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#música
#hits
#cultura-
popular
#gastronomia
#história
#cyberpunk
#artes-visuais

COMO FAZER
um viral

O FORRÓ
tá estourado!

01 MAI.
2011
www.overmundo.com.br
Carta dos Editores 01 MAI.
2011

Há cinco anos, o Overmundo foi lançado com uma pro- mim”, os grandes hits do verão? Ou quem poderia prever
posta inovadora. Um dos primeiros sites colaborativos do que uma dupla de axé mineira fosse parar nos trending to-
país, em que o próprio usuário produz o conteúdo, o Over- pics do twitter com um clipe em que faz uma coreografia
mundo deu espaço à cena cultural de um Brasil que o Bra- para o game Street Fighter?
sil não conhecia. E tornou visível a produção de artistas e
De repente, parece que um bando de anônimos saiu do chu-
grupos de música, cinema, artes plásticas, dança, literatura
veiro e resolveu cantar no YouTube. Sem querer, alguns
e outras artes, dos mais longínquos cantões do país, fora
destes caras acabaram se tornando famosos mundialmente.
do eixo Rio-São Paulo, tradicional reduto na cobertura dos
Outros já tinham uma carreira a zelar localmente, mas só se
cadernos culturais dos grandes jornais. Por compreender a
tornaram conhecidos fora de suas cidades por meio da in-
cultura brasileira em toda a sua diversidade, o Overmundo
ternet. Há ainda aqueles que, sem tanta pretensão, buscam
é capaz de construir um vasto panorama sobre a produção
apenas usar todas as ferramentas possíveis, virtuais e pre-
cultural e as manifestações populares em todo o Brasil, ca-
senciais, para criar um espaço onde não há espaço, como o
paz de alcançar, pela vastidão de sua teia colaborativa, o
pessoal de Alagoas que montou a Banquinha Popfuzz para
que nenhuma equipe de jornalistas, não importa seu tama-
comercializar CDs de grupos de música independente.
nho ou competência, jamais conseguiria.
Em busca de novos ritmos, vamos falar do coladinho. Pre-
Entre os planos descontinuados do site, estava a hipóte-
pare seus ouvidos para o ritmo que estourou nas festas e
se de que, em caso de não obter o sucesso almejado, o
rádios populares do Nordeste, uma mistura de forró, bre-
Overmundo teria sempre a possibilidade de se transformar
ga e sertanejo. Por sinal, em outra reportagem mostramos
em uma bela e bem apanhada revista eletrônica. Não foi
como Fortaleza se tornou a capital da indústria do forró
preciso – já que o site ganhou rapidamente adesão popular,
eletrônico, que há duas décadas não para de emplacar seus
e a quantidade de conteúdos publicados espontaneamente
hits, longe do domínio das gravadoras tradicionais.
por colaboradores diversos superou as mais otimistas ex-
pectativas já nas primeiras semanas. Mas, então, por que Mas nem só de música vive o Overmundo e a primeira
uma revista agora? edição da nossa revista digital tem uma enorme diversida-
de de temas, que vai das curiosidades históricas – com a
Com a consolidação do Overmundo como plataforma cola-
reportagem sobre a primeira presidente que o país já teve,
borativa, o volume de informação se tornou tão grande e se
a ex-ativista e presa política Bárbara de Alencar – aos re-
descobria tanta coisa nova, que o desafio maior passou a ser
quintes da gastronomia – com a discussão acalorada so-
como alcançar novos públicos. Públicos que inicialmente
bre as diferentes formas de comer açaí no Norte e no Sul.
não estariam interessados, não teriam tempo ou não teriam
Acompanhe também os coletivos que estão apresentando Instituto Overmundo
intimidade suficiente para desbravar aquele vasto novo
uma nova face do cinema contemporâneo, descubra a si- Conselho Diretor:
mundo da diversidade cultural brasileira. Como chegar a Hermano Vianna, Ronaldo Lemos, José
tuação crítica dos artistas que se dedicam a produzir car-
essas pessoas? Como compartilhar com elas estas várias Marcelo Zacchi
rancas no Nordeste e faça uma visita guiada a um templo
“descobertas”? Foi aí que uma “velha” mídia voltou à tona, Direção Executiva:
do consumo popular: o Mercadão de Madureira, no Rio Oona Castro
e chegamos à ideia da Revista Overmundo – uma revista
de Janeiro. Conheça ainda o ilustre artista que trazemos
planejada para compor um circuito integrado de comuni- Coordenação Editorial:
na nossa capa: Marcos Cardoso. A imagem estilizada da Viktor Chagas
cação colaborativa com o site. E, para nossa alegria, fomos
bandeira do Brasil, gentilmente cedida por Cardoso para Coordenação de Tecnologia:
agraciados pelo Prêmio Sesc Rio de Fomento à Cultura na
a galeria visual da Revista Overmundo, foi feita com em- Felipe Vaz
categoria novas mídias 2010, que viabilizou o desenvolvi-
balagens plásticas e materiais descartados como matéria- Coordenação de Economia da
mento de um aplicativo e das seis primeiras edições. Cultura:
-prima. E delicie-se com o Pequeno dicionário de arquéti- Olívia Bandeira
Mas qual é então a diferença entre o site e esta revista pos de massa, contos minimalistas de Fabio Fernandes, no
Editora-Chefe:
digital? De cara, você vai ver. Mais do que uma seleção espaço dedicado a textos literários inéditos. Cristiane Costa
dos melhores momentos em www.overmundo.com.br, a
A Revista Digital Overmundo segue sendo, ao lado do site, Editores Assistentes:
publicação em formato editorializado traz conteúdo novo Viktor Chagas e Inês Nin
parte de um projeto de comunicação colaborativa, cujo
e atualizado, links para fotos e vídeos e um visual comple- Editor de Arte:
principal objetivo é o de servir de canal de expressão, de-
tamente diferente, voltado para a leitura em dispositivos Christiano Menezes
bate e distribuição para a produção cultural dos brasileiros
móveis e e-readers. O espírito do Overmundo continua o Editor de Tecnologia:
e da cultura produzida por brasileiros mundo afora. Portan- Felipe Vaz
mesmo, como é possível conferir nesta primeira edição. O
to, se você quiser participar deste projeto, as janelas estão
bloco principal tem como tema a música brasileira. Não a Fotografias
abertas. Bem-vindo ao Overmundo! Alumbramento (Divulgação), Duas Mariola
música dos “consagrados”, mas aquela que ganha a boca (Divulgação), elbragon (@Flickr), Marcos
do povo por meio de vídeos do YouTube espalhados como Cardoso, Keetr (@Flickr), Pedro Félix,
Pisco del Gaiso, Popfuzz (Divulgação) e
um vírus nas mídias sociais. Quem não se divertiu com as Yago Gurjão.
Cristiane Costa
cenas do videoclipe caseiro “Minha mulher não deixa não” Colaboraram para esta edição:
Viktor Chagas
e sua versão pós-feminista “Minha mulher não manda em Fabio Fernandes (SP), Inês Nin (RJ), José
Carlos Brandão (SP), Luís Osete (BA),
Lygia Calil (MG), Marcelo Cabral (AL),
Marcos Cardoso (RJ), PauloZab (AP),
Pautas e sugestões de pautas para a Revista Overmundo podem ser publicadas diretamente no site Overmundo. A Pedro Rocha (CE), Romeu Martins (SC),
equipe editorial da revista está de olho nos conteúdos que circulam na rede. Quem sabe não é uma boa oportunidade Saulo Pereira (RJ), Thiago Camelo (RJ),
Vanessa Mendonça (PI) e muitos outros.
para você exercer a sua veia de repórter e contar pra gente o que de bacana acontece na cena por aí, na sua cidade? ;)
O projeto Revista Digital Overmundo é
resultado do Prêmio SESC Rio de Fomento
à Cultura na categoria Novas Mídias 2010.
[04] Carta de Apresentação

[08] Hits do verão 2011 chegam pela rede

[10] Como fazer um viral

[14] O Forró tá estourado

[22] O onipresente Paulynho Paixão

[30] Aqui tem Banquinha Popfuzz

[40] Canto pra quem?

[42] Overmundo em Pílulas

[44] Carrancas: a cara do São Francisco

[52] A nossa primeira presidente

[56] Vende-se...

[66] Entrevista com o Cyberpunk

[72] Pequeno Dicionário de Arquétipos de Massa

[76] Criações Coletivas

[84] Não ponham granola no meu açai...

[88] Um artista de plástico (Marcos Cardoso)

MAI. MAI.
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Hits do
verão 2011
chegam
pela rede
Ronaldo Lemos

Já ouviu falar das músicas “Minha mulher não O fenômeno mostra que os hits de hoje surgem
deixa, não” e “Minha mulher não manda em fora da mídia tradicional e decolam pela inter-
mim”? São os hits dos últimos meses. Tentei net. O YouTube é o quartel-general. Os hits não
contar quantas visitas cada uma tem no YouTu- são apenas músicas para “consumo” passivo.
be, mas é uma tarefa inglória. As músicas estão São motivo para novas recriações pela rede.
em tantos vídeos que, por alto, a primeira tem As pessoas regravam os sucessos, fazem suas
20 milhões, e a segunda, cerca de 15 milhões. próprias versões e inventam respostas, que, por
Vá lá ouvir que vale a pena: <http://bit.ly/hs- sua vez, se transformam em novos sucessos. É
CUeA> e <http://bit.ly/eFCCiJ>. como se a cultura do remix tivesse dominado
Essa é só a ponta do iceberg. A versão que totalmente esses circuitos. * Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 31 de janeiro de 2011.
bombou de “Minha mulher não deixa, não” foi Surgem novas formas de ganhar dinheiro e
postada pelo recifense DJ Sandro. A partir dela oportunidades para artistas e compositores, por
surgiram inúmeras versões, caseiras ou feitas exemplo. Muitos já perceberam isso e colocam
por profissionais (como os Aviões do Forró). nas músicas divulgadas pelo YouTube frases
Foi então que a banda de brega-rock de Ma- como “pode regravar à vontade”. Sabem que,
ceió Los Borrachos Enamorados resolveu pos- quanto mais gente fizer versões e quanto mais
tar uma resposta. Se a primeira dizia “vou não, elas forem executadas, mais dinheiro vão rece-
quero não, minha mulher não deixa, não”, a se- ber do site. As engrenagens do sucesso estão
gunda diz “vou sim, quero sim, minha mulher mudando e tem muita gente bailando em festas
não manda em mim”. Resultado: 12 milhões de animadas com hits da rede. Com a mulher dei-
visualizações no YouTube. xando ou não.

MAI.
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como fazer
bem branquelo e loiro. Para mim, é uma honra o que foi publicado na internet sobre a música,
interpretá-lo.” mas o volume foi tão grande que desistiu.
A primeira versão do vídeo foi apagada do Como dupla, a carreira dos mineiros – JP é de

um viral
YouTube. Na hora, houve rumores em sites es- Araxá (MG) e Mantena, de Uberlândia (MG)
pecializados em games de que a Capcom, fa- – começou há cinco anos, como dançarinos de
bricante do Street Fighter, tivesse tirado o clipe grupos de axé em Porto Seguro (BA). Depois
do ar por conter imagens do novo jogo em 3D, de dançarem muito na Bahia e em Minas, eles
que ainda nem foi lançado. “É só boato. Um se desencantaram da profissão de coreógrafos e
dos sites que entraram em contato conosco dis- começaram a cantar. “Dançarino é desvaloriza-
Em 24 horas, dupla mineira de axé foi para os Trending Topics do se que procurou a Capcom e eles disseram que do nos grupos. Eu cansei de ser desprezado e
Twitter com clipe em que criam dança para o game Street Fighter não foram eles. Nem escritório no Brasil eles parei de dançar. Aí, comecei a fazer bicos como
têm”, disse Mantena. A hipótese mais provável ajudante de eletricista para juntar um dinheiro
Lygia Calil
é de que algum hacker tenha entrado no usuário para gravar um CD com o Mantena”, lembra JP.
da dupla e apagado o vídeo. A estratégia deu certo: a dupla conseguiu gra-
“Pra você que gosta de navegar no site / Eu O jogo Street Fighter faz parte da nossa in- Na dúvida, gravaram outro, em um cenário var o primeiro CD, fez mil cópias e três clipes,
vou apresentar a dança do Street Fighter”. Es- fância. Jogávamos em fliperama. Eu não tinha diferente e com outros personagens figuran- sempre contando com ajuda de amigos. Antes de
tes versos nonsense dão início a um dos hits videogame em casa, então ia com os amigos do, além do Ryu e Ken do original <http://bit. lançarem o disco, a dupla teve a ideia de publi-
do Carnaval de 2011, da dupla mineira de axé para bares que tinham fliperama. Era aquela ly/ewBPQh>. “Vimos que muitos aficionados car os clipes no YouTube. Eles já tinham esse
Mantena e JP. Em 23 horas na rede, o vídeo molecada”, diz Mantena, que, na verdade, se pelo jogo não gostaram, dizem que desqua- costume e têm muitos vídeos de dança publica-
publicado no YouTube já tinha se tornado chama Fábio e é um dos cantores/dançarinos da lificamos o jogo. Mas quem pensa assim não dos. “Temos vídeos postados há cinco anos que
viral e atingiu os Trending Topics (assuntos dupla. Já JP, abreviatura de João Paulo, tinha entende que na verdade é uma homenagem. têm pouco mais de 4 mil acessos. Aí, de repente,
mais comentados) no Twitter, com 2 milhões em Ken, um dos personagens do jogo, um ídolo Ainda bem que muito mais gente gosta e acha o ‘Street Fighter’ estoura. E nem foi a faixa es-
e 700 mil tweets com o link do vídeo <http:// da infância. “Toda criança quer se identificar divertido”, afirmou JP, que lê todos os comen- colhida para ser a música de trabalho. Apostáva-
bit.ly/hgaL6H>. com algum personagem. Eu era ele, porque era tários no YouTube. Ele até tentou guardar tudo mos em outras”, ri Mantena.

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O CD “O Som Desgovernado” ainda não foi mente ardem e ficam vermelhos, os colegas de
lançado. Oito músicas do álbum, “Street Fi- esportes o apelidaram com o nome de um perso-
ghter” incluída, foram compostas pelo baiano nagem do desenho He-Man, um dos vilões, que
Maicon Tubarão, amigo dos mineiros. Outras tem grandes olhos coloridos. “Tinha mesmo que
três são regravações. “Todas as músicas são fazer sucesso com um personagem”, ironiza JP.
leves, não fazemos apelação. As crianças es- A dupla só fica chateada quando fala de casas
tão curtindo muito o ‘Street Fighter’. Todas noturnas e rádios de Uberlândia, onde moram,
as canções também têm refrões que grudam”, que fecharam as portas antes do sucesso do ví-
afirmou Mantena, em referência ao repetitivo deo. Durante a entrevista, uma das empresas
“Shoryuken” faz o Ken / Shoryuken faz Ryu / ligou no celular de Mantena querendo montar
Eu vou lhe apresentar o Guile dando alec fu”, uma parceria comercial. “Para você ver. Quan-
que após a primeira audição dificilmente sai da do gravamos a música que na época seria a de
cabeça, como é de praxe em sucessos do axé. trabalho, procurei uma rádio para quem já tinha
Quantas duplas de axé você conhece? Aposto trabalhado. Eles queriam me cobrar R$ 10 mil
que nenhuma. Normalmente, dupla é sertane- para tocar a minha música. Lógico que eu não
ja. A novidade já começa por aí. “No início, fi- paguei. Se tivesse R$ 10 mil, ia investir em qual-
camos meio assim, com medo, achando que o quer outra coisa. Agora, correm atrás”, reclama.
público pudesse não aceitar. Mas fomos surpre- Como já tinha contrato fechado para festas de
endidos”, revela JP. Até agora, segundo eles, a Carnaval em duas cidades, a dupla nem pôde
fama não rendeu dinheiro. “Esta parte ainda aumentar o cachê por causa do sucesso. “To-
estamos esperando [risos]. Temos fé que essa camos todas as noites em Centralina (MG) e
música faça a nossa carreira deslanchar para durante o dia em Caldas Novas (GO). Nas duas
valer. É bom começar assim, já com um traba- cidades, fizeram a maior propaganda, viramos
lho de sucesso”, diz JP. a atração principal. Também teve um convite
Por falta de dinheiro, a produção do clipe foi para o camarote de uma emissora de TV em
bem baratinha. Os quimonos usados pela dupla Salvador. Só dá certo se formos de helicóptero,
foram pechinchados em uma loja de bairro. “Um como o Ken no jogo”, ri JP.
quimono bom custa mais de R$ 800. O verme- Na história do “Street Fighter”, dois garotos
lho, que normalmente é usado em jiu-jitsu, é viajam o mundo para enfrentarem os maiores
mais de mil reais. Paguei R$ 60 em cada um. E lutadores, bancados por um deles (Ken), que
um detalhe: os dois eram brancos. Eu tingi um tem muito dinheiro e um helicóptero. “No jogo,
deles de vermelho em casa. Agora, tem empresa eles passeiam pelo mundo. Na vida real, nossa
procurando o nosso empresário para patrocinar música está passeando. Temos amigos que mo-
os quimonos. Chique, né?”, diverte-se Mantena, ram em outros países que já disseram que a mú-
que chegou a ser professor de capoeira em Uber- sica está bombando por lá. Nosso clipe foi capa
lândia. Já JP praticou judô por quatro anos. de 11 sites estrangeiros. Não poderíamos estar
O apelido Mantena vem da época da capoeira. mais felizes. Só falta agora o dinheiro igual ao
Por ter olhos grandes e irritadiços, que facil- do Ken para eu ser ele”, brinca JP.

JP é o de vermelho;
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Mantena, o de branco
o forró
tá estourado
Fortaleza é a capital de uma indústria fonográfica que surgiu
há duas décadas e não parou mais de emplacar seus hits

Pedro Rocha

Da rua Heróis do Acre nº 500, no bairro do Passaré, em Fortaleza, saíram os maiores sucessos
do mundo do forró nas últimas duas décadas. O prédio, que já abrigou a SomZoom, produtora
fundada no final da década de 1980 pioneira no mercado, hoje é o endereço da gigante A3 En-
tretenimento. Dona de bandas como Solteirões do Forró, Forró dos Plays, Forró do Muído e,
seu carro-chefe, Aviões do Forró, a A3 é uma espécie de sucessora do império construído por
Emanuel Gurgel, o empresário cearense que há aproximadamente 20 anos deu o pontapé inicial
para a criação da indústria do forró.
Depois de uma década de poderio, a SomZoom, empresa criada por Gurgel, teve seus negócios re-
duzidos drasticamente e sua sede transportada para uma velha garagem de ônibus. Enquanto isso,
a alguns quarteirões, a A3 comprou a antiga sede, estabelecendo ali o QG de uma máquina ex-
tremamente eficiente, comandada por alguns dos mais experientes nomes do mercado forrozeiro.

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Entre eles, Carlos Aristides, um jovem empre- “Se você prestar atenção, é muito difícil hoje No mais, foi concretizar sua aposta de fazer o ca fez tanto sentido quanto nas apresentações
sário de conversa fácil, especialista na seleção ver alguém dançando agarrado. As pessoas forró em todos os lugares, ao contrário do pre- dos Aviões do Forró e os reclames de Xand
do repertório das várias bandas da A3. gostam de tá ali, curtindo realmente, como se conceito que relacionava o estilo musical ao durante os shows.
fosse qualquer outro ritmo. Eu peguei o ritmo “povão”. Um bombardeio midiático com in- As gravações ao vivo reproduzem em profusão
“Eu fui criado dentro de festa, dentro de forró”,
dos Brasas, dei uma cadenciada nele, juntei serções do Mastruz com Leite compradas em os “alôs” que Xand manda durante as músicas,
diz Carlos em sua sala, na sede da empresa.
outras peças, como foi o metal, a guitarra, e rádios e em aparelhagens de som foi o plano. saudações que se destinam a pessoas jurídicas
Filho de Zequinha Aristides, veterano no mer-
comecei a mudar algumas levadas”, explica As composições de Rita de Cássia na voz da – de gráficas rápidas a autopeças, que nego-
cado forrozeiro e também um dos nomes im-
Carlos. “Ficou um negócio muito suingado, cantora Kátia Cilene entraram para o panteão ciam diretamente com o vocalista uma série de
portantes da A3, Carlinhos, como é chamado
entendeu? Quando juntei tudo, a essência foi dos clássicos do forró, ainda hoje são lembra- inserções em seus shows – ou físicas, ilustres
pelas pessoas do meio, começou cedo no ramo.
fantástica.” das por forrozeiros veteranos e animam festas conhecidas do cantor, como o onipresente Isa-
O pai, que entrou no mercado como dono de
como a Forró das Antigas, promovida periodi- ías CDs. Ao lado de Carlos Aristides, Isaías é
casas de show, seguiu a estratégia inevitável O pioneiro Emanuel Gurgel hoje mora em
camente pela própria SomZoom. o outro nome forte da A3 e carrega na alcunha
de mercado e estendeu seus braços por outros uma fazenda de 10 mil hectares em Pentecoste
ramos da cadeia produtiva, como a criação de (89 km de Fortaleza), patrimônio acumulado Hoje, o ex-funcionário de uma universidade, a ideia que provocou uma segunda revolução
bandas. A principal delas, a Caviar com Rapa- com as bandas de forró. O empresário deixou que também foi juiz de futebol, presidente do no mercado forrozeiro, responsável em grande
dura, ficou sob a administração de Carlinhos, a administração da SomZoom para os filhos, Ceará Sporting Clube e empresário do ramo parte pela substituição do proprietário do en-
enquanto se dedica ao último desafio de sua de confecções, dorme com o orgulho de ter dereço na rua Heróis do Acre.
então com 17 anos.
vida: provar que fazenda é um empreendimen- feito um dos maiores estouros que o merca- Foi Isaías quem sugeriu a estratégia que se-
Com apurado tino para as preferências do pú- do fonográfico da região já viu. “Eu sempre
to sustentável. Mesmo assim, não abre mão ria o pulo do gato da A3. Em 2003, quando
blico, Carlos partiu para seus próprios inves- tratei música como mercadoria de prateleira.
das decisões mais importantes sobre o Mastruz os Aviões chegaram ao mercado, a internet
timentos logo depois, com a criação da banda Música é uma mercadoria. Eu vou provar para
com Leite, a banda que deu início a tudo. “Só começava a dar uma ideia de como o trans-
Ferro na Boneca e a sociedade em outra casa você. Toca o Mastruz com Leite na rádio, eu
quem tira e bota funcionário no Mastruz é o formaria, mas ainda não ditava as regras. Um
de show, o Cantinho do Céu. Enquanto isso, vou vender show, direito autoral, vou vender
meu pai”, diz Rebeca, 23, uma das filhas que paradoxo confundia os caminhos do sucesso.
formatava em sua cabeça o que seria um dos fonograma, vou fazer mais shows. A música
trabalham hoje na empresa. As rádios só tocavam as bandas das gravado-
maiores estouros do mercado forrozeiro. Uma em si é um comercial. Mas a maior sacada de ras, ao passo que o preço (em média, R$ 30),
banda que conjugasse elementos pinçados com No final da década de 1980, no tempo em que todas elas é botar o nome da banda no meio da inviabilizava a compra do CD pelo público.
a precisão técnica de quem, além de empresá- as ecléticas bandas de baile e as aparelhagens música”, diz Emanuel Gurgel, que atualmente “As bandas de forró, antigamente, quando en-
rio, adorava mexer com aparelhagem de som e de som mecânico dominavam o mercado do aposta no briquet, bloco cilíndrico e composto travam nas gravadoras, em vez de crescer, ca-
conhecia como poucos a sonoridade do forró. entretenimento em Fortaleza, Gurgel percebeu por resíduos de madeira, como o novo hit, efi- íam”, lembra Carlos.
que as pessoas gostavam muito de dançar na ciente e ecológico, da produção de energia na
O primeiro show deste projeto aconteceu em “Nós vamos divulgar o nosso material na rua,
meia-hora reservada ao forró nas festas em que atividade agrícola.
2003, no próprio Cantinho do Céu, e contou diretamente nas pessoas, e a rádio vai ser força-
frequentava. Decidiu juntar os instrumentos
com a assiduidade do público do espaço para da a tocar”, vaticinou Isaías. A estratégia fazia
eletrificados e, a contragosto dos próprios mú- O pulo do gato
se alavancar. Carlos conta que o impacto de- sentido. Com o barateamento da mídia virgem
sicos, formou uma banda dedicada ao estilo.
pois da apresentação fez os forrozeiros deixa- “Bora Brandãozim, Dudu Confiança, Rosa e as facilidades na reprodução, a distribuição
rem o local se perguntando: “Rapaz, o que é Um verdadeiro “império do forró” foi constru- Almir, Batata! Bora Deco Doido!”, instiga do CD como estratégia de marketing era um
isso, que projeto é esse, que banda é essa?”. ído a partir da banda que ainda leva o nome da no palco Xand Avião, vocalista dos Aviões do caminho possível. “Quando a gente lançou o
A receita havia dado certo. Uma desacelera- mistura medicinal, inspirado em um time de Forró. O comercial de Emanuel Gurgel, que CD, deu uma semana, as rádios ligaram atrás
da na batida do vanerão – ritmo gaúcho que handebol de praia homônimo. “Isso dá direiti- consistia no vocalista aproveitar algum inter- das músicas”, lembra Carlos. Diante da enxur-
estava estourado na época com a banda Bra- nho pra uma banda de forró”, pensou Emanuel, valo da música para sapecar o nome da banda rada de pedidos para uma música que sequer
sas do Forró –, a substituição da sanfona como então professor de educação física. Acrescida em execução, não só se estabeleceu como uma integrava a playlist da rádio, as estações eram
instrumento principal por um maior destaque à de contrabaixo, guitarra e teclado, a receita das maiores marcas da banda (inclusive para obrigadas a correr atrás e atender a demanda.
bateria e aos metais e a importação do baixo do sertaneja se transformou no símbolo de uma se diferenciar de repertórios siameses), como “A gente partiu na frente e hoje é uma coisa
pagode do Harmonia do Samba haviam dado revolução no tradicional ritmo nordestino e na se radicalizou ao longo desses anos. A afirma- que está sendo copiada por todos, pelo serta-
forma ao Aviões do Forró. indústria fonográfica. ção de que a música é um comercial em si nun- nejo, pelo axé...”, orgulha-se.

MAI. MAI.
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Era o início das transformações que a internet postadas nos tópicos destinados às sugestões
e as novas mídias iriam engendrar no mercado de repertório nas comunidades das bandas no
fonográfico, encontrando na indústria popu- Orkut. O público, por sinal, é um dos grandes
lar e massiva do forró uma de suas melhores responsáveis por essa incessante atualização
respostas, mesmo que Carlos ainda considere de informações e registros em áudio e vídeo.
parcos os rearranjos do mercado. “A internet É prática comum entre os que acompanham o
mudou completamente. Até hoje ninguém do meio a postagem e o download da gravação do
nosso segmento conseguiu realmente se ade- show que a banda de sua predileção fez em al-
quar a ela. É um negócio muito rápido”. O rit- guma cidade do interior do país ou mesmo de
mo passou a ser determinado pela velocidade uma apresentação ao lado da sua casa na qual
da rede mundial de computadores, que afetou, você infelizmente não pode comparecer.
entre outros fatores, a quantidade de discos “Hoje eu acompanho muito mais a internet do
lançados no ano e, consequentemente, a reno- que as próprias festas”, revela Carlos. Em seu
vação do repertório. escritório, revezando-se entre seus iMac, iPho-
ne e iPad, Carlos capta as frequências sísmicas
Concorrência dos chineses
do que pode abalar o mercado nas próximas
O império criado por Emanuel Gurgel com a semanas. Atento às mais pedidas das rádios do
SomZoom, numa cadeia produtiva que con- Brasil e do mundo nos diversos estilos, consul-
centrava desde editora para registrar as músi- tando as sugestões nas comunidades das redes
cas até uma centena de rádios, passando por sociais, ele ainda recebe periodicamente cada
casas de shows e dezenas de bandas, ruiu no um dos membros de seu elenco permanente de
fim da década de 1990 defronte um novo e in- compositores, a exemplo do potiguar Dorgival
contornável fato: a pirataria. Quando o empre- Dantas, autor de alguns dos maiores sucessos
sário percebeu que seus lançamentos estavam já gravados pelos Aviões do Forró, cantor que
em poucos dias à venda em versões piratas na ganhou projeção com o sucesso da banda de
Feira de Caruaru, concluiu que a voracidade forró e que hoje é um dos compositores que
replicante dos “chineses” iria engolir seu patri- mais arrecadam com direitos autorais no país.
mônio em poucos anos. O maior vendedor de
No intervalo dessas atividades, Carlos arran-
CDs da região, com cifras que chegavam a 300
ja tempo para receber músicos e compositores
mil cópias vendidas por mês, ainda tentou ace-
desconhecidos, empenhados na árdua ativida-
lerar o ritmo dos lançamentos, mas sucumbiu de do garimpo midiático, tomados pela espe-
à velocidade da pirataria, reduziu sua folha de rança na ascensão repentina do sucesso, que
pagamento de mais de 500 funcionários para lança principiantes a alturas cada vez mais
uma centena deles e desmantelou boa parte da inesperadas. Na semana anterior a nossa con-
estrutura da outrora toda poderosa do mercado. versa, uma delas havia adentrado sua sala, tra-
Antes, o normal era se lançar um CD por ano. zendo a mão o que prometia ser a nova pedra
Nada mais obsoleto. Hoje, segundo Carlos filosofal do forró mundial. Fatinha Marques
Aristides, são no mínimo quatro discos, um apresentou a letra de “Bad Boy do Carrão” e
a cada três meses, cada qual com 15 músicas o clipe, já disponível no YouTube, com mais
inéditas em média. Isso explica o incansável de 30 mil visualizações. Carlos não gostou da
anúncio de repertório novo na divulgação de música, dispensou Fatinha, mas sabe o risco
shows, das constantes gravações de novos CDs que está correndo. Ao ser perguntado sobre um
ao vivo, assim como as centenas de mensagens possível sucesso da cantora, natural de Crateús

MAI. MAI.
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(350 km de Fortaleza), ele responde: “Sei lá, se encontrou no mercado produto similar ao meretrício, de cabaré, de gafieira.” E, de olho em regiões onde antes pouco se tocava. Em
rapaz, depois da internet...” Forró na Veia. O mais próximo a que se che- na evolução que o forró percorreu nos últimos fevereiro, a Garota Safada aportou novamente
gou foi o Forró do Muído, com duas vocalis- anos, dispara: “É tudo uma cópia. Até o que eu no Faustão e os Aviões do Forró desembarca-
O preço do sucesso tas, as irmãs Simaria e Simone. A banda faz fiz foi cópia. Cópia de João Bandeia e Paulo ram na Europa para shows em Portugal, Suíça
“O forró hoje passou a ser consumido mais li- parte do casting da A3 Entretenimento, com Ney. Pra você ter uma ideia, Brasas do Forró é e Holanda.
geiro. Uma musica é sucesso hoje, daqui a um grande inserção no mercado local, uma das uma cópia de Novinho da Paraíba, que por sua Nem assim Emanuel Gurgel se deixa impressio-
mês não é mais. Uma música que poderia ter três maiores bandas do momento, ao lado dos vez é uma cópia do Rio Grande do Sul, que nar. Sentando em um banco na varanda de sua
seis meses de vida útil, hoje só tem um. Tem Aviões do Forró e Garota Safada. A assesso- é o vanerão. Hoje o que os Aviões do Forró casa, com vista para seus empregados no mane-
muito material no meio da rua, ela toca mui- ra de imprensa da banda revela, por exemplo, tocam é um vanerão. Na realidade, foi apro- jo da fazenda, já longe da lida com o mercado
que os dias que antecedem as gravações dos veitado o ritmo de muitos lugares. O Mastruz,
to e cansa”, comenta Karlúcio Lima, 40, em- musical, cultivando cabelos longos e barba, num
programas da TV Diário, emissora local, sua por exemplo, transformou os carimbós do Pin-
presário com cerca de 20 anos de experiência. visual próximo ao de um headbanger, ele fala
caixa de e-mail é tomada por mensagens com duca tudo em forró.”
O empresário, que começou frequentando as sobre o sucesso de uma indústria que pratica-
chantagens sentimentais, fãs dizendo que es-
aparelhagens de som que prefiguraram a onda As referências são intermináveis. Fato é que mente inventou: “Foi até menos do que eu espe-
tão tomando Rivotril, que a vida não faz mais
do forró eletrônico e já foi dono de bandas o forró ganha cada vez mais espaço na mídia rava. Eu imaginava que ia invadir o mundo com
sentido, mas que as coisas mudariam de feição
como a Canários do Reino, lamenta um tan- nacional, com participação em trilhas sonoras o Mastruz. O forró não invadiu ainda o mundo,
caso ela conseguisse um convite para a gra-
to essa velocidade e queixa-se das estratégias de novela, em programas de TV e com shows porque ele ainda é menosprezado”.
vação do Forrobodó, ou do João Inácio Show,
que deixaram o mercado cada vez mais refém
ou do Programa Ênio Carlos, ou do Sábado
do capital.
Alegre, ou de outro dos tantos programas da
A distribuição de CDs, na opinião de Karlú- TV Diário, um dos principais braços da rede
cio, fez com que as bandas pequenas fossem de divulgação do forró.
engolidas pelas maiores, que gravam músicas
As diferentes roupagens das bandas são uma
alheias nos shows ao vivo e distribuem milha-
das estratégias para atrair os mais diversos
res de CDs, pagando a posteriori algum valor
públicos, como é o caso das quatro principais
cobrado pelo uso indevido da composição, de
bandas da A3. Uma pessoa menos familiariza-
qualquer forma irrisório se comparado ao fa-
da pode ingenuamente confundir o Forró dos
turado. “Daqui que o pessoal que fez a músi-
Plays com uma banda de axé ou encontrar nos
ca corra atrás, a banda já estourou e ganhou o
Solteirões do Forró justamente aquele levada
dinheiro todo”, fala Karlúcio. Calcula-se que
do vanerão que Carlos Aristides desacelerou
uma banda estourada no mercado forrozeiro
para formar o estilo dos Aviões. “Hoje não
chegue a faturar R$ 2 milhões por mês.
existe mais o ritmo forró, o ritmo axé... Hoje é
Dono da banda Forró na Veia atualmente, Kar- a mesma música com levadas diferentes”, con-
lúcio investe numa receita diferente para gal- clui Carlos. Não por acaso, hits como “Fugi-
gar o topo das paradas: uma banda com três vo- dinha”, de Michel Teló, estão hoje em pratica-
calistas femininas. “É o produto mais diferente mente todos os repertórios de forró, ou que há
que existe no Nordeste, porque é uma banda muito tempo as versões traduzidas de músicas
que não tem cantor, são três mulheres cantan- internacionais são um dos caminhos mais per-
do e dançando em cima do palco. Três mulhe- corridos até as “Dez Mais” das rádios no país.
res bonitas, jovens e que fazem a diferença. A
Emanuel Gurgel lembra que o primeiro CD
minha ideia foi fazer um produto totalmente
do Mastruz com Leite foi feito com música
diferente. Se der certo, daqui que esse pessoal
sertaneja: “Não tinha compositor pra gravar,
grande faça o mesmo, vai custar”, aposta. não tinha música. Todo mundo tinha vergo-
De fato, na pesquisa para esta reportagem não nha de forró. Era música de favela, de baixo

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o onipresente
Rei do Coladinho Em shows, festas particulares, carros de som,
propagandas em rádio e até como toques de te-
lefone celular. Hoje, a música de Francisco de
Paula Moura parece onipresente. Chamando
pelas bandas de forró mais populares do país.
Nesse segmento é comum que os repertórios
das bandas “coincidam” já que a maior parte
dos grupos de forró executa hits “da concor-
O piauiense Paulynho Paixão virou febre depois de assim, pelo nome de batismo, nem parece um rência” em seus shows. Para isso, é preciso que
astro da música romântica. Francisco de Paula a música em questão seja um grande sucesso.
estourar nos forrós e rádios populares do Nordeste Moura é o cantor e compositor Paulynho Pai- E, como se diz no jargão musical, Paulynho
com um misto de forró, brega e sertanejo xão, o “Rei do Coladinho”. Paixão está “estourado”.
Febre no Nordeste, suas canções estão entre Menino criado na roça, mais precisamente na
Vanessa Mendonça as mais pedidas nas rádios e são tocadas hoje Fazenda São Luís, zona rural de São Miguel

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da Baixa Grande, interior do Piauí – a 138 km dia para tocar. Ninguém dava muita confian- nome do ainda Paulinho – sem “y”. O incomum Paulo. “Voltei para recarregar as baterias, dar
da capital Teresina, Francisco passou a infân- ça, mas deixavam. Fui tomando gosto”, conta. na história do menino de São Miguel da Baixa uma parada. Havia acabado o namoro, o pro-
cia escutando programas de música sertaneja Nessas brincadeiras despretensiosas teve iní- Grande foi o teste, feito por telefone por um jeto. Vim ver minha mãe, que mora até hoje
em um radinho de pilha. Os populares Alvo- cio a ideia fixa de Francisco de Paula Moura se produtor musical paraibano radicado no Sudes- em São Miguel da Baixa Grande [no Piauí]”,
rada Sertaneja, na Rádio Nacional de Brasí- tornar músico profissional. te. Aprovado, recebeu passagens de avião para conta.
lia, e Programa do Roque Moreira, na Rádio seguir de Fortaleza a São Paulo.
Pioneira, de Teresina, eram suas companhias Em busca do sonho
Sem nunca ter viajado em aeronave alguma, o
O “y”
mais frequentes durante o trabalho no campo e Paulynho Paixão compara bastante sua traje- cantor e compositor superou o medo e embar- Naquele momento, já início da década de
também nas horas vagas. tória à do milionário astro do sertanejo Zezé cou naquilo que à época era sinônimo de suces- 2000, a história se repete: um amigo conhe-
“Sem entender nada de música eu já gostava. di Camargo. Ambos são filhos de agricultores, so, afinal, “andar de avião não era para qualquer cido no meio musical o convida para integrar
Como as crianças hoje gostam da nossa músi- criados na roça, apaixonados por música desde um”. Prenúncio de que São Paulo lhe renderia um projeto em Tocantins. Paulynho não perde
ca, eu gostava de Zezé di Camargo e Luciano. cedo, donos de vozes agudas e determinados. bons frutos? Paulynho achava que sim. tempo e muda-se para Palmas. É em Tocantins
Ouvia muito sertanejo enquanto tirava leite que Paulinho se torna Paulynho, com “y”.
Ainda adolescente, Paulynho mudou-se com O piauiense tornou-se vocalista da banda
de vaca. Coisa bem fazenda mesmo”, lembra seus pais para a capital Teresina. A família Swyng do Nordeste, que tocava em uma casa Contratado para cantar em uma casa de sho-
Paulynho Paixão, que não se faz de modes- buscava melhores condições de vida e a opor- de shows para nordestinos no bairro, tradicio- ws de Palmas, o piauiense recebe um calote.
to ao comparar a sua trajetória de vida à de tunidade de os seis filhos continuarem os es- nalmente japonês, da Liberdade. “Foi quando Desesperado, pede a ajuda a Deus, martiriza-
seu ídolo Zezé. “Na roça não se tem muita tudos. “Toda criança que nasce no mato tem conheci a Silmara [hoje vocalista da banda -se por “não conseguir vencer” na música. Em
diversão. As poucas vizinhas que a gente ti- aquela vontade de ir para a cidade”. Não de- Forró do Muído e uma das principais responsá- meio a suas orações, um anel de metal com a
nha queriam saber dos boyzinhos da cidade. morou muito tempo e Paulynho foi para For- veis pelo “estouro” de Paulynho. Cantávamos inscrição “JESUS”, em letras maiúsculas, bate
Ouvir e fazer música eram minhas grandes taleza, no Ceará, já com o plano de viver de das 11h da noite às 4h da manhã. Eu morava no sapato de Paulynho. Bastante religioso, o
diversões”, conta. música em mente. em Santo André, no camarim de outra casa de cantor, já sem muitas esperanças, coloca o anel
Paulynho começou a compor ainda criança. shows do Chico, dono da banda. Pegava ôni- no dedo anelar da mão esquerda, de onde nun-
Em 1992 o destino uniu mais uma vez as tra-
Nunca havia estudado música, não sabia tocar bus, metrô, trem e trolley para chegar”, relata. ca mais o retirou.
jetórias de Paulynho e seu ídolo. Em um pro-
qualquer instrumento, não conhecia notas mu- grama de calouros da TVC, emissora de TV Durante os quatro anos em que esteve na ban- Paulynho encara a passagem como um sinal
sicais ou cifras. Apenas escrevia versos rima- de Fortaleza, o piauiense apresentou-se na da, Paulynho nunca deixou de compor. Mas de que momentos prósperos estavam por vir.
dos inspirados no dia a dia. A melodia surgia presença de José Graião, produtor musical que não conseguia convencer seu empresário a dei- Como tudo em sua vida rende uma música,
“naturalmente”. “Era de ouvido, coisa de dom tinha em seu casting a dupla Zezé di Camargo xá-lo cantar músicas próprias nos shows. “Saí Paulynho escreveu “Salvador”, que conta a
mesmo. Ninguém explica; a gente atribui isso a e Luciano. da banda. Silmara e a irmã dela, Simone, foram história de um cantor que, após muitas dificul-
Deus”, conta o compositor de aproximadamen- tocar com Frank Aguiar, piauiense que já fazia dades, arrasta multidões. “Depois eu peguei
“Fui para Fortaleza estudar e ajudar na casa
te mil canções, segundo suas próprias contas. sucesso como cantor de forró, naquele estilo um cartaz da época de Delma & Paulinho e vi
de um pessoal que conheci em Teresina. Eles
Romântico nato, Paulynho afirma que 90% de ‘cantor-tecladista’ que Paulynho admirava em só o lado direito. Li, de cima para baixo ‘Pau-
tinham contatos e eu comecei a conviver com
suas letras falam de amor. “As meninas tinham São Miguel da Baixa Grande. Gravei tanto CD linho Paixão’. Foi aí que virei Paulynho – com
músicos. Sempre fui muito tímido, mas eu sa-
diários. Eu fazia músicas contando histórias da que nem lembro mais. Copiava e não lançava. o ‘y’ para chamar atenção – Paixão”, lembra.
bia que era naquele momento ou nunca”, diz,
vida e acho que por isso as pessoas se identifi- com a propriedade de quem sofreu muito até se Aí entrei em outro grupo, chamado ‘Delma & Pouco tempo depois Silmara, que tocou com
cam. Cada fora e cada sim que eu levei inspi- dar bem no meio musical. Paulinho – Forró Paixão’”, lembra o cantor, Paulynho na banda Swyng do Nordeste, foi
rou muito essa coisa do romance, do amor nas que até então continuava “Paulinho”, sem “y”. convidada pelo grupo A3 Entretenimento (o
Mas o encontro com Graião não foi o divisor
minhas músicas”, confessa. O projeto profissional com Delma logo virou mesmo que agencia a Aviões do Forró, mais
de águas na carreira do garoto sonhador. De-
Ainda criança, nas festinhas nas redonde- namoro. Após quatro anos de relacionamento, rentável banda de forró do país na atualidade)
pois de quatro anos “fazendo música” na capi-
zas da Fazenda São Luís e mesmo na cidade, o casal e a dupla se desfizeram. “Nem sei por para ser vocalista do grupo Forró do Muído,
tal cearense, Paulynho recebeu um convite para
onde ela anda”, conta Paulynho, sem rancor ou com sua irmã Simone.
Paulynho passou a “se convidar” para cantar. tocar em São Paulo. A história parece comum:
“Quando eu via o pessoal tocando em bar, um amigo soube de uma vaga para vocalista em arrependimento. O cantor voltou para o Piauí As duas chegaram a gravar dois CDs como du-
aquela coisa de ‘vocalista-tecladista’, eu pe- uma banca de forró em São Paulo e sugeriu o já com algum dinheiro economizado em São pla. Nesses CDs gravaram músicas do amigo

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Paulynho Paixão. Essas gravações foram apre- todo, cantada por todas as bandas”, explica.
sentadas aos produtores da A3, que se interes- Até ser reconhecido como compositor de su-
saram pelas composições do piauiense. “Sil- cesso, Paulynho passou por mentiroso diversas
mara me ligou dizendo que queriam músicas vezes. “Fui abrir um show de Léo Magalha-
minhas. Fui falar com ele [o produtor da A3], es em Castelo do Piauí. A cada música que eu
separei material e deixei muitas músicas. Ele cantava, eu dizia: ‘essa é nossa e está estoura-
inclusive me adiantou um dinheiro. Silmara da’, ‘mais uma da gente’. No chão havia um
me ajudou muito, como eu também a ajudei no cara da nossa equipe e uma pessoa do públi-
início”, lembra Paulynho. co virou pra ele e disse: ‘rapaz, esse baixinho
mente demais’”, conta Paulynho, que preferiu
O sucesso bate à porta levar o episódio – e tantos outros semelhantes,
Apesar de toda essa trajetória de dificuldades, na esportiva.
para o grande público a carreira de Paulynho Paulynho diz não ter tempo de “notificar” o
Paixão começou no final de 2009, quando a seu sucesso. “Tudo foi acontecendo natural-
música “Me acha” virou o maior sucesso da mente. Não sei exatamente quando as coisas
banda Aviões do Forró. Naquela época, Pauly- aconteceram. Isso é bom também para a gente
nho gravou o primeiro CD com composições não se deslumbrar porque a gente não fica se
próprias que fizeram sucesso com outros intér- prendendo às coisas, ao sucesso”, afirma.
pretes. “Me acha” era uma delas.
Com o tempo, Paulynho aprendeu a tocar vio-
Com um trabalho sério de divulgação inicia- lão e faz shows com aproximadamente duas
do por uma produtora piauiense, a Midas Pro- horas de duração, sempre lotados, com re-
duções, Paulynho passou a ser a identidade de pertório próprio. “A gente faz shows e vejo
suas letras. O público soube, por exemplo, que todo mundo cantando todas as nossas músi-
“Cabou, cabou”, gravada por Forró do Muído cas. Quando eu lembro que sonhava em ter ao
– banda já bem-sucedida –, era composição de menos uma música cantada no meu show pela
Paulynho Paixão. O mesmo aconteceu com “So- galera... acho que de tanto eu pedir a Deus, ele
fro, bebo e choro por você”, de Léo Magalhães, cansou e me deu esse presente”, brinca.
astro da nova geração de cantores sertanejos, e
das também gravadas por Aviões do Forró “Eu Uma marca lucrativa
Amo Você”, “Será” e “Quero você, Tatá”.
Apesar de a qualidade de sua música ser
Mas o maior sucesso de Paulynho é ainda questionada por vários artistas e por públicos
“Me acha”. A música diz “me acha, me acha / ditos mais “cults”, Paulynho é unanimidade
se você me quer agora, então me acha” e trata entre o povão e caiu no gosto até de “patrici-
de um homem apaixonado que foi rejeitado nhas e playboyzinhos”. No início de janeiro
por sua amada e que agora resiste às investi- de 2011 uma apresentação sua lotou uma das
das dela. casas de shows mais caras de Teresina, cujos
Apesar da história romântica, a canção foi fei- frequentadores são, em geral, rapazes com
ta a partir de um desafio de Benoni Júnior, um carros possantes e moças sempre impecavel-
dos proprietários da Midas, já empresário de mente arrumadas.
Paulynho ajuda a família Paulynho. “Ele queria que eu fizesse uma mú- Após quase 15 anos tentando “emplacar” mú-
sica com o nome da lancha dele, que é “Me sicas nas rádios e passagens mal-sucedidas
financeiramente e é dono de um acha”. E eu fiz. Graças a Deus, é esse sucesso por quatro bandas, Paulynho Paixão é hoje
Audi e um Golf “completo, com
todos os acessórios de fábrica”
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uma marca bastante rentável. Seu cachê subiu baixinho vai se tornando mais reconhecível. É Os próximos passos do Rei do Coladinho? Lan- compondo, levando alegria para o povo. Está
1000% em um ano e meio – ele não revela va- a versão original de Paulynho Paixão para “Me çar seu primeiro DVD, gravado no dia 18 de de- nas mãos de Deus. Não sou mais nem menos que
lores, mas sabe-se que em meados de 2009 um Acha”. A estudante de Direito deixa o telefone zembro com lotação máxima da maior casa de ninguém. Graças a Deus tenho a sorte de ter um
show seu custava aproximadamente R$ 800. tocando enquanto canta e dança o maior su- shows do Piauí, e divulgar sua música com mais nome. A diferença é só o nome, a música. Agora
cesso do Rei do Coladinho. Desde que mudou intensidade em outros estados. “Vou continuar é lutar pra estourar no resto do Brasil”, profetiza.
A equipe que viaja acompanhando Paulynho
em suas apresentações é formada por 17 pes- o toque de seu celular Michelle tem perdido
soas – músicos, dançarinos, equipe de som. muitas ligações por conta disso: canta e dança
Essas viagens acontecem em um ônibus super- até a ligação cair.
-luxo cujo preço estimado é de R$ 200 mil. Michelle e suas amigas Aline e Raíssa fazem
Paulynho ajuda a família financeiramente e é parte da legião de fãs de Paulynho Paixão. Tem
dono de um Audi e um Golf “completo, com CDs, toques de celulares, músicas baixadas em
“Agora é lutar
todos os acessórios de fábrica”. seus computadores, frequentam seus shows. pra estourar
Paulynho já fez shows em todo o Piauí, vá- “Ele consegue colocar nas músicas muito sen-
rias cidades de Tocantins, Bahia, Maranhão e timento. As pessoas se identificam, acho que no resto
isso é o que garante o sucesso dele”, tenta ex-
até em Brasília, que possui uma das maiores
colônias piauienses do Brasil. Em novembro plicar Michelle, que não só tem CDs de Pauli-
do Brasil”
de 2010, o Rei do Coladinho chegou a fazer nho Paixão como já deu alguns de presente a
41 shows. “Havia empresário comprando três familiares do Maranhão “para que disseminem
shows em uma noite. Hoje a gente não acei- a música dele por lá”.
ta mais isso. Os empresários só pensam em Fãs tão fieis são o orgulho do menino de São
dinheiro, não se preocupam com o público, Miguel da Baixa Grande que sonhou em ser
com a qualidade do show. Chegamos a entrar astro, mesmo que ele não ganhe dinheiro di-
no palco quatro horas da manhã. O público retamente. “Você imagina ter gente que tem a
que fica a madrugada toda esperando se cha- nossa música como toque de celular. O que eu
teia. Não é porque a gente está estourado e penso sobre isso? Eu acho legal, cara. Eu não
todo mundo quer comprar que a gente aceita me preocupo com essas coisas de direitos au-
isso”, justifica. torais. Disso, o Ecad toma conta. Assim como
Entre CDs promocionais distribuídos, piratea- quando estou em um lugar e chega um menino
dos e vendidos, a Midas Produções estima que vendendo meu CD [pirata] eu não me incomo-
haja cerca de 1 milhão de CDs de Paulynho do. Sei que se ele está fazendo aquilo é porque
Paixão circulando. “Nosso último CD [Pauly- precisa. Fico feliz em poder ajudar de alguma
nho Paixão, O Rei do Coladinho, Vol. 2] é o forma”, analisa, com a sensibilidade de quem
mais vendido e copiado do Nordeste”, declara. já passou por muitas dificuldades financeiras.
Se há receita para fazer músicas de sucesso? Mas, afinal, qual o segredo do “coladinho”?
“Para contar uma história em um livro você tem “Coladinho é a música dos apaixonados. E é
muito espaço. Musica é diferente; você tem de por isso que o rei do coladinho só pode ser
resumir em poucas linhas e passar uma história Paulynho Paixão”. A resposta soa óbvia na
para que as pessoas entendam”, responde. boca de Paulynho. Coladinho, ainda segundo
seu criador e majestade, é algo entre o brega,
Rei do Coladinho o forró e o sertanejo, mas, acima de tudo, é
O telefone celular de Michelle Magalhães co- uma música romântica, para ser dançada, ora,
meça a tocar. A música que inicia em volume “coladinho com a pessoa amada”.

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aqui tem
banquinha
Popfuzz
Grupo de jovens empreendedores
culturais inventa um jeito de driblar
as dificuldades para distribuição de
discos independentes em Alagoas
Marcelo Cabral

Entre os tantos desafios encontrados por artistas pessoas do que os downloaders de plantão pos-
independentes de todo o país, um dos maiores sam imaginar ainda gostam de ter o disco origi-
problemas é, sem dúvida, a distribuição de suas nal, ler o encarte, admirar a arte da capa, e va-
obras. Ok, hoje em dia, já é possível gravar um lorizar o artista que compôs e produziu aquilo.
bom disco em um estúdio caseiro. Disco gra- Já para o autor, pode ser fundamental vender
vado, capa pronta, trâmite burocrático, fábrica, estes produtos para dar sustentabilidade ao seu
e pimba! CD na mão! Tudo pronto, show de projeto musical e ampliar seu público.
lançamento na sua cidade, maravilha, mas ... e
depois? Como vender seu disco? Como fazê-lo Enquanto isso, em Maceió...
chegar aos ouvidos das pessoas? No artigo “Aqui não tem mais loja de discos”,
Disponibilizar na internet é uma opção, claro, publicado no Overmundo em 28 de setembro
mas ainda é necessário vender discos nos sho- de 2006, escrevi sobre como todas as lojas de
ws do próprio artista e em outros espaços, para discos de Maceió já haviam fechado naquela
repor os custos de produção. Além disso, mais época e no contexto do avanço da pirataria e

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do download, legal ou ilegal, que dominaram zer parte do Circuito Fora do Eixo que funcio- mínima, às vezes somente uma unidade. Já os
o mercado – ou ainda, tiraram a música da na através do trabalho de outros coletivos de produtos alagoanos eu consigo em uma quan-
mera lógica de mercado, com conceitos como artistas e produtores espalhados pelos estados tidade maior, mesmo assim faço transações de
“cultura livre”, “democratização do acesso a do Brasil. A maioria deles conta com uma ban- venda e troca com fornecedores de outras lo-
cultura”, e licenças como as do projeto Crea- ca de discos, expondo e vendendo o material de calidades. O Circuito [Fora do Eixo] possibi-
tive Commons, entre outras tentativas de bus- artistas independentes em shows, outros even- lita uma maior interação com os ‘comerciantes
car modelos diferenciados. Naquele momento, tos ou mesmo em locais fixos. Existe uma arti- culturais’ e seus produtos graças à circulação
o texto gerou um empolgante debate entre os culação de distribuição entre as bancas e com de bandas. É possível trocar produtos, pegar
membros da comunidade. os próprios artistas/fornecedores. por consignação ou enviar por meio das ban-
Cinco anos depois, as mudanças continuam. das que estiverem circulando. Fora do Circuito
Em Maceió, o responsável pela Banquinha
Cada vez mais os artistas independentes encon- o contato acontece somente com lojas e selos
Popfuzz é o compositor, guitarrista, colecio-
em negociações de compra. Até hoje estou ten-
tram na internet um espaço de difusão de seus nador de CDs e estudante de Biologia, Caí-
tando comprar os CDs de artistas locais como
trabalhos. A indústria mainstream, das grandes que Guimarães (Baztian / Bad Rec Project).
Mopho [do emblemático selo Baratos Afins],
gravadoras, se rendeu ao nicho evangélico – Caíque conta como tudo começou em dezem-
Sonic Junior, Oxe e Mutação, que foram lan-
cujo público, provavelmente por alguma “ética bro de 2009: “Foi na 1ª Tour Nordeste Fora
çados por selos e gravadoras. Como virão de
protestante”, não compra e nem baixa produtos do Eixo, em Maceió. Poucos dias antes deste
outros estados e os Correios botam ‘na goela’
ilegais. Enquanto parte da população não se evento, estive na Feira Música Brasil, em Re-
do cara, essas negociações ficam às vezes invi-
importa com isso, e outra parte tenta conciliar cife, e deu pra coletar um material legal de áveis”, reclama.
difusão e acesso aos bens culturais dentro da produtos de fora do estado. Daqui de Maceió
legalidade, testando novas formas de produção eu lembro que tinha os discos do Coisa Linda Caíque consultou as tabelas da banquinha e
e consumo de música. A geração atual de músi- [Sound System, a minha banda], o primeiro da constatou que os shows onde vendeu mais dis-
cos e compositores se organiza em coletivos e Bad Rec [Project, do próprio Caíque], a Co- cos foram eventos abertos ao público. Além
cooperativas, politizando o setor, e produzindo letânea Quintal e mais umas duas coletâneas de democratizar o acesso aos espetáculos de
festivais importantes em seus estados, como que tinham alguma banda alagoana.” Já a pri- música, shows abertos economizam dinheiro
o Festival Maionese em Alagoas, estado que meira experiência vendendo CD em show foi no bolso do pessoal. “O show que a banquinha
continua sem loja de discos... mas que agora no Maionese 2009. “Neste ano o pessoal deci- vendeu mais foi em praça pública, no Parque
tem a Banquinha Popfuzz. diu pedir para os artistas locais que levassem Ceci Cunha, em Arapiraca, onde tocaram Le-
seus CDs para a gente vender lá. Desde que eu ões de Minerva [banda de Mossoró, Rio Gran-
Uma idéia, muitos discos de Norte] e a banda Eek. Foram vendidos 45
ando em shows de rock, lá com meus 13 anos
discos nesse dia. Eventos assim são sempre
O Coletivo Popfuzz nasceu de um grupo de de idade, que eu gasto, pelo menos, meia hora
legais para a banquinha. O que o pessoal iria
amigos, com bandas de Maceió e Arapiraca, do evento nas banquinhas, isso sempre chama
gastar com o ingresso gasta em CD. Nesse dia
decididos a movimentar o cenário musical em a atenção”, garante.
os discos que venderam mais foram os das ban-
Alagoas. Este ano, acontecerá a sétima edição Segundo Caíque, já passaram pela Banqui- das que tocaram e de artistas locais que tinham
do Maionese, festival anual produzido pelo nha Popfuzz cerca de 110 produtos diferentes. acabado de lançar algum trabalho: Coisa Linda
Popfuzz, e já tivemos a segunda edição do Gri- Dentre eles, CDs, livros, camisetas, ecobags, Sound System, Bad Rec Project, e Rei Bulldog,
to Rock Maceió, dentro das prévias carnavales- HQs, zines, adesivos, vinis decorativos, entre banda de Arapiraca [Alagoas].”
cas da capital. Além disso, o grupo toca adiante outros artigos. Pelo menos 20 produtos dife-
um selo que vem lançando trabalhos autorais Uma das metas atuais da Banquinha Popfuzz
rentes alagoanos e 90 produtos de bandas de
de vanguarda na música alagoana, entre outros é conquistar novos públicos, além dos shows
outros estados. Caíque conta como faz a capta-
empreendimentos, dentre eles, um dos mais e eventos de música independente locais. “A
ção destes produtos e algumas das dificuldades
bem sucedidos: A Banquinha Popfuzz. idéia é armar a banquinha em lugares inusita-
que encontra neste processo, dentre as quais ele dos. Pensei em armar a próxima no Botequim
Pouco mais de um ano atrás, mesma idade da destaca as taxas e prazos dos Correios. “Na Paulista [notório point rocker de Maceió].
“banquinha”, o Coletivo Popfuzz passou a fa- maioria dos produtos de fora, a quantidade é

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E também em eventos que não exatamente “Nosso maior desafio no momento é conseguir para os artistas. Se a dificuldade é fazer o seu Overmundo. Segundo Diogo, a internet é uma
shows, como no Comusica, onde vários livros captar os produtos culturais locais. Fizemos um disco chegar ao público, a banquinha vai justa- ferramenta indispensável, aliada do artista in-
de palestrantes foram vendidos, no Afina Ala- mapeamento detalhado e entramos em conta- mente aonde o público está: em eventos cultu- dependente na difusão do seu trabalho. “Com
goas, e também em espaços públicos. Em ja- to com quase todos os fornecedores. A meta é rais. Seu disco está ali disponível, com preço a internet, seu disco chega a qualquer parte do
neiro deste ano montamos pela primeira vez a poder ser o fornecedor nacional de produtos acessível, para um público interessado em con- mundo sem pagar Sedex. Por isso que a gente
banquinha na mala de um carro, num evento alagoanos, independentemente do local de pro- sumir música. Não são os amigos e a família disponibilizou o nosso disco inteiro no Over-
lá na Rua das Árvores, Centro de Maceió. Es- dução da mídia física”, diz Caíque. Até agora comprando, entende?” mundo. Como dizia Milton Nascimento, ‘todo
tamos pensando em montar uma ‘banquinha foram feitas poucas compras de produtos de artista tem de ir aonde o povo está’, e hoje o
Fantasia de Equilibrista foi bem recebido
volta às aulas’ dentro da Universidade Federal fora do estado. A maioria delas via Circuito povo está navegando na internet, os números
mesmo. Estive no show de lançamento e com-
de Alagoas e em frente de alguns colégios do Fora do Eixo. As bandas parceiras do circuito dizem isso. O Overmundo nos interessa por
prei o meu exemplar na banquinha, que passou
ensino médio”, planeja Caíque. fazem um esquema de venda por consignação.
vários dias tocando no meu aparelho de som. ser um site construído de forma colaborativa
E não para por aí, a Banquinha Popfuzz abriu A banda também disponibilizou o disco para por pessoas que podem nos dar um feedback
Artista-fornecedor
este ano a primeira filial, em Curitiba. “Um de download gratuito no Banco de Cultura do interessante do nosso trabalho. Mas o interes-
Autor, músico, cantor, produtor fonográfico,
nossos membros, o Emílio, está morando lá.
fornecedor de discos. Cada vez mais o artista
Vendo que o pessoal do Sul tem bastante ad-
de música independente tem que se desdobrar
miração pelo conteúdo musical produzido no
em muitos papéis para tocar adiante seu pro-
Nordeste ele teve essa idéia. Fizemos a capta- jeto e promover suas composições, além de,
ção de produtos e já temos a banquinha funcio- não raro, atuar em outras frentes profissionais,
nando em Curitiba.” já que viver de música é um sonho alcançado
Segundo Caíque, até a metade de 2011 a ban- por poucos.
quinha terá sua versão online, inclusive com os O compositor e jornalista Diogo Braz é voca-
discos do catálogo do selo Popfuzz. Em outra lista/guitarrista do Eek, grupo de Maceió que
frente de expansão, o coletivo está realizan- lançou recentemente seu primeiro trabalho,
do um mapeamento de pontos fixos de venda Fantasia de Equilibrista, o disco mais vendi-
como bares, casas de show e bancas de revista do até agora na Banquinha Popfuzz. Diogo está
em Maceió e Arapiraca. Todo o lucro do em- animado com o sucesso de vendas naquele es-
preendimento é investido nos lançamentos do paço. “A Banquinha é uma iniciativa digna de
Selo Popfuzz e na própria banquinha. elogios. É uma alternativa muito interessante

MAI. MAI.
2011 34 35 2011
sante é que há a possibilidade de semear nos- acho importante é que não existe, pelo menos
sas canções em diversas plataformas e esperar eu desconheço, alguma tarifa especial dos cor-
pra ver o que nasce dali.” reios para envio de CD, como há o ‘registro “O artista
módico’, para livros ou impressos. Com taxas
Diogo reconhece que a internet não resolve to-
dos os problemas sozinha. “No panorama atual, de correios mais baratas, creio que ficaria bem de música
com tanta informação circulando pela rede, é mais viável a distribuição feita pelas próprias
bandas. Contatos, endereços, a gente arranja na
independente
complicado conseguir alguma atenção do pú-
blico e da crítica especializada”, reclama. Daí internet, mas para mandar pelos Correios acaba tem que se
a importância de haver gente interessada no
negócio da distribuição de discos independen-
ficando caro”.
Basicamente, a diferença entre a Banquinha
desdobrar para
tes. “Os caras do Popfuzz têm bandas, sabem e Popfuzz e as antigas lojas de discos é que a tocar adiante
vivenciam os entraves nesse processo de dis-
tribuição e acabam tendo ótimas soluções para
banquinha vende os discos do Diogo, os meus,
e dos outros compositores independentes, lo-
seu projeto e
contorná-los”, elogia. cais e de outros estados, sem lugar para o pro- promover suas
Assim como Caíque, Diogo também faz suas duto pirata ou mainstream. Um novo caminho
sugestões aos Correios: “Um ponto que eu está sendo traçado. composições”

Top 5 Mais vendidos – Os hits da banquinha


A Coletânea Quintal, que apresenta um apanhado de bandas alagoanas, vendeu até
esgotar todas as cópias. Quanto aos artistas de outros estados, os que tiveram mais
discos vendidos foram Emicida, O Garfo e Cerva Grátis. Entre os discos de artistas
alagoanos, alguns se tornaram hits da Banquinha Popfuzz. Segue abaixo um ranking
de CDs de autores alagoanos mais vendidos em um ano e alguns meses de existência
da Banquinha Popfuzz:

de-penedo-coisa-linda-sound-system /
[1º] Eek - Fantasia de Equilibrista
Bad Rec Project - A pack of cigarettes
http://www.overmundo.com.
br/banco/eek-fantasia-de- for the midnight trap http://www.
equilibrista-2010 overmundo.com.br/banco/bad-rec-
project-a-pack-of-cigarettes-for-the
[2º] Coisa Linda Sound System -
Da Vida e do Mundo http://www. [4º] Rei Bulldog – Ep http://www.
overmundo.com.br/banco/da-vida-e- myspace.com/reibulldog
do-mundo-coisa-linda-sound-system [5º] A.S.U. - Procurados e Armados
[3º] Coisa Linda Sound System - http://alagoasound.blogspot.
Rochedo de Penedo http://www. com/2010/05/asu-procurados-
overmundo.com.br/banco/rochedo- armados-manipuladores-de.html

MAI. MAI.
2011 36 37 2011
Catálogo EP | Um Lugar Pra Esquecer
De Tudo
ADESIVOS | Monstro#1 Daniel
Hogrefe
EP | Gauche
Gauche
CD | DEMOS
Little quail and the
CD | A Passeio
Porcas Borboletas
Banquinha Bon Vivant
ZINE | Quase ZINE#3 + 3 ADESIVOS EP | Urbano, Demasiado Urbano
mad birds
DEMO | Sem Nóia...Sem Paz...
Popfuzz CD | Okey Dokey Daniel Hogrefe Gleisson Jones CD | Geração Oitenta ao vivo Power Of The Nóia
Boom Boom Kid Lord
CD |Debate CD | A 125 Por Hora CAMISA | Projeto Sonho
ADESIVO | Brown-Há Debate Guitarria CD | Dread In Brasil
EP | Rei Bulldog
Loveshine
CD | A Banda De Joseph Tourton EP | Brown-Há CD | Mais Pimenta Menos Sal CD | Macaco, Chiquinho e o Rei Bulldog
A Banda De Joseph Tourton Brown-Há Deluxe Trio Cavalo CD | Coisa Linda
EP | Rodamundo
Gustavo Macaco Marcelo Cabral e Trio
CD | La Estructura EP | Normal People’s Brigade CD | Dossie Rodamundo
Coisa Linda
A Roda Calistoga Dossie CD | Hijack!
CD | A luta
Hijack! HQ | Lucas da Vila de Sant’anna
CD | Procurados E Armados VINIL | Decorativo Calistoga CD | Fantasia de Equilibrista Rótulo
Marcos Franco, Marcelo
A.S.U. Calistoga Eek CD | Bizzarro
Lima, Helcio CD | Vontade De Gritar Senhoritas
Hulk
CD | Alex Pochat E Os 5 Elementos EP | Still Normal CD | Mixtape Emicidio
CD | Globalizado Só Os Tênis LIVRO | Rumos da Cultura
Alex Pochat E Os 5 Elementos Calistoga Emicida CD | Globalizando
Meiofree Solange
Hypnotizion
EP | Amaurose CD | Casa Flutuante ECOBAG | Spermental
CD | Minha linda coleção de EPs CD - Sabotador De Satélite
Amaurose O Mundo é a nossa Casa Erivaldo Mattüs CD | Pulsação
Merda Totonho E Os Cabra
Flutuante Iazul
HQ | Coleta ZINE | Spermental
ADESIVO | Coca ZINE | Tubarão Martelo #1
Área 71 CD | Casaca Erivaldo Mattüs EP | Intruhder
Merda Tubarão Martelo
Casaca Intruhder
CD | Rrrrrrrrrrrrrock! EP | Qndtdqbrecai
SPLIT | Merda COLETÂNEA | Coletivo
Autoramas CD | Chá De Flores Estatica CD | Novo
DFC Megafônica
Chá De Flores Jason
CD | A Pack Of Cigarettes for the CD | Yyy
LIVRO | Indústria da Música COLETÂNEA | In Polgando II
Midnight Trap CD | Frontière Falsos Conejos LIVRO | Comunicação
Michael
Bad Rec Project Clamus Jeder COLETÂNEA | Quintal
CD | FDR
EP | Morra Tentando
EP | A Mulher Do Fim Do Mundo CD | Da Vida e do Mundo Família das Ruas CD | Johnny Suxxx And The COLETÂNEA | Coração ao
Morra Tentando
Bê Formiga Coisa Linda Sound Fucking Boys Contrário
CD | E Se For Dessa Vez...
System Johnny Suxxx And The CD | Gaiola
EP | Beatle George E Seus Flauer COLETÂNEA | Ultraje a Rigor
Fucking Boys Mukeka Di Rato
Planos Infalíveis... CD | Rochedo de Penedo Tributo
CD | Algo Sobre Nós
Beatle George Coisa Linda Sound CD | The Full Time Rockers Club EP | Pressuposto
Fullheart CD | Pau Brasil
System JosEPh K? Nevilton
SINGLE | Amargo Perfume Vitor Pirralho
EP | Fullreggae
Blush Azul CD | A Tradicional Família EP | Celebration CD | Todos Iguais
Fullreggae DEMO | A Diferença Entre O
Mineira Kaddish No Break
CD | Botoccudo Igual E O Diferente
Colorido Artificialmente LIVRO | Fora do Eixo
Bocca HQ | Kuei CD | Meu povo é sofrido mixtape Zé Viola
Gabriel
CD | Sintonia da Mata Conjunto NSC Progressive Band
CD | Strange CD | Anatema
Roque Moreira
Boddah Diciro Labirinto EP | Vôo Livre CD | Zefinha Vai À Feira
Nublado Zefinha
ADESIVO | Macaco
Laja EP | Epizod CD | Só precisamos de 20 min.
O Garfo Zefirina Bomba
EP | O Crime
Leões de Minerva CD | Caveira y Macaco CD + EXTRAS | Só precisamos de
Os Pedrero 20 min
CD | Invernada
Zefirina Bomba
LEPitospirose CD | Motoqueiro Doido
Os Pedrero CD | Abominável Mundo Monstro
EP | Quando Voltar Eu
Zumbis do Espaço
Termino Lise CD | Sou feio mais tenho banda
CD | Aberrações que Somos
Os Pedrero
Zumbis do Espaço
CD | Ultima cidade
Plastic Fire

MAI. MAI.
2011 38 39 2011
“Talvez seja melhor assim, quando a pessoa
continua anônima e à vontade” Thiago Camelo
Certa vez, em uma entrevista via webcam, pedi arrebatadora. Embora não captada por uma we-
para o interlocutor do outro lado da tela levantar bcam, é regida pela mesma naturalidade - um
e mostrar um pôster no fundo do seu quarto. Re- rapaz canta no seu casamento para a mulher, numa
cebi uma resposta um tanto constrangida: “É..., execução tão amadora quanto cativante.
não leva a mal, mas não posso, estou de cueca”. Não é mais um discurso de “faça-você-mesmo e
É o tipo de declaração que faz pensar. Em que vai estourar”, porque a questão não é essa. Mi-
outra situação um entrevistado mostra o rosto lhares já ganharam fama com a internet. Fama e

canto
para uma câmera estando de cueca? Mas é no dinheiro, como é o caso da menina holandesa que
conforto do lar e com uma webcam que se grava, foi descoberta quando cantava para “ninguém”.
atualmente, música. Mas a imensa maioria continua anônima. É ins-
Uma das experiências mais bacanas da internet tigante pensar as motivações que levam o sujeito

para quem?
está acontecendo no YouTube. Desde o lançamen- a gravar músicas dos outros e jogar no YouTube.
to do site, centenas de pessoas publicam a pró- Mas não acho mesmo que seja para se fazer co-
pria interpretação da canção de seu artista favo- nhecer. Sei lá o motivo real. Num primeiro mo-
rito. O que começou com uma onda de paródia, mento, parece ser a razão pela qual tantos pos-
como no caso dos Backstreet Boys chineses, foi se tam vídeos sobre qualquer coisa; claro, também
transformando em uma singela coleção de exe- não sei por que se faz isso. Acho que qualquer
Anônimos saem do banheiro e fazem a festa com cuções pessoais de canções famosas. Ainda em previsão é um chute tremendo. O fato é que o
versões de suas músicas preferidas no YouTube 2008, João Brasil, cantor-hit da internet, lançou próprio YouTube tenta, por meio de uma seção,
um videoclipe bacana em que compila vários fãs organizar esses anônimos e dar alguma forma à
Thiago Camelo
cantando o seu single Baranga. dispersão musical. Mas esbarra no seu tamanho
Mas o primeiro a me chamar atenção para esse e tudo continua muito confuso.
movimento foi meu irmão Marcelo, que sempre Talvez seja melhor assim, quando a pessoa con-
chega com um novo link de alguém tocando tinua anônima e à vontade. Quando o fato de
suas músicas. Ele adora. E isso acontece há al- esquecer a letra, desafinar e tocar errado soa
gum tempo, desde antes do lançamento do seu menos importante do que executar a canção da
CD solo, ainda à época do Los Hermanos. No qual se gosta. Daí, do quarto e da privacidade de
caso dele, foi até engraçado. Depois de tocar cada um, saem as pérolas da internet, como no
uma única vez Liberdade no programa da Leda caso das dezenas de interpretações de arrepiar
Nagle, música inédita até então, choveram versões de Você é linda, do Caetano, ou Tchubaruba,
no YouTube. Acontece até hoje com obras não da Mallu Magalhães. Vêm do que de melhor a
registradas em CD algum. Por exemplo: Bom rede e a tecnologia podem oferecer, que não é
dia, canção executada pouquíssimas vezes em fama ou possibilidade de ganhar dinheiro, mas
alguns shows dos primórdios dos Hermanos, sim fazer o que quiser do modo que se quiser - e
também ganhou interpretações. Uma delas é mostrar para alguém, se for o caso.

MAI.
41 2011
[7] Fazedores do nosso chão
Que o Brasil está cheio de personagens
ilustres desconhecidos, isso muita
gente sabe. Que de vez em quando um

em Pílulas
Cultura letrada
repórter pinça um ou outro para bater
Em relato emocionado
um papo, é muito comum que aconteça.
e “teimoso” sobre os
Mas a série “Fazedores do Nosso
aspectos que envolvem
Chão”, que Fernanda Salvador tem
a criação e manutenção
publicado no Overmundo, não apenas
de bibliotecas públicas,
apresenta personagens do cotidiano
Em todas as edições, a Revista Overmundo klaxonsbc defende o papel
como filosofa com eles sobre a vida.
do Estado na formação
seleciona o que de mais bacana circulou É assim que o artesão Zé do Ponto
de leitores e no acesso
reconhece que “ninguém vive sozinho”
e gerou discussão entre os conteúdo do à informação no país.
e o roceiro Olímpio Soares conclui “a
site nos últimos meses. Leia mais em Você ainda baixa música? [4] vida é um laço”. Dona Lira Marques
A música está mudando. relata o amor ao que faz e Gonçalo Silva
overmundo.com.br Carlos Bernardina fala sobre a necessária construção de
apresenta o conceito de ilusões para se viver. Acompanhe!
SiMBiOSE, novo álbum
do projeto Axial, que SOS Museu Sacaca
[8]
[1] O Monstro Souza inova na distribuição da No Amapá, o Museu Sacaca pede socorro.
Monstro Souza, um cachorro-quente que mata! Viktor música via internet. Agora, PauloZab relata como foi o encontro da
Chagas entrevistou Bruno Azevêdo (o acento é mera você não baixa música, equipe que coordena o Plano de Ação
idiossincrasia) e Gabriel Girnos, autores do romance você baixa software... Museológica para 2011 na instituição,
festifud que é pura sensação em São Luís. A entrevista importante polo cultural macapaense.
e suas repercussões, o romance anterior de Bruno –
Breganejo Blues – e a resenha de Flávio Reis dão o Cultura e pele [5]
[9] Véio
tom (bem-humorado) da conversa. Acompanhe. Um coletivo de
Você conhece o Véio? Ramon
intervenções urbanas e
Diego fala sobre a repercussão
[2] Uma volta na lama da memória ações efêmeras. Assim
ao trabalho desta artesão
Joca Simonetti comenta o vídeo de Ursula Dart, da é o Poro, dupla de dois,
sergipano. No Overmundo,
prolífica safra de produtores de audiovisual da Vitória. formada pelos artistas
você confere ainda o trailer
Repleto de registros raros, alguns filmados originalmente Brígida Campbell e
exclusivo do documentário
em VHS, o filme resgata passagens importantes da Marcelo Terça-Nada! - e
Véio, de Adelina Pontual.
cidade e vida social e pessoal da diretora. Afinal, que agora lança livro sobre
a memória é um marco da existência coletiva. sua trajetória. Confira.
[10] Vissungos
Um novo projeto de mapeamento
[3] Filme de autor vs. Filme comercial Sem freio [6] musical surgindo? Makely Ka
Em uma extensa reflexão sobre o cinema nacional, Por falar em música, João escreve sobre os vissungos,
Chico Santa Rosa, em texto escrito originalmente Xavi comenta sobre as cantos rituais herdados dos
para a série Samba de uma Nova Gente, provoca: interações entre música e escravos africanos, misturando
profissionais de cinema no Brasil reconhecem futebol, a partir do mote dialetos de origem banto, como
apenas dois tipos de filme: o filme de autor e o filme do “Bonde do Mengão sem o umbundo e o quimbundo,
comercial. Onde está o nosso cinema underground? Freio”. Tem história... e o português arcaico.

MAI. MAI.
2011 42 43 2011
carrancas:
a cara do São Francisco
Sucesso das peças, que começam a ser vistas como obras
de arte, não garante a sobrevivência dos artesãos
Luís Osete

MAI. MAI.
44
2011
4545 MAR.
2011
2011
No início da tarde de uma quinta-feira saí de no Brasil, momento em que as carrancas pas-
casa a fim de encontrar o homem que, muito sam a ter outra significação social e cultural,
provavelmente, deve ser o maior produtor de deixando de ser usadas somente como figuras
carrancas da região do São Francisco: o ju- de proa para serem fruídas como objetos de
azeirense Paulo Roberto de Jesus Santos ou, decoração no interior das casas, feiras artesa-
como é mais conhecido, Paulo das Carrancas. nais, museus, exposições, coleções e estabele-
Há 25 anos, ele já havia fabricado 32 mil car- cimentos comerciais.
rancas.Entrei no ônibus com uma referência
Com o advento dessa nova função social,
básica, o nome do bairro: Piranga. Mas fui
que é a do valor de exposição, as carrancas
tranquilo, acreditando que a popularidade
passam a ser elaboradas no sentido de satis-
das carrancas entre os habitantes desta parte
fazer a “encomenda”, o desejo de quem as
inspirada do Brasil seria proporcional ao re-
quer possuir, bem como buscando um retorno
conhecimento de um de seus mais atuantes
financeiro. Esse acontecimento já fora des-
produtores. Ledo engano. O cobrador achou o
crito por Benjamin com relação às artes: “À
nome estranho e o motorista trocou de marcha
medida que diminui a significação social de
enquanto balançava a cabeça como se disses-
uma arte, assiste-se no público a um divórcio
se: “Nunca ouvi falar”.
crescente entre o espírito e a fruição da obra.
Depois de caminhar por um bom tempo pelas Frui-se sem criticar, aquilo que é convencio-
ruas de um dos bairros mais carentes de Juazei- nal; o que é verdadeiramente novo é criticado
ro, um rapaz apontou para um homem de meia- com repugnância”.
-idade, que repousava sentado num tronco de
Marilena Chauí, de forma muito atenta ao
umburana entre tantos outros troncos espalhados
contexto histórico que possibilitou a escrita
pelo terreiro. Para chegar até ele só caminhan-
do artigo de Benjamin, assinala no livro Fi-
do sobre pedaços da árvore típica da caatinga
losofia que “ao escrever sobre a mudança das
e doada aos escultores da região por fiscais do
artes, nos anos 30, Benjamin tinha presente
Ibama, que as apreendem por extração irregular.
uma realidade e uma esperança. A realidade
Vendo os exemplares de umburana à espera era o nazi-fascismo e a guerra; a esperança, a
das mãos do artesão para receber “uma solu- revolução socialista”.
ção plástica de elevado conteúdo artístico e
Levando a analogia entre os processos de
emocional”, como diria Paulo Pardal, autor
transformação das artes, de forma genérica, e
de um livro sobre a arte das carrancas, recor-
das carrancas, de forma particular, cabe uma
dei-me de um artigo do teórico frankfurtiano
paráfrase da reflexão de Chauí. Ao escrever-
Walter Benjamin: “A obra de arte na época de
mos sobre as carrancas, em pleno século 21,
sua reprodutibilidade técnica” (1936). Fiquei
temos em vista uma realidade muito forte: O
imaginando que se Benjamin tivesse sobrevi-
capitalismo e a cultura de massas. Agora cabe
vido às agruras da Segunda Guerra Mundial
uma pergunta não muito simples de respon-
(“suicidou-se em 1940, na fronteira espanho-
der: Qual é a nossa esperança?
la, sob o temor de ser entregue pela polícia
franquista à Gestapo”), teria um forte argu- Vejamos...
mento para atualizar seu artigo: o fenômeno Como uma figura sombria, disforme, zooan-
social das carrancas do São Francisco. tropomorfa e com uma expressão de ferocida-
Coincidentemente, o ano da morte de Ben- de intrínseca agravada por uma generosa juba
jamin marca o fim do ciclo das embarcações conseguiu atravessar gerações e se tornar o

Carrancas de barro
MAI. MAI.
2011 46 47 2011
Ana das Carrancas
em óleo sobre tela

ícone da região do São Francisco? Longe da Como protótipo original Paulo se refere às
pretensão de fazer um estudo da história das carrancas produzidas pelo saudoso Francisco
mentalidades, a explicação pode estar associa- Biquiba Dy Lafuente Guarany (1882-1985).
da ao aspecto ritualístico atribuído às carran- O mais notável carranqueiro do São Fran-
cas pelos narradores fantasiosos, que encon- cisco ficaria desolado ao saber que poucos
traram na função totêmica uma fácil explica- escultores têm a audácia de fugir ao padrão
ção para a origem incerta de tal manifestação imposto pela clientela. A experimentação, um
da arte popular. dos pressupostos da criação artística, ficou
De ornamento das barcas passou-se também a mesmo atrelada à figura de Guarany.
atribuir a essas curiosas figuras a função má- Nascido em 1882, mas registrado no dia 2 de
gica de salvaguardar os barqueiros, viajantes abril de 1884, Guarany inaugurou o século
e moradores contra as tempestades, perigos e 20 esculpindo sua primeira Carranca, aos 19
maus presságios. Uma crença que, medidas as anos. 50 anos depois, foi considerado o res-
proporções, perdura até hoje. ponsável por dois terços das carrancas escul-
O fato é que a dimensão religiosa das artes, pidas no século XX para as barcas do médio
muito comum nas primeiras manifestações São Francisco. Até os 98 anos, revelou-se, em
culturais, deu aos objetos artísticos ou às obras cada carranca esculpida, um artista de refina-
de arte um caráter singular. “Sua qualidade de da sensibilidade e melhor representante das
eternidade e fugacidade simultâneas, seu per- soluções plásticas de elevado conteúdo artís-
tencimento necessário ao contexto onde se en- tico e emocional.
contra e sua participação numa tradição que Não por acaso, a cada peça criada atribuía um
lhe dá sentido”, como escreve Marilena Chauí. nome próprio, fruto de sua imaginação prodi-
Ao desenvolver tais argumentos, Chauí se re- giosa e de referências a animais pré-históricos
fere a uma característica presente no vínculo e à mitologia indígena. Foi assim que surgiram
interno entre unidade e durabilidade, que é a Aratuy, Muturân, Salaô, Tôrian Jerome, Melo-
autenticidade da obra de arte. “A própria noção zán, Borêta, Zulcão, Muritan, Peroni, Xateiro,
de autenticidade não tem sentido para uma re- Caxalot, Tatuy, Zucuidro, Chipam, Igatoni,
produção, técnica ou não”, aponta Benjamin. Brutuan, Capebolo, Capiñago, Mastodonte,
E, em seguida, traz um dado relevante para o Megatério, Galocéfalo, Medostantheo, Bron-
objeto (carranca) em questão: “Mas, diante da tosário, e tantos outros nomes (in)decifráveis.
reprodução feita pela mão do homem, e consi- Mas, ao me despedir de Paulo das Carrancas
derada em princípio falsa, o original conserva naquela tarde de quinta-feira, senti que este
sua plena autoridade”. Será? exercício teórico-analítico sobre a produção
As carrancas produzidas por Paulo foram ana- das carrancas, à luz da teoria crítica, não con-
lisadas na monografia mais completa escrita templa a dureza dos dias sertanejos, marcados
sobre essa arte popular, o livro Carrancas do pela falta de incentivo, abandono e esqueci-
São Francisco, de Paulo Pardal. Nesta obra, mento. Algo que inequivocamente se reflete
Pardal ressalta que as carrancas-vampiro (as- na dureza com a qual eu fui recebido.
sim denominadas por apresentarem vistosa Diferentemente do que havia feito há um tem-
dentadura branca onde sobressaem os cani- po atrás, quando estive com outros colegas
nos) refletem um sentimento coletivo muito fazendo pesquisa de campo sobre “a perma-
desligado do protótipo original. nência (ou não) da aura na (re)produção das

MAI. MAI.
2011 48 49 2011
Carrancas”, Paulo se recusou a falar. Contras- comentar mais nada: silêncio e esquecimento panhada de um profundo silêncio. Em 2004, uma música em homenagem a ela, que a parte
tando com a disposição em exibir suas produ- são palavras muito próximas. um Acidente Vascular Cerebral (AVC) deixou mais certa da letra era a que dizia: “O reco-
ções ao clique da câmera, naquela tarde não Palavras que por muito tempo ressoaram na Ana sem movimentos e fala. Um ano depois nhecimento demorou e veio lento chegou de
foi possível tirar fotografias. O encontro não vida da artesã Ana Leopoldina dos Santos, foi agraciada com a Ordem do Mérito Cultu- fora pra dentro”.
durou nem cinco minutos. mais conhecida como Ana das Carrancas. ral, recebendo, emocionada, o título das mãos O problema é quando o reconhecimento teima
Tempo suficiente para dizer que tem se de- A trajetória da mulher que, para sobreviver, do presidente Lula e de Gilberto Gil, ministro em não chegar, legando aos carranqueiros e
dicado a fazer outras coisas, muito além da transformou o barro numa figura zoomorfa já da cultura na época. No mesmo ano, o Gover- carranqueiras do São Francisco um silêncio
produção das carrancas. Se em 1983 ele dizia, rendeu um perfil biográfico: Ana das Carran- no do Estado conferiu-lhe o título de Patrimô- involuntário que se mistura à necessidade di-
num depoimento que compõe o livro O Velho cas: A dama do barro, do jornalista Emanuel nio Vivo de Pernambuco.  ária. “É dessa arte que minha família tira o
Chico: sua vida, suas lendas e sua história, do Andrade, e uma matéria escrita por Pedro Bial No dia 1º de outubro de 2008, uma parada sustento para sobreviver”, afirmou Paulo Ro-
jornalista Wilson Dias, que faltava o incentivo para o Jornal Nacional. cardiovascular fez a Dama do barro entrar berto de Jesus Santos em 1983. Atualmente,
e o apoio dos órgãos ligados ao setor de cul- Curiosamente, a nova percepção cultural em silêncio perpétuo. Quando Ana tinha voz, tendo completado 35 anos de carrancas, nem
tura popular e turismo. Agora ele prefere nem que se forjou em torno da artesã veio acom- revelou ao músico Wagner Miranda, autor de isto ele pode dizer.

Fachada do Centro de
MAI.
2011 50 Artes Ana das
51 Carrancas
MAI.
2011
a nossa
primeira
presidente
Avó de José de Alencar, a revolucionária
Bárbara de Alencar governou a República do
Crato e foi a primeira presa política do país
José Carlos Brandão

Quando estourou a Revolução Pernambucana as prendiam, restringiam, totalmente), Bárbara


de 1817, Bárbara de Alencar liderou o movi- não apenas aderiu, mas pôs-se à frente da Re-
mento no Cariri e proclamou a República do volução Pernambucana em seu estado de ado-
Crato, sendo designada sua presidente. Assim, ção, o Ceará. O movimento separatista durou
Bárbara de Alencar tornou-se, senão a primei- menos de três meses. No dizer do etnólogo po-
ra presidente do Brasil, a primeira presidente tiguar Luís da Câmara Cascudo, a revolução de
de uma república brasileira. Agora temos uma 1817 foi a mais linda, inesquecível, arrebatado-
primeira presidente do Brasil, Dilma Rousse- ra e inútil das revoluções brasileiras. Bárbara
ff, revolucionária e presa política como Bár- foi presidente por apenas oito dias. Mas foi o
bara de Alencar. bastante para marcar a sua presença na história.
Num tempo em que as mulheres dedicavam-se Crato é uma cidade situada na região do Cari-
às famosas prendas domésticas (prendas que ri, no sul do Ceará, no pé da Serra do Araripe.

MAI. MAI.
2011 52 53 2011
A região era habitada pelos índios Cariris (ou Veio a repressão e Bárbara se tornou também a
Kiriris, palavra que em sua língua significa primeira prisioneira política do Brasil. A corte
“calado” ou “sincero”). Calcula-se que os ín- fez questão de mantê-la presa de 1817 a 1820
dios Cariris ocupam o lugar desde o século em várias cadeias precárias, vivendo ou sobre-
IX. Há documentos comprovando a ação dos vivendo em condições desumanas, no Forte
missionários na região desde 1730. Nossa Senhora da Assunção, em Fortaleza, de
onde foi transferida para o Recife e depois para
A cidade do Crato primeiro foi chamada de
Salvador. Bárbara ganhou a liberdade em no-
Missão do Miranda. Em 1764 a povoação to-
vembro de 1820, por ocasião da Anistia Geral.
mou os foros de Vila, com o nome de Crato em
homenagem à cidade portuguesa homônima no Não se acovardou, nem se acomodou. Apesar
Alentejo. E, enfim, foi elevada à categoria de de ser já uma senhora de mais de 60 anos de
cidade em 1853. idade, Bárbara de Alencar continuou a partici-
par das lutas políticas da sua época. Em 1824,
Portanto, quando foi proclamada a independên-
seus três filhos homens entraram no movimen-
cia da região e a criação da primeira república
to que se chamou Confederação do Equador e
no Brasil, o Crato era ainda uma simples vila.
que incendiou as províncias nordestinas. Dois
Personalidades influentes da época, latifundiá-
deles morreram. Bárbara sobreviveu e só mor-
rios monarquistas, ficaram insatisfeitas e man-
reria em 1832, na fazenda Alecrim, no Piauí,
daram prender Bárbara de Alencar, a presiden-
de onde o corpo foi levado para ser sepultado
te, e os seus filhos. A República do Crato foi tão
em Campos Sales, Ceará.
efêmera que os historiadores sempre lhe deram
pouca importância, mas hoje enfim reconhecem Quando o romancista José de Alencar foi eleito
que foi o germe dos ideais democráticos. Senador do Império, D. Pedro II vetou o seu
nome. Apesar de já ter sido ministro da Justiça,
Até este acontecimento, a vida de Bárbara de
o imperador temia que trouxesse em seu DNA
Alencar parecia fadada a ser igual à de outras
os genes revolucionários e republicanos de seu
nordestinas. A revolucionária nasceu em 1760,
pai José Martiniano, de seus tios Tristão e Car-
na cidade de Exu, Pernambuco. Casou-se, em
los, e de sua avó Bárbara de Alencar.
1782, com José Gonçalves dos Santos, co-
merciante de tecidos na vila do Crato, e teve Hoje, o Centro Cultural Bárbara de Alencar
quatro filhos. Quando estourou a Revolução agracia todos os anos três mulheres, com a Me-
Pernambucana de 1817, seu filho José Marti- dalha Bárbara de Alencar. O centro administra-
niano de Alencar, no púlpito da Igreja Matriz, tivo do Governo do Ceará chama-se “Centro
proclamou a República do Crato, e nomeou a Administrativo Bárbara de Alencar”. Em For-
mãe presidente. taleza há estátua sua na Praça da Medianeira.

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Vende
Vende-se. Mas e antes disso? Primeiro, planta- Conselheiro Galvão nº58, às 9h de uma enso-
-se. Depois, colhe-se. Aí, coloca-se em cami- larada manhã. Burros-sem-rabo e carrinhos de
nhões. Até que chegue-se. Chega-se e descar- mão fazem o transporte até as lojas. Em meio
rega-se. Arrumam-se as gôndolas. Abrem-se as à confusão de homens fazendo carga e descar-
lojas. E aí sim, vende-se. Mas e depois disso? ga, camelôs ainda conseguem um espaço. Do

-se
Então, embrulha-se e a partir daí, existe um lado de dentro, o zum-zum-zum é mais intenso
leque de possibilidades. Dá-se de presente, e barulhento do que aqui.
come-se, bebe-se ou mesmo, sacrifica-se. Mas O Mercadão está cheio, mas o clima é ameno.
em algum momento, vende-se. Para esse mo- Os 8 mil metros quadrados de comércio rece-
mento, o lugar certo é o Mercadão de Madurei- Os bastidores do Mercadão
bem bem 80 mil consumidores diariamente.
ra, o maior mercado popular do Brasil. São mais de 600 estabelecimentos nos dois de Madureira, o maior
Mais de 20 caminhões vêm dos mais diver- andares e uma receita responsável por gran- mercado popular do Brasil
sos cantos. Eles descarregam produtos na rua de parte da arrecadação do ICMS no bairro.
tratar com Saulo Pereira Guimarães

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2011
O espaço já faz parte da história da região – ca ou mesmo um restaurante. Basta andar por
muito embora tenha sua própria história – e aqui para ver.
atrai políticos, celebridades e principalmente A culinária mineira repousa na galeria C. O
fregueses para suas longas e largas galerias. restaurante a quilo Mineirinho serve tutu de
As galerias são os corredores que abrigam feijão, carne de porco e cachaça para quem tem
as lojas. Cada uma é pintada de uma cor. A saudades da terra onde nasceu ou pela qual se
C é Salmão. A H, verde e a F, marrom. E há apaixonou. A globalização também não escapa
muitas outras. Elas formam esquinas e, num na forma de fast foods como Bob’s e outros
determinado ponto, grande parte conflui for- menos prestigiados, que também marcam pre-
mando uma espécie de praça, onde ficam as sença. Para exóticos amantes da gastronomia
escadas rolantes. Há quem divida as lojas por da Hélade, até o duvidoso churrasco grego
setor e são os mais variados. Aviário, lancho- encontra-se à venda do lado de fora. É comida
netes, lojas de ferragens, de impressão digital para todos os bolsos e gostos.
e até uma floricultura. Quem não pode comer, não entra. A forte
Ela se chama Rio Bonito Paisagismo. Na ver- presença dos seguranças por todos os lados
dade, trata-se de um quiosque, na esquina da intimida. A poucos metros dali, a opção dos
Galeria A com a F, no primeiro piso. É repleto pobres é o restaurante popular Tia Vicentina,
de flores, plantas, duendes e outros enfeites de mantido pelo governo. Lá, as refeições custam
jardim, quem atende lá nessa manhã é Elaine, apenas R$ 1. Num país de tantos contrastes,
uma senhora de meia-idade. Ela afirma que o eles não poderiam faltar no Mercadão. Para o
negócio vai bem e que o ponto é muito bom. mal, como no caso descrito. Ou para o bem, na
“O nome é uma homenagem à cidade onde pluralidade de ofertas lado a lado.
nasceu a minha sogra”, diz. Aqui, ao que pare- A diversidade de produtos é uma marca do lu-
ce, o mercadão é verde. Mas há muitas outras gar. A loja dos Correios fica quase em frente ao
cores que ver nesse mar de gente e histórias. quiosque da Sinaf, uma funerária, os dois ten-
Mar ou selva, cheia de cheiros que se fazem do em comum somente o ofício da encomen-
sentir. A essência doce do fumo-de-rolo nas lo- da – ainda que de matérias diferentes. Em cor-
jas que insistem em vendê-lo. A agradável e redores paralelos, lojas de frutas e de roupas
asséptica melodia olfativa da cânfora. O fedor populares. Numa única galeria, as diferenças
clássico de galinhas e companhia, vendidas vi- são tantas que terminam até passando desper-
vas nos aviários. O odor enjoativo da gordura cebidas. Um mundo de produtos se descortina
que vem das pastelarias e lembra que a hora é nas pequenas lojas.
de almoçar. E mais: que para isso, não é preci- Corredor C, segundo andar, pouco depois das
so sair do Mercadão. escadas rolantes. Lê-se: “Temos obi, orobo, es-
O menu de hoje é refinadíssimo. Almônde- sum e efum africanos.” São artigos utilizados
gas, moela com batatas ou pernil com maio- nos terreiros que a Lua e Mar, nº221, comer-
nese a módicos R$ 6. Um delicioso Mocotó a cializa para iniciados. Logo atrás, a moderna
R$8. A luxuosa carne seca a R$9,50. O bar do HB Carioca tem Jack Daniels a R$93,50 e Red
Careca fica na esquina da H com a G, 2º piso. Label por R$ 79,80. No 213, a Mercadão Pet
As mesas estão todas cheias. Como aqui, há vende Royal Canin para cães Yorkshire ao pre-
outras cozinhas a todo vapor em vários can- ço do segundo uísque. No meio do caminho,
tos do Mercadão. Em cada canto, uma biros- lasanhas a R$ 8,50 na Casa das Massas, nº 217.

MAI. MAI.
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Uma proximidade inconcebível para espaços vende bichos para sacrifício em rituais e tem Uma mulher olha obstinada para uma dessas lo- Fim de tarde. Em Brasília, 19h. Hora de voltar
tão distantes no imaginário comum. email próprio. jas. A umbanda, a macumba e o candomblé têm para casa. Dessa vez, ao contrário da música,
Por todo Mercadão, multiplicam-se variados Lojas como essa também não são raras por aqui uma espécie de templo, onde encontram Madureira não chorou. Segue sorrindo de bra-
negócios para diversos fins. A loteria Merca- aqui. Estamos em Madureira, há poucos metros as oferendas para suas entidades. E a mulher, ços abertos para quem quiser lhe visitar. Na ga-
dão da Sorte, na mesma galeria do obi, orobo e da Serrinha do jongo e no local de onde parte toda de branco, bem parece uma delas. Veste leria L, Madureira é um velho botequim todo
efum. O salão de beleza Betel, com estúdio de todos os anos a procissão de Iemanjá. É inevi- um boné que esconde seus olhos. Está cabis- em azul e branco que poderia estar em sépia. O
tatuagens num apertadíssimo sótão, em frente tável sentir a energia que vem da porcelana dos baixa, como quem espera alguém. Os braços que de mais moderno nele existe são afrescos
a uma loja de cestas de café da manhã. ibás e dos santos, vendidos nas casas de artigos cruzados. Os passantes não a vêem. Ela segue com losangos de Brasília. Num espaço que não
Serly, da Sinaf, confirma o sucesso e diz que a religiosos. As estátuas de olhos que fingem ser impávida, com o rosto sério e desfigurado. É só se vende para um futuro que nunca chega, peço
saída é ótima, mesmo em seu fúnebre empre- fixos e expressões vivas impõem respeito a to- mais um orixá que passa discreto e forte entre uma “água com gaz” – como consta na tabuleta
endimento. Mais distante, a Toca do Caçador dos e são passíveis de veneração por alguns. os homens nas galerias lotadas do Mercadão. – antes de dizer adeus.

MAI. MAI.
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Classificados
Dados engraçados, curiosos e inusitados sobre
o Mercadão de Madureira

Histórico
A história do Mercadão de Madureira

A poucos metros daqui, em meio aos prédios e o asfal-


to, ainda planta-se. Trata-se da Vila das Torres, que todos
chamam mesmo é de Horta. O que se vende é fruto do que
se colheu lá. Sementes de uma história que germinou há
quase um século pelas terras do bairro.
Naquele tempo, o Rio eletrificava-se pelos cabos da
Light. A luz que vinha de longe rompia os subúrbios até
chegar no centro da cidade, desapropriando terras à beira
da linha do trem. Por aqui, os terrenos impróprios para
morar foram arrendados a lavradores e donos de chácara
portugueses. Logo, eles começaram a produzir e a comer-
cializar seus produtos no espaço onde atualmente fica a
quadra da Escola de Samba Império Serrano. O lugar fi-
cou conhecido como Mercado de Madureira.

Anuncie aqui
Políticos das mais diversas matizes e procedências
no Mercadão

No mercado fundado por Juscelino Kubistchek, políti-


cos sempre são bem-vindos. Sempre houve pelos corredo-
res dezenas de personalidades, que ainda hoje vagueiam
pelas galerias em tempo de eleição. Fernando Gabeira
disse em seu blog que “visitar o Mercadão de Madureira
é garantia de contato direto com os eleitores”.
Esse foi o caso de velhos conhecidos como Domingos
Brazão, Luiz Paulo e outros menos ortodoxos. A dupla do
tetra, Bebeto e Romário, que se candidatou a cargos no
pleito de 2010, passou por aqui. Isso sem falar no defen-
sor da causa gay e ex-big brother Jean Willis que também
militou por essas bandas. Num exemplo máximo de tole-
rância ideológica, o mesmo espaço recebeu o candidato
evangélico Samuel Malafaia.

MAI. MAI.
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Festa de iemanjá
Festa mobiliza comunidade nos fins de anos

29 de dezembro. Todos de branco, numa enorme procis-


são de paz. A Festa de Iemanjá é organizada há sete anos
pelo Mercadão de Madureira. Durante todo mês de dezem-
bro, um enorme barco é montado e recebe pedidos e oferen-
das. Alimentos são arrecadados e distribuídos entre institui-
ções de caridades das redondezas, em troca de camisetas do
evento. A imagem de 1,80m com vestido azul e coberta de
contas vai ornada de flores até a orla de Copacabana.
No dia, os ogans tocam e ouvem-se os cânticos antes da
partida. Às 14h, os Filhos de Gandhi retiram das ofertas do
mercado. A procissão sai às 15h, com um caminhão, ônibus
e carros enfileirados, sempre acompanhada por uma ambu-
lância e por batedores da Guarda Municipal. Na praia, após
os rituais, libertam-se pombos brancos que simbolizam paz
entre os homens e todas as religiões.

Morar bem
O Edifício Colima com seus 48 imóveis com as carac-
terísticas descritas fica sobre o maior mercado popular do
Brasil. O valor de compra dos apartamentos se equipara ao
de alguns próximos a Ladeira dos Tabajaras em Copacaba-
na. O aluguel custa em média, 400 reais. Num logradouro
servido por 15 linhas de ônibus para os mais diversos can-
tos da cidade, a compra pode ser um ótimo investimento.
Difícil é imaginar como é morar ali, mas quem lá for bus-
car um teto vai se surpreender: não há vagas. Com todos os
apartamentos preenchidos, o condomínio só não tem uma
vista das melhores, aos pés do morro São José. Vai encarar?

Calculoucos
Mercadão vs. O maior shopping do Rio

Exatos 6,9 quilômetros separam o Mercadão do maior


shopping da cidade, o Norteshopping. Porém, em termos
práticos, os dois estão bem mais próximos. As 600 lojas es-
palhadas pelos 8 mil metros quadrados do Vovô de Madu-
reira contrastam com as 343 que ocupam os 245 mil do Ga-
rotão do Cachambi. Apesar de bem mais moderno e amplo,
o shopping de 24 anos não chama mais público que o velho
centro comercial suburbano. Os dois centros compartilham
a média diária de 80 mil consumidores em seus corredores,
numa curiosa e populosa coincidência.

MAI. MAI.
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entrevista com o

cyber
punk
Um dos maiores especialistas em ficção científica
do Brasil, o escritor e dramaturgo Fabio
Fernandes discute o futuro do gênero
Romeu Martins

MAI. MAI.
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Você está na ativa produzindo textos literá- letâneas e uma novela meio em formato fanzine, de graça, por que é que vai se dar ao trabalho jus ao grande e elogioso apelido do Bráulio.
rios, tanto em prosa quanto em verso e obras A revanche da ampulheta. Interface e Revanche de pagar o que seja (e lembro que, na época, o Mas na época, eu realmente pouco entendia do
teatrais, desde meados da década de 1980. ganharam dois prêmios Argos, concedidos pela livro custava 18 ou 20 reais, o que ainda é muito assunto: inclusive me identifiquei muito com
Em um balanço rápido: já foram quantas pe- Sociedade Brasileira de Arte Fantástica. caro) por um PDF? Por melhor que seja o conte- o Gibson quando ele descreve suas reações ao
ças escritas e encenadas; quantos livros lan- Traduções: algo entre 60 e 70, mas realmente údo, não vale tanto. O interessante é que, pouco usar seu primeiro computador para escrever
çados; quantas traduções de romances e de não tenho a conta, até porque alguns desses li- depois do lançamento do livro, entrei no mundo Count Zero (porque Neuromancer foi escrito
contos publicadas e de quantos autores dife- vros (como Bird lives, uma biografia de Charlie dos blogs – e percebi que a maioria dos bloguei- em máquina de escrever).
rentes; quantos prêmios recebidos nestas pri- Parker) nunca foram publicados. Contos, entre ros queria era, no fundo, publicar livros de pa- Como tradutor, aprendi uma coisa que me aju-
meiras duas décadas? 20 e 30, todos para a extinta Isaac Asimov Maga- pel! Ou seja, ainda não nos libertamos do papel. dou e me ajuda muito na hora de escrever meus
Nunca parei para fazer uma contagem exata: zine, entre 1989 e 1991. Autores, muitos e varia- Mas eu não acho isso ruim, porque a literatura próprios textos: é muito importante pesquisar
crashes em discos rígidos de vários compu- dos, de Kurt Vonnegut e Gore Vidal até William é uma mídia cujo melhor suporte ainda é o pa- e aprender os termos corretos do que você vai
tadores e a perda lamentável de impressos de Gibson e Philip K. Dick, passando por nomes pel. Quando ela sai do papel, ou vira hipermídia traduzir – mas tão importante quanto, ou talvez
alguns textos foram em parte responsáveis por menos conhecidos dos brasileiros como George ou game – até porque, se não virar, fica muito mais, é conhecer bem seu próprio idioma, para
isso. Mas creio que é mais ou menos o seguinte: R. R. Martin e Frederik Pohl. Neste momento, chata e malfeita – ou dá a sensação de que foi que o texto pareça ter sido escrito por um bra-
tenho três peças de teatro (Polêmicas, de 1985, estou terminando a tradução de Snow crash, de subaproveitada. Cheguei a pensar em fazer hi- sileiro. Ao escrever uma história que exija pes-
peça de três esquetes que ganhou um prêmio em Neal Stephenson, um autor pós-cyber que ainda permídia há algum tempo, mas sei que ainda não quisa, mais importante que entender os mínimos
1986 e que teve um de seus esquetes reescrito não é conhecido do grande público, mas que é o explorei todas as possibilidades que as palavras detalhes do assunto é trabalhar bem a história, a
em 1998, tornando-se a peça Vestidos brancos, responsável pela introdução do termo “avatar” têm para oferecer no simples suporte bidimen- linguagem e os personagens, para que a narra-
encenada no Rio de Janeiro sob a direção de no jargão internético e cujo Metaverso ficcional sional do papel. Basta vermos o que tem sido tiva flua como se você estivesse, por exemplo,
Luiz Armando Queiroz; Com açúcar, sem afeto, serviu de inspiração para o Second Life [nota: lançado em literatura brasileira. O que tivemos ouvindo alguém contar uma história que acon-
monólogo cômico encenado por mim mesmo e o livro foi publicado pela editora Aleph com o de realmente revolucionário depois de Guima- teceu de verdade. Quando você está numa roda
dirigido por Anja Bittencourt; e Ao fim do lon- título em português de Nevasca (2008)]. rães Rosa e de Paulo Leminski? Ainda existe de amigos ouvindo uma história verídica, os
go inverno, ainda inédita. Esta última peça é a muito chão, e, como disse Antero de Quental, é detalhes podem até ser fundamentais para você
Interface com o vampiro, o livro que você aca-
única que tem uma temática de ficção científica ideal ocupar estes espaços. entender o que se passou, mas a maneira de con-
ba de tornar disponível na internet, segue o
(inverno nuclear), e foi adaptada para o cinema Quem lê Um diário dos dias de peste e Inter- tar é mais importante, porque se a história for
caminho de flexibilização dos direitos auto-
por mim, Anselmo Vasconcellos e Marco Schia- face com o vampiro pode imaginar que se de- boa mas o narrador for chato, não rola, não dá
rais do copyleft. A obra teve uma encarnação
von, para ser dirigida por Emiliano Ribeiro (As parou com um expert em informática. A im- liga. Acho que, primeiro, o escritor de FC pre-
anterior, também eletrônica, porém o acesso
meninas). Esse filme está na fase de captação pressão se fortalece pelo fato de você ter se cisa ler muita literatura brasileira, de todo tipo,
era cobrado e intermediado por uma antiga
de recursos. formado como técnico em eletrônica antes de de Machado de Assis a Ana Maria Gonçalves,
editora virtual. Mas, antes disso ainda, al-
cursar Jornalismo. Mas consta que sua expe- passando por Clarice Lispector, Jorge Amado,
Livros: apenas o Interface com o vampiro, em guns dos contos já haviam saído impressos
riência real com hardware não é bem assim, Paulo Leminski, Nelson Rodrigues, enfim, é um
2000 e, mais recentemente, minha dissertação na década de 90 em fanzines. Ou seja, seu
tanto que chegou a receber um apelido de um universo incrível e maravilhoso. Agora, se esse
de mestrado, A construção do imaginário cyber livro passou por praticamente todas as fases
colega escritor de FC, Braúlio Tavares, para candidato a escritor for daquele que só curte ler
(2006) [nota: após a realização desta entrevista, de uma revolução no acesso ao conhecimen-
expressar a falta de jeito: cybergeist (literal- FC, então é bom nem começar, porque não vai
Fabio Fernandes lançou pela Tarja Editorial o to. Qual é o futuro que você imagina para a
mente, cyberespírito, mas também pode ser sair um bom trabalho.
livro Os dias da peste (2009), ampliando o uni- indústria editorial e para os escritores, prin-
cipalmente os ligados à literatura de gênero, compreendido como “poltergeist cibernéti- Borges parece ser uma referência clara em
verso apresentado em alguns contos do ebook
como fantasia e ficção científica? co”). O resultado prático dos textos citados seus textos mais voltados ao fantástico. Que
Interface com o vampiro]. Tenho uma coletânea
são a prova da importância da pesquisa para outros autores fizeram e fazem parte da sua
de microcontos completa, o Pequeno dicionário Toda previsão em termos de tecnologia é peri-
todo escritor de FC que pretenda publicar lista de influências assumidas? Entre eles to-
de arquétipos de massa, composto de contos es- gosa, e não pode ser levada a sério – talvez por
algo mais hard, mais ligado ao mundo das ci- dos, qual a importância de William Gibson, o
critos entre 1998 e 2003, e que, embora tenha isso gostemos tanto da ficção científica, que é
ências exatas e da tecnologia aplicada? criador da cultura cyberpunk e que chegou a
tido vários contos publicados em várias revistas um território de experimentações onde podemos
Na verdade, eu até que aprendi um pouquinho ser tema de sua pesquisa na pós-graduação?
(inclusive as brasileiras Cult, Et Cetera e Fic- deixar a imaginação correr solta. A experiência
ções e a portuguesa Periférica) e sites (como o com a editora digital não foi boa, porque acho de informática, o suficiente para não fazer mais São muitos autores. Sempre gostei de ler de tudo.
Overmundo), tem sido sistematicamente recusa- que esse sistema já nasceu falho: se todo mundo
da por editoras. Publiquei vários contos em co- pode baixar uma imensa quantidade de conteúdo

MAI. MAI.
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Uma lista rápida, pensada de cabeça, sem or- que estuda novas tecnologias. Minha orienta-
dem de importância: Borges, Cortázar, Thomas dora de mestrado, a net artist Giselle Beiguel-
Pynchon, Donald Barthelme, William Gibson, man, me deu muito apoio para escrever sobre
Alastair Reynolds, David Zindell, Gene Wolfe, Gibson. Não encontrei nenhuma dificuldade,
Machado, José de Alencar, Martins Pena, Mar- pelo contrário: antes de mim, já trilharam essa
çal Aquino, Clarice, Jorge Amado, Osman Lins, seara pesquisadores incríveis, como Gilbertto
Guimarães Rosa, Erico Veríssimo, Luis Fernan- Prado, André Lemos e Adriana Amaral, com os
do Veríssimo, e.e.cummings, Sylvia Plath, John quais tenho o prazer de travar ótimos diálogos.
Donne, Paulo Leminski, Yeats, Graciliano Ra- E, pelo que pude conferir a partir da publica-
mos, Nelson Rodrigues, Martins Pena, Campos ção da minha dissertação, vem mais gente por
de Carvalho, Patricia Melo, Rubem Fonseca. aí com material interessante para discutir FC.
Sobre Gibson: a leitura dele, em 1989, foi um Na minha tese de doutorado, continuo um pou-
divisor de águas na minha cabeça. Eu já gosta- co desse diálogo com a FC, mas não tratando
va muito de FC, mas até então eu era meio que especificamente do Gibson, e sim autores que
um nerd, um legítimo nerd que, apesar de já ler exploraram a questão do pós-humano no futuro
bastante coisa em inglês e de curtir muita coisa de diferentes maneiras, como Arthur C. Clarke,
que não era lida no Brasil, não entendia a FC Stanislaw Lem, Richard K. Morgan, H.G. Wells
como algo que pudesse ser realmente revolu- e mais alguns.
cionário. Claro, já existia a New Wave britânica, Você acompanha o que vem sendo escrito atu-
mas eu só fui ler esse pessoal depois de ler os almente em termos de FC no Brasil?
cyberpunks. Eu me identifiquei de cara com a
Infelizmente, não tenho acompanhado a produ-
atitude punk sem deixar de ser inteligente: era
ção atual. Parei na época da Intempol, porque
possível ser um nerd punk sem ser um geek,
foi justamente quando optei conscientemente
era possível fazer algo que não se limitasse a
por fazer uma espécie de “sabático” de ficção
robôs e espaçonaves (coisa que, aliás, a leitura
científica brasileira, basicamente porque eu
dos cyberpunks me travou para fazer; confesso
precisava me aprofundar nos cyberpunks e em
que sempre quis escrever uma space opera am-
William Gibson para o mestrado.
bientada no futuro distante, mas nunca vi futuro
para isso no Brasil e não sei se vou conseguir Praticamente não escrevi FC nesse período: o
escrever isso algum dia). que fiz foi terminar o Pequeno dicionário e ba-
Quanto ao seu relacionamento com a acade- talhar pela sua publicação em revistas e como
mia, como a produção de escritores de FC, livro em editoras. Atualmente estou dando aulas
nacionais e internacionais, é encarada hoje e traduzindo. Tive de mudar o eixo das minhas
no mundo acadêmico brasileiro? Você teve leituras de forma radical, o que inviabilizou um
alguma dificuldade em propor seu tema para contato com publicações independentes.
Autor de Pequeno dicionário de arquétipos de massa, que tem
uma seleção de microcontos inéditos publicados nesta revista, Fabio dissertação de mestrado na universidade e, --
Fernandes é também um dos melhores tradutores de ficção científica principalmente, em encontrar outros pesqui- Publicado originalmente em 2007, este texto faz
do Brasil e autor de uma tese sobre o gênero cyberpunk. Nesta en- sadores para orientá-lo e para participar de parte de um projeto chamado Ponto de Conver-
trevista, faz um retrospecto geral da carreira, questiona o espaço no sua banca? gência, que pretende traçar um panorama da
mercado editorial para a ficção científica e traça um panorama dos Felizmente, não tive nenhuma dificuldade. Gi- ficção científica nacional através de resenhas
principais autores contemporâneos dedicados ao futuro. bson e Stephenson são escritores lidos na aca- de livros significativos lançados ao longo da úl-
demia, pelo menos no círculo de acadêmicos tima década e de entrevistas com seus autores.

MAI. MAI.
2011 70 71 2011
Pequeno
Dicionário de

Arquétipos
de Massa

MAI. MAI.
2011 72 73 2011
Fadas Lobisomens
(da série Pequeno Dicionário de Arquétipos de Massa) (da série Pequeno Dicionário de Arquétipos de Massa)

A fada dança. Eles aparecem quando você menos espera. Estão sempre com pressa, mas
A pista de dança está lotada mas assim mesmo a fada se destaca. Os braços finos que balançam, você jamais saberá o motivo. Porque você é a vítima.
o corpo que se move suave, as asas invisíveis desenhando arabescos estroboscópicos. Escolha o modo: agressão verbal, uma cotovelada, um empurrão. Não raro
A fada é linda. um soco ou chute. Às vezes – em geral no trânsito – uma bala.
Fadas não têm consistência. Fadas têm leveza. Fadas não tem certeza. Diversas definições explicam o comportamento deles, segundo os estudiosos. Estresse, frustrações, abuso na
Fadas são foda – e o que importa se o clichê é velho? Fadas são sempre novas. infância. Você não chega a fazer uma análise tão profunda. Ainda mais porque é atacado por eles quase todo dia.
A fada está linda, linda assim toda moantada. Normalmente eles não atacam suas vítimas de modo direto. O procedimento-padrão é passar
E daí se a fada é um símbolo? E daí se a fada não tem sexo, ou por outra, e daí se a fada tem sexo por cima de qualquer um que esteja à frente deles, custe o que custar. Atropelamentos,
sim e não é segredo para ninguém qual, mas esse mistério estará sempre lá mesmo assim. ferimentos e eventuais mortes são consideradas apenas casualidades.
A fada seduz você. Porque a fada é tudo aquilo que você quer ter mas não Mas quando são apanhados, lamuriam-se e dizem “eu não queria ter feito isso, foi sem querer”, ou
pode. Não pode? Não fode, vá lá e tire a fada para dançar. ainda “eu não me lembro de ter feito isso, não sei o que deu em mim”. Há quem acredite.
O que não elimina o perigo, que está em toda parte.
E quem não for um deles certamente será uma vítima.
Frankenstein
(da série Pequeno Dicionário de Arquétipos de Massa)
Vampiros
Um dia a mulher viu a primeira ruga.
(da série Pequeno Dicionário de Arquétipos de Massa)
Não era exatamente uma ruga, mas um pé-de-galinha. Mas a vaidade não vê a diferença.
Marcou com o cirurgião plástico. Que sugeriu um lifting. Paulo é um homem discreto, apesar da profissão. Ele é músico e toca num grupo de jazz.
A primeira vez ninguém esquece. Ainda mais quando dói. E dói muito. Está sempre em evidência, embora nunca em primeiro plano. Isso lhe cai bem, pois ele pode
Quando ela retira os curativos e o inchaço passa, ela se sente outra. Mas sabe andar pelas ruas de Ipanema e do Leblon de madrugada sem que ninguém o perturbe.
que é exagero: está apenas, digamos, melhorada. O rosto está ótimo. Paulo gosta de caçar. Não importa sexo, cor, religião: basta que seus olhos pousem sobre a
Menos os lábios. Porque agora a mulher repara nos lábios. Finos vítima e um arrepio sutil percorra seu corpo, da base da nuca até a virilha, e pronto. Ele joga seu
demais, conseqüência da idade, dizem as amigas. charme, sempre da maneira mais adequada para o caso. Quase sempre consegue, e é nisso que
O cirurgião aplica enzimas. Os lábios incham, ficam gulosos. Ela acha sensual. reside o perigo, pois Paulo conhece bem o velho ditado árabe que diz “Cuidado com o que você
Mas a barriga. A barriga. procura, pois pode conseguir.” Às vezes Paulo consegue até demais: ele se apaixona.
Maldita gordura. E então tudo é felicidade, estado de graça. Paulo se entrega à paixão. Seu parceiro do momento também,
Lipo-aspiração. e sempre se entrega mais (Paulo não escolhe aleatoriamente, afinal). Um dia, de repente, tão súbita quanto
Cut and paste. Connect e cut. no começo, a paixão se acaba. Para Paulo isso não é nada demais, ele já está acostumado: turnês na
O processo dura um dia inteiro, a dor dura semanas. A satisfação – dizem – dura anos. estrada, viagens constantes, essas coisas não ajudam um relacionamento que se pretenda duradouro.
Até a próxima ruga. Mas para seu parceiro da ocasião, a indiferença que Paulo afeta nesse momento é dolorosa. Essa é a
(Volte à primeira linha e comece tudo de novo. No mínimo três vezes.) pior parte: é o tempo das brigas, das discussões, das ameaças, às vezes das agressões. Paulo sempre sai
Hoje ela sorri. Apenas sorri. Não consegue fazer outra coisa com os músculos do rosto. ileso dessa fase desagradável: não se pode dizer o mesmo de seus amantes. Uma se matou, outra surtou,
um terceiro fez anos de análise. Paulo suga todos que se envolvem com eles. E depois joga fora.

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criações coletivas, filmes em

de-
sas-
sos-
se-
go
Fazer um filme pode partir de uma ideia banal; um lapso de história capaz de carregar imagens
e sons que, orquestrados, funcionem em conjunto. Ou pode ser também uma obra construída
durante anos a fio, detalhada, narrativa, estruturada. Seja como for, é bom que se considere tanto
os caminhos já abertos quanto as novas soluções que estão se cruzando na trajetória do cinema Novas possibilidades estéticas emergem no cenário
nacional, com a criação de grupos e coletivos para a produção de curtas e longas, espalhados brasileiro, chamando a atenção para redes compostas
por todo o país.
por grupos cearenses, mineiros e cariocas
Já faz parte da história os tempos em que filmes necessariamente eram peças caras, a serem
feitas vagarosamente, a duras custas e mediante diversas parcerias. O intervalo brusco que in- Inês Nin
terrompeu a produção brasileira durante a era Collor e que culminou com o fechamento da
Embrafilme, balançou severamente esse contexto. Mas hoje o chamado “cinema da retomada”
já tem mais de uma década.

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Começam a aparecer filmes capazes de desto- de fazer cinema ainda não demonstrem intei-
ar das referências mais evidentes do que seria ramente sua sustentabilidade e não forneçam
uma tradição nacional. Ainda que indiscutivel- todas as respostas para o futuro, esse futuro
mente brasileiros, mesclando referências de se constrói por meio de presentes desviantes e
um mundo globalizado a histórias e modos de promissores.
fazer tipicamente locais, esses filmes não fa-
Como diz Cezar Migliorin em seu crucial
zem força para pertencerem a este ou àquele
ensaio intitulado “Por um cinema pós-indus-
lugar; muito menos para reproduzir complexas
trial”, publicado na revista eletrônica Cinéti-
fórmulas de produção industrial como outrora.
ca, faz parte da lógica capitalista a estrutura
Com as facilidades de produzir e criar, vindas de produção hierárquica, extensa e planejada
com as novas tecnologias – câmeras de vídeo em seus mínimos pormenores, em que qual-
digitais em alta resolução, que se aproximam quer surpresa ou variação representa um risco
em muito à qualidade da película em 35mm ou mesmo uma anormalidade, por não terem
e que superam infinitamente em facilidade e consequências passíveis de se prever.
custos de produção; câmeras de celular e di-
Um novo ambiente, muito diferente deste, flo-
versas outras para os mais variados gostos –
novas resoluções e texturas emergiram. Ao resce mais fortemente desde os filmes de Ka-
mesmo tempo, a internet despontou como fon- rim Aïnouz, primeiro Madame Satã e depois O
te primeira para o acesso a um conteúdo antes Céu de Suely, irrigado pelo boom de documen-
restrito a festivais, locadoras e, principalmen- tários. Assistimos à emergência de pequenos
te, à remessa que o amigo do amigo trouxe da grupos que começam a produzir artesanalmen-
sua última viagem ao exterior. te seus filmes, e não somente curtas, mas – e a
surpresa – também longas!
Tudo isso torna possíveis certas experimen-
tações e olhares. Sim, porque devido a essa Antes deles, é importante lembrar, um cinema
enorme difusão e troca de conteúdo na web, nacional vinha se fortalecendo por outros cami-
pôde ter lugar o cultivo de filmes e diretores nhos, em grande parte pela crítica, que formou
de linguagens diversas e oriundos de partes sólidos grupos atuantes por meio de revistas
do mundo que não participam do mainstream eletrônicas e também de cineclubes. Faz sen-
cinematográfico. Marcelo Ikeda fala, não sem tido pensar que essa movimentação vinda de
razão, em seu recém-lançado livro, junto com muitos lados – universidades, cineclubes, fes-
Dellani Lima, Cinema de garagem – um inven- tivais, sites e revistas de crítica e de uma cres-
tário afetivo sobre o cinema jovem brasileiro cente produção de curta-metragens, em grande
do século XXI, que atualmente o Ceará pode parte identificada com realizadores que assinam
estar mais próximo de Belo Horizonte, das Fi- sozinhos ou em duplas – possa ter motivado a
lipinas ou de Taiwan que da Bahia, quando se criação de grupos ou coletivos que produzem
trata de cinema. de forma independente e colaborativa.
Não são só as tecnologias, mas todo um con- Um grupo de realizadores, em especial, tem
texto gerado por diversas mudanças conjuntu- chamado a atenção em festivais e mostras pelo
rais, que torna viáveis empreitadas com prati- Brasil e no exterior por sua próspera produção
camente nenhum dinheiro, e que muitas vezes nos anos recentes, o Alumbramento. São cinco
não esperam receber qualquer tipo de incenti- longas finalizados – sendo um de fato uma reu-
vo governamental ou de empresas. Ainda que, nião de curtas em torno de um tema, chama-
como toda novidade, essas formas emergentes do Praia do Futuro – e 29 curtas, feitos entre

Stills de ‘Desassossego - filme das


maravilhas’ e ‘Duas Mariola’
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‘Estrada para Ythaca’,
Alumbramento

2007 e 2011. A produtora, grupo ou coletivo nistradas as aulas, de maneira a garantir que gos que se reúne em torno de ideias e vontades funções de cada um dentro dos filmes.
Alumbramento teve origem na primeira turma continuariam. comuns, é possível notar semelhanças, ainda Entre sua produção, é possível citar alguns
do extinto projeto Escola do Audiovisual, for- Findo o curso, foi formada a Alumbramento. O que porventura vagas, entre um filme ou outro, filmes que ganharam destaque recentemente,
mação com duração de dois anos promovida que de mais importante notamos naquela que além de diálogos estabelecidos com os traba- primeiro pela Mostra de Tiradentes, em ja-
pela Prefeitura de Fortaleza a partir de 2006. mais tarde viria a se tornar uma produtora de lhos de outros cineastas. Eles têm em comum neiro desse ano, e mais tarde na Mostra do
O curso, pensado em formato inovador, com fato, é a aparente ausência de hierarquia entre o modo simples de produzir, o experimentar e Filme Livre, que se estendeu ao longo do mês
professores diferentes trazidos a cada sema- seus membros, que chamam a si mesmos de os mesmos filmes e diretores como referência. de março. Estrada para Ythaca, de Guto Pa-
na de várias partes do país, teve problemas de “família” e trabalham frequentemente uns nos Outros grupos têm surgido pondo em práti- rente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo
verbas logo no começo de 2007. Em tempos filmes dos outros, alternando funções de acor- ca formatos parecidos, como a Teia, baseada Pretti (Alumbramento); Desassossego – filme
em que não havia ainda o curso de Cinema e do com o projeto. Os filmes da Alumbramento em Belo Horizonte, ou até a Duas Mariola, de das maravilhas, obra coletiva composta de
Audiovisual na Universidade Federal do Ce- são tão diversos quanto podem ser as ideias de Felipe Bragança e Marina Meliande, do Rio fragmentos com diversos diretores, em pro-
ará, iniciado em 2010, a ameaça de interrup- seus membros; não existe unidade organizada de Janeiro, ainda que nesta última o grupo de jeto concebido por Felipe Bragança e Mari-
ção motivou uma ocupação feita pelos alunos que determine uma orientação estética especí- amigos – somente seis, mais alguns parceiros na Meliande (Duas Mariola, com Teia, Blum
durante duas semanas no local onde eram mi- fica. Mesmo assim, como todo grupo de ami- – mantenha em geral mais ou menos fixas as Filmes, Alumbramento, Filmes do Caixote,

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Karim Aïnouz, Gustavo Bragança, Arissas Ofuscando a melancolia impressa nessas pa-
Multimídia); O Céu sobre os ombros, de Sér- lavras, Felipe Bragança escreveu dois textos
gio Borges (Teia); Os monstros, de Guto Pa- publicados recentemente – “Óvnis, fantasmas
rente, Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo e cinema” (O Globo, Caderno Prosa & Verso,
Pretti (Alumbramento), dentre outros, com- 26 de junho de 2010) e “Meu último texto de
põe esse rol bem diverso de filmes que têm cinema”, que aparece encurtado na versão on-
ganhado atenção. line do mesmo caderno (12 de março de 2011)
– defendendo um escopo bem maior de filmes
Não se pode dizer que os trabalhos abordem, possíveis que começa a existir e ganhar espa-
diretamente, qualquer questão política evi- ço hoje. Para ele, ao invés de procurarmos um
dente. Não são nem de longe panfletários e cinema coeso, de podermos falar em “cinema
sequer tratam de assuntos grandiosamente his- brasileiro” querendo compreendê-lo em sua
tóricos – muito pelo contrário. “Deve haver integridade, ou ainda de cobrarmos dos filmes
algo de sintomático de um estado das coisas que atendam às nossas expectativas de olha-
nesses filmes que abandonam a construção de res viciados, podemos procurar ver os novos
grandes narrativas, vontades de simbologia e “monstros” que ganham vida, ousados e im-
preferem se recolher ao mínimo, à narração perfeitos, mas belos!
do quintal ao invés do país, nessas sinopses de
A cautela excessiva, ou, pior, a crítica que
uma única linha. O mundo é possível demais,
poda mais que estimula à criação, buscando os
múltiplo demais. Ideologias não servem, po- filmes “certos”, efeitos precisos e cobrando até
líticas não satisfazem, teorias e instituições mesmo um distanciamento histórico para que
não dão conta. Diante disso, resta se recolher se possa falar do que vê em volta, limita mais
às suas certezas mais acessíveis: eu, minha do que expande, cobrando contenção. É louvá-
casa, minha rua, meus amigos e parentes”, vel que se procure reconhecer os próprios pés,
diz Affonso Uchoa, no catálogo do Cineclube percorrer os próprios caminhos e encontrar
Curta Circuito, de Belo Horizonte. “Um ci- confluências, formando redes que possam se
nema que, por trás de toda a ternura de suas diferenciar de suas antecessoras. Sem assumir
imagens, revela um certo desalento contempo- para si os perigos, e sem agarrar as oportunida-
râneo: as câmeras tentam agarrar cada peque- des de um cenário emergente, corre-se o risco
no momento, como se, diante de tudo, só nos de virar cinza. E nem pó: cimento, que engessa
restasse nos abraçar, silenciosamente.” a terra fértil por baixo dos pés.

MAI. MAI.
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Não ponham
granola no meu

açaí Norte do país estranha as receitas


exóticas que o pessoal do Sul inventou
para uma de suas frutas preferidas
PauloZab

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O açaí é uma palmeira do norte do país. É lham com a fruta no seu estágio original. um montão de coisas: mel, granolas, banana
conhecido pelos indígenas como “içá-çai”, a e outras combinações que deixariam a minha
Só que existe uma diferença bastante pontual
fruta que chora. Sendo típico da Amazônia, avó de queixo caído. Olhem só esta receita:
na forma de consumir o “petróleo da Amazô-
espalha-se por toda a região, chegando ao Ma-
nia”, é que em tempos passados era mais co-
ranhão, à Guiana e à Venezuela. O principal
mum beber o vinho sem açúcar ou qualquer Açaí com Laranja
alimento extraído do açaí é o vinho, um suco
outra coisa. Era, como já falei, acompanhado (Açaí Tropical)
feito da casca de seus frutos. É energético e
apenas de farinha de mandioca. Esta farinha
nutritivo. Esse suco tem bastante densidade e
também tem suas especificidades, quem já teve Ingredientes:
é muito apreciado pelos habitantes da região
a oportunidade de vê-la constatou que seus
Norte, onde é consumido naturalmente com fa-
grãos são bem grandes e é chamada por alguns • 1 polpa de açaí “Poderoso”
rinha de mandioca, e é usado como um acom-
de “quebra-dentes”. • 200 ml de suco de laranja
panhamento do prato principal. Mas e no resto
Outro fato interessante que observo é que aqui • 50 ml de xarope de guaraná
do país? Tem de tudo: guaraná, granola, leite
no Norte ela realmente é usada nas refeições, • Leite condensado a gosto
condensado e até, pecado dos pecados, frutas
cítricas – uma combinação que para as mães mas não como sobremesa e sim com a função
nortistas pode ser um veneno. de nutritivo acompanhamento, como o arroz e O interessante é que ela quebra um conselho
o feijão. É normal encontrar pessoas que ainda que todas as nossas mães não esqueciam de
Um mercado formal da bebida também está
tomam o açaí, na hora do almoço, com peixe nos fornecer: jamais consumir açaí com fru-
em plena expansão nas grandes metrópoles do
frito, por exemplo, ou qualquer outro alimen- tas cítricas, era preciso esperar um tempo para
Brasil, e, como é um fruto que está na moda, que os dois não se misturassem no estômago,
to salgado, pois o sabor exótico se torna bem
desperta a minha curiosidade a forma com que pois tal combinação formaria um tipo de ve-
mais interessante depois que seu paladar se
as mesmas coisas são tratadas nos diversos es- neno no estômago. Agora a receita aí de cima
acostuma com a fruta.
tados. O que me causa estranheza é a forma nos mostra que boa parte do que elas falavam
com que o povo, em tão pouco tempo, apren- Não é pra jogar tudo dentro do açaí! Digo isso não passava de mito, talvez para evitar que nos
deu a consumi-lo de várias maneiras. porque tenho um amigo em São Paulo que não tornássemos pessoas gulosas.
entendeu quando eu disse que gostava de açaí
Hoje, quando vejo tal alimento por aí, me re- O que está ocorrendo com uma fruta tão nobre
com camarão. Ao fazer a receita, ele bateu
cordo de alguns anos em que eu ia aqui ao can- da Amazônia? Realmente, nesse nosso imenso
tudo no liquidificador [rsrs] quando ele só pre-
to de casa na pequena Macapá comprar três país, os alimentos sofrem uma adaptação aos
cisava descongelar a popa e colocar a farinha,
litros do líquido para almoçarmos, porque é costumes locais. Mas isso não impede que este
preparar o camarão separado e comer.
assim que aqui o produto é encontrado. Exis- fenômeno se torne engraçado ou curioso para
tem pequenos estabelecimentos comerciais Também me chama a atenção o uso que deram quem foi criado tomando açaí sem enfeite.
que fazem o processo de retirada do vinho que para a bebida. Enquanto aqui no Norte é tradi-
podem ser encontrados através de bandeiras cional se tirar uma soneca depois da refeição à
vermelhas posicionadas no canto do quarteirão base de açaí, no Sul e Sudeste ela é usada como
e na frente dos lugares onde o açaí é vendido. suplemento para as pessoas que praticam exer-
Estes são chamados de amassadeiras e traba- cícios físicos. Elas pegam a fruta e colocam

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um artista de
plástico
Materiais descartados são a base da obra de
Marcos Cardoso, que assina a bandeira do
Brasil feita com embalagens plásticas, capa do
primeiro número da Revista Overmundo
Marcos Cardoso | Galeria

A imagem que honrosamente ilustra a nossa capa com a cara do Brasil é “Bandeira”, obra do
artista Marcos Cardoso. Do comentário social à cultura pop, seu trabalho faz uso de materiais
descartados através de uma técnica precisa, somando à materialidade dos quadros cores e refe-
rências da história da arte.
Cardoso nasceu em 7 de março de 1960, na histórica cidade de Paraty, litoral do estado do Rio de Ja-
neiro. Graduou-se em Educação Artística na UFRJ e frequentou o ateliê de gravura da Escola de Artes
Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. 

MAI. MAI.
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Hoje, tem trabalhos presentes em diversas coleções importantes de arte
contemporânea no Brasil e no mundo. A Coleção Gilberto Chateaubriand,
no MAM, Museu Nacional de Belas Artes, MAC de Niterói e Galeria
Anna Maria Niemeyer à Fondation Cartier pour l’Art Contemporain são
algumas delas. Atualmente, Marcos Cardoso é representado pela galeria
Cosmocopa Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, a cidade em que vive.
Trocamos duas ou três ideias com ele, que compartilhamos abaixo:

Você pode se apresentar em poucas palavras, falar um pouco da sua


trajetória? 
Comecei a estudar em 1986 na Escola de Belas Artes da UFRJ. Foi o
meu primeiro contato com arte. Segui trabalhando, participei de mostras
nacionais e internacionais e ganhei vários prêmios. Hoje, meu trabalho
figura nas principais coleções do Brasil e do exterior, como a Fundação
Cartier de Paris, o MAM Rio e o MAC de Niterói, dentre outras. 
Seu trabalho tem alcançado grande reconhecimento no Brasil e de
alguma maneira se relaciona a culturas tipicamente locais do país. O
que você diria da maneira como é vista a arte brasileira no exterior?
Não consigo observar mais arte dali ou daqui. Se é arte, é arte.
Em algumas das suas obras é feito uso de embalagens e de outros
materiais que seriam em geral jogados fora. Como é essa relação
com outros artistas que produziram trabalhos com características
parecidas, como o Vik Muniz? 
A semelhança entre alguns artistas e só coisa do tempo. Hoje sabemos
que material não é o mesmo que matéria.
Quais lugares, pessoas e artistas mais te inspiram?
Minha fonte de inspiração é a emoção, o lugar dentro de mim. Além
disso, artistas.

MAI. MAI.
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