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9
outubro
2008
ficina
TERROR
Do que você tem medo?
SAMIZDAT 9
outubro de 2008
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Henry Alfred Bugalho
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho
MICROCONTOS
Marcia Szajnbok 8
Carlos Alberto Barros 8
Henry Alfred Bugalho 9
RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
O Chamado, de Kôji Suzuki 10
Henry Alfred Bugalho
CONTOS
Férias no Campo 14
Carlos Alberto Barros
O Fio da Maldade 40
Giselle Natsu Sato
AUTOR CONVIDADO
A Última Estripulia 44
Maristela Scheuer Deves
Linea Nigra 50
Marcelo Galvão
Movido pela Fome 54
JRM Torres
TRADUÇÃO
O Gato Preto 58
Edgar Allan Poe
O Corvo (bilíngue) 66
Edgar Allan Poe
TEORIA LITERÁRIA
O Prazer do Terror 74
Henry Alfred Bugalho
CRÔNICA
Um Som no Escuro 76
Joaquim Bispo
Nativity in Black 78
Volmar Camargo Junior
POESIA
Laboratório Póetico - Poetrix 80
Volmar Camargo Junior
Soneto 81
Volmar Camargo Junior
SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-
nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-
dado.
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Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky
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Microcontos
O Corajoso
Marcia Szajnbok
O Tuta era aquele menino que todos os demais invejavam: grandão, musculo-
so, metido. Foi o primeiro a fumar, se gabava de ir ao puteiro desde os 10 anos,
conhecia palavrões que nenhum dos outros tinha ouvido ainda. E, o principal, era
corajoso, muito corajoso mesmo. Toda sexta-feira, os meninos apostavam: quem é
que consegue ficar mais tempo sozinho no portão do cemitério? O Tuta sempre
vencia, e vencia de lavada. Naquela noite, fez uma proposta diferente:
- Vamos ver quem é que consegue ir mais longe dentro do cemitério... Cada um
entra, os outros vão contando os passos... Aposto que vou levar esta também!
Não que os outros acreditassem que podiam vencer o Tuta. Mas, uma aposta
dessas menino que é homem não recusa. E lá foram, perto da meia-noite, se em-
brenhar no cemitério. Foi um, depois outro, ninguém dava mais de vinte passos.
Chegou a vez do Tuta. Depois de dez passos, virou-se para o portão e gritou:
- E aí, cambada? Não tem nenhum macho aí pra me acompanhar?
Diante do silêncio, seguiu em frente. Do lado de fora, os outros ouviam os passos
e contavam: trinta, quarenta, oitenta, cento e vinte, cento e vinte e dois... Silên-
cio. Os garotos se entreolharam. Cadê o Tuta? Ninguém fez a pergunta, mas ela
pesava no ar escuro e absolutamente silencioso daquele início de madrugada de
sábado. Quando uma nuvem escura tapou completamente a luz da lua e um ven-
to gelado uivou por entre as árvores, saíram todos correndo, cada um rumo à sua
casa, ansiosos pelas cobertas e pela própria mãe.
O Tuta? Nunca mais foi visto.
O Ratinho
Carlos Alberto Barros
Se é real, pouca importa. A mente de uma mulher como eu – viúva, só, 97 anos –
já não se incomoda com distinções entre ilusão e realidade. Só quero ter algo em
que apoiar a pouca vida que me resta.
Um ratinho. Tão bonito com suas asinhas negras batendo, assim, velozes. Os olhi-
nhos vermelhos brilham na escuridão do quarto.
- Olá, ratinho bonito. Está com fome?
***
Dias depois, na casa da solitária anciã, são encontrados apenas restos de ossos
humanos roídos. A mulher é dada como desaparecida e o caso é arquivado por
falta de testemunhas ou evidências.
— Mentira, Tião! Este bicho não existe. — Pedro tragava o cigarro de palha.
— Mentira não, Pedro; meu amigo Zé Carlos que não me deixa mentir. Agora me
vou, só não esqueça de trancar a porta.
Pedro não obedeceu, mas, quando ouviu o ronco fora de casa, se arrependeu.
Tião nunca mentia.
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Recomendações de Leitura
O Chamado
de Kôji Suzuki
Henry Alfred Bugalho
Editora: Vertical
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Recomendações de Leitura
A Estrada da Noite
de Joe Hill
Giselle Natsu Sato
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Contos
FÉRIAS NO CAMPO
Carlos Alberto Barros
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da água. Corri depressa. Shei- ninas nos braços. Inconscien- pude sentir minha alma se
la, nervosa, já carregava Sami- temente, combinamos um arrepiando. Num impulso re-
ra no colo, indo em direção passo apertado em direção à pentino, larguei a menina no
ao carro. Samara vinha atrás, porta de entrada da casa. To- sofá e corri até Sheila. Abra-
chorando. Trouxe-a aos meus mei a frente para abrir a fe- cei-a com força. Senti todo
braços e segui minha esposa chadura. Assim que entrei e aquele sangue, ainda quente,
que, com os olhos verme- acendi a luz, tive a impressão ser passado para o meu cor-
lhos, disse-me que a menina de sentir um vento passando po. Era o último ato de amor
tinha sido mordida por uma às minhas costas. Virei-me e da minha adorada. Enquanto
aranha. vi que não havia nada nem Samira continuava gritando,
Chegamos ao hospital ninguém, nem mesmo Sheila. eu chorava em terror, incon-
desesperados. Minha filha Entrei em pânico. Olhei em solável pela morte de Sheila
tremia e eu esbravejava, pe- frente à casa, e não avistei e imaginando onde minha
dindo atendimento. No fim, Sheila. Comecei a gritar por outra filha poderia estar.
tudo correu bem. O médico seu nome e o de Samara, Foi com grande sacrifí-
diagnosticou uma intoxi- sem obter resposta. Em meu cio que larguei o corpo de
cação leve, dizendo que, no colo, Samira acordou agitada, minha esposa. Só o consegui
máximo, geraria uma febre. perguntando por sua mãe e pelos chamados de Samira.
Depois dos medicamentos e sua irmã. Tentei acalmá-la, Corri para trancar a porta
algumas horas de observação, enquanto contornava a casa e fui até a menina. “Calma,
fomos liberados. à procura de alguém ou filha, vai dar tudo certo”,
alguma coisa. Sem sucesso e disse – muito mais para mim
No retorno para casa, apavorado, resolvi ligar para
Sheila dirigia em silêncio. mesmo do que para ela – e
a polícia. recomendei que ficasse quie-
Eu ninava Samira, enquanto
Samara cochilava. Já quase Após desligar o telefone, tinha no sofá, que não saísse
chegando, um novo susto. De obtendo a promessa da che- dali por nada. Fui até o ar-
repente, e numa velocidade gada de uma viatura o mais mário dos fundos para pegar
inaceitável à mente humana, rápido possível, presenciei minha espingarda. Enquanto
um imenso animal cruzou a uma das piores cenas que eu a carregava, ouvi a voz de
frente do carro, o que nos fez já pude ver. Emergindo da Samara vindo de fora. Meu
parar bruscamente. O medo escuridão externa, um corpo coração disparou, ela estava
tomou conta de mim, mas desmembrado entrou voando viva! “Samara, eu abro a porta
tentei escondê-lo para não pela porta e atravessou o ar para você”, escutei Samira di-
assustar ainda mais minha velozmente, até se estraçalhar zendo. “Não, filha, deixa que
mulher. Depois de várias na cristaleira do lado oposto o papai abre”, ordenei com
hipóteses levantadas, já que da sala. A imagem era ter- um grito. E correndo entre os
o escuro da noite não nos rível: uma pessoa... o corpo cômodos, em direção à en-
permitiu ter uma visão clara, mutilado... sangue... muito trada, ouvi o som do ferrolho
concordamos que aquilo sangue... Meu Deus, até hoje, se abrindo. “Menina teimo-
tinha sido um cavalo fugindo sinto meu coração parar sa”, falei comigo mesmo. As
de alguma fazenda, ignoran- quando lembro... Foi como vozes cessaram e um sinistro
do completamente o fato de ver o inferno. Ali, na minha silêncio dominou o ar.
que nenhum animal podia frente, estava o cadáver da Deus, o que vi ali e o que
ser tão veloz. pessoa que eu mais amava. se sucedeu pagou os peca-
Cristo, como pôde deixar dos não só desta minha vida
Por ser já muito tarde e, acontecer isso com a minha
como não queríamos pegar miserável como os de tantas
Sheila? Tão bela... transfor- outras que eu possa ter. Eram
a rodovia na madrugada, mada num corpo dilacerado
decidimos ficar ali naquela só crianças! Como pôde
e sem vida. deixar isso acontecer? Como
última noite antes de voltar-
mos para a cidade. Saímos Só consegui sair do esta- pôde abandonar duas meni-
do carro, eu e minha esposa, do de choque com o grito nas inocentes? Maldito! Um
cada qual com uma das me- de Samira. Foi tão forte que Deus assim não me vale de
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Contos
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ALGUÉM CAMINHA NO
CORREDOR Volmar Camargo Junior
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Contos
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Os Estranhos Habitantes
de Soledad
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era época de provas finais no retornei o mais rápido que Mas a chuva pesada na
colégio e ela estava atolada pude ao casarão desabitado, janela e o vento a gemer lá
com o fechamento dos livros- sob um aguaceiro sem pre- fora me despertavam a todo
de-chamada. cedentes e raios caindo por o momento. Numa das vezes
todos os lados. que acordei, tive a impressão
A viagem era longa, Jo- Outra bela surpresa a casa de haver visto uma silhueta,
aquina desejava realmente me reservava, com a morte mãos apoiadas no batente
se esconder. Perdi-me várias da moradora, a energia havia da janela, braços esquálidos,
vezes nas estradas de terra sido cortada, então, estava cabelos brancos, olhando
e, quando parava para pedir eu, nunca casa abandonada, para fora. Eu torcia para fosse
informação a algum carrocei- anoitecendo, e sem poder sair mera impressão.
ro, a resposta era que deveria dali. Aproveitei o resquício Posteriormente, por volta
seguir adiante. de claridade do dia para de uma da manhã, escutei
Finalmente, encontrei a procurar por velas e fósfo- barulhos vindo dos anda-
tabuleta, despencando da cer- ros, e consegui encontrá-los res inferiores. Era como se
ca, com o nome da fazenda: na cozinha. Depois, puxei arrastassem móveis, abrissem
Soledad. uma cadeira até o alpendre e e fechassem janelas, passos,
fiquei observando a chuva até risos, tosses.
Melhor nome não havia,
escurecer. Eu tremia sob o lençol, tal
pois o casebre mais próximo
ficava a umas duas horas. Não havia muito a ser qual quando eu era criança e
feito e meu suprimento de minha prima me contou que
O casarão tinha dois anda-
velas era escasso, apenas cin- havia visto o pai morto, e, à
res e um ático, depois des-
co; com este pequeno lume noite, eu não conseguia parar
cobriria que havia também
percorri a habitação à procu- de pensar nisto, fantasiando a
um porão. Como já esperava,
ra dum quarto. No segundo figura do meu tio, crânio es-
o lugar estava entulhado de
andar, descobri o que deveria facelado por causa do aciden-
quinquilharias, com espaço
ter sido o aposento de Joa- te de carro, fitando-me como
restrito até para um magro
quina. Eu não acreditava em quem procura ajuda.
como eu me movimentar.
almas penadas, mas ver a Oprimido por minha ago-
Mexi em algumas pilhas de
cama desfeita, na penumbra, nia e medo, juro que ouvi um
coisas, abri armários, gavetas,
e a porta do guarda-roupas sussurro:
nada que prestasse.
aberta me perturbou. Imagi- — Que bom que você veio,
Tentei ligar para Elisa e di-
nei até que a cama desarru- Pedro. Esperei tanto tempo
zer que já estava retornando,
mada estivesse assim porque por isto...
mas este fim-de-mundo era
Joaquina havia morrido
tão fim-de-mundo que nem E uma mão gelada se en-
dormindo, e o armário aberto
celular funcionava. É óbvio costou na minha, com ternu-
porque tiveram de escolher
que eu não poderia contar ra, mas que me deixou em
uma roupa para sepultá-la.
que houvesse telefone no ca- pânico. Saltei da cama, mas
Recusei-me a dormir ali. pouco podia ver na escuri-
sarão, muito menos conexão
Vaguei pelos outros cômodos, dão. Estava com medo de me
de banda-larga.
mas aquela era a única cama aproximar do criado-mudo
As nuvens carregadas me
na casa, portanto, eu seria para pegar a caixa de fósfo-
inquietaram, se desabasse a
obrigado a voltar para lá e ros; medo de que, quando eu
chover, o meu Gol não con-
me conformar. estendesse minha mão, aquela
seguiria ir muito longe, com
O meu plano era ir e outra mão gélida me tocasse
aquelas estradas em péssima
voltar para cidade no mesmo novamente.
condição. Cumprindo o meu
dia, por isto, eu só estava com — Quem está aí? — res-
temor, quando havia dirigido
a roupa do corpo, e este foi munguei, mas implorava para
por menos de um quilômetro,
o meu pijama. Jantei o resto que não viesse resposta —
começou um temporal e a
dum sanduíche que comprei Quem está aí?
estrada se tornou intransitá-
na estrada, escovei os dentes
vel. Lembrei-me do celular.
com o dedo mesmo, assoprei
Um capiau num trator me Apertei um botão e ele se
a vela e tentei dormir.
ajudou a desatolar o carro e iluminou, luzinha fraca, mas
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Contos
Imperfeição
José Espírito Santo
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“Faça o favor de sentar”, tempo, aqui tem” Estendeu- cima e disse.
disse outra vez a voz. Anuiu. lhe o envelope com dez
Sentaram-se e deram início à notas de cinquenta.
“Hei, assim não vale. O
conversa.
gajo está em tão boa forma
Tinha tirado de si e que os animais não terão a
A curiosidade da anfitriã lançado para a frente todos menor hipótese. Vamos ter
era enorme e avançava e aqueles guardados de baú de desgasta-lo um pouco.”
alcançava, casava bem com a de ser. E agora sentia-se mal,
sua solidão. De tal modo que desconfortável, triste. Bem,
Formaram um círculo de
ficou a ver com espanto o pelo menos tinha ganho
onde choveram pontapés e
desfilar despudorado da sua algum dinheiro! Se fossem
murros, transformando-o ao
vida, ao ritmo e toque das necessárias mais histórias...
fim de uns minutos naquela
palavras que eram lançadas e – pensou. Estava neste diálo-
massa física desgraçada que
deixadas à sorte - umas atrás go interno, consigo mesmo
implorava descanso. Olhou
das outras. Passaram os anos quando foi invadido pelo
para cima mesmo a tempo
da infância feliz e despreo- torpor e seu corpo cedeu aos
de ver o “caixa de óculos”
cupada, os tempos de Uni- truques de um vinho bom
sorrir e dizer
versidade de borgas e amo- mas a dulterado.
res e professores austeros.
Passou a morena tímida que “Agora sim, o avozinho
São seis da madrugada
se chamava Matilde e estu- já está em pé de igualdade.”
quando acorda e ergue o
dava biologia e a festa onde sorriu trocista “Mas se ele
olhar. À sua volta, o grupo
proferiram ambos os votos for bom desportista damos-
de adolescentes com ar rufia
solenes e cortaram o bolo e lhe uma pequena vantagem.
segura os dois “Pit Bull”. O
beberam champanhe cruzado Façam-lhe a pergunta.”
que parece mais velho avan-
após inaugurarem a pista de
ça e diz
dança com uma valsa. Passou A mente confusa começou
uma barriga linda em cres- a imaginar testes possíveis
cendo que, chegado dia do “Ouve lá, cota. Aqui é tudo
à memória – Quem eram
parto se esvaziou na felicida- gente boa, do melhor. Por
os “cinco violinos”, qual foi
de de pegar o rebento rosado isso vamos fazer um trato
o ano em que o Boavista
e chorão. Chamar-lhe-iam contigo.”
ganhou o seu primeiro cam-
Margarida – nome da avó peonato, qual era o nome do
materna. E chegaram depois, “Hum... que trato, onde es- recordista mundial do triplo
enfim os tempos maus. As tou?” em frente via o descam- salto, todas estas questões
dificuldades, as discussões, o pado da lezíria. Ao fundo, surgiram se candidatando.
acomodar mútuo, a incom- a uns bons quatrocentos Mas quando soube ao que
preensão partilhada. Chegou metros. A cerca de arame era vinham, descobriu como se
o dia que tinha marcado os interrompida por um portão. tinha enganado e avaliado
sentimentos da sua vida mais mal os interlocutores. Os pu-
recente. E quando atingiu tos estavam para o desporto
este ponto, subitamente, “A gente quer ver como
como para a história aque-
olhos húmidos, a voz perdeu corres, se és como o
le aluno que em visita ao
a força, calou-se. Tinha pas- Obiquelo. Por isso vais fazer
Museu do Azulejo, perante o
sado uma hora cheia, ele ali a uma corrida aqui com os
painel magnífico da Lisboa
falar, falar, falar. À sua frente meus dois primos” os pri-
pré-terramoto de 1755 per-
a mulher escutava atenta. mos olhavam ansiosamente,
gunta à “sotora” onde estava
De vez em quando parava expectantes, dente afiado,
pintado o estádio do Bele-
e baixava o olhar para tirar língua de fora.
nenses. Agora a pergunta era
anotações no caderno. simples: Qual dos três gran-
O magricelas de óculos des era o melhor?
“Senhor, obrigado pelo seu saiu do meio do grupo. Enca-
rou-o, mirando-o de baixo a
IV. Epílogo
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Contos
Confinado
Joaquim Bispo
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Contos
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A MANSÃO E SEUS
HÓSPEDES
Ninguém visitava a casa, nho. Disse com uma voz fria:
Guilherme Rodrigues ninguém! –Entre, não há o que te-
garodrix@yahoo.com.br Júlia, uma garota, cansada mer. Fique à vontade– e saiu.
de tantos mistérios e lendas Júlia, hesitante, entrou.
No alto da colina, numa
contados pelos moradores,
cidadezinha, havia uma man- A casa por dentro era fria,
resolveu investigar a mansão,
são sombria e muito antiga. com pouca luminosidade,
na noite de lua cheia.
Cercada por uma vegetação úmida e abandonada, empo-
densa. À porta de entrada, Passou pelo portão e foi eirada e com teias-de-aranha,
havia duas grandes gárgulas caminhando pela trilha, somente algumas velas a
com dentes e garras afiados, bateu à porta. Ficou ali na iluminava. Júlia sentou-se à
asas enormes. Uma peque- companhia das gárgulas. mesa velha, carcomida e de-
na e mal cuidada trilha, já Parecia que iam voar em teriorada. Ainda com medo.
abandonada há muitos anos cima da garota, até que um O homem reapareceu servin-
que levava até o portão de homem abriu a porta, ambos do uma bandeja com biscoi-
entrada, velho e enferrujado. levaram um susto, ele: porque tos e bolinhos.
Pouco visível entre a vegeta- ninguém vinha visitá-lo e de
repente uma garota lindíssi- –Qual o seu nome?
ção, e nos pilares mais duas
pequenas gárgulas, mas ater- ma estava ali diante dele, ela: –João Joaquim, e o seu?
rorizantes. Pareciam vivas, só com a aparência do sujeito. –Júlia.
a observar a movimentação O homem era deveras esqui-
sito, pálido, cabelos longos, O nome dele lhe parecia
de quem ousasse se aproxi-
despenteados e negros. Vestia familiar.
mar do portão. A mansão era
encoberta por uma rigorosa um terno preto, já bem fora Estava morrendo de fome
névoa. de moda, bastante antigo que e comeu muitos biscoitos e
carregava as poeiras do anta-
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Contos
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OLHAR
Pedro Faria
“Abra os olhos”. Há quanto tempo estou mulheres que achei serem
andando? Meus pés doem. bonitas, apenas as observan-
Uma voz sussurra em meu do pelas costas, mas que na
ouvido. Olho para o lado, Então porque não paro? verdade eram no máximo
não vejo ninguém. Eu tinha “simpáticas”, como meu avô
fechado os olhos por um Eu tento, mas não consigo.
diria sobre mulheres de rosto
segundo apenas. Preciso andar.
comum.
Estou caminhando. Não Há uma mulher a mi-
Essa não. Seu formato, em
lembro bem para onde estou nha frente. Seus cabelos são
geral, não deixava dúvidas.
indo. Talvez eu não saiba. pretos, e descem até topo de
Ela seria linda. Seria o tipo
suas nádegas. Não é magrice-
de mulher com o qual eu
Talvez eu tenha simples- la, e não é gorda. Está de cal-
poderia morrer, ou matar.
mente levantado, me vestido, ça jeans, e sua camisa é preta
e decidido sair para uma ca- e sem mangas. Seus braços Será que é por isso que
minhada nessa bela tarde de são brancos, e há uma tatua- estou caminhando? Queren-
inverno, o céu pouco nubla- gem em seu ombro direito. do interceptá-la? Puxar uma
do, as nuvens de um branco conversa, talvez um convite
puro, diferente das comuns Estou observando essa mu-
para algum lugar. Será possí-
cinzas e negras de poluição lher há algum tempo. Tempo
vel? Eu, que nunca fui de dar
que vemos tanto nos dias de suficiente para perceber que
em cima de mulheres aleató-
hoje. a estou seguindo.
rias pela rua?
Não sei onde estou. Quer Ainda não vi seu rosto,
Estou suando. Seco o suor
dizer, a rua. Estou bem longe mas dá para adivinhar que
de minha testa, e lembro que
de casa. ela é linda. Já estive erra-
sou casado.
do antes, é claro. Já houve
A mão é nodosa, e denota Ela é branca, mas não é Uma mulher de vestido
experiência, e endurecimen- pálida. Há uma cicatriz em branco dá um grito agudo.
to. O endurecimento do espí- seus lábios.
rito, que vinha com o tempo, Um homem de cabelos
com a vivência. Seus olhos são negros, da grisalhos e terno cinza balbu-
cor do cabelo, que cai sobre cia, “eu não o vi, ele pulou na
O terno do homem é cin- seu olho esquerdo. minha frente”.
za, e perfeitamente ajustado
ao seu corpo. Seus cabelos Ela sorri, e eu caio de Eu engulo o sangue.
são pretos, porém o cinza joelhos.
E, entre a multidão que
desponta na base de sua
Tenho lágrimas nos olhos. me cerca, está a mulher. Seu
cabeça, como que se passado
Lembro do anel: Não uma olho esquerdo ainda está
do terno, pelo pescoço, até
aliança, apenas um anel, no oculto sob o cabelo. Ela me
os pêlos mais baixos de seu
dedo errado. olha fixamente, e sorri um
cabelo.
sorriso malicioso e sedutor.
Ele não tem rosto. Meu Ela se abaixa, seu rosto
fica em frente ao meu. “Você está vindo para
Deus, estou ficando louco.
mim”.
Não há olhos, nem nariz, O beijo vem naturalmente,
de iniciativa dela. Eu fecho Sim, estou indo. E feliz.
nem boca.
os olhos
Eu fecho os olhos, e a es-
Abro a boca e grito. As
“Não, abra os olhos!” curidão dela me leva.
pessoas ao meu redor, igual-
mente sem rostos, se viram e
E vejo tudo:
me fitam.
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Contos
LABIRINTOS
Marcia Szajnbok
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não tivesse visto nos últimos tão convidativo começava a Entre as árvores vi alguns
dois dias? Vitrais, escada- se tornar um pouco sombrio. arbustos de espinhos. Não
rias estreitas, armaduras, os A frescura agradável do ar me lembrava de tê-los visto
aposentos do rei, a cama da protegido pelas árvores cedia quando entrei no bosque.
rainha... O bosque junto ao lugar a um vento gelado, que Pareciam ter surgido do nada
castelo me pareceu bem mais me arrepiava a pele mesmo e se proliferar rapidamente.
convidativo para um descan- sob o agasalho. Em alguns trechos, obstruíam
so de quarenta minutos, tem- ou estreitavam a passagem,
po que estimei iria demorar O estado de alerta sem- criando um labirinto que me
a visita do grupo no interior pre nos torna um pouco impedia de sair do bosque.
do castelo. sugestionáveis, de modo que Impossível dizer se o que os
não consigo até hoje afirmar fazia se comportar assim era
O outono francês tingia o que realmente vivi tudo o alguma força mística, ou tão
cenário de amarelo-alaran- que se passou em seguida. somente minha claustrofobia.
jado, e era marcante o con- Posso ter apenas imaginado,
traste de temperatura entre delirado, alucinado, não sei. Tentava manter meu racio-
as áreas ensolaradas e de Há quem diga que o sobre- cínio claro, repetia para mim
sombra. Dentro do bosque, natural só existe dentro da mesma que aquilo era ape-
o ar puro e fresco cheirava mente humana. Mas naquele nas uma crise de ansiedade
a grama molhada. Enchi os momento, tudo me pareceu que logo passaria, que tudo
pulmões e, surpreendente- terrivelmente real. ficaria bem. Mas há circuns-
mente, tive um acesso de tâncias em que toda infor-
tosse abrupto e imotivado. Intuitivamente, comecei a mação que podemos acessar
Foi uma sensação estranha, procurar a trilha por onde não faz frente ao transbor-
como se uma força invisível havia entrado, pensando em damento dos sentidos e das
tivesse me apertado a gargan- retornar aos jardins do cas- emoções. Eu sentia algo
ta. Hoje, penso que deveria telo. Todas as veredas, entre- muito ruim ali, sentia mal-
ter compreendido melhor o tanto, me pareciam iguais. dade ao meu redor. Aqueles
que se passava ali, e retorna- Não conseguia reconhecer arbustos tomavam formas de
do para junto do grupo de por onde havia passado, e de- enormes garras, e era difícil
turistas. Mas na vida, muitas pois de algumas tentativas já lutar contra a idéia de que
vezes, só nos damos conta do não sabia exatamente em que estavam ativamente tentando
perigo quando já se fez tarde direção seguir. Sem perceber, me agarrar.
demais. apertava os passos e, quando
me dei conta, estava corren- Recordava as histórias
Passado algum tempo, do. O coração disparado, a contadas pela guia. O ódio e
notei que não havia mais respiração ofegante, tinha a a vingança que moveram a
ninguém por ali e que o sensação de estar andando poderosa Catarina a armar
burburinho dos arredores em círculos. Por duas vezes intrigas e ardis, as persegui-
do castelo tinha se tornado virei o rosto, tomada por ções, os assassinatos, essas
inaudível. Apurei os ouvi- uma espécie de certeza de tramas do passado me en-
dos: o silêncio só era que- que havia alguém atrás de volviam como uma onda.
brado pelo ruído dos meus mim, mas não vi ninguém. Meu pensamento corria por
próprios passos amassando A impressão de estar sendo lembranças ruins, pelos acú-
folhas no chão. Um cer- observada, entretanto, crescia mulos de minhas próprias
to desconforto: de repente, na mesma medida em que raivas, e pelas pessoas pelas
aquele lugar que me parecera meu pânico aumentava. quais ainda nutria um in-
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Contos
O FIO DA
MALDADE
Giselle Natsu Sato
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Autora Convidada
a última
estripulia Maristela Scheuer Deves
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de nylon marrom, recheada todos pelas quase desertas disputamos outra corri-
com um blusão de lã cas- duas quadras de rua de chão da para ver quem chegava
tanho, gorro de crochê na batido que nos separavam primeiro aos velhos túmulos
cabeça, meias grossas e botas do campo santo (santo?, me dos suicidas, colocados no
de borracha amarelas que perguntei depois, e continuo fundo do cemitério, bem
tinham sido do meu irmão. até hoje sem resposta) do vi- atrás dos outros. Várias vezes
Carmem, com seu costumei- larejo em que morávamos. Se pensei que talvez tenha sido
ro casaco de lã azul claro pelo menos soubéssemos que impressão minha, mas algo
e gorro multicolorido, que o improvisado playground me diz que eu realmente sen-
tantas vezes invejei pensando do qual tanto gostávamos só ti um pouco mais de frio nos
que se parecia com um arco- não se tornaria nas próxi- segundos que levei para che-
íris. Mesmo Carlos Alberto, mas horas a nossa morada gar até o ponto combinado.
que nunca parecia sentir frio, definitiva porque eu tive a Levemente emburrada por
naquele dia cedera às baixas proteção dos santos e porque ter sido a segunda, depois
temperaturas (ou às reco- Carmem e Carlos Alberto... de Carlos Alberto (“Isso não
mendações de sua mãe) e se bem, melhor seria que eu vale”, protestei, “os meninos
agasalhara. pudesse partilhar a vã espe- sempre são mais rápidos”),
rança de alguns, de que um não dei a mínima para uma
Mesmo entrouxados como dia eles ainda venham a ser possível queda da tempera-
estávamos, ignoramos os encontrados. tura e, sem-cerimônia como
pedidos de que brincássemos sempre, subi no túmulo mais
no quintal de minha casa. Mas, voltemos àquela próximo para mais facilmen-
Depois de tantos dias chuvo- tarde, por mais terríveis e te alcançar o topo do muro
sos em que a rala diversão dolorosas que me sejam de pedra que circundava a
se restringira à televisão e às as lembranças. Talvez seja área.
rodas de faz-de-conta, querí- melhor eu fazer de conta que
amos mais era aproveitar o estou relatando um dos fil- Andar sobre o muro do
sol e correr até onde pudés- mes que naquela tenra idade cemitério era, de longe, a
semos. Só não fomos pular gostava de assistir escondida brincadeira que mais nos
do telhado na casa da vizi- (meus pais me proibiam pen- agradava, embora nunca ti-
nha porque esta, que se ar- sando que eu fosse ter maus vesse vencedores ou vencidos
repiava só de pensar em um sonhos e acordar gritando (ou talvez por isso mesmo).
de nós quebrando um braço durante a noite, o que nunca Numa época em que sonhá-
ou perna, agora ficava vigi- aconteceu), e que desde então vamos em ser equilibristas
lante e sequer nos deixava nunca mais pude ver – pois de circo, aquele era o lugar
chegar perto do cinamomo depois da última estripulia ideal para treinos, até por-
que escalávamos para chegar do nosso trio, passei a ter que ficava longe da vista
nas telhas. Depois de esgotar pesadelos noite após noite de nossos pais e ninguém
as possibilidades das árvores sem precisar do incentivo de ali nos repreendia dizendo
próximas à minha própria vídeos de terror. E, confesso, que poderíamos cair se não
casa, alguém – ou teriam sido não me sentiria nem um fôssemos mais devagar. Sem
todos, de uma só vez? – teve pouco usurpada se não tives- falar, é claro, que desistíra-
a idéia: ir caminhar sobre os se sido um dos atores prota- mos de passar de túmulo
muros do cemitério, ativida- gonistas daquela trama... em túmulo dando beijos nos
de exploratória que costumá- anjinhos de pedra desde que
vamos fazer pelo menos uma Deviam ser umas três Carlos Alberto ficara com a
ou duas vezes por semana. horas da tarde quando boca toda inchada após ser
chegamos ao enferrujado ferroado por marimbondos
Fosse de quem fosse portão de ferro. Para ir mais instalados atrás de um desses
a sugestão, foi aceita por depressa, empurramos os três seres alados...
unanimidade, e corremos juntos, e quando ele cedeu
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que me respondeu. Foi então dezenas de vezes ampliadas, pronunciar nenhuma pala-
que percebi que algo não as vozes da Carmem e do vra. E voltei a gritar quando
podia estar bem. No céu, o Carlos Alberto, não havia dú- também a lápide que osten-
sol já ia se pondo, embora eu vida. A tremedeira não tinha tava a foto do suicida mais
não tivesse percebido que se parado, mas, com a coragem próximo caiu para um lado,
passara tanto tempo assim. típica dos pequenos que dando espaço para outro
E com o anoitecer, o frio se acham que podem enfrentar rosto putrefato, e senti uma
intensificava mais e mais, qualquer coisa, corri para o mão igualmente decomposta
provocando-me calafrios – local de onde viera o som, segurar-me pelo ombro...
ou pelo menos foi o que eu disposta a salvar os meus
pensei então. amigos. Mas eu jamais, em Graças a Deus, a força
minha curta vida até aquele quase sempre nos surge
Julguei ter visto alguém dia, por mais filmes de terror quando mais precisamos
me espiar por trás de uma que eu tivesse visto escon- dela, e o medo é um com-
lápide do outro lado, e dido de meus pais, tinha bustível tão eficaz quanto
quase respirei aliviada. Ao imaginado deparar com o o mais refinado derivado
chegar lá, outra vez não que eu vi atrás do túmulo de de petróleo. Sem conseguir
havia ninguém. Já que não um enforcado que recente- desviar os olhos das outras
querem aparecer, eu pensei, mente havia sido sepultado crianças (não, das outras
ainda crente de que tudo – um daqueles sobre os quais crianças vivas, pois já alguns
não passava de mais uma costumávamos pular para al- pequenos túmulos começa-
brincadeira (inventada pela cançar a borda do muro. Até vam a liberar também suas
Carmem, com certeza, pois hoje, a cena povoa as noites cargas), desvencilhei-me
ela adorava pregar peças nos em que me reviro na cama, não sei como do braço que
outros), resolvi ir para casa. encharcando os lençóis de tentava me cingir, e saí cor-
Os outros que fossem depois, suor e acordando aos berros. rendo de costas até tropeçar
até porque deviam estar me no portão. Nessa hora, em
vendo de onde estavam. Foi No recuo entre duas que o sol já se escondia em
eu colocar o pé no portão, sepulturas, uma das quais definitivo mas ainda lança-
no entanto, que eu ouvi o parecia ter sido arrancada do va alguns raios capazes de
grito. A cidade inteira deve chão por uma força sobre- ajudar a visão, vi pela última
tê-lo ouvido, de tão forte e humana, estavam meus ami- vez os rostos agora contor-
pavoroso que foi. Não foi gos. O pavor estampado nos cidos – não sei se de dor ou
socorro, não foi me ajudem, olhos dos dois seria suficien- de puro medo – daqueles
não foi nenhuma palavra que te para acabar com quais- que eram os meus melhores
eu conhecia até então ou que quer desconfianças que ainda amigos. Então, tudo escure-
vim a conhecer depois. Foi a me restassem, mas isso não ceu, inclusive meus olhos, e
mais pura manifestação de era preciso: para garantir a só voltei a mim quando uma
horror que se poderia con- veracidade da situação, a cara multidão de pessoas que os
ceber, provavelmente ainda carcomida e cheia de vermes gritos atraíram levantaram-
maior. Tão verdadeira que do homem que em vez de me e me levaram para baixo
eu sequer teria como pensar estar dentro caixão aberto de uma torneira esquecida a
que se tratasse de encena- ali do lado, como a lógica e um canto.
ção – podíamos querer ser a razão pregavam que devia
artistas, mas ninguém tinha ser, me encarava enquanto O resto do dia, ou da noi-
adquirido ainda tal capacida- segurava meus colegas, cada te, visto que soube depois já
de dramática. um erguido do chão em serem mais de 19h, foi uma
uma de suas enormes mãos. loucura quase tão grande
Os calafrios vieram mais O grito que se ouviu então quanto a cena que eu presen-
fortes, enquanto o grito se saiu de minha boca, pois os ciara, e continua igualmen-
repetia. Eram, misturadas e outros não conseguiam mais te gravado a fel em minha
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Autor Convidado
linea nigra
Marcelo Galvão
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é que o bebê não nasça feio se revirava ao ver aquela ria e sairia da casa.
como você! - completou o cena. Não só por presenciar
colega, rindo. a alteração diária naquele Um ser que herdaria ca-
corpo, mas porque sabia que racterísticas físicas e intelec-
seu tempo esgotava-se; havia tuais dela.
adiado por muito tempo a
### E dele.
difícil decisão que deveria
ter tomado tão logo ela lhe Pois filhos nada mais
contara a novidade. eram que cópias de seus
E assim os dias tornaram- genitores, ele concluiu . Com
se semanas, as semanas Mas existia um motivo
todas as suas qualidades e
viraram meses e o sexto mês para tal demora.
defeitos.
chegou com a futura mãe pe-
Ele amava a esposa.
sando mais de quinze quilos Felizmente, a descoberta
além do recomendado pelo Amor era um conceito da infertilidade e sua conti-
obstetra. A pele do rosto, an- estranho na sua terra natal. E nuidade, mesmo após trata-
tes tão branca, era maculada mesmo quando chegara aqui, mentos médicos, revelaram-
por manchas escuras e simé- após fugir e assumir o lugar se um bônus.
tricas ao redor dos lábios e de um homem órfão, emu-
bochechas, como as pintas O problema, como ele
lando um comportamento
de algum animal exótico. agora descobrira, é que médi-
aceitável naquela sociedade
Varizes espalhavam-se de cos também cometiam erros.
nova, ele tivera dificuldades
um lado ao outro das pernas, em comprender o que era tal - O bebê chutou! - ela gri-
enquanto estrias sulcavam emoção. tou, interrompendo os pensa-
caminhos em coxas, seios e
mentos dele. Ela aproximava-
ventre. Este era dividido ao Até conhecer aquela
se com um sorriso fixo, após
meio por uma mancha es- mulher. Ela lhe mostrou o
mais uma sessão de hidrata-
treita e comprida - conheci- que era amor e ele acabou
ção. Vestia apenas calcinha
da pelos médicos como linea por esquecer seu passado
branca; os mamilos, agora
nigra - que se estendia do turbulento em um lugar tão
marrom-escuros, eram como
meio do torso até o púbis. distante. Em uma noite quen-
olhos a encará-lo, enquanto o
te de verão, ela lhe contou
Os exames pedidos mos- umbigo, no caminho da linea
sobre o desejo de ser mãe.
travam uma gravidez normal, nigra, assemelhava-se a uma
Sua reação foi um confuso
ainda que o ultra-som não boca minúscula, desdentada
franzir de cenho. Paternidade
conseguisse diagnosticar o e de lábios salientes.
e maternidade também eram
sexo devido à posição em palavras estranhas no lugar Foi quando ele viu a man-
que o feto se encontrava. O de onde viera; para ele, ser cha que lhe dividia o torso
obstetra assegurou que não pai e mãe resumia-se ao ma- ondular como uma serpente.
havia motivo para preocu- cho copulando com a fêmea Piscou com força para ter
pação; a futura mamãe devia e esta parindo, meses depois, certeza do que acontecia e
aproveitar cada momento da uma criatura que se torna- quando abriu as pálpebras,
gravidez. ria uma máquina de matar. dezenas de outras linhas es-
Macho e fêmea nunca mais curas, finas como veias, proli-
Era o que ela fazia. Todos
veriam a prole pelo resto de feraram-se a partir da linea
os dias despia-se e alisava
suas vidas curtas. nigra, parecendo as patas de
com creme hidratante o
ventre redondo, observando uma centopéia. Em questão
A confusão inicial deu
com curiosidade seu perfil de segundos, estenderam-se
lugar ao pavor quando desco-
no espelho do banheiro, uma pelo ventre e, retorcendo-se
briu o conceito de paternida-
letra B gigante refletindo-se como tentáculos, desceram
de naquele verão. Não con-
na superfície. até a virilha.
seguia explicar para a esposa
o perigo que era gerar um Ele levantou o olhar e viu
O estômago do marido
descendente seu, que cresce-
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Autor Convidado
MOVIDO
PELA FOME
JRM Torres
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se rompeu, ante a mudança telhados compostos de palha Logo o avistou. O vulto
de tamanho. Restava-lhe seca. Não havia a presença saiu de um beco, deslocan-
a calça rasgada, agora um de qualquer ser humano nas do-se lentamente, parando
short minúsculo, que mal imediações. Algo previsível. no meio da rua, a cerca de
lhe cobria os órgãos genitais. Afinal, a notícia de que um duzentos metros local de
Quem ali adentrasse, naquele ser misterioso matara seis onde se encontrava. Parou
instante, iria ver uma mis- pessoas na região se espalha- e ficou de frente para ele,
tura de homem com lobo, ra depressa, naquela localida- como se o esperasse. Sentiu
horripilante e asquerosa. de do nordeste, apavorando a saliva escorrer de sua boca,
os moradores. ante aquele odor delicioso.
Aos poucos, a sanidade Antevia o prazer de sabore-
esvaiu-se de seus neurônios, Dois cachorros, ao vê-los, ar a carne mais saborosa do
dando lugar aos pensamentos ganiram de terror e recua- universo! O gosto do sangue!
maléficos e... à fome. Levan- ram. Urrou baixo, para não A delícia que seria dilacerar
tou-se, urrando alto. A fome chamar a atenção, lançando cada naco daqueles músculos,
o dominava, dolorosa, e era sobre eles seu olhar de ódio. daquele... corpo. Maravilhoso!
como um maçarico ignóbil, Entre espasmos violentos, os Sua fome estava prestes a ser
queimando-lhe as entranhas. animais correram, desespe- saciada! Sim. Bastava correr
rados, procurando fugir de (numa perseguição alucinan-
sua presença satânica. Logo te) para cima do vulto e ata-
Ricardo, o entregador de
desapareceram atrás de um cá-lo. Seus dentes cortantes e
jornais, que andava de bi-
das casas. Não queria comer suas garras afiadas fariam o
cicleta pelas ruas daquela
cachorros, pois seu corpo an- resto. Não haveria falhas.
cidadezinha do interior, não
existia mais. O ser animales- siava por outro tipo de carne.
co que tomou o lugar dele A fome lhe era insuportável. Seria sua sétima vítima.
começou a andar, o corpo
curvado, na direção das casas Percorreu os duzentos me- No entanto...
daquele bairro pobre. A noite tros da rua deserta e dobrou
era quente, mas um vento à direita. Fuçava o ar, seu ***
frio começava a soprar do nariz poderoso com capaci-
norte. No céu, a lua cheia, dade para perceber e inalar
Algo estava errado!
límpida e resplandecente, os odores mais distantes.
dava seu show, iluminando o
ambiente. A lua mortal, que ***
De repente, notou a pre-
hipnotizava e dominava, com sença daquilo que mais de-
sua força invisível. sejava. Havia um ser humano Percebeu que... não ha-
por perto! Um ser humano via medo naquele ser! Seus
O animal (ou entidade) ao ar livre, que ousou sair de instintos animalescos diziam
aumentou as passadas, mo- uma das casas. Ótimo! Seu que não havia medo! Inacre-
vido pela fome, e saiu do corpo estremeceu, a fome ditável! Bizarro! Não conse-
matagal. Apoiava as mãos penetrando seu íntimo com guia captar o inebriante e
no chão e seus passos eram um esgar feroz. A ansiedade vivificante cheiro do medo
desconexos. Percorreu a rua lhe era insuportável, ante exalando daquele vulto. O
de terra batida. As casas, rús- aquele cheiro tão peculiar e medo, comum a todos os
ticas e humildes, eram feitas conhecido. Parou no meio da seres humanos.
de barro amassado, estreitas rua e procurou localizar sua
e de um pavimento, com os provável vítima. O que estava acontecendo?
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Tradução
O GATO PRETO
Edgar Allan Poe
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Ao referir-se à sua inteligên- de maltratá-lo, ao passo que minha orgia noturna, ex-
cia, minha mulher, que, no não sentia escrúpulo algum perimentei, pelo crime que
íntimo de seu coração, era em maltratar os coelhos, praticara, um sentimento
um tanto supersticiosa, fazia o macaco e mesmo o cão, que era um misto de horror
freqüentes alusões à antiga quando, por acaso ou afeto, e remorso; mas não passou
crença popular de que todos cruzavam em meu caminho. de um sentimento superfi-
os gatos pretos são feiticeiras Meu mal, porém, ia tomando cial e equívoco, pois minha
disfarçadas. Não que ela se conta de mim _ que outro alma permaneceu impassível.
referisse seriamente a isso: mal pode se comparar ao Mergulhei novamente em
menciono o fato apenas por- álcool? _ e, no fim, até Pluto, excessos, afogando logo no
que aconteceu lembrar-me que começava agora a enve- vinho a lembrança do que
disso neste momento. lhecer e, por conseguinte, se acontecera.
tomara um tanto rabugento,
Pluto _ assim se chamava até mesmo Pluto começou a Entrementes, o gato se
o gato _ era o meu preferi- sentir os efeitos de meu mau restabeleceu, lentamente.
do, com o qual eu mais me humor. A órbita do olho perdido
distraía. Só eu o alimenta- apresentava, é certo, um
va, e ele me seguia sempre Certa noite, ao voltar a aspecto horrendo, mas não
pela casa. Tinha dificuldade, casa, muito embriagado, de parecia mais sofrer qualquer
mesmo, em impedir que me uma de minhas andanças dor. Passeava pela casa como
acompanhasse pela rua. pela cidade, tive a impres- de costume, mas, como bem
são de que o gato evitava a se poderia esperar, fugia,
Nossa amizade durou, minha presença. Apanhei-o, tomado de extremo ter-
desse modo, vários anos, e ele, assustado ante a minha ror, à minha aproximação.
durante os quais não só o violência, me feriu a mão, le- Restava-me ainda o bastante
meu caráter como o meu vemente, com os dentes. Uma de meu antigo coração para
temperamento _ enrubesço fúria demoníaca apoderou-se, que, a princípio, sofresse
ao confessá-lo _ sofreram, instantaneamente, de mim. Já com aquela evidente aver-
devido ao demônio da intem- não sabia mais o que estava são por parte de um animal
perança, uma modificação fazendo. Dir-se-ia que, súbito, que, antes, me amara tanto.
radical para pior. Tomava- minha alma abandonara o Mas esse sentimento logo se
me, dia a dia, mais taciturno, corpo, e uma perversidade transformou em irritação. E,
mais irritadiço, mais indi- mais do que diabólica, cau- então, como para perder-me
ferente aos sentimentos dos sada pela genebra, fez vibrar final e irremissivelmente,
outros. Sofria ao empregar todas as fibras de meu ser. surgiu o espírito da perversi-
linguagem desabrida ao Tirei do bolso um canivete, dade. Desse espírito, a filoso-
dirigir-me à minha mulher. abri-o, agarrei o pobre ani- fia não toma conhecimento.
No fim, cheguei mesmo a mal pela garganta e, friamen- Não obstante, tão certo como
tratá-la com violência. Meus te, arranquei de sua órbita existe minha alma, creio que
animais, certamente, sentiam um dos olhos! Enrubesço, a perversidade é um dos im-
a mudança operada em meu estremeço, abraso-me de ver- pulsos primitivos do coração
caráter. Não apenas não lhes gonha, ao referir-me, aqui, a humano - uma das faculda-
dava atenção alguma, como, essa abominável atrocidade. des, ou sentimentos primá-
ainda, os maltratava. Quanto rios, que dirigem o caráter
a Pluto, porém, ainda desper- Quando, com a chegada do homem. Quem não se viu,
tava em mim consideração da manhã, voltei à razão _ centenas de vezes, a cometer
suficiente que me impedia dissipados já os vapores de ações vis ou estúpidas, pela
única razão de que sabia que
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sórdidos lugares que então Continuei a acariciá-lo olhos. Tal circunstância, po-
freqüentava, outro bichano e, quando me dispunha a rém, apenas contribuiu para
da mesma espécie e de apa- voltar para casa, o animal que minha mulher sentisse
rência semelhante que pudes- demonstrou disposição de por ele maior carinho, pois,
se substituí-lo. acompanhar-me. Permiti que como já disse, era dotada, em
o fizesse _ detendo-me, de alto grau, dessa ternura de
Uma noite, em que me vez em quando, no caminho, sentimentos que constituíra,
achava sentado, meio atur- para acariciá-lo. Ao chegar, em outros tempos, um de
dido, num antro mais do sentiu-se imediatamente à meus traços principais, bem
que infame, tive a atenção vontade, como se pertencesse como fonte de muitos de
despertada, subitamente, por a casa, tomando-se, logo, um meus prazeres mais simples
um objeto negro que jazia dos bichanos preferidos de e puros.
no alto de um dos enormes minha mulher.
barris, de genebra ou rum, No entanto, a preferência
que constituíam quase que De minha parte, passei a que o animal demonstrava
o único mobiliário do recin- sentir logo aversão por ele. pela minha pessoa parecia
to. Fazia já alguns minutos Acontecia, pois, justamente o aumentar em razão direta
que olhava fixamente o alto contrário do que eu esperava. da aversão que sentia por
do barril, e o que então me Mas a verdade é que - não ele. Seguia-me os passos com
surpreendeu foi não ter visto sei como nem por quê _ seu uma pertinácia que dificil-
antes o que havia sobre o evidente amor por mim me mente poderia fazer com
mesmo. Aproximei-me e desgostava e aborrecia. Lenta- que o leitor compreendes-
toquei-o com a mão. Era mente, tais sentimentos de se. Sempre que me sentava,
um gato preto, enorme _ tão desgosto e fastio se conver- enrodilhava-se embaixo de
grande quanto Pluto _ e que, teram no mais amargo ódio. minha cadeira, ou me sal-
sob todos os aspectos, salvo Evitava o animal. Uma sensa- tava ao colo, cobrindo-me
um, se assemelhava a ele. ção de vergonha, bem como com suas odiosas carícias.
Pluto não tinha um único a lembrança da crueldade Se me levantava para andar,
pêlo branco em todo o corpo que praticara, impediam-me metia-se-me entre as pernas
_ e o bichano que ali estava de maltratá-lo fisicamente. e quase me derrubava, ou
possuía uma mancha larga Durante algumas semanas, então, cravando suas longas e
e branca, embora de forma não lhe bati nem pratiquei afiadas garras em minha rou-
indefinida, a cobrir-lhe quase contra ele qualquer violência; pa, subia por ela até o meu
toda a região do peito. mas, aos poucos - muito gra- peito. Nessas ocasiões, embo-
dativamente _ , passei a sen- ra tivesse ímpetos de matá-lo
Ao acariciar-lhe o dorso, tir por ele inenarrável horror, de um golpe, abstinha-me
ergueu-se imediatamente, fugindo, em silêncio, de sua de fazê-lo devido, em parte,
ronronando com força e odiosa presença, como se à lembrança de meu crime
esfregando-se em minha fugisse de uma peste. anterior, mas, sobretudo _
mão, como se a minha aten- apresso-me a confessá-lo _
ção lhe causasse prazer. Era, Sem dúvida, o que au- , pelo pavor extremo que o
pois, o animal que eu procu- mentou o meu horror pelo animal me despertava. Esse
rava. Apressei-me em propor animal foi a descoberta, na pavor não era exatamente
ao dono a sua aquisição, mas manhã do dia seguinte ao um pavor de mal físico e,
este não manifestou interes- que o levei para casa, que, contudo, não saberia defini-
se algum pelo felino. Não o como Pluto, também havia lo de outra maneira. Quase
conhecia; jamais o vira antes. sido privado de um dos me envergonha confessar _
sim, mesmo nesta cela de cri-
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Aquela adega se prestava O passo seguinte foi No quarto dia após o
muito bem para tal propó- procurar o animal que havia assassinato, uma caravana
sito. As paredes não haviam sido a causa de tão grande policial chegou, inesperada-
sido construídas com mui- desgraça, pois resolvera, fi- mente, a casa, e realizou, de
to cuidado e, pouco antes, nalmente, matá-lo. Se, naque- novo, rigorosa investigação.
haviam sido cobertas, em le momento, tivesse podido Seguro, no entanto, de que
toda a sua extensão, com um encontrá-lo, não haveria dú- ninguém descobriria jamais
reboco que a umidade impe- vida quanto à sua sorte: mas o lugar em que eu ocultara
dira de endurecer. Ademais, parece que o esperto animal o cadáver, não experimentei
havia uma saliência numa se alarmara ante a violência a menor perturbação. Os
das paredes, produzida por de minha cólera, e procurava policiais pediram-me que os
alguma chaminé ou lareira, não aparecer diante de mim acompanhasse em sua busca.
que fora tapada para que enquanto me encontrasse Não deixaram de esquadri-
se assemelhasse ao resto da naquele estado de espírito. nhar um canto sequer da
adega. Não duvidei de que Impossível descrever ou ima- casa. Por fim, pela terceira
poderia facilmente retirar os ginar o profundo e abenço- ou quarta vez, desceram
tijolos naquele lugar, intro- ado alívio que me causava novamente ao porão. Não me
duzir o corpo e recolocá-los a ausência de tão detestável alterei o mínimo que fosse.
do mesmo modo, sem que felino. Não apareceu também Meu coração batia calma-
nenhum olhar pudesse des- durante a noite _ e, assim, mente, como o de um ino-
cobrir nada que despertasse pela primeira vez, desde sua cente. Andei por todo o po-
suspeita. E não me enganei entrada em casa, consegui rão, de ponta a ponta. Com
em meus cálculos. Por meio dormir tranqüila e profun- os braços cruzados sobre o
de uma alavanca, desloquei damente. Sim, dormi mesmo peito, caminhava, calmamen-
facilmente os tijolos e ten- com o peso daquele assassí- te, de um lado para outro. A
do depositado o corpo, com nio sobre a minha alma. polícia estava inteiramente
cuidado, de encontro à pare- satisfeita e preparava-se para
de interior. Segurei-o nessa Transcorreram o segundo sair. O júbilo que me inunda-
posição, até poder recolocar, e o terceiro dia _ e o meu va o coração era forte demais
sem grande esforço, os tijolos algoz não apareceu. Pude para que pudesse contê-lo.
em seu lugar, tal como esta- respirar, novamente, como Ardia de desejo de dizer uma
vam anteriormente. Arranjei homem livre. O monstro, palavra, uma única palavra,
cimento, cal e areia e, com aterrorizado fugira para à guisa de triunfo, e também
toda a precaução possível, sempre de casa. Não toma- para tomar duplamente evi-
preparei uma argamassa que ria a vê-lo! Minha felicida- dente a minha inocência.
não se podia distinguir da de era infinita! A culpa de
anterior, cobrindo com ela, minha tenebrosa ação pouco _ Senhores _ disse, por
escrupulosamente, a nova me inquietava. Foram feitas fim, quando os policiais já
parede. Ao terminar, senti-me algumas investigações, mas subiam a escada _ , é para
satisfeito, pois tudo correra respondi prontamente a mim motivo de grande satis-
bem. A parede não apre- todas as perguntas. Procedeu- fação haver desfeito qualquer
sentava o menor sinal de se, também, a uma vistoria suspeita. Desejo a todos os
ter sido rebocada. Limpei o em minha casa, mas, natu- senhores ótima saúde e um
chão com o maior cuidado e, ralmente, nada podia ser pouco mais de cortesia. Diga-
lançando o olhar em tomo, descoberto. Eu considerava se de passagem, senhores,
disse, de mim para comigo: já como coisa certa a minha que esta é uma casa muito
“Pelo menos aqui, o meu tra- felicidade futura. bem construída... (Quase não
balho não foi em vão”. sabia o que dizia, em meu
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Tradução
THE RAVEN
Edgar Allan Poe
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Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
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And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
`'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more,'
Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, `Lenore!'
This I whispered, and an echo murmured back the word, `Lenore!'
Merely this and nothing more.
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.
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Ghastly grim and ancient raven wandering from the nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'
But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only,
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered `Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.'
Then the bird said, `Nevermore.'
But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking `Nevermore.'
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Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he has sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'
`Be that word our sign of parting, bird or fiend!' I shrieked upstarting -
`Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!'
Quoth the raven, `Nevermore.'
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Teoria Literária
O PRAZER DO
TERROR
Herny Alfred Bugalho
duma outra vida? relação entre duas instâncias ceitos, os valores e as crenças
biológicas que se mesclam à da comunidade na qual se
Não temos uma expli- dinâmica da vida e da orga-
cação definitiva para esta origina.
nização social.
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Crônica
UM SOM NO
ESCURO José Bispo
http://www.flickr.com/photos/onwuma/100626563/sizes/l/
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Crônica
NATIVITY IN BLACK
Volmar Camargo Junior
http://www.flickr.com/photos/pauldain/517264677/sizes/o/
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Poesia
http://flickr.com/photos/sovietuk/1786741521/sizes/o/
LABORATÓRIO POÉTICO
Poetrix Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com
Enforcamento
http://www.flickr.com/photos/mikahiironniemi/33135567/sizes/o/
Vizinhaça do Cemitério
Rumorejam e choram jovens falecidos
Por obséquio, peço-vos silêncio.
Respeitem um velho defunto.
http://www.flickr.com/photos/13610705@N08/1564224196/sizes/l/
SONETO
Volmar Camargo Junior
A Noite do Levante
Levantemo-nos, ó putrefados!
Os vivos querem diversão.
Esquecem-se que malfadados
Os tempos na Terra serão.
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82 SAMIZDAT agosto de 2008
82
http://www.flickr.com/photos/greencracker/960860731/sizes/o/
IZ
SA OS
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SAMIZDAT
SOBRE OS AUT
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SOBRE OS AUTORES DA
SAMIZDAT
SOBRE
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TORES
SAMIZ DA
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83
s
erto Barro s-
Carlos Alb e nordestino
s, desenhi
fi l h o d m a d o ,
Paulistano
, ástico for
s e m p r e , artista pl s s i o n a l como
ta desd e v i da pro fi
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Começ o u s u u seu ras-
escritor. t ã o , já deixo
, de s d e e n Culturais,
educador e a s e Centros
G’s, E s c o l pedagógi-
tro por ON s a r tísticos e
tra b a l h o influência
através de q u e têm forte
riê n c i a s organiza
cos – expe . A tualmente, a
sobre seus
es c r i t o s ças, estud
u s t r a ç ã o para crian e s c r e v e
il te e
oficinas de e m H i s t ória da Ar
çã o
pós-gradua ernet.
p u b l i c a ç ões na int
para
il.com
ador@hotma
carloseduc pot.com
nome.blogs
http://des
Giselle Sato
Giselle se autodefine apenas como uma contadora de his-
tórias carioca. Estudou Belas Artes e foi comissária de bordo
— cargo em que não fez muita arte, esperamos. Adora viajar
(felizmente!) e fala alguns idiomas.
Atualmente se diverte com a literatura, participando de
concursos e escrevendo para diversos sites pela net. Gosta de
retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam
a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente pa-
norama da sociedade em que vivemos, principalmente daquilo que é
comumente jogado
para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.
gisellesato@superig.com.br
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/
Guilherme Rodrigues
Estudante Letras na
Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde
sempre morou. Nutre
grande paixão por Línguas,
Literatura e Lingüística,
áreas em que se dedica
cada vez mais.
garodrix@yahoo.com.br
o
Henry Alfred Bugalh
a pela UFPR, com
É formado em Filosofi ra e
pecialista em Literatu
http://bonfireblaze.files.wordpress.com/2007/12/grafiti_wall.jpg
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Facul-
dade de Medicina da Univer-
sidade de São Paulo, trabalha
como psiquiatra e psicanalista.
Apaixonada por literatura e lín-
guas estrangeiras, lê sempre que
pode e brinca de escrever de vez
em quando. Paulistana convicta,
lo.
vive desde sempre em São Pau
marciasz@hotmail.com
Volmar Camargo Ju
nior é gaúcho. Form
em Letras pela Unive ado
rsidade de Cruz Alta,
leciona por sua próp não
ria vontade. Entrou na
em 2004, e desde en ECT
tão já morou em meia
de “Pereirópolis” pelo dúzia
Rio Grande. Atualm
vive com a esposa Na ente
tascha em Canela, na
Gaúcha. Dividem o ap Serra
artamento com Marie,
uma gata voluntario
sa e cínica.
v.camargo.junior@gm
http ail.com
:// re ca ntodasletras.uol.com
www.samizdat-pt.blogspot.com 85
.br/autore s/vcj
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