ entre os homens, como membros de classes sociais, que passam a se diferenciar a partir da posse privada dos meios de produgao. sta é a concep¢4o predominantemente aceita e em uso na moderna histori 6 oriografia sécio-econdmica eé também aquela que oferece um maior rigor explicativo, inclusive no plano histérico, para essa complexa cate- goria que é 0 capitalismo. Assim sendo, constituird 0 patamar destas re- lexdes, cujo fim ultimo é descobrir os nexos de articulacdo entre o capi- alismo e o Servico Social. Desvendar a trajetéria histérica do capitalismo, a luz desta concep- o, para localizar.o momento e as condicdes do surgimento do capitalis- no industrial, em cuja esteira se gestou © Setvigo Social, implica incur- donar plo tcpo spender ria SaaS de forma a iden- ficar o estagio das forgas, produtivas e a organizacao social correspon- jente- especialmente no sistema de classes. A histdria do cz pitalismo éa historia dag cla: Tagses saniais: estas constituem o elemento fundamental pa- ra se compreender tanto 0 capitalismo em si mesmo considerado quanto a marcha. histérica_da_humanidade, profundamente relacionada com seus conflitos, antagonismos ¢ lutas, estas ultimas em especial, verdadei- ras forcas motrizes daquela marcha. A importancia desta lei da marcha da historia, sistematizada por Marx4, é tao crucial que Engels considerou que ela “‘tem para a histéria a mesma importancia que a lei da transfor- macdo da energia tem para as ciéncias naturais’?(1987: 12 € 13). Assim, para se atingir 0 objetivo buscado — compreensdo. do capita- lismo como categoria his Oricg e suas conexdes com o Servico. Social —, torna-se indispensAvel recuar no tempo e inquirir a historia, com ela dialogar. Tal dialogo hoje pode ser feito a partir das sociedades antigas e medievais, sobre as quais os avan¢os da pesquisa histérica langaram importantes luzes e colheram significativas evidéncias sobre sua organi- zagao social e econémica. Essas evidéncias permitem que os historiado- 4 Segundo a lei da marcha da histéria, “todas as lutas histbricas que se desenvolvem quer no dominio politico, religioso, fitosofico, quer em outro qualquer campo ideol6- pico sdo, na realidade, apenas a expresso mais ou menos clara de lutas entre classes Sociais, ¢ que a existéncia e, portanto, também os contlitos entre essas classes sda, por Sua ver, condicionados pelo grau de desenvolvimento de sua situacdo econ6mica, pelo eu modo de produgo e de troca, que é determinado pelo precedente” 20 1 res afirmem, com certa precisdo, que ja nessa época se realizavam tran- sagdes monetarias que visavam o lucro e que portanto, em wm sentido muito elastico do termo, podem ser consideradas transagGes de nature- za capitalista. Dessa forma, elas estariam presentes em praticamente to- das as épocas histéricas, tornando muito complexa a tarefa de precisar o momento de surgimento do capitalismo ou mesmo sua periodizagao histérica. Isso talvez constitua um fator explicativo para a heterogenei- dade de posicionamentos encontratos em relagdio a génese e aos princi- pais estagios de desenvolvimento do capitalismo. Sua propria complexi- dade intrinseca, enquanto categoria hist6rica, social e econdmica, impe- de que se construa uma historia genética linear, antes remetendo para 4 busca de conexées historicas que possam consistir em fatores explicati- vos do capitalismo na perspectiva em que estamos buscando: um modo de produc&o associado a um sistema de idéias e a uma fase histérica. Nesse contexto, em que o modo de produgdo e as relagdes sociais dele decorrentes tornam-se os indicativos do itinerario de busca, temos de considerar como inicio do periodo capitalista aquele em que se expres- sam de forma estavel as caracteristicas que marcam esse sistema. Dentre estas, é fundamental localizar aquela que represente 0 elemento defini- dor do capitalismo, seu tra¢o distintivo essencial: a posse privada dos meios de producdo por uma classe ¢ a exploracao da forca de trabalho daqueles que nao os detém. Esta separacao entre meios de produgao ¢ produtor e a consegiiente subordinacao direta deste ao dono do capital é que permitem que se instaure 0 ciclo de vida do capital, 9. seu processo de acumulacdo_primitiva. Nas sociedades medievais, com sua economia natural, as relacdes de troca eram simples, ¢ tal subordinagao nao ocorria de forma contratual, e muito menos compulsiva. Os séculos XIV e XY vao encontrar, porém, 0 feudalismo’ imerso em graves crises, de tim lado décorrentes da inten- cn difugdo das transagdes monetarias em seu interior ¢ de outro da de- sintegracdo da estrutura feudal em funcao do amadurecimento de suas proprias contradig6es internas. Com o desenvolvimento do capitalismo mercantil, sobretudo a partir da primeira metade do ste 1o XV; as rela- cOes de producdo no campo sao invadidas pela varidvel comercial, as trocas se tornam cada vez mais complexas, pois passam a ter como ob- jetivo a acymulacdo da riqueza eo lucro, A separacdo entre os campo- neses ea terra, entre o produtor ¢ os meios de producio, vai infiltrando- 5 Coerentes com a concepeao de capitalism que estamos adotando, consideramos 0 feudalismo um modo de produgio caracteristico da época medieval, que une estreita- mente autoridade e propriedade de terra e que se realiza mediante a condig20 de vassa- lagem e prestacdo de servigos ¢ rendas. expe TLCS 0 hy aio, , Pry ( et Waa o se sorrateiramente, fazendo-se acompanhar de seu napitual corolario, a divisdo social do trabalho. Jniciando-se com uma’pgimeira cuptura en- * otre fiagdo e tecelagem, torna-se a cada momento mais complexa, deter- minando novas e crescentes divisdes. Aquela economia natural da socie- 4 © dade medieval entra em compasso de descaracterizacao progressiva, sendo aceleradamente substituida por novas formas de troca, que acen- tuam a separacdo entre 0 proprietario € © produtor. O préspero dono \ da terra, da propriedade agricola, vai metamorfosear-se em comercian- te ou mercador, passando, em seguida, de comerciante a atacadista, fa- zendo do comércio exterior € do monopélio a base essecial de sua rique- za. Fixando-se dentro das muralhas das nascentes ¢ vigorosas cidades, os burgos® da época medieval, aos quais tinham livre acesso : .. desde que possuissem Jote ou propriedade em seu interior, os burgueses passam a controlar o mercado urbano, através de seus monopOlios. centros de poder se deslocam dos feudos para os burgos. Quanto mais ea _ Soaraieeenn-- aaee Tiqueza, maior € o seu poder politico, o que permite aos bur- acumulal gueses, manter um controle exclusivo so oyerno urbano, ja no se- i tule XV. A politica econdmica de controle de mercado €. altamente fa- vorecedora dos monopélios, e.assim os burgueses se tornam uma classe cada vez mais prospera. Unindo suas trabalhador, conservando seus salirios sempre baixos;(2°) garantir-lhe \ © acesso gos alimentos basicos, mantendo sob controle sta energia d&—~* trabalho}3?)/proporcionar condigdes minimas de subsisténcia ao exér- cito industrial de reserva. A queda dos salarios monetarios foi ura si- tuacgfio tipica de toda primeira metade do século XIX na Inglaterra, ‘| marcada também pela explosdio demografica da classe trabalhadora — processo que ja vinha instalando-se desde a segunda metade do século XVII — e pelo rapido crescimento de seu exército industrial de reserva. Nessas condigGes de oferta elastica de mao-de-obra e de uma forga de trabalho ainda desorganizada e heterogénea, 0 dominio do capital sobre © trabalho marcava nao sé as negociagdes como a propria vida dos tra- balhadores. Durante praticamente toda a primeira metade do século XIX, a burguesia utilizou de seu poder de classe para manipular livre- mente salarios e condigées de trabalho. Apoiando-se em um antigo di positivo legal, cujas origens remontavam a longinquas épocas-da hista- tia da humanidade — Estatuto dos Trabalhadores, de 1349, que proibia reclamagées de salario e de organizacao do processo de trabalho —, ex- cluia o trabalhador das decis6es sobre sua propria vida trabalhista. A atribuicdo do salario, de acordo com aquele Estatuto, era privativa da autoridade local e independente de qualquer negociagdo. Assim tam- bém 0 recrutamento da fora de trabalho, de acordo com o mesmo Es- tatuto, podia ser efeito de forma coercitiva, sendo proibido ao homem ou a mulher de até 60 anos de idade, nado-invalidos, sem meios de sus- tento proprios, recusar trabalho, qualquer que fosse 0 salario. A sim- ples recusa, denunciada as autoridades locais, implicava o recolhimento compulsério em Casa de Corregao, onde os trabalhos forgados e a res- tricdo alimentar eram as penas mals brandas, para todos, independente de idade. As alternativas do trabalhador empobrecido, em face das con- dig6es de trabalho que os donos do capital estabeleciam, eram som- brias: ou se rendia lei geral da acumulacdo capitalista, vendendo sua forca de trabalho a pregos de concorréncia cada vez mais vis, ou capitu- lava diante da draconiana legislagae urbana, tornando-se dependente do Estado e, no mesmo instante, declarado ‘‘ndo-cidadao”’, ou seja, in- dividuo destituido da cidadania econémica, da liberdade civil. A reali- dade trazida pelo capitalismo estava posta € imposta: ou o trabalhador se mercantilizava, assumindo a condicao de mercadoria util ao capital, Ne colsifieava, assumindo 0 estado de “coisa pitblica™” — res-publica a que correspondia a perda da cidadania, “ao-cidadania’”2!, A gravidade de tal situagdo, realidade dramatica do capitalismo, constituia um grande motivo de preocupagao dos trabalhadores fabris urbanos ingleses. A medida que se dava seu processo organizativo, suas grandes preocupagées foram transformando-se em bandeiras de luta: Entre tais bandeiras situava-se a revogacao da degradante Lei dos Po- begs. Com objetivos distintos, revelando mesmo a diversidade do ser s0- 21 Evocando aqui o pensamento de Hegel (1941, v.2: 90), dirtamos que a “ndo- cidadania” significa exatamente a consumacao do estado de alienagao, condigdo em que a pessoa ja ndo mais se pertence, pois ‘‘estranha asi mesma’’, € agora “0 ser do outro” 48 Scueio bee fie G - noe S p cial da burguesia e do proletariado, os capitalistas também a questiona- vam e desejayam sua reformulagao. Subordinando-a aos seus interes- ses, queriam transformar a Casa de Corregao em Casa de Trabalho, com atividade laborativa obrigatéria para todos os seus internos em troca da “hospedagem”’; queriam ainda maior mobilidade do trabalha- dor para atender as demandas do capital. Assim, enquanto os trabalha- dores lutavam pela revogacao de uma lei tao discriminatéria e pelo re- posicionamento das bases da assisténcia publica, eliminando de seu contexto a excluso da cidadania, os capitalistas queriam apenas dota- la de maior elasticidade para melhor manipula-la, O direito de associa- c&o conquistado pelos trabalhadores ingleses no inicio da terceira déca- da do.século XIX ampliou muito sua base associativa e Tortaleceu seus ovimentos reivindicatorios. A correlagdo de Forgas continuava porém & favorecer a burguesia, o que Ihe valeu a vitdria.na sesso parlamentar em que se discutiu a Lei dos Pobres, O Parlamento burgués de 1597 a sancionara, 0 de 1834 a reformulara, porém sempre em atendimento aos interesses da propria classe burguesa. Com a reformulacao da Lei, que nada perdeu de seu carater rigoroso e excludente, forarh criadas as Casas de Trabalho e instituidas as Caixas dos Pobres, para concessio de af gs atxilio semanal ou mensal, Tanto o acesso as Casas de Trabalho como 2 concessao de auxilio dependiam de rigoroso inquérito da vida pessoal Pd e familiar dos solicitantes. Assim a temida figura tudoriana do ‘‘inspe- for da Lei dos Pobres’’ voltava rediviva ao cenario do século XIX, cabendo-lhe a responsabilidade pela realizado do inquérito e pela fisca- lizagéio das condigées de vida daqueles que passavam a ser atendidos pe- lo sistema de assisténcia ptiblica. O _atendimento implicava assumir-se como dependente do pode ptiblico, e portanto preso a uma vida contro- lada por normas e regulamentos. Dessa forma, mesmo livrando-se, através de novo texto legal, de viver enquistados em um local especifico, os pobres nao conseguiam libertar-se do jugo do poder burgués. Embora vencidos pela burguesia através de seu sectario Parlamento, os trabalhadores ndio esmoreceram. Suas lutas ampliaram-se, ganhando cada vez mais a marca de lutas coletivas. A abolicao da Lei dos Pobres ,\ era uma causa tao importante quanto o salario legal, ou a jornada des** trabalho, integrando portanto a pauta de reivindicagdes dos trabalha- >” dores, inclusive durante o movimento cartista wee e Ocrescimento do movimento dos trabalhadores eurocidentais, em es- pecial na Inglaterra, produzia uma séria inquietacdo na burguesia, cujo grande objetivo era a consolidagao de uma estrutura econdmica unifica- da para toda a sociedade, estrutura abalada a cada momento em que os trabalhadores se manifestavam de modo coletivo. Assim foi durante o movimento luddita e durante a fase de maior expansio do cartismo, co- aw 49 , mo também na greve geral de 1842, especialmente. Na verdade eram apenas alguns prentincios do surto de desenvolvimento que iria marcar o movimento trabalhista nos anos finais da primeira metade do século XIX.,.Os movimentos insurrecionais de 1848 ocorridos na Franga eram um testemunho vivo do crescimento coletivo da forga operdria, de sua impulsiva combatividade; sobretudo eram a calorosa demonstracdo de sua luta contra a violéncia do capitalismo ¢ contra a sociedade burguesa constituida. As derrotas sofridas pelos trabalhadores naquele momento ofereceram, porém, 0 espaco necessario para que a burguesia avancasse ‘na consolidacdo de seu poder de classe. A fase de expansao da industrializacao capitalista, ndo sé na propria Europa mas ja se irradiando também para os demais continentes, criow condig6es favoraveis para que os donos do capital se unissem em torno da preservacdo de seu patrimGnio € de sua crescente expansao. O quartel de século que vai de 1850 a 1875 configurou um momento de grande ex- pansdo do poder burgués e, em. contrapartida, de refluxo do movimento operdrio em termos de manifestagoes coletivas envolvendo causas politi- cas mais amplas. As questGes sindicais e trabalhistas continuavam, po- ,_ rém, a animar o movimento operario que prosseguia em sua marcha, predominantemente sob 0 signo da pratica sindical. Assim nenhuma das medidas propostas pela legislacao trabalhista, ao longo desse periodo, significou uma concessdo do poder publico ou dos donés do capital. Td- das decorreram de Arduas e complexas lutas ¢ negociac&es dos trabalha- dores. Em plena vigéncia do surto expansionista da industrializagao ca pitalista, j4 mais amadurecidos em suas estratégias, conseguiram vito rias trabalhistas, que além de reduzir as violéncias do cotidiano ajuda- Jam a recompor as forcas para suas lutas. A regulamentagao da jornada de trabalho infantil e a extensdo da lei das dez horas para todos os opera- rios fabris ingleses, em 1850, foram campanhas vitoriosas. Na Franga, ja em 1848, como resultado da revolugao de fevereiro, a jornada de doze horas havia sido oficial e legalmente assegurada aos trabalhadores. Em 1850, tanto na Franga como na Inglaterra foram criados alguns Tribu- nais de Oficio para cuidar de causas trabalhistas, especialmente daquelas envolvendo menores. Em 1870, como resultado de uma prolongada luta, ~ Os trabalhadores ingleses conseguiram que 0 Estado assumisse a educa- (Ao basica elementar. Preocupados com esse incessante vigor dos traba- hadofes e tendo ainda presente na memoria a frase final do programa de sua associacéo internacional: ‘‘Proletarios de todo o mundo, uni-vos!”’ (Marx ¢ Engels, 1981: 681), que soava aos seus Ouvidos como uma verda- deira ameaca, os donos do capital tratavam de se unir em busca de estra- tégias para controlar o movimento operario. Oesforgo conjunto dos ca- | | 50 pt Sasetqe era al Ate pitalistas e do proprio Estado liberal burgués centrava-se no objetivo de dar ao seu poder politico uma estabilidade plena, tanto quanto possivel, tornando-o intocavel pelos trabalhadores e irreversivel historicamente22. Nesse sentido, além do movimento dos trabalhadores, ppeocupava a Bw burguesia, pelo que trazia de risco 4 ordem social por ela produzida, a x fas pee érescente onda de problemas sociais que acompanhara a expansao do ca- pitalismo. A classe trabalhadora crescera visivelmente, introduzindo uma nova geografia nos centros urbanos: a da pobreza, que se fazia acompanhar da geografia da fome e da generalizacdo da miséria. Obcecada por um pensamento fixo —o de expandir e consolidar 9 mo- do'burgés de produgdo, tornando-o irreversivel —, a burguesia se manti- nha sempre em busca de estratégias ¢ taticas que pudessem viabilizar a copisecugao de seus objetivos. A estrutura peirificada de sua consciéncia efguia-se como uma verdadeira muralha, através da qual terttava isolar- se e proteger-se dos inimeros problemas sociais produzidos pela expan- so do capitalismo, injusto regime que se nutre da energia que suga do trabalhador, da crescente exploragdo de sua forga de trabalho. Como “é mais dificil tornar fluidos os pensamentos fixos do que a existéncia sensivel”’ (Hegel, 1941,Vv.2: 27), a burguesia nao abria mao da luta pela preservacdo de seu poder hegeménico. Superdimensionando oO seu proprio poder de classe, considerava-se capaz de garantir néo so 0 fluxo regular do capital como tambem do processo histérico, cujo do- minio entendia concentrar em sua maos. ‘As derrotas sofridas pelos trabalhadores franceses, 0 esvaziamento do movimento cartista e as medidas legislativas que cerceavam a agdo politica da classe trabalhadora tornayam a burguesia confiante de que 0 recuo histérico dos trabalhadores era jrreversivel, nesse momento de ex- pansio capitalista. Sua légica imobilista, que a levava a operar apenas com 0 aparente, com a simples imediatidade, nao lhe permitia com- preender que nas derrotas dos trabalhadores nao se gestara um canto de requiem mas de aleluia, da mesma forma que no auge da expansiio capi- Lalista se gestavam as causas da Grande Depressao. Assim, sua preocu- pac&o maior naquele momento do final da primeira metade do século XIX era criar formas ¢ alternativas que permitissem ajustar aos interes- ses do capital tanto os movimentos dos trabalhadores com BO dos problemas sociais, Tal expansao deixava a burguesia muito apreen- siva, pois era um reirato vivo daquilo que, até mesmo como estratégia de autopreservacao do capitalismo, pretendia ocultar: a face da explo- 22 Para reatizagdio dessas reflexdes, buscamos subsidios nas obras de autores citados a0 fi- nal da seqdo anterior do presente capitulo, com destaque para: Abendroth, 1977; Dobb, 1983, Hobsbanm, 1982b; Moore Jr., 1973; Stone, 1978. a7 po lhiMlbrt eee i racéo, da opressio, da dominacao, da acumulagao da pobreza ¢ da ge- neralizacdo da miséria. Era crucial para o capitalismo manter sempre escondida, ou no minimo dissimulada, essa massacrante realidade por ele produzida, evitando que suas proptias contradig&es e antagonismos constituissem fatores propulsivos da organizag&o do proletariado e da estruturagdo de sua consciéncia de classe. De acordo com a moral bur- guesa, era preciso, a0 contrario, generalizar a imagem do capitalismo como um regime irreversivel, como uma ordem social justa e adequada, enfim como um ponto terminal da histéria da humanidade. Manter in- tocada a sociedade burguesa ¢ a ordem social por ela produzida era um verdadeiro imperativo para a burguesia. Para tanto tornava-se indis- pensavel recorrer a estratégias mais eficazes de controle social, capazes de conter o vigor das manifestagGes operdrias e a acelerada dissemina- edo da pobreza ¢ do conjunto de problemas a ela associados. Assim, com essas preocupac6es ¢ com tais objetivos a burguesia pro- curou tever as estratégicas em uso, tanto em relagdo ao movimento ope- rario quanto aos subprodutos que decorriam da expansdo capitalist. Apoiadas na experiéncia das sociedades pré-capitalistas, quando as re- lagdes sociais de producao eram ainda baseadas no trabalho servil, estruturando-se a partir da sujeigao do escravo ao senhor, do servo ao amo, do vassalo ao suserano, do plebeu ao nobre, as praticas assisten- ciais etam uma forma de ratificar essa sujei¢do, como uma condi¢ao ba- sica para perpetuar O regime servil. Nao obstante essa perpetuacdo da servidao sob novas formas constitutsse, ainda ao final da primeira me- tade do século XIX, importante objetivo dos donos do capital, isso nao podia ser assumido claramente, porque os trabalhadores, por forga de sua propria trajetéria, ja tinham uma consciéncia mais nitida de sua po- sigdo de classe e das contradigdes que permeavam suas relucdes com a burguesia. _ Por outro lado, enquanto trabalhador livre e assalariado, & especial- mente enquanto cidadao, © operario era possuidor de direitos que a propria Revolugdio Francesa proclamara, entre 03 quals se colocava des- deo direito a liberdade pessoal ea vida digna, até o direito a jgualdade e jsténcia, quando necessaria. Ocorre que tal sociedade, plena de contradicées, negava, na pratica, aquilo que anunciava no discurso. Sua propria organizacao em classes antag6nicas, apoiada em uma es trutura social produzida para garantir 0 dominio econdmico € politico da classe burguesa em relacho ao proletariado, era, por si s6, reveladora de uma atitude que afrontava os direitos de liberdade e de dignidade de vida. As crescentes dificuldades ¢ obstaculos criados para impedir a or- ganizacgado do proletariado ¢ a expresso coletiva de suas manifestagdes denunciavam, por sua vez, 0 desrespeito aos seus direitos politicos. Po- 52 A = gl yn ee AY oon us rém, para a consciéncia burguesa, uma consciéncia esvaziada de sentido social e distanciada da totalidade histérica, ‘‘talsa consciéncia”’; no di- zer de Lukacs (s.d.: 14) tais atitudes eram perfeitamente naturais € justi- ficdveis a partir de sua condigdo de classe que detinha em suas maos 0 poder politico e econdmico, Sua ‘‘falsa consciéncia”’ a impelia sempre a obscurecer 0 real, a vislumbrar o mundo a partir dos horizontes de sua propriedade, a encarar os fatos histéricos como submetidos @ leis natu- Tais , portanto, eternas. “Sua propria vida € uma tentativa mais ou me- nos consciente de falsificacdo e o vazio interior de sua existéncia se transforma em defesa de seu patrim6nio, apoiado em interesse egoista em estado bruto. (...) Sua falsa consciéncia se converte em falsidade de consciéncia.”” (Lukacs, s.d.:49, 54.) A “falsidade de consciéncia’’, que esta na base das agdes da burgue- sia, em suas raizes na alienaco23, elemento fundante da existencia so- cial no niundo Capitalista. Produzidd pela dinamica da propria socied ‘fe burguesa como um mecanismo de autopreservagdo, @ alienacdo torna-se uma determinacao objetiva da vida social no mundo de produ- cdo capitalista. Penetrando na consciéncia das pessoas, leva-as a ndo mais se reconhecerem nos resultados ou produtos de sua atividade, a se tornarem alheias, estranhas, alienadas, enfim, até mesmo a realidade onde vivem. - “OQ movimento da sociedade, que é seu proprio movimento, toma pa- ra eles a forma de um movimento das coisas, a cujo controle se subme- tem, ao invés de controla-lo”’ (Marx, 1982, I.1, v.1: 83). Separar o tra- balhador dos meios de producao, leva-lo a alienacdo de sua propria for- ga de trabalho, exercer um rigoroso controle sobre seus movimentos, sc- ja no interior da fabrica, seja no contexto Social mais amplo, eram, en- ire outros, os mecanismos usuais dos quais a burguesia se valia para consolidar o sewpoder de classe e fortalecer a malha alienante que ona f volvia a sociedade por ela engendrada. Assim, as novas formas de prati?9 ca social e suas estratégias operacionais, de acordo com os interesses Hurgueses, tinham de constituir mecanismos que dessem uma aura dele, gitimidade ordem social burgupsa, tornando-a inques Te, ent em 23.0 termo alienacdo vem do latim, “alienatione", significando “ato ou efeito de atic- nar(-se) (CF. Ferreira, 1975 p. 69). Considerado hoje umn dos conceitos ceniritiy de marxismo, foi desenvolvido por Marx come “conceito metafilosdfico, portanto reve lucionario”’ (Cf. Bottomore, 1988, p.5), significando “um fendmeno histérico geral, préprio de toda sociedade mazeada peia presenga da propriedade privada e/ou de uma intensa divisdo de trabalho, e que se expressa no fato de os individuos nao consegtti- rem se reconhecer ou se apropriar dos objetos ou das relacSes que eles mesmos criam, enquanto partes constitutivas do homem social” (Cf. Netto, 1981, prefcio de Carlos Nelson Coutinho), Ff conseqiténeia, aceitavel pelo proletariado. Portanto a busca de raciona- 8 lizacao da pratica social desejada pela burguesia tinha objetivos mult muito at claros, relacionando-se diretamente ao seu projeto hegemGnico de ‘do- > minio de classe. Racionalizar a assisténcia nessa fase final da primeira 1 metade do século XIX, quando a Europa era uma vasta republica ee rau i aSeP burguesa¥ apds as derrotas dos trabalhadores significava transformé-la em um instrumento auxiliar do processo de consolidagéo do modo de producdo capitalista, em uma ilusdo necessaria a eferna reproducao das ALS relacdes capitalistas de producao. ~~ Ao se aproximar dos agentes que vinham desenvolvendo as ac6es fi- _lantrépicas naquele momento, tendo em vista a racionalizagao da assis-~ Yéncia_e sua normatizacdo, @ burguesia queria apropriar-se apropriar-se da pratic pratica ‘social para submeté-la aos seus designios. Ao “‘despotismo da fabrica”’, como chamara Marx as condicdes que marcavam a vida do operario no interior da fabrica, a _burguesia queria somar o “‘despatismo social’’, utilizando-se para tanto da pratica social como uma “‘forea repressora gerada no interior das forcas produtivas’.> ~~C~*~<“CSs~S*~*S*S Duas eram as grandes tendéncias produzidas pelos economistas da poca, sob influéncia dos economistas classicos, especialmente Adam mith ¢ Ricardo, que podiam constituir referéncias basicas para orien- ar os posicionamentos da burguesia, quanto as formas de enfrenta- * mento da ‘‘questao social’’6: a Escola Humanitaria e a Filantropica. — “TX Escola Humanitaria é a que lastima o lado mau das relacdes de (eet ate E Seek oe yj Produgao atuais. Para tranqililidade de sua consciéncia, esforga-se para “S amenizar o mais possivel os contrastes reais; deplora sinceramente as 1,2 pentirias do proletariado e a desenfreada concorréncia entre os burgue- a3 '$ ses; aconselha os operarios a serem sobrios, trabalharem bem e€ terem © = poucos filhos; recomenda aos burgueses que moderem seu Furor na es: € an Huy sfera da producao. "A Escola Filantropica é a escola humanitaria aperfeigoada. Nega a necessidade dos antagonismos; quer converter todos os homens efibur= .% x \, "f 24 De acordo com a andilise marxiana (1987: 26-27): “A derrota dos insurretos de junho f Y Preparara e aplainara o terreno sobre o qual a reptblica burguesa podia fundar-se SAS crigir-se; mas demonstrara ao mesmo tempo que na Europa as quesides em foco nao 3° S eram apenas de repiiblica ou monarquia, Revelara que aqui republica burguesa signifi- = E.__ cava despotismo ilimitado de uma classe sobre outras™. 7 Vy (..)"*nas mesmas relagdes nas quais se dé o desenvolvimento das forgas produtivas, exis te também uma forga produtora de repressdo” (CI. Marx, 1969: 180) Por questo social entende-se o amplo especiro de problemas soviais que devorreram da instauragao € da expansao da indusirializagao capitalista. Fa “eapressdo conereta day SontradigSes enire 0 capital e 6 trabalho no mnverior do proceso de industrializagio capt talista” (CT. Cerqueira Filho, 1982; 58). 54 gueses e aplicar a teoria, desde que esta se diferencie da pratica ¢ nao contenha antagonismos. E evidente que na teoria é facil fazer_abstra- des das contradigdes que se encontram a cada momento na realidad Essa (goria equivaleria, entao, a realidade idealizada. Bm conseqiiéncia, os filantropos querem conservar as categorias que expressam as relagdes burguesas, porém sem 0 antagonismo que constitui a esséncia dessas ca- iegorias e que é inSepardvel elas.” (Marx, T969: 99.) Identificando-se mais claramente com o ideério da Escola Filantrépi- ca, uma vez que seu objetivo nao era produzir nenhuma alteragdo subs.) ..°% tancial na ordem social, mas apenas manté-la Sob seu rigoroso controle; WW afastando os antagonismos que a desestabilizavam, a burguesia encami- ~ Ne nhow seus esforgos de rac onalizacdo da assisténcia por essa_diregao, oh unindo-se nessa tarefa aos Seus historicos aliados: a Igréja € 0 Estado. « i Na Inglaterra, nessa época, nas decadas iniciais da segunda metade do século XIX, especialmente durante os anos de 1850 - 1860, em face de suas circunstancias histéricas e sociais, marcadas por uma verdadeira explosao da pobreza, membros da alta burguesia, ligados a Igreja Evan- gélica, incentivados pelas autoridades locais, haviam se unido em grupo com 0 objetivo de estudar a reforma do sistema de assisténcia publica inglés. Suas anacrGnicas estratégias Operacionais, construidas com base na experiénela pré-capitalista expressando-se através de reducionistas ages individuais, revelavam a cada momento, € de forma cada vez mais contundente, 4 sua impoténcia-fjante do verdadeiro turbilhao de mu- dangas provocadas pela Revolucao Industrial e pela industrializagao ca- pitalista, Autodenominando-se os “‘reformistas sociais’’, esses filantro- = pos, recomando 0 classice Tema medieval de assisténcia, ‘“Fazer bem 0“ aN bem’ (Richmond, 1950: XV, prefacio de Fernando da Silva Correia), ° pretendiam desenvolver formas de atendimento aos problemas sociais que incidiam sobre a numerosa classe trabalhadora e que repercutiam ha totalidade do processo social. O grande objetivg da classe dominahte Q —éarazao de seu irrestrito apoio aos reformistas — era que, atraves de SB sa acio, estes pudessem afastar as amieagas que pairavam sobre o hori- 7onie burgués e qite se expressavam pela incontida expansio da pobreza © pelas persistentes investicas cla classe trabalhadora. A esperanga bur- guesa era que a ado dos reformistas viesse'a constituir um significativo instrumento auxiliar do processo de consolidacao do modo de producao capitalista. Assim como havia cooptado o Estado burgués para promo- yer, ao longo do tempo, medidas politicas de protegao a0 Capital, a bur- guesia tratou de fortalecer_ sua alianca_com os Tilantrapas, transfor- ' mando-os em importantes agentes ideologicos, responsaveis pela socia- slizacdo do ‘‘modo capitalista de pensar”. *O modo capitalista de pro- ‘Gugao, na sua acepeao classica, € também um modo capitalista de pen- sar e deste ndo se separa. Enquanto modo de producio de idéias, mar tanto © senso comum quanto“o conhecimento cientifico. Detine a pro- hi & Leg? Ue 55 _dugdo de diferentes modalidades de idéias necessarias & produgaio de & % § j nercadorias em condig6es de exploracio capitalista, de coisificasto das 3 7 Srelagdes sociais € de desumanizacdo do homem. Nao se refere estrita- JQ, gmente ao modo como pensa 0 capitalista, mas ao modo de pensar neces- 3) YS sario a reprodugao do capitalismo, A reelaboracao de suas bases de sus- 3 Era para criar tais “bases de suistentacdo’’, capazes de garantir a irre- ¢ versibilidade do capitalismo, que a Dureuesia desejava utilizar a pratica 4__ social dos filantropos, entre outras estrategias. Utilizando-se da facili- —p dade do acess esses agentes 4 familia operaria, a classe dominante pretendia transforma-la em um expressivo veiculo de sujeigio do traba- Thador as exigéncias da sociedade burguesa constituida, em um instru- mento de desmobilizagao de suas relyindicacoes coletivas. Oeultando suas reais intengoes em um abstrato discurso humanitario, baseado na igualdade e na harmonia entre as classes, @ pratica social < eter jdeoldgicas e sociais”’ (Martins, 1980: XI - XI). Q OS burguesa procurava gerar a jlusdo de que havia, por parte da. sociedade, _ um real interesse pelas condigdes ae vi fa da familia Operaria, por seu salario, por suas Tondicdes de habitacao, saude, educacao. ‘Assim, aten- dendo as determinagées da buguesia, colocando-se a seu servico, OS TE- formistas, eles proprios membros de classe burguesa, proporcionaram fodas as condigdes para que & pratica social Tosse Pp fasmada de acordo com seus interesses ‘de classe, fazendo da face da pratica social aface da purguesia, que era, na verdade, a face;dominante ‘da sociedade européia durante toda a primeira metade do século XIX. Porém 0 capitalismo, cumprindg suas leis imanentes, € contendo em seu interior a sua propria negatividade, caminhava para uma de suas crises ciclicas, cujas primei- ras manifestag6es, durante @ década de 1860, prenunciavam sua intensi dade. A retragao do comércio e da industria, o aumento- dos salarios reais, o declinio das oportunidades de investimento, a expansio do exército proletario, ultrapassando a demanda de trabalho, a generaliza- cdo da pobreza, 0 desemprego e a fome eram os reveladores indicativos de que o movimento gestacional da Grande Depressao”7 estava em cur- so. A fusao dos sindicatos nacionais, entre as decadas de 1850 € 1860, trouxe um novo impulso para © movimento dos trabalhadores Curo- 27 Expresso consensual utilizada na historiografia sécio-econdatica pars caracterizar Expresed® nistoriea do capitalismo em escala mundial, €u)8 vigéneia se situou aproxi- madamente entre os anos de 1873 ¢ 1896, interrompida por pequenos surtos de recupe ragao em 1880 ¢ 1888, e continuando a se manifestar organicamemte até a década de 1980, quando surge 0 capitalismo monopolista, Por suas profundas repercussdes, é t+ ta como “um divisor de iguas entre dois estigios do eapitalismo: aquele inicial e vigo- oso, prospero € cheio de otimismo aventureiro, € 0 Posteri mais embaragado, besi- tante e, diriam alguns, mostrando ja as marcas de sensibilidade & decadéneia”” (Cf. Dobb, 1983: 214). 56 ae anzanee ee seenunens eee es ejoueates t { \ i peus, cuja presenga politica e social, para grande preocupagao da bur- guesia, ultrapassava os muros das fabricas, os umbrais dos sindicatos. Burguesia, Igreja ¢ Estado uniram-se em um compacto € reacionario bloco politico, tentando coibir as manifestagdes dos trabalhadores cu- rocidentais, impedir suas praticas de classe € abafar sua expressdo poli- tica e social. Na Inglaterra, 0 resultado material e concreto dessa uniao foi o surgimento da Sociedade de Organizagao da Caridade em Lon- dres, ent 1869, congregando os Teformistas sOCciais que passavam agora Wassumir almente, dante da sociedade Burguesa constituida, a res- ponsabilidade pela Tacionalizagao € pela normatizagao da pratica daas- } 2} & sistancia, Surgiam assim no cenario historico os primeiros assistentes Sociais, como agentes executores da pratica da assisténcia, social, ativi- “ade que se profissionalizou sob a denominagao de “‘Servico Social’’, acentuando seu cardter de pratica de prestagao de servicos. A origem do Servigo Social como profissdo tem a marca profunda do capitalismo € do conjunto de variaveis que 4 ele esto _subjacentes — alienacao, contradicao, antagonismo —, pois foi nesse vasto caudal que ale Toi engendrado e desenvolvido. ~ sy . uma profissdo que nasce articulada com um projeto dehegemoniado poder burgués, gestada sob 0 manto de uma grande contradi¢ao que im- pregnou suas entranhas, pois produzida pelo capitalismo industrial, nele imersa e com ele identificada ‘‘como a crianga no seio materno”’ (Hegel, 1978, § 405: 228), buscou afirmar-se historicamente — sua propria traje- téria o revela — como uma pratica, humanitéria, sancionada pelo Estado e protegida pela Igreja, como uma mistificada ilusdo de servir. ‘As condicées peculiares que determinaram o seu surgimento como fe- némeno historico, social e como ‘Alividade profissional, € €m que se pro- duziram seus primeiros modos de aparecer, marcaram oO Servico Social como uma criagao tipica do capitalismo, por ele engendrada, desenvolvi- da e colocada permanentemente a seu servigo, como uma importante es- & tratégia de controle socials, uma jlusdo29 necessaria para, juntamente OM MUITaS OUtTAS HSCS poréle criadas, garantir-Ihe a efetividade ea permanéncia historica. O Servico Social jd surge, portanto. no cenario higtOrico com unia identidade atribuida, que expressava urd sintese das praficas sociats ‘pré-capitalistas — repressoras € controlistas — e dos me- 28 A expresso controle social esta sondo utilizada na sua dimensio sociolégica ¢ notada- vo onte na acepcao que Ihe foi atribuida por Mannhein (1971:178) como “‘o conjunto dos meétodos pelos quais a sociedade influencia o comportamento humano, tendo em vista nvanter determinada ordem" 29 © termo ilusdo estd sendo empregado de acordo com seu sentido etimolégico como “fale sa aparéncia””.“Do latim illusio, onis, ilusdo significa engano dos sentidos ou da mente, que faz com que se tore uma coisa por outra, que se interprete erroneaments UE fato ou uma sensacdo; falsa aparéncia’”. (cf. Ferreira, 1975:747.) « canismos e estratégias produzidos pela classe dominante para garantir@ marcha expansionista € @ definitiva consolidagado do sistema capitalista Fetichizado misticamente como uma pratica, a servico da classe traba- Ihadora, o Servigo Social era poisna verdade um importante jnstrumento ‘da burguesia, quetratow deimediato de consolidar sua Tdentidade atribui- daafastando-o datrama das relagdes ‘sociais, do espaco social mais amplo fa luta de classes e das contradigGes que as engendram e sao por elaengen- dradas. "i ——Transitando contraditoriamente entre as demandas do capital ¢ tra- balho, e operando sempre com a identidade que lhe fora atribuida pelo capitalismo, 0 Servigo Social teve roubadas as possibilidades de cons- truir formas peculiares € quténticas de pratica social, expressando-S¢ sempre como um modo de aparecer tipico do capitalismo, em sua fase industrial. Assim, 0 conjunto de expresses que se tem como manifesta- odes especificas de sua pratica sio exteriorizagdes de sua identidade atri- puida. Envolvendo seus agentes na ilusdo de servir os destinatarios de sua pratica na ilusdo de que eram servidos, a classe dominante procura- va mascarar as reais jntengdes do sistema capitalista, impedindo que es~ te se tornasse transparente. Até mesmo por uma questao de estabilidade interna e de autopreservacao do regime, interessa, © muito, 4 classe do- minante manter obscurecidas as relagdes, processos & leis que so ine- rentes ao capitalismo. Como um regime de exploracao € dominagaéo permanentemente imposto, pois isto é uma determinagao € condigio de sua existéncia, o capitalismo se nutre desse mascaramento do real, Co- mo afirmava Lukacs (1974: 117) ao se deter na analise do regime capita- lista e das leis que o regem: Teste sistema de leis nd0 deve apenas impor- s¢ aos individuos: tera também que nao ser nunca ‘de um conhecimento integral e adequado, porque oconhecimento integral da totalidade asse- guraria a0 sujeito desse conhecimento uma tal posigdo de monopdélio que tanto pastaria para suprir a economia capitalista’’ ‘Tal qual um segredo dos deuses, a burguesia pretendia, portanto, ocultar dos trabalhadores a ldgica do capitalismo, assim como desejava gerar a ilusdo de que o mundo burgués era a estrutura definitiva € 0 ¢a- pitalismo, um momento privilegiado da historia, o momento em que“‘o feu desceu sobre a terra” (Hegel, 1941,v.2: 343). 58 CAPITULO 1 OS ARDIS DO CAPITALISMO ‘A consciéneia de classe nao ¢ a consciéncia psicologica de proletarios individuais, ou a consciéncia psicolégica (de massa) de seu conjunto, mas sim o sentido tornado consciente da situagao histérica de classe. Luckdies, 1974 Retratacdo do capitalismo e avanco do movimento operario O século XIX constitui sem divida nenhuma um importante marco na histéria do desenvolvimento do capitalismo industrial. Ao longo de suas cinco primeiras décadas, assistiu, principalmente na Europa Oci- dental, A consolidacdo das mudangas que vinham sendo introduzidas pelo capitalismo, desde o tiltimo quartel do século anterior. Como uma avalanche, g regime capitalista alterou tudo o que estava 4 sua volta, impondo a tessitura de uma nova. rede de relacées sociais, de um novo ritmo de vida e de trabalho. Revelou desde logo, que suas influéncias nao se restringiam apenas as relagGes comerciais ou ao processo indus- trial; atingiam, isto sim, a sociedade como um todo, E foi nesse ritmo de mudangas aceleradas que se iniciou a segunda metade do século, tra- zendo para o continente europeu, especialmente para sua por¢do oci- dental, uma fase de progresso econémico ¢ de expansdo comercial ja- mais vista. O capitalismo, porém, como um modo de produgao antago- nico, que trazem seu seio a marca da desigualdade, da posse privada de bens, da exploraciio da forga de trabalho, realizou sua marcha expan- sionista sob 0 signo da contradigao. Através de um sinuoso percurso, marcaco por crises Ciclicas, cuja jntensidade crescia 4 medida que se re- produziam. O capitalismo foi acentuando a dife enciagdo entre as clas- ses e fazendo do movi to d acai do capital 0 movimento _ furidamental da sociedade burguesa constituida. Nutrindo-se dessas cri- Ses Gue Sua propria dindmica interna pi ava, pois a elas sempre se sucediam surtos de reanimagao do mercado, de aquecimento dos inves- timentos, 0 capitalismo expandia-se, favorecendo 2 consolidacao do. poder da burguesia industrial. Havia nesse momento da segunda meta- de do sécalo NIX uma crescente oferta de trabalho, aliada a um signifi- cativo volume de investimentos e @ uma acelerada ex} ansio industrial, ee

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