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SAMIZDAT

Especial
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9
outubro
2008

ficina

TERROR
Do que você tem medo?
SAMIZDAT 9
outubro de 2008

Edição, Capa e Diagramação: Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada


Henry Alfred Bugalho a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Todas as imagens publicadas são de domínio público ou
Autores royalty free.
Carlos Alberto Barros As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira res-
Giselle Natsu Sato ponsabilidades de seus autores ou tradutores.
Guilherme Rodrigues
Henry Alfred Bugalho
Joaquim Bispo
Editorial
José Espírito Santo
Marcia Szajnbok
Esta edição especial de Terror da SAMIZDAT teve de
Pedro Faria
enfrentar uma série de contratempos até ficar pronta.
Volmar Camargo Junior
­Inicialmente, deveria ter sido publicada em agosto, mas um
conflito de cronogramas nos atrasou. Decidiu-se então que as
Autores Convidados edições especiais integrariam o ciclo de publicação periódico
JRM Torres da revista, ao invés de edições paralelas.
Marcelo Galvão
Também havíamos contatado o autor André Vianco para
Maristela Scheuer Deves
a seção de entrevistas. Preparamos as perguntas, mas não
obtivemos resposta do entrevistado. O nosso plano B era
Textos de: uma entrevista com o cineasta José Mojica Marins - o Zé do
Edgar Allan Poe ­Caixão -, porém o prazo já estava apertado e também não
conseguimos resposta a tempo para o fechamento da edição.

Por fim, para a seção de traduções, contávamos com o


texto “O Chamado de Cthtulhu” do mestre do terror H. P.
Imagem da capa:
Lovecraft, no entanto, não foi possível inclui-la.
http://www.flickr.com/photos/
totemik/2376276117/sizes/l/ Apesar destas dificuldades, dignas dum filme de terror,
a SAMIZDAT Especial traz um conteúdo de primeira linha,
com histórias originais e arrepiantes.

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Henry Alfred Bugalho
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

MICROCONTOS
Marcia Szajnbok 8
Carlos Alberto Barros 8
Henry Alfred Bugalho 9

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
O Chamado, de Kôji Suzuki 10
Henry Alfred Bugalho

Cemitério Maldito, de Stephen King 11


Henry Alfred Bugalho

A Estrada da Noite, de Joe Hill 12


Giselle Natsu Sato

CONTOS
Férias no Campo 14
Carlos Alberto Barros

Alguém Caminha no Corredor 18


Volmar Camargo Junior

Os Estranhos Habitantes de Soledad 20


Henry Alfred Bugalho
Imperfeição 24
José Espírito Santo
Confinado 28
Joaquim Bispo

A Mansão e seus Hóspedes 32


Guilherme Rodrigues
Olhar 34
Pedro Faria
Labirintos 36
Marcia Szajnbok

O Fio da Maldade 40
Giselle Natsu Sato

AUTOR CONVIDADO
A Última Estripulia 44
Maristela Scheuer Deves
Linea Nigra 50
Marcelo Galvão
Movido pela Fome 54
JRM Torres

TRADUÇÃO
O Gato Preto 58
Edgar Allan Poe
O Corvo (bilíngue) 66
Edgar Allan Poe

TEORIA LITERÁRIA
O Prazer do Terror 74
Henry Alfred Bugalho

CRÔNICA
Um Som no Escuro 76
Joaquim Bispo
Nativity in Black 78
Volmar Camargo Junior

POESIA
Laboratório Póetico - Poetrix 80
Volmar Camargo Junior
Soneto 81
Volmar Camargo Junior

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 89

SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-
nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-
dado.
Escreva-nos para:
revistasamizdat@hotmail.com
Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiram,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprirmir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exenplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6 SAMIZDAT agosto de 2008


6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substitua
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido Ao serem obrigados a bur-
pelo mercado. larem a indústria cultural, os Enfim, “Samizdat” porque a
autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- o ­diálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Microcontos

O Corajoso
Marcia Szajnbok

O Tuta era aquele menino que todos os demais invejavam: grandão, musculo-
so, metido. Foi o primeiro a fumar, se gabava de ir ao puteiro desde os 10 anos,
conhecia palavrões que nenhum dos outros tinha ouvido ainda. E, o principal, era
corajoso, muito corajoso mesmo. Toda sexta-feira, os meninos apostavam: quem é
que consegue ficar mais tempo sozinho no portão do cemitério? O Tuta sempre
vencia, e vencia de lavada. Naquela noite, fez uma proposta diferente:
- Vamos ver quem é que consegue ir mais longe dentro do cemitério... Cada um
entra, os outros vão contando os passos... Aposto que vou levar esta também!
Não que os outros acreditassem que podiam vencer o Tuta. Mas, uma aposta
dessas menino que é homem não recusa. E lá foram, perto da meia-noite, se em-
brenhar no cemitério. Foi um, depois outro, ninguém dava mais de vinte passos.
Chegou a vez do Tuta. Depois de dez passos, virou-se para o portão e gritou:
- E aí, cambada? Não tem nenhum macho aí pra me acompanhar?
Diante do silêncio, seguiu em frente. Do lado de fora, os outros ouviam os passos
e contavam: trinta, quarenta, oitenta, cento e vinte, cento e vinte e dois... Silên-
cio. Os garotos se entreolharam. Cadê o Tuta? Ninguém fez a pergunta, mas ela
pesava no ar escuro e absolutamente silencioso daquele início de madrugada de
sábado. Quando uma nuvem escura tapou completamente a luz da lua e um ven-
to gelado uivou por entre as árvores, saíram todos correndo, cada um rumo à sua
casa, ansiosos pelas cobertas e pela própria mãe.
O Tuta? Nunca mais foi visto.

O Ratinho
Carlos Alberto Barros

Se é real, pouca importa. A mente de uma mulher como eu – viúva, só, 97 anos –
já não se incomoda com distinções entre ilusão e realidade. Só quero ter algo em
que apoiar a pouca vida que me resta.
Um ratinho. Tão bonito com suas asinhas negras batendo, assim, velozes. Os olhi-
nhos vermelhos brilham na escuridão do quarto.
- Olá, ratinho bonito. Está com fome?
***
Dias depois, na casa da solitária anciã, são encontrados apenas restos de ossos
humanos roídos. A mulher é dada como desaparecida e o caso é arquivado por
falta de testemunhas ou evidências.

8 SAMIZDAT agosto de 2008


8
O Bicho Roncador
Henry Alfred Bugalho

Zé Carlos engatilhou a espingarda,


abriu uma fresta na porta e espiou.
— O bicho ‘tá lá fora, Maria! — ele tre-
mia.
— Deixa, Zé. Aqui dentro ele não faz
nada... — Maria, incerta.
— Que nada, mulher. Você não ouviu a
história do Tião. O bicho comeu uma
criança já.
— Mentira, Zé. O Tião só fala mentira!
— Mas olha, olha o ronco do bicho. Ele
‘tá rondando.
E estava mesmo. Era possível ouvir o
caminhar dele, a respiração profunda,
rosnar dum tigre.
Zé Carlos disparou para fora, Maria
com mãos unidas, rezando.
— Foi embora. — Maria, desesperada.
— Não sei. Acho que não.
O ronco aumentou, o som das patas mais perto, Zé Carlos tremia, Maria também.
— Fecha a porta, Zé, fecha!
Mas não deu tempo, quando Zé a encostou e se preparava para trancá-la, o
monstro deu uma trombada, derrubou Zé e estraçalhou Maria. Depois, foi embo-
ra. Zé chorando sozinho, espingarda na mão trêmula.

— Mentira, Tião! Este bicho não existe. — Pedro tragava o cigarro de palha.
— Mentira não, Pedro; meu amigo Zé Carlos que não me deixa mentir. Agora me
vou, só não esqueça de trancar a porta.
Pedro não obedeceu, mas, quando ouviu o ronco fora de casa, se arrependeu.
Tião nunca mentia.

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Recomendações de Leitura

O Chamado
de Kôji Suzuki
Henry Alfred Bugalho

The Ring (O Chamado)

Autor: Kôji Suzuki

Editora: Vertical

10 SAMIZDAT agosto de 2008


10
Os filmes e as séries inspi-
radas no livro “O Chamado”,
do autor japonês Kôji Suzuki,
Cemitério Maldito
se tornaram motivo de culto
ao redor do globo. As duas
versões cinematográficas - de Stephen King
“Ringu”, o original nipônico, e
“O Chamado”, remake ameri- Henry Alfred Bugalho
cano - representam um marco
do Terror, tal qual “O Exorcis-
aborda a adaptação de Creed
ta”, “A Volta dos Mortos-Vivos”
e de sua família a este novo
e “O Iluminado”.
cenário, bastante diferente
O enredo do livro e dos de Chicago, de onde eles
filmes é basicamente o mesmo: vieram. Neste sentido, Ste-
um jornalista investiga as mis- phen King é um autor muito
teriosas mortes de adolescentes hábil, ele possui uma grande
atribuídas a um vídeo amaldi- capacidade para conceber e
çoado. No romance de Suzuki, descrever situações cotidia-
o protagonista é Asakawa, o nas, talvez até mais do que
jornalista que se envereda nes- consegue em cenas de terror.
te mundo de tradições milena- Os conflitos entre marido e
res, de fenômenos paranormais esposa, entre sogro e genro,
e dum terror psicológico de entre irmãos e entre vizinhos
primeira categoria. ocupam quase a metade do
A grande vilã da história é romance. A versão cinemato-
a assustadora jovem paranor- gráfica funciona melhor, pois
mal Sadako (Samara nos EUA), Comprar um livro usado em apara todas as arestas e vai
tanto vítima quanto algoz. Nova York é sempre uma direto ao assunto.
surpresa. Certa vez, ao pas- No entanto, da metade em
sar por um livreiro de rua, diante, King mostra suas
Estranhamente, o romance deparei-me com uma edição armas e nos diz a que veio.
de Kôji Suzuki não possui de "Cemitério Maldito" de A morte do caçula, Gage, é
tradução para o português, Stephen King. o grande ponto de virada
apesar das vendas astronômi- no romance, quando enfim
Poucas cenas de infância me
cas de mais de 10 milhões de todos os alicerces da família
impressionaram como as dos
exemplares nos EUA. O estilo desabam e quando o terror
filmes de King. Foram noites
de Suzuki é econômico, mas rural e mitológico de King
de medo após ter assisti-
com uma surpreendente pre- se faz presente.
do a "Cemitério Maldito"
cisão. O terror japonês é sutil A escrita de King é agra-
e, quando um amigo leu o
e inteligente, mas demasiado dável, sem grandes preocu-
livro e confessou ter ficado
lógico. A crise de identidade, pações formais, mas em "O
aterrorizado, convenci-me de
representada pela dualidade Cemitério Maldito" ele ainda
que passaria longe dos livros
tradição/modernidade, torna-se parece estar aprendendo o
de King.
patente nestas obras, pois o pa- ofício.
ranormal sempre se manifesta Mas a gente cresce e teorica-
mente acaba perdendo certos E a maior surpresa da com-
através de algum aparato tec- pra de "O Cemitério Maldi-
nológico. A modernidade, ao temores. Assim, decidi com-
prar a obra com tal livreiro. to"?
trazer seus benefícios, arrasta
O enredo do livro é bastante O exemplar no qual paguei
atrás de si suas maldições. A
próximo da versão cinemato- 1 dólar era a primeira edi-
Sadako de “O Chamado” é um
gráfica: Louis Creed muda-se ção, à venda por mais de 200
destes símbolos.
com sua família para uma dólares em livrarias especia-
cidadezinha interiorana, onde lizadas. Uma relíquia para se
ele assumirá uma vaga como guardar...
médico do campus univer-
sitário. Boa parte da obra

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Recomendações de Leitura

A Estrada da Noite
de Joe Hill
Giselle Natsu Sato

http://www.flickr.com/photos/2create/1562752486/sizes/o/

12 SAMIZDAT agosto de 2008


12
Hoje comecei um livro gens bucólicas, famílias felizes propõe um jogo e vale a pena
de terror e suspense. Autor e cidades perfeitas. entrar e aproveitar. Impossível
relativamente novo mas com resistir ao mistério oculto por
a pesada bagagem de ser filho E no meio da calmaria, in- trás das cortinas. Como fã ,
de Stephen King, mestre do troduz uma criatura desuma- estou aguardando o próximo
gênero. na, um assassinato inesperado, ansiosamente.
abre as portas do pesadelo
As primeiras páginas me e seduz. Ele consegue, assim
conquistaram, não consegui como King , desafiar o leitor
parar de ler até ser vencida em hipóteses que saltam aos
pelo cansaço. Eram quase três olhos e nos empurram para o
da manhã e a história bem oculto. Aquilo que não que-
contada não dava uma trégua. remos enxergar, o banal que
passa despercebido.
O escritor muitas vezes
tem um texto maravilhoso nas Até onde eles ousam, since-
mãos, argumento, personagens ramente não sei, quando penso
e construção perfeitas. E não que já li tudo que uma mente
acontece. Existem pessoas que prodigiosa poderia criar, eles
irão achar loucura, mas um lançam obras completamente
toque de magia pessoal tempe- diferentes. Reinventam.
ra o enredo.
Comecei com Joe Hill e
Volto e releio atentamente, seu livro Estrada da noite, não
não houve buracos ou enxer- consegui resistir e falei um
tos desnecessários. É escrita pouco dos velhos senhores do
limpa, direta e recém saída do Horror. Não existe a menor A Estrada da Noite
forno. chance de confundir os três
Autor: Joe Hill
escritores.
Cheia de sabores diferentes. Editora: Sextante
Para o leitor ávido a descober- Hill é a lufada de vento for-
ta promete reviravoltas bem te, invadindo espaços e preen-
amarradas, surreais e comple- chendo lacunas. Traz a mo-
tamente inusitadas. dernidade sem perder o foco
principal, irresistível e muito
Sempre fui fã de Stephen bem vindo. Não esconde o
King e Dean koontz, são es- jogo, na capa ele diz o que vai
tilos diferentes, embora ouça, contar. Uma boa história de
que tudo não passa de Terror. terror com tudo que temos
Isto não é verdade. King pega direito.
um eletrodoméstico e trans-
forma em instrumento mortal, O que este moço vai
dá vida a um carro fantasma, mostrar se já sei que o per-
cria situações impossíveis com sonagem principal coleciona
uma simples caneta. coisas bizarras, arrematou pela
internet um terno assombrado
Koontz algumas vezes em uma leilão virtual, e entre
começa o livro tão cheio de outras tem uma namorada
descrições e sentimentos, que Gótica?
se você descuidar pensa que
está lendo um romance. Paisa- Aí está o maior engano, Hill

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Contos

FÉRIAS NO CAMPO
Carlos Alberto Barros
carloseducador@hotmail.com

http://www.flickr.com/photos/matthew_fp/2136400143/sizes/l/

14 SAMIZDAT agosto de 2008


14
O que me aconteceu
não desejo a ninguém, nem
ao pior de meus inimigos.
Pessoas maléficas sofrerem
as conseqüências de seus
atos, claro, penso que é certo
e justo. Mas não isso, não o
que passei. Tal punição é in-
justa até ao mais inescrupu-
loso dos criminosos, ao mais
cruel dos assassinos. E por
que comigo? Por que me con-
denou com tamanha desgra-
ça, meu Deus? Todas, todas
mortas! Cada centímetro do
meu corpo banhado em san-
gue. E aquela... aquela... coi-
sa... O que era aquilo? Cristo,
o que era aquilo? Lembro-me
e começo a tremer.
Estávamos em nossa casa
de campo. Eu, minhas filhas
gêmeas de seis anos, Samira e
Samara, e minha esposa, Shei-
la – felizes em nosso tradi-
cional descanso de férias. Era
o costume passarmos os fins
de tarde no lago e, enquanto
eu pescava numa extremida-
de, na outra, minha mulher
e as meninas brincavam na
água. Tudo agradável, perfei-
to.
Numa dessas tardes, ab-
sorvido por minha introspec-
ção de pescador, pensei ver
um vulto passando entre as
árvores que ficavam além de
onde minha família estava.
Tentei forçar a vista para
comprovar minha impressão,
mas, devido à grande dis-
tância, não consegui definir
nada que não fosse a vegeta-
ção de sempre.
Assim que deixei de lado
o que me convenci de ser
apenas uma sombra, ouvi um
violento grito de criança –
era Samira. O susto me fez
pular e, acidentalmente, lar-
guei a vara de pesca à mercê

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da água. Corri depressa. Shei- ninas nos braços. Inconscien- pude sentir minha alma se
la, nervosa, já carregava Sami- temente, combinamos um arrepiando. Num impulso re-
ra no colo, indo em direção passo apertado em direção à pentino, larguei a menina no
ao carro. Samara vinha atrás, porta de entrada da casa. To- sofá e corri até Sheila. Abra-
chorando. Trouxe-a aos meus mei a frente para abrir a fe- cei-a com força. Senti todo
braços e segui minha esposa chadura. Assim que entrei e aquele sangue, ainda quente,
que, com os olhos verme- acendi a luz, tive a impressão ser passado para o meu cor-
lhos, disse-me que a menina de sentir um vento passando po. Era o último ato de amor
tinha sido mordida por uma às minhas costas. Virei-me e da minha adorada. Enquanto
aranha. vi que não havia nada nem Samira continuava gritando,
Chegamos ao hospital ninguém, nem mesmo Sheila. eu chorava em terror, incon-
desesperados. Minha filha Entrei em pânico. Olhei em solável pela morte de Sheila
tremia e eu esbravejava, pe- frente à casa, e não avistei e imaginando onde minha
dindo atendimento. No fim, Sheila. Comecei a gritar por outra filha poderia estar.
tudo correu bem. O médico seu nome e o de Samara, Foi com grande sacrifí-
diagnosticou uma intoxi- sem obter resposta. Em meu cio que larguei o corpo de
cação leve, dizendo que, no colo, Samira acordou agitada, minha esposa. Só o consegui
máximo, geraria uma febre. perguntando por sua mãe e pelos chamados de Samira.
Depois dos medicamentos e sua irmã. Tentei acalmá-la, Corri para trancar a porta
algumas horas de observação, enquanto contornava a casa e fui até a menina. “Calma,
fomos liberados. à procura de alguém ou filha, vai dar tudo certo”,
alguma coisa. Sem sucesso e disse – muito mais para mim
No retorno para casa, apavorado, resolvi ligar para
Sheila dirigia em silêncio. mesmo do que para ela – e
a polícia. recomendei que ficasse quie-
Eu ninava Samira, enquanto
Samara cochilava. Já quase Após desligar o telefone, tinha no sofá, que não saísse
chegando, um novo susto. De obtendo a promessa da che- dali por nada. Fui até o ar-
repente, e numa velocidade gada de uma viatura o mais mário dos fundos para pegar
inaceitável à mente humana, rápido possível, presenciei minha espingarda. Enquanto
um imenso animal cruzou a uma das piores cenas que eu a carregava, ouvi a voz de
frente do carro, o que nos fez já pude ver. Emergindo da Samara vindo de fora. Meu
parar bruscamente. O medo escuridão externa, um corpo coração disparou, ela estava
tomou conta de mim, mas desmembrado entrou voando viva! “Samara, eu abro a porta
tentei escondê-lo para não pela porta e atravessou o ar para você”, escutei Samira di-
assustar ainda mais minha velozmente, até se estraçalhar zendo. “Não, filha, deixa que
mulher. Depois de várias na cristaleira do lado oposto o papai abre”, ordenei com
hipóteses levantadas, já que da sala. A imagem era ter- um grito. E correndo entre os
o escuro da noite não nos rível: uma pessoa... o corpo cômodos, em direção à en-
permitiu ter uma visão clara, mutilado... sangue... muito trada, ouvi o som do ferrolho
concordamos que aquilo sangue... Meu Deus, até hoje, se abrindo. “Menina teimo-
tinha sido um cavalo fugindo sinto meu coração parar sa”, falei comigo mesmo. As
de alguma fazenda, ignoran- quando lembro... Foi como vozes cessaram e um sinistro
do completamente o fato de ver o inferno. Ali, na minha silêncio dominou o ar.
que nenhum animal podia frente, estava o cadáver da Deus, o que vi ali e o que
ser tão veloz. pessoa que eu mais amava. se sucedeu pagou os peca-
Cristo, como pôde deixar dos não só desta minha vida
Por ser já muito tarde e, acontecer isso com a minha
como não queríamos pegar miserável como os de tantas
Sheila? Tão bela... transfor- outras que eu possa ter. Eram
a rodovia na madrugada, mada num corpo dilacerado
decidimos ficar ali naquela só crianças! Como pôde
e sem vida. deixar isso acontecer? Como
última noite antes de voltar-
mos para a cidade. Saímos Só consegui sair do esta- pôde abandonar duas meni-
do carro, eu e minha esposa, do de choque com o grito nas inocentes? Maldito! Um
cada qual com uma das me- de Samira. Foi tão forte que Deus assim não me vale de

16 SAMIZDAT agosto de 2008


16
nada! Por quê? na sua frente! Eu precisava ram a casa, incidindo sobre a
Vi Samira parada na salvá-la... Ainda havia espe- fera. Não sei exatamente por
porta, olhando para fora, rança... Eu precisava salvá-la! que: se pelo barulho, se pelas
paralisada. Pouco além dela, “Samira, Samira”, chamei-a, luzes externas, se por um
emergindo da escuridão, vi baixinho, tentando não de- milagre ou por vontade pró-
dois pontos luminosos. Na monstrar ameaça à fera. A pria. Mas, o fato é que, num
medida em que se aproxi- menina continuava parada. piscar de olhos, o monstro
mavam, transformavam-se Não tive escolha, arrisquei: cruzou a porta e ganhou a
em grandes e ferozes olhos. chamei mais alto. A respos- mata, sumindo da minha
Aos poucos, fui identificando ta veio da maneira que eu visão para não mais retornar.
a silhueta que os carregava. menos desejava. Samira saiu Pelo menos, não até agora...
Por Cristo, o que era aquilo? de seu transe com um grito Que Deus me mate antes de
Um monstro! E só o que me agudo, ensurdecedor. “Não!”, acontecer novamente. Estre-
vem à mente. Um mons- falei, mas já era tarde. A meço só de pensar.
tro demoníaco. Sua cabeça besta pulou sobre a menina, Quando o policial viu
ostentava tantos chifres que calando sua voz para sempre. meu estado, sua primeira
não pude contá-los. Tam- Meu Deus... feita em peda- atitude foi solicitar refor-
bém tinha uma espécie de ços... uma criança... Só então ços. Em pouco tempo a casa
focinho muito saliente, com desisti. Dei-me conta de que estava rodeada de viaturas.
presas enormes à mostra e tudo estava acabado. Todas, Consigo lembrar bem do
um líquido viscoso escorren- todas mortas! Ergui a es- barulho e das luzes. Depois
do. O resto de seu corpo era pingarda e comecei a atirar, disso, apaguei.
uma grande massa escura de urrando, descontrolado e em
total desespero. Inconsciente- Dia seguinte, acordei no
pêlos, lembrando muito um hospital. Apesar de não estar
gorila, porém, com um de- mente, dava passos para trás,
até que caí sobre o corpo morto, minha vida acabara.
talhe terrivelmente macabro Minha família... Deus, minha
– havia, na altura do estô- de minha esposa, envolto
nos estilhaços da cristaleira. família... O que eu faria sem
mago, uma abertura cheia de ela? Como continuar viven-
dentes ensangüentados, como Todo cortado e num transe
enlouquecido, continuei aper- do?
uma espécie de segunda
boca. Mas, o pior era o que tando o gatilho, mesmo com Soube que fizeram diver-
carregava entre seus dentes... a arma já sem balas. sas buscas para encontrar a
Horrível! A visão mais dia- Não sei se acertei meu fera, porém, ninguém mais a
bólica que possa existir não alvo, mas o demônio con- viu. Hoje, moro com alguns
se compara àquilo. Minha tinuava em pé, terminando parentes. Após anos e anos
filhinha... minha pequena de devorar minhas meninas. de tratamentos mentais,
Samara, com metade de Maldito! Enquanto via aquilo, dizem que fiquei bom, que
seu corpinho engolido. Seu aos prantos, totalmente ven- estou curado. De minha par-
tronco, pendurado naquela cido e sem forças para ainda te, tenho uma única certeza:
mandíbula nojenta, era como tentar algo, ouvi um barulho você nunca mais será o mes-
uma boneca quebrada servin- de carro. Eu estava desnorte- mo depois de um encontro
do de brinquedo ao demô- ado, delirando... “Socorro! Sal- com o demônio.
nio. Pela minha alma! Queria ve minhas filhas!”, gritei. Elas
que fosse eu ao invés dela. já mortas e eu lá... delirando.
Minha pequena... ali... morta. Nada mais fazia sentido, e
De repente, me dei con- não restava nem uma bala
ta que Samira continuava para que eu me matasse ali
no mesmo lugar. Ela não se mesmo. Minha vida acabou
movia, não falava, não fazia naquele instante.
nada e... pobrezinha... via O som do carro encerrou-
tudo que eu via! A própria se com uma freada violenta.
irmã... gêmea... devorada As luzes do farol alto invadi-

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Contos
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ALGUÉM CAMINHA NO
CORREDOR Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

Carla acordou sobressaltada. na ponta da mesa. Bebeu o De volta, tomou o controle


Os lençóis estavam no chão. último gole morno do café, remoto e ligou a TV sem
A camisola, como vinha e atravessou o corredor na acender a luz. Prevendo que
acontecendo cada vez com direção do banheiro. o sono não voltaria, pôs água
mais freqüência, estava em- “Ai, Jesus!” aquecer para fazer um chá.
papada de suor. Porém, o que De uma porta para outra,
a acordou não foi o frio, mas Martinho teve a vívida im- ***
a inegável sensação de que pressão de ter visto atraves- Uma luz bruxuleante vin-
havia alguém no quarto. sar uma mulher de branco. da do corredor despertou
Martinho do primeiro sono.
*** *** Era uma luz pálida que
Martinho colocou em Na cozinha ecoava o som desenhava a porta do quarto
ordem a última fileira de intermitente de uma torneira na parede oposta. “Eu hem.”
carrinhos. pingando. Carla correu para Levantou-se sem calçar os
“Cento e noventa e dois!” o quarto vestir um casaco. chinelos.
Deixou os óculos para perto “Como esfria de madrugada”.

18 SAMIZDAT agosto de 2008


18
*** “Deus!” Martinho não viu nada
A chaleira apitou, desviando Martinho deixou a garra- anormal, confirmando a tese
a atenção de Carla da mi- fa d’água cair quanto teve do vento encanado. Olhou
lionésima reprise de Psicose certeza de ver com o canto em volta, embaixo da cama,
para seu chá. Assim que des- do olho esquerdo o mesmo para fora da janela. Nada.
ligou o fogo, ouviu, sem que vulto branco de antes. Na “Eu preciso é parar com o
pudesse se virar, paralisada seqüência, ouviu um grito café.” Deitou-se. Em poucos
pelo medo, o som nítido de medonho vindo de muito minutos, adormeceu. Por via
passos rangendo as tábuas do longe e, nitidamente, alguém das dúvidas, deixou todas as
corredor. Fosse quem fosse, correndo por dentro de casa, luzes da casa acesas.
estava vindo em sua direção. acompanhado do som ca-
racterístico da porta de seu ***
*** quarto sendo trancada. A manhã ia adiantada quan-
Além da luz baça, havia do Carla acordou. Imediata-
o som de um apito, o mes- *** mente, tomou o telefone.
mo que vinha acordando-o O silêncio do outro lado “Consultório médico, bom
todas as noites nas últimas da porta não a deixou me- dia.”
semanas. Assim que entrou nos nervosa. Colou o ouvido “Alô, oi, quem fala é a Carla
na porta da cozinha, tanto à madeira. “Isso não está Martins. Eu preciso muito
o chiado quanto a luz mis- acontecendo... eu só posso falar com o Dr. Pedro.”
teriosa cessaram no mesmo estar ficando louca!” Então, a “Aguarde um momento,
instante. maçaneta moveu-se pelo ou- senhora.”
tro lado. A chave soltou-se,
“Alô, Carla?”
*** empurrada pelo outro lado.
“Sim, doutor. Aconteceu
Os passos aproximaram- outra vez.”
se. Carla espremeu-se entre ***
“Você viu o fantasma?”
no canto entre a parede e a “Eu sei que está aqui em
“Não. Mas ele estava andan-
cristaleira com o controle re- algum lugar... Achei!” cochi-
do pela casa, abriu a gela-
moto na mão. Sem perceber, cha consigo mesmo quan-
deira, e depois destrancou a
pressionou o botão desli- do encontrou o molho de
porta que eu fechei à chave!
gando o televisor. Os passos chaves de reserva na caixa
Foi aterrorizante...”
pararam. A luminária sobre de ferramentas. Pé-ante-pé,
“Bem. Carla, eu aconselho-a
a mesa acendeu sozinha. chegou-se à porta do quarto.
a vir ao consultório. Às onze
Certificou-se de que estava
está bom para você?”
*** mesmo trancada. “Só pode
ter sido o vento”, afirmava “Claro, doutor Pedro. Estarei
“Tem alguém aí?” perguntou aí no horário dessa vez.”
a si mesmo. Com a cópia,
Martinho acionando o inter-
sentiu ter empurrado a outra “Até lá, então.”
ruptor. Não obtendo respos-
chave, destrancando a porta
ta, rindo da própria creduli-
em seguida. ***
dade, sentiu a garganta seca
por respirar de boca aberta. Assim que desligou o
*** aparelho, Dr. Pedro Almeida
Atirou-se na cama. A porta acrescentou uma nova linha
***
se abriu com o longo gemido ao relatório do paciente
“AAAAh!”
das dobradiças. A luz vinda Martinho Oliveira:
Carla não conseguiu conter
do corredor iluminou-a. Não O paciente agendou a con-
o grito quando a geladeira
havia ninguém lá. O pavor, sulta pela terceira vez nos úl-
abriu-se como que pela ação
vencendo todas as resistên- timos dois meses atribuindo
de um ser invisível. Correu
cias, fez Carla desmaiar. a si mesmo o nome “Carla
para o quarto.
Martins”.
***
***

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Contos
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Os Estranhos Habitantes
de Soledad

20 SAMIZDAT agosto de 2008


20
Henry Alfred Bugalho A família sempre reputou repreendendo-me pela de-
minha tia-avó como louca. mora em lhe corresponder.
henrybugalho@gmail.com
Mas família é família, e se Como um fardo, eu me força-
faz necessário encontrar um va a mandar um cartão de
bode-expiatório, determi- felicitações nos Natais e nos
nar quem é a ovelha negra. aniversários dela; contudo,
Assim, tem-se farto mate- nos últimos cinco anos, ne-
rial para fofocas quando gligenciei até esta obrigação,
há reuniões familiares, e o mas as cartas de Joaquina
comportamento misantropo nunca falharam. Depois de
de Joaquina só favorecia esta um tempo, nem abri-las mais
situação. eu abria. Entretanto, após o
Talvez ela fosse realmente falecimento dela, aos noventa
louca, ou apenas excêntrica. e três anos, eu me arrependi
A verdade é que ela — por da indiferença que dispensei
opção? — nunca havia se a ela e reli todas as cartas,
casado; uma aberração, se que reunidas, comporiam
comparada às irmãs, que não facilmente um livro.
apenas se casaram, como
botaram no mundo dúzias de A minha surpresa foi
filhos, redundando em uma quando o testamenteiro de
centena de netos. Joaquina bateu à minha
Joaquina lutou pelos direi- porta, informando-me de que
tos da mulher na juventude, minha tia-avó havia me lega-
organizou grupos de teatro, do a mansão no interior, com
redigiu manifestos contra o todos os móveis nela conti-
Estado Novo, foi presa, apa- dos. Minha esposa ficou par-
nhou, opôs-se à Guerra Mun- ticularmente entusiasmada,
dial e à exploração da classe mas este presente de grego
trabalhadora, foi exilada no me preocupou. Provavelmen-
Chile e, quando retornou, te, a habitação deveria estar
finalmente obteve reconhe- em estado lastimável, já que
cimento em sua carreira Joaquina vivia uma vida de
literária com obras de cunho reclusão eremítica, não de-
feminista, se se procurar, é veria conter nada de valor, e
possível encontrar o nome ainda teríamos de arcar com
dela na listagem dos Mais os custos legais para transfe-
Vendidos da VEJA, durante o rência da propriedade para
mês de setembro, em meados meu nome, sem sabermos se
dos anos 80. recuperaríamos este dinheiro
Com o dinheiro dos livros, com a venda da herdade.
Joaquina comprou um ter- Perfizemos os trâmites
reno no interior e construiu legais e eu já estava pronto
uma mansão. Convidou-me para anunciar a venda do
várias vezes para visitá-la, casarão, mas minha esposa
tinha-me em grande consi- insistiu para que eu fosse até
deração (porém, a recíproca lá e visse o que ela continha,
não era verdadeira), mas sem- crente de haver algo de nosso
pre encontrei escusas para interesse. Aquiesci, afinal de
me eximir da obrigação. contas, eu estava de férias e
Mensalmente, ela me ainda faltavam dez dias para
escrevia uma carta, pergun- retornar ao trabalho, mas
tando-me como eu estava e Elisa não poderia ir comigo,

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era época de provas finais no retornei o mais rápido que Mas a chuva pesada na
colégio e ela estava atolada pude ao casarão desabitado, janela e o vento a gemer lá
com o fechamento dos livros- sob um aguaceiro sem pre- fora me despertavam a todo
de-chamada. cedentes e raios caindo por o momento. Numa das vezes
todos os lados. que acordei, tive a impressão
A viagem era longa, Jo- Outra bela surpresa a casa de haver visto uma silhueta,
aquina desejava realmente me reservava, com a morte mãos apoiadas no batente
se esconder. Perdi-me várias da moradora, a energia havia da janela, braços esquálidos,
vezes nas estradas de terra sido cortada, então, estava cabelos brancos, olhando
e, quando parava para pedir eu, nunca casa abandonada, para fora. Eu torcia para fosse
informação a algum carrocei- anoitecendo, e sem poder sair mera impressão.
ro, a resposta era que deveria dali. Aproveitei o resquício Posteriormente, por volta
seguir adiante. de claridade do dia para de uma da manhã, escutei
Finalmente, encontrei a procurar por velas e fósfo- barulhos vindo dos anda-
tabuleta, despencando da cer- ros, e consegui encontrá-los res inferiores. Era como se
ca, com o nome da fazenda: na cozinha. Depois, puxei arrastassem móveis, abrissem
Soledad. uma cadeira até o alpendre e e fechassem janelas, passos,
fiquei observando a chuva até risos, tosses.
Melhor nome não havia,
escurecer. Eu tremia sob o lençol, tal
pois o casebre mais próximo
ficava a umas duas horas. Não havia muito a ser qual quando eu era criança e
feito e meu suprimento de minha prima me contou que
O casarão tinha dois anda-
velas era escasso, apenas cin- havia visto o pai morto, e, à
res e um ático, depois des-
co; com este pequeno lume noite, eu não conseguia parar
cobriria que havia também
percorri a habitação à procu- de pensar nisto, fantasiando a
um porão. Como já esperava,
ra dum quarto. No segundo figura do meu tio, crânio es-
o lugar estava entulhado de
andar, descobri o que deveria facelado por causa do aciden-
quinquilharias, com espaço
ter sido o aposento de Joa- te de carro, fitando-me como
restrito até para um magro
quina. Eu não acreditava em quem procura ajuda.
como eu me movimentar.
almas penadas, mas ver a Oprimido por minha ago-
Mexi em algumas pilhas de
cama desfeita, na penumbra, nia e medo, juro que ouvi um
coisas, abri armários, gavetas,
e a porta do guarda-roupas sussurro:
nada que prestasse.
aberta me perturbou. Imagi- — Que bom que você veio,
Tentei ligar para Elisa e di-
nei até que a cama desarru- Pedro. Esperei tanto tempo
zer que já estava retornando,
mada estivesse assim porque por isto...
mas este fim-de-mundo era
Joaquina havia morrido
tão fim-de-mundo que nem E uma mão gelada se en-
dormindo, e o armário aberto
celular funcionava. É óbvio costou na minha, com ternu-
porque tiveram de escolher
que eu não poderia contar ra, mas que me deixou em
uma roupa para sepultá-la.
que houvesse telefone no ca- pânico. Saltei da cama, mas
Recusei-me a dormir ali. pouco podia ver na escuri-
sarão, muito menos conexão
Vaguei pelos outros cômodos, dão. Estava com medo de me
de banda-larga.
mas aquela era a única cama aproximar do criado-mudo
As nuvens carregadas me
na casa, portanto, eu seria para pegar a caixa de fósfo-
inquietaram, se desabasse a
obrigado a voltar para lá e ros; medo de que, quando eu
chover, o meu Gol não con-
me conformar. estendesse minha mão, aquela
seguiria ir muito longe, com
O meu plano era ir e outra mão gélida me tocasse
aquelas estradas em péssima
voltar para cidade no mesmo novamente.
condição. Cumprindo o meu
dia, por isto, eu só estava com — Quem está aí? — res-
temor, quando havia dirigido
a roupa do corpo, e este foi munguei, mas implorava para
por menos de um quilômetro,
o meu pijama. Jantei o resto que não viesse resposta —
começou um temporal e a
dum sanduíche que comprei Quem está aí?
estrada se tornou intransitá-
na estrada, escovei os dentes
vel. Lembrei-me do celular.
com o dedo mesmo, assoprei
Um capiau num trator me Apertei um botão e ele se
a vela e tentei dormir.
ajudou a desatolar o carro e iluminou, luzinha fraca, mas

22 SAMIZDAT agosto de 2008


22
o suficiente para me certi- risos, murmúrios e gemidos voando para fora da estrada,
ficar de que não havia nin- se silenciaram, quem quer e desaparecendo no matagal.
guém na cama. Apanhei os que estivesse ali embaixo Chorava, calça mijada, em
fósforos e acendi a vela. havia me ouvido descendo. completo descontrole emo-
Os ruídos vindo debaixo Quando a vela iluminou cional.
cessaram. parte do porão, vi minha
Não sou machão; não sou tia-avó esfaqueando um Quando amanheceu, a
daquelas pessoas que, quando homem. Não era fisicamente chuva havia dado uma tré-
têm um problema na frente, ela, era quase uma névoa. Ao gua. Caminhei pela estrada
matam no peito e seguem lado dela, pessoas observa- uns bons quilômetros, peguei
adiante. Na verdade, aquela vam, numa espécie de ritual carona num pau-de-arara e,
situação inusitada estava me de tortura, ou execução, ou já na beira da rodovia, liguei
sufocando, quase me con- sadomasoquismo. Perdi as para minha esposa, quase
trolava para não cagar nas forças e deixei a vela cair e implorando por ajuda.
calças, é sério! se apagar. Completamente no
escuro, meu coração quase
Mas eu já havia percebido Todo mundo riu da mi-
me afogando de tão forte que
que, naquela noite, eu não nha experiência. Na família,
batia, os risos recomeçaram
teria sossego. Talvez fossem descrentes, zombaram de
com maior força, os gritos se
ratos andando pela casa, o mim, dizendo que, se alguém
tornaram ensurdecedores, a
que não diminuía o asco, mas um dia virasse assombração,
voz de Joaquina berrando:
me consolava do medo. Desci só poderia ser a Joaquina
vagarosamente a escada e — Meu querido Pedro fi-
mesmo.
cheguei ao primeiro andar. nalmente veio! Também quer
Resolvi vender o terreno,
Nada diferente atraiu mi- participar!
mas demolir a casa primei-
nha atenção. Desci também É óbvio que eu não queria
ro. Não desejava que outra
para o térreo, também nada. participar, independente do
pessoa passasse pelo mesmo
Pensei que poderia dormir que fosse que aquelas aber-
desespero que eu. Porém, um
no carro, desconfortável, mas rações estivessem fazendo,
funcionário da empresa de
não teria ratos por perto. tropeçando, ofegante, engati-
demolição me ligou enrai-
Esta havia sido a melhor nhando quase, subi a escada
vecido, xingando-me por ter
idéia da noite, quando estava do porão e cheguei à cozi-
pregado um trote neles, pois
quase na porta, ouvi ruí- nha. Então, esbarrando em
eles haviam se metido no
dos no porão. Eu precisava tudo que havia no caminho,
meio do nada e não havia
confirmar o que era; se fosse alcancei a porta de entrada,
casa alguma para ser demo-
embora pensando ter sido atravessei a varanda e, mer-
lida.
assombrado por fantasmas, gulhando no temporal, corri
De cagão, minha reputa-
que aquela mão me tocando para o automóvel.
ção passou a ser de mentiro-
fosse de Joaquina, eu nunca Enquanto dava ignição,
so e de lunático.
mais teria uma noite tranqüi- percebi que, na janela do
la na vida. Era necessário eu quarto no qual eu estava, no
segundo andar, uma mulher Mas, um dia, eu crio cora-
provar para mim mesmo que
apareceu, apoiou os braços gem e volto a Soledad, para
eram ratos, ou alguma outra
no batente e, após alguns confirmar a existência daque-
explicação racional.
segundos, acenou para mim. la casa maldita, habitada por
Abri a portinhola que dava
seres malditos.
para o porão, de lá, vinham Dei a ré no carro, atingin-
risos, gemidos, sussurros. do uma cerca e, depois, em
Certamente, não eram ratos. desespero, dirigi pela estrada
Minhas pernas fraquejavam, enlameada, afundando o Gol
as mãos trêmulas, garganta no barro, derrapando nas
seca e olhos ardendo, com curvas, fugindo do inexplicá-
vontade de chorar. Degrau vel.
a degrau, desci, aos poucos Perdi o controle da di-
iluminando a câmara. Os reção após uma meia hora,

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Contos

Imperfeição
José Espírito Santo
jjsanto@gmail.com

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24 SAMIZDAT agosto de 2008


24
I. Na livraria do tempo e ao seu muito bem-parecido, desempregado
mau feitio e excessos ocasio- e livre. São quinhentos euros
nais. Aconteceu o mesmo de para um ‘casting’ ”. Ligou,
Nunca gostara de con-
muitas vezes - os dois lados nervoso e seguiu à risca as
tos de terror. A sua aversão
seguram a corda e vão pu- indicações, a coisa ficava lá
era devida a uma capacida-
xando, puxando. Julgam que para o bairro da Lapa, bem
de imaginativa forte que o
dará sempre para mais um perto da Rua das Trinas.
tornava vulnerável, gerando
pouco. Até que quebra de
mal-estar físico para lá da
forma mais ou menos ines-
insónia que aflige o comum O apartamento era direito
perada. Naquele dia, chegado
dos mortais. Por isso, é com de terceiro andar e a cam-
ao apartamento deu com
alguma surpresa que entra painha, de tão ineficiente por
o nada, o vazio. Mais tarde
na livraria e dá por si es- certo seria muda ou cansada.
um SMS informou lacónico
preitando sobre o ombro do Estava quase a voltar para
da “ida para casa dos meus
homem que folheia. Antes trás quando aconteceu
pais”. Não te preocupes, levei
de fixar o olhar, ainda pensa
a Margarida, depois o meu
que poderia ter arranjado
advogado contactar-te-á – “André Valadares?” per-
melhor forma de “matar” o
disseram de forma aparen- guntou a voz
tempo enquanto a Margarida
temente despreocupada as
não chega.
letras pequeninas, redondas, “Sim, sou eu”
do aparelho.
O homem que espreita,
André, é mais um daqueles O outro som retorquiu,
Entretanto aproveita e indo de trás
aviões de voo de rota falha-
vai lendo, de boleia. O com-
da, está a pagar caro o rigor
panheiro não deu pela sua
desleixado com que sempre “Olhe, não nos conhe-
presença e avança interessa-
encarara os outros na vida cemos mas existe algo que
do para a uma das histórias
profissional e relações fami- lhe quero propor. Vale bem
– Perseguição implacável.
liares. Nunca fora de “engolir quinhentos euros. Ah... pode
Vem-lhe à lembrança algo.
sapos” e calar. Mas também chamar-me Ana.”
Em silêncio volta atrás no
jamais conseguira entender o
tempo e conta a si mesmo
valor de respeitar as devidas
tudo. Desde o início. Virou-se e viu-a. Alta loira
hierarquias e proporções. Daí
o mal-entendido com o chefe e elegante, óculos escuros
do chefe, originando chama- da moda, devia andar pelos
da repentina ao gabinete do seus trinta e cinco. Vestia de
subordinado deste. O dis- forma prática, impecável a
II. Dos incríveis a
­ contecimentos combinação das cores.
curso, cheio de palavras bem
da semana passada
escolhidas incluía as frases
que não deixavam margem Seguiram em silêncio por
para dúvidas - Lamento mui- Talvez fosse a solidão, duas ou três ruas até encon-
to mas não existem condi- talvez a utilidade do dinhei- trarem a porta do aparta-
ções para continuares. Seria ro extra. Só sabe que dá por mento pequeno, quase quarto
mau para nós e ainda pior si folheando os anúncios do e sala. No meio, a mesa posta
para ti – dissera o “chefinho” vespertino, a vista percor- e o ambiente romântico
com ar preocupado, pleno de rendo linhas em ziguezague, sugerido pelo par de velas
comiseração. os olhos atentos a qualquer não causavam estranheza
oportunidade. E foi assim ao homem baixo, um tailan-
que encontrou o insólito dês entroncado que vestido
Em casa a sorte não fora
que se lhe cabia e assentava a rigor se preparava para
melhor. Depois do início
como uma luva. Rezava o servir “Quinta da Bacalhoa”
fulgurante, a relação com
texto “O candidato deverá com todos os requisitos de
Matilde foi arrefecendo, re-
ser homem de meia-idade, cerimonial.
sistindo como podia à erosão

www.samizdat-pt.blogspot.com 25
“Faça o favor de sentar”, tempo, aqui tem” Estendeu- cima e disse.
disse outra vez a voz. Anuiu. lhe o envelope com dez
Sentaram-se e deram início à notas de cinquenta.
“Hei, assim não vale. O
conversa.
gajo está em tão boa forma
Tinha tirado de si e que os animais não terão a
A curiosidade da anfitriã lançado para a frente todos menor hipótese. Vamos ter
era enorme e avançava e aqueles guardados de baú de desgasta-lo um pouco.”
alcançava, casava bem com a de ser. E agora sentia-se mal,
sua solidão. De tal modo que desconfortável, triste. Bem,
Formaram um círculo de
ficou a ver com espanto o pelo menos tinha ganho
onde choveram pontapés e
desfilar despudorado da sua algum dinheiro! Se fossem
murros, transformando-o ao
vida, ao ritmo e toque das necessárias mais histórias...
fim de uns minutos naquela
palavras que eram lançadas e – pensou. Estava neste diálo-
massa física desgraçada que
deixadas à sorte - umas atrás go interno, consigo mesmo
implorava descanso. Olhou
das outras. Passaram os anos quando foi invadido pelo
para cima mesmo a tempo
da infância feliz e despreo- torpor e seu corpo cedeu aos
de ver o “caixa de óculos”
cupada, os tempos de Uni- truques de um vinho bom
sorrir e dizer
versidade de borgas e amo- mas a­ dulterado.
res e professores austeros.
Passou a morena tímida que “Agora sim, o avozinho
São seis da madrugada
se chamava Matilde e estu- já está em pé de igualdade.”
quando acorda e ergue o
dava biologia e a festa onde sorriu trocista “Mas se ele
olhar. À sua volta, o grupo
proferiram ambos os votos for bom desportista damos-
de adolescentes com ar rufia
solenes e cortaram o bolo e lhe uma pequena vantagem.
segura os dois “Pit Bull”. O
beberam champanhe cruzado Façam-lhe a pergunta.”
que parece mais velho avan-
após inaugurarem a pista de
ça e diz
dança com uma valsa. Passou A mente confusa começou
uma barriga linda em cres- a imaginar testes possíveis
cendo que, chegado dia do “Ouve lá, cota. Aqui é tudo
à memória – Quem eram
parto se esvaziou na felicida- gente boa, do melhor. Por
os “cinco violinos”, qual foi
de de pegar o rebento rosado isso vamos fazer um trato
o ano em que o Boavista
e chorão. Chamar-lhe-iam contigo.”
ganhou o seu primeiro cam-
Margarida – nome da avó peonato, qual era o nome do
materna. E chegaram depois, “Hum... que trato, onde es- recordista mundial do triplo
enfim os tempos maus. As tou?” em frente via o descam- salto, todas estas questões
dificuldades, as discussões, o pado da lezíria. Ao fundo, surgiram se candidatando.
acomodar mútuo, a incom- a uns bons quatrocentos Mas quando soube ao que
preensão partilhada. Chegou metros. A cerca de arame era vinham, descobriu como se
o dia que tinha marcado os interrompida por um portão. tinha enganado e avaliado
sentimentos da sua vida mais mal os interlocutores. Os pu-
recente. E quando atingiu tos estavam para o desporto
este ponto, subitamente, “A gente quer ver como
como para a história aque-
olhos húmidos, a voz perdeu corres, se és como o
le aluno que em visita ao
a força, calou-se. Tinha pas- ­Obiquelo. Por isso vais fazer
Museu do Azulejo, perante o
sado uma hora cheia, ele ali a uma corrida aqui com os
painel magnífico da ­Lisboa
falar, falar, falar. À sua frente meus dois primos” os pri-
pré-terramoto de 1755 per-
a mulher escutava atenta. mos olhavam ansiosamente,
gunta à “sotora” onde estava
De vez em quando parava expectantes, dente afiado,
pintado o estádio do Bele-
e baixava o olhar para tirar língua de fora.
nenses. Agora a pergunta era
anotações no caderno. simples: Qual dos três gran-
O magricelas de óculos des era o melhor?
“Senhor, obrigado pelo seu saiu do meio do grupo. Enca-
rou-o, mirando-o de baixo a

26 SAMIZDAT agosto de 2008


26
Foi fácil acertar na respos- pachado, pregado palavra a dos que chegam e que vão
ta. Premiaram-no com uma palavra em página de papel. junto aos jardins na margem
vantagem de duzentos me- Com todos os detalhes. Hor- do Tejo. É uma “contista” das
tros, foi lançado para a fren- rorizado observa o sorriso boas, os seus contos prendem
te. E correu como um louco, satisfeito do leitor que fecha a atenção do leitor desde
não se atrevendo a olhar o volume e se dirige decidido o primeiro momento. Mas
para trás. E chegou a pensar para o balcão. O livro é ex- como qualquer autor, não é
que ia conseguir. O portão celente, o conto tão verosímil perfeita. O seu calcanhar de
estava já tão perto, quase e cheio de sensações. Ah... e Aquiles é a criação de per-
ao seu alcance quando algo aquela personagem tão bem sonagens adequadas, verosí-
agarra e puxa a perna es- descrita, tão real... vai com- meis. Porém, com o método
querda. Decorre uma fracção prar. Tem de comprar. engenhoso que encontrara a
de segundo após a qual sente imperfeição era eliminada
o osso a partir como se fosse de forma eficaz fazendo com
Então o homem chama-
mero bambu de um qualquer que o problema nunca apare-
do André passa de surpre-
canavial. Mas não se preo- cesse aos olhos do leitor. Ao
sa grande a tristeza maior,
cupa com isso nem com o que parece, o seu livro mais
convencendo-se finalmente
sangue que jorra livre e des- recente, uma colectânea de
sobre o seu estado actual.
governado dos vasos sanguí- histórias de terror e acção
Sabe agora que a Guidinha
neos dilacerados. Preocupa- onde podemos encontrar
não virá pois o ele físico
se sim com o segundo primo, títulos como “Tortura fatal”,
também já não é. E sente a
o qual o alcança também, “A morte dos gémeos inocen-
dor imensa dos que são e ao
atacando num ápice. Ainda tes”, “Acidente premeditado” e
mesmo tempo não são, que
coloca as mãos, protegendo “Perseguição implacável” está
ainda recordam a vida que
a face de investidas suces- fazendo muito sucesso.
foi mas já nada podem fazer.
sivas das mandíbulas que
abrem e fecham e puxam e
Liliana, contista possuidora
rasgam. Mas a dor aumenta Ainda grita desalmado um
de imperfeição fatal sorri de
e é impotente para resistir “é pá, não gastes o dinheiro
sorriso triunfante. Observa o
mais tempo à vaga violenta em porcarias, essa gaja é um
sol que se põe vagaroso, ao
que avança e não recua, que embuste, é uma vampira,
longe - por detrás da colina
encontra finalmente o pon- uma assassina”. Sem qualquer
e tenta imaginar como serão
to vital, partindo o pescoço, sucesso. Afinal de contas ele
os próximos textos. Sabe que
separando-o em duas meta- é ainda fantasma principian-
não serão contos de amor.
des, finando-o nesse divórcio te. E não será certamente
físico. Antes de se ir ainda para principiantes a capaci-
consegue ouvir ao longe a dade de causar manifestações
voz da loira a dizer – Muito físicas perceptíveis, chaman-
bem, rapaziada, aqui está a do a atenção dos vivos.
vossa parte. Agora é comigo.
Isto nunca aconteceu. Nem
um pio.

IV. Epílogo

A mulher loira que não


III. De volta ao livro se chama Ana está à varanda
de seu apartamento de luxo
Continua a ler. Para desco- na zona nova da cidade – o
brir o quanto o personagem Parque das Nações. Bebe
principal lhe é familiar. Alto um vodka a golos espaçados
lá - a boca abre-se de espan- enquanto enche o olhar com
to. É ele, elezinho ali escarra- a actividade bela e caótica

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Contos

Confinado
Joaquim Bispo

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Gregório começava a vir ções foram-lhe brotando no caso, onde estava agora?
a si. No seu cérebro baralha- cérebro: «Sou homem, tenho
vam-se as cores e os sons. trinta anos, uma filha, sou Pôs-se à escuta, mas o
Muito lentamente, começou casado...». Num ápice, tudo se zumbido monótono, que
a distinguir umas de outros, tornou claro. Estava deitado ouvia, poderia ser apenas dos
estes a tornarem-se mais na sua casa de Lisboa e tinha seus ouvidos. O ar também
agudos e aquelas a ganha- de se levantar cedo, para ir lhe pareceu insuficiente
rem formas. Começava já a ao Alentejo tratar de uns para os seus pulmões. Ten-
aperceber-se da diferença en- assuntos, a pedido do sogro. tou, como pôde, empurrar o
tre um vermelho carregado que o rodeava, mas apenas
e um azul qua se negro, que Deu um esticão para se por cima sentiu indícios de
deambulavam na sua retina. levantar, mas surpreendeu-se cedência. Convencido de
Agora, chegavam outras sen- ao bater com a cabeça em que era realmente uma caixa
sações de dor e de frio, sem qualquer coisa que estava por que o prendia, concentrou os
conseguir, no entanto, saber cima de si, o mesmo suce- seus esforços na tampa, em-
donde vinham elas. Durante dendo aos joelhos, que estala- purrando -a com os joelhos e
longo tempo, foi tomando ram ruidosamente. Ao mes- com o braço fiel – tenta tiva
consciência de todo o seu mo tempo, a dor na cabeça infrutífera que o deixou sem
corpo. As cores tinham-se tornou-se mais viva e presen- fôlego e da qual o coração
desvanecido e acabado por te e notou, com terror, que se queixa va, pelo esforço
desaparecer, restando agora o braço direito se mantinha dispendido. Socorrendo-se da
um escuro persistente; dos inerte e insensível. Moveu réstia de lucidez que ainda
sons ficara um zumbido; atabalhoadamente as pernas, não sucumbira ao pânico,
sentia muito frio, picadas o braço esquerdo e a cabeça rodou o corpo para a direita,
por todo o corpo e uma dor e chegou à conclusão que tendo que encolher ao máxi-
intensa no temporal esquer- estava fechado numa espécie mo os ombros para a frente.
do. Tentou mexer os dedos, de saco-cama, porque tudo à Depois, esticando o peito,
mas estes não obedeciam. sua volta era pano, a não ser notou que algo cedia com
Só então abriu os olhos, mas uma pequena barra de ferro um gemido e esticou o braço,
nada viu. Sobressaltou-se, por cima da cabeça. à procura duma frincha. Sim,
temendo pela sua saúde. Era lá estava uma pequena fenda
a primeira vez que esta ideia da qual escorria algo frio
lhe ocorria e sentiu que o co- Gregório sentiu-se ater-
rado. Não percebia nada e fluido. Cheirou. Pareceu-
ração lhe batia com estrondo lhe cheiro de terra. Parou a
no peito. A custo, porém, do que se passava consigo.
Ter-se-ia posto a caminho do ofegar.
conseguiu mexer o braço
esquerdo, levando-o automa- Alentejo e tido um desastre,
ticamente a apalpar o tempo- estando agora entalado entre «Lama?» – intrigou-se.
ral, que encontrou pegajoso os assentos do carro? Não,
e mole. Estava ferido, com isto parecia ser uma caixa. Pouco lhe importava. Ti-
certeza. Estranhamente, isso Para lá do pano, sentia-se a nha era que se livrar daquele
não o assustou. Sentia-se can- resistência de paredes rígi- pesadelo.
sado e, por largos momentos, das. Teria sido assaltado no
manteve-se quieto, absorto, caminho, espancado e me-
tido numa bagageira? Esta Lembrou-se da barra me-
semi-adormecido.
ideia pareceu-lhe plausível, a tálica. Puxou-a com violência
despeito de não se lembrar e o que a prendia cedeu.
Depois, começou a sen- de nada que o levasse a esta Parecia ter a forma de um
tir curiosidade pelo que conclusão. Estava, então, a ser punhal. Fez nova tentativa
se passava consigo. Tentou raptado por uma quadrilha de levantar a tampa e, lenta-
recordar-se de qualquer coisa que o espancara e iria pedir mente, introduziu a lâmina
que fosse, e algumas recorda- um resgate ao sogro? Nesse do seu punhal na ranhura

30 SAMIZDAT agosto de 2008


30
dolorosamente conseguida. regresso a Lisboa. Por detrás das, mirou, novamente, o cru-
Entrou mais lama, ou lá o das vidraças, tapavam-se me- cifixo com vestígios de fusão,
que era. A seguir, conseguiu tais, murmuravam-se orações provocada por um braço de
deitar-se de borco e, apoian- e fechavam-se as portas de raio e apalpou a sua cabeça
do a mão no punhal e as dentro, para que as crianças, ferida pela queimadura de
costas no tecto, foi esticando ao menos, não se assustassem alta voltagem...
o braço com toda a força do com os relâmpagos. Pro-
seu desespero. Lentamente, a cedimentos inúteis, porque Recordou-se, então, dos
tampa foi cedendo, entre ge- os raios não poupam nada. avisos do seu médico, acer-
midos de pregos desalojados Todos conheciam um ou ca dos perigos de acidente
e respiração ofegante. O es- outro caso em que trovoadas cardio-vascular, para quem
tranho fluido viscoso alastra- semelhantes tinham fulmina- leva vida competitiva. Lenta-
va pelo fundo onde estivera do pessoas e animais, até em mente, passo vacilante, braço
deitado. Finalmente, a resis- descampados. O ajudante do balouçando, encaminhou-
tência amainou e Gregório sacristão, que concluía as ba- se para a primeira casa da
repetiu a operação ao nível daladas convencionais para aldeia, onde uma família de
da coxa, desta vez apoiando a ocasião, galgou, com terror, camponeses, à volta da mesa
o joelho na providencial bar- os degraus da torre sineira, rústica, engolia a ceia frugal,
ra-punhal e ajudando-o com quando um raio quase o comentando os malefícios
o dorso. Conseguiu, enfim, a cegou, seguido dum estrondo agrícolas duma chuvada fora
cocorar-se com a tampa às que parecia fazer desabar a de época.
costas e o fluido a cobrir-lhe própria igreja.
já os joelhos, mão e todo o
ombro direito. Endireitou [1976]
por fim o corpo, rodando a
tampa. Inspirou sofregamente
e olhou para fora, para cima. ***

*** No céu nocturno, a lua


minguante bafejou-o com
uma ténue claridade e Gre-
gório olhou, a tentar reco-
nhecer o que o rodeava. Viu
Ao cair da noite, uma a parede de terra húmida à
trovoada estival abatera-se, sua volta, viu a lama a bri-
subitamente, sobre a peque- lhar no fundo do seu caixão,
na aldeia alentejana. Nuvens descobriu que era um cruci-
negras, empurradas por al- fixo o punhal que segurava,
gum vento de feição, tinham olhou o seu braço pendente,
invadido o céu car mesim e percebeu o seu fato negro.
principiado a descarregar a Com olhar vago, pôs-se em
bundantes bátegas de água pé, escalou os bordos da sua
e relâmpagos. Quem po- sepultura e, absorto, contem-
dia abrigar-se largou o que plou as cruzes, silenciosa-
estava a fazer e desapare mente espetadas no chão do
ceu para lá dos umbrais das cemitério da aldeia do seu
casas sempre brancas. Meia sogro. Ouviu trovões lá ao
dúzia de visitantes iniciou, longe, viu as pás e as enxa-
contristada, a viagem de das, subitamente abandona-

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Contos

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A MANSÃO E SEUS
HÓSPEDES
Ninguém visitava a casa, nho. Disse com uma voz fria:
Guilherme Rodrigues ninguém! –Entre, não há o que te-
garodrix@yahoo.com.br Júlia, uma garota, cansada mer. Fique à vontade– e saiu.
de tantos mistérios e lendas Júlia, hesitante, entrou.
No alto da colina, numa
contados pelos moradores,
cidadezinha, havia uma man- A casa por dentro era fria,
resolveu investigar a mansão,
são sombria e muito antiga. com pouca luminosidade,
na noite de lua cheia.
Cercada por uma vegetação úmida e abandonada, empo-
densa. À porta de entrada, Passou pelo portão e foi eirada e com teias-de-aranha,
havia duas grandes gárgulas caminhando pela trilha, somente algumas velas a
com dentes e garras afiados, bateu à porta. Ficou ali na iluminava. Júlia sentou-se à
asas enormes. Uma peque- companhia das gárgulas. mesa velha, carcomida e de-
na e mal cuidada trilha, já Parecia que iam voar em teriorada. Ainda com medo.
abandonada há muitos anos cima da garota, até que um O homem reapareceu servin-
que levava até o portão de homem abriu a porta, ambos do uma bandeja com biscoi-
entrada, velho e enferrujado. levaram um susto, ele: porque tos e bolinhos.
Pouco visível entre a vegeta- ninguém vinha visitá-lo e de
repente uma garota lindíssi- –Qual o seu nome?
ção, e nos pilares mais duas
pequenas gárgulas, mas ater- ma estava ali diante dele, ela: –João Joaquim, e o seu?
rorizantes. Pareciam vivas, só com a aparência do sujeito. –Júlia.
a observar a movimentação O homem era deveras esqui-
sito, pálido, cabelos longos, O nome dele lhe parecia
de quem ousasse se aproxi-
despenteados e negros. Vestia familiar.
mar do portão. A mansão era
encoberta por uma rigorosa um terno preto, já bem fora Estava morrendo de fome
névoa. de moda, bastante antigo que e comeu muitos biscoitos e
carregava as poeiras do anta-

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bolinhos. vel, tão dócil, tão sensível... fato, levantou-se, ainda zonza,
–Por que resolveu me –Eu, durante todos esses encontrou sangue no chão,
visitar? anos, nunca imaginei que no rosto e em suas mãos.
alguém viesse a esta casa Tentou abrir a porta, estava
–Porque dizem muitas aberta.
histórias e lendas sobre esta assustadora, velha, solitária
casa, então, resolvi conferir, no alto da colina. –Socorro! João! Sou eu,
mas, o que dizem não pas- Sem dizerem mais nada Júlia.
sam de lendas. se beijam. Olhavam-se um Na escuridão e na frieza
–Elas inventam muitas para os olhos do outro certos do lugar totalmente abando-
histórias mesmo, que repre- de que se amavam. O silên- nado: Silêncio...
sentam seus medos, a socie- cio era, naquele momento, a Envolto na escuridão, o
dade. Não vou à cidade há sinfonia mais bela nas notas que parecia ser a sinueta
muitos anos, aqui tenho tudo mais suaves, amáveis. Os de um homem a observava
que preciso; só não tenho acordes do silêncio como amoitado atrás do pilar do
quem amar. ninguém, jamais, havia ouvi- segundo andar contíguo o
do. corrimão. E ela nem o per-
–Terá... Algum dia –disse
sem jeito, sorrindo. A lua parecia estar vi- cebeu.
giando-os, parecia engoli-los. O ar pesado da casa, ela
Depois de algum tem- Abraçava-os.
po foram até a torre mais não vê nada de bom, sentiu
alta do casarão, onde há A noite já ia se deitando, tontura e logo saiu da casa.
uma bela vista noturna e lá pronta para dormir. Júlia Resolveu olhar ao redor
embaixo se vê as luzes da logo se apressou, esquecen- da casa. No céu, avistou um
cidade. do-se que tinha que ir, num pássaro grande rondando a
pulo ficou de pé, logo estava casa. Olhou pela redondeza
–Eu adoro esta vista, a lua pronta. Descendo a escadaria
cheia, a noite, sempre volto da casa chamando por João
correndo. Pulava dois, três Joaquim. Encontrou: João
para cá para vê-la. degraus. Chegaram à porta, Joaquim – 1831 – 1852.
–Deve ser maravilhoso abraçaram-se alguns minutos
ver o sol nascente. Que linda mais, beijaram-se. Ao ver aquilo saiu cor-
vista! rendo, desesperada, correndo
–Tchau, querida! Sentirei mais do que suas pernas
Júlia ficou apenas con- saudades. Volte na próxima podiam agüentar, a gárgula
templando a vista noturna, o lua cheia. deu um rasante que quase
luar que iluminava o interior –Tchau, amor! Até logo! novamente a acertou na ca-
da torre e a cidade. Ficaram beça. Lembrou-se, ainda com
em silêncio e depois con- Passados alguns dias, Júlia
voltou para ver João Joaquim. dor e cambaleando, que João
versaram por longas horas. Joaquim foi o homem que
João se mostrou um homem Bateu à porta e ninguém
atendeu, bateu mais uma morreu sem amar.
romântico e amoroso, frágil
e carinhoso. Eles se sentaram vez. De repente uma gárgula Dois meses depois desco-
no chão vendo o céu, o luar, ganhou vida, Júlia, estupe- briu que estava grávida de
a chuva. Sentaram-se um ao fata, congelou-se, a gárgula João Joaquim. Em homena-
lado do outro. Júlia encos- avançou e atacou com uma gem ao pai, o garoto recebeu
tou-se em João e apoiou a patada no rosto. Júlia caiu ao o mesmo nome. Júlia nunca
cabeça em seu peito. João chão. Deve ter permanecido mais viu o pai da criança.
levou a mão à cabeça dela e desacorda por um bom tem- A criança, mais crescidinha,
a afagou. Ela quase dormiu. po. Foi recobrando os sen- foi ao encontro de seu pai e
tidos, se sentiu zonza, com nunca mais voltou.
–Quando vim aqui, nunca a cabeça pesada e dolorida,
imaginava que ia encontrar sem saber o que tinha acon-
uma pessoa assim tão amá- tecido. Sem se lembrar do

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Contos

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OLHAR
Pedro Faria
“Abra os olhos”. Há quanto tempo estou mulheres que achei serem
andando? Meus pés doem. bonitas, apenas as observan-
Uma voz sussurra em meu do pelas costas, mas que na
ouvido. Olho para o lado, Então porque não paro? verdade eram no máximo
não vejo ninguém. Eu tinha “simpáticas”, como meu avô
fechado os olhos por um Eu tento, mas não consigo.
diria sobre mulheres de rosto
segundo apenas. Preciso andar.
comum.
Estou caminhando. Não Há uma mulher a mi-
Essa não. Seu formato, em
lembro bem para onde estou nha frente. Seus cabelos são
geral, não deixava dúvidas.
indo. Talvez eu não saiba. pretos, e descem até topo de
Ela seria linda. Seria o tipo
suas nádegas. Não é magrice-
de mulher com o qual eu
Talvez eu tenha simples- la, e não é gorda. Está de cal-
poderia morrer, ou matar.
mente levantado, me vestido, ça jeans, e sua camisa é preta
e decidido sair para uma ca- e sem mangas. Seus braços Será que é por isso que
minhada nessa bela tarde de são brancos, e há uma tatua- estou caminhando? Queren-
inverno, o céu pouco nubla- gem em seu ombro direito. do interceptá-la? Puxar uma
do, as nuvens de um branco conversa, talvez um convite
puro, diferente das comuns Estou observando essa mu-
para algum lugar. Será possí-
cinzas e negras de poluição lher há algum tempo. Tempo
vel? Eu, que nunca fui de dar
que vemos tanto nos dias de suficiente para perceber que
em cima de mulheres aleató-
hoje. a estou seguindo.
rias pela rua?
Não sei onde estou. Quer Ainda não vi seu rosto,
Estou suando. Seco o suor
dizer, a rua. Estou bem longe mas dá para adivinhar que
de minha testa, e lembro que
de casa. ela é linda. Já estive erra-
sou casado.
do antes, é claro. Já houve

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Lá está a aliança, em mi- Eu corro, para longe. Era eu no caixão. Eu, sen-
nha mão esquerda. Olhando ao redor, noto que do colocado a sete palmos
estou num cemitério. Chego embaixo da terra.
Não sou casado. Não, com ao portão, e parado diante
certeza não sou. Como posso, dele, de costas para mim, está Sinto um medo me con-
se não me lembro? a mulher. sumindo, como nunca tinha
sentido antes. A mulher con-
Meus pés continuam do- Um pensamento aterrador tinua me beijando.
endo. Droga, não estou com cai sobre mim agora: E se ela
tênis próprios para cami- não tiver rosto? E se, quando Ela se afasta. Seus olhos
nhar. ela se virasse, eu visse o mes- brilham um brilho negro,
mo vazio que vi nos olhos do profundo, que me faz pen-
Agora, quanto a essa alian- sar em Dante e em buracos
homem de cinza?
ça. Como isso veio parar negros, e em morte.
aqui, eu não sei... Não, eu enlouqueceria.
Há beleza no mundo, não há “Não há beleza”, ela me
“Abra os olhos”. diz.
apenas o vazio, a sombra, e a
Estou parado. Há pessoas morte.
Seu segundo beijo é agres-
ao me redor. Chove, mas não sivo, sua língua me invade
Eu caminho até ela. Tento
me importo. A chuva me como uma lança, matando
parar, mas não consigo. Não
lava, manda embora o po- meus sentidos um por um, e
quero olhar.
dre, o fétido, o errado. Tinha eu caio na escuridão.
muito errado em cima de Estou há dois passos dela.
mim, agora... Ainda tem, mas Ela se vira. “Abra os olhos”
menos.
Sim, é um clichê, mas seu Estou deitado. Há pessoas
Há uma mão em meu om- rosto é o mais bonito que já ao meu redor. A chuva cai, e
bro. Olho para o lado. vi na vida. faróis me iluminam.

A mão é nodosa, e denota Ela é branca, mas não é Uma mulher de vestido
experiência, e endurecimen- pálida. Há uma cicatriz em branco dá um grito agudo.
to. O endurecimento do espí- seus lábios.
rito, que vinha com o tempo, Um homem de cabelos
com a vivência. Seus olhos são negros, da grisalhos e terno cinza balbu-
cor do cabelo, que cai sobre cia, “eu não o vi, ele pulou na
O terno do homem é cin- seu olho esquerdo. minha frente”.
za, e perfeitamente ajustado
ao seu corpo. Seus cabelos Ela sorri, e eu caio de Eu engulo o sangue.
são pretos, porém o cinza joelhos.
E, entre a multidão que
desponta na base de sua
Tenho lágrimas nos olhos. me cerca, está a mulher. Seu
cabeça, como que se passado
Lembro do anel: Não uma olho esquerdo ainda está
do terno, pelo pescoço, até
aliança, apenas um anel, no oculto sob o cabelo. Ela me
os pêlos mais baixos de seu
dedo errado. olha fixamente, e sorri um
cabelo.
sorriso malicioso e sedutor.
Ele não tem rosto. Meu Ela se abaixa, seu rosto
fica em frente ao meu. “Você está vindo para
Deus, estou ficando louco.
mim”.
Não há olhos, nem nariz, O beijo vem naturalmente,
de iniciativa dela. Eu fecho Sim, estou indo. E feliz.
nem boca.
os olhos
Eu fecho os olhos, e a es-
Abro a boca e grito. As
“Não, abra os olhos!” curidão dela me leva.
pessoas ao meu redor, igual-
mente sem rostos, se viram e
E vejo tudo:
me fitam.

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Contos

LABIRINTOS
Marcia Szajnbok

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36 SAMIZDAT agosto de 2008


36
- Aqui viveu Catarina de
Médicis, uma das mais astu-
tas e manipuladoras mulhe-
res da história da França. Ela
era uma menina ainda, tinha
apenas 14 anos quando se
casou com Henrique II. Ape-
sar de todo o seu poder, foi
publicamente preterida pelo
marido, que presenteou Dia-
ne de Poitiers, sua amante,
com este castelo. Dizem que
nunca se curou desse orgu-
lho ferido. Após a morte do
rei, Catarina obrigou Diane a
devolver todos os presentes
que ganhara de Henrique II,
inclusive o castelo, e para
descaracterizá-lo, mandou
construir a grande galeria
sobre a ponte em arcos que
atravessa o rio, e projetou
um novo jardim que deveria
superar, em beleza, o anti-
go, feito pela rival. Mas há
quem diga que Diane nunca
se desprendeu deste lugar, e
até hoje seu espírito disputa
espaço com o de Catarina...

O dia estava nublado e


quente, abafado. O Loire
refletia o céu e tornava o ar
úmido. O grupo era grande,
estávamos todos cansados e,
a partir de um certo ponto,
todos os castelos me pare-
ciam iguais. A guia turística
contava mais uma história.
Esta versava sobre as perso-
nagens que passaram por
Chenonceau, várias mulheres
unidas por complexos laços
de parentesco e rivalidade.
Meus pés doíam e foi por
isso que decidi fazer uma
pausa. O que veria no inte-
rior daquele edifício que já

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não tivesse visto nos últimos tão convidativo começava a Entre as árvores vi alguns
dois dias? Vitrais, escada- se tornar um pouco sombrio. arbustos de espinhos. Não
rias estreitas, armaduras, os A frescura agradável do ar me lembrava de tê-los visto
aposentos do rei, a cama da protegido pelas árvores cedia quando entrei no bosque.
rainha... O bosque junto ao lugar a um vento gelado, que Pareciam ter surgido do nada
castelo me pareceu bem mais me arrepiava a pele mesmo e se proliferar rapidamente.
convidativo para um descan- sob o agasalho. Em alguns trechos, obstruíam
so de quarenta minutos, tem- ou estreitavam a passagem,
po que estimei iria demorar O estado de alerta sem- criando um labirinto que me
a visita do grupo no interior pre nos torna um pouco impedia de sair do bosque.
do castelo. sugestionáveis, de modo que Impossível dizer se o que os
não consigo até hoje afirmar fazia se comportar assim era
O outono francês tingia o que realmente vivi tudo o alguma força mística, ou tão
cenário de amarelo-alaran- que se passou em seguida. somente minha claustrofobia.
jado, e era marcante o con- Posso ter apenas imaginado,
traste de temperatura entre delirado, alucinado, não sei. Tentava manter meu racio-
as áreas ensolaradas e de Há quem diga que o sobre- cínio claro, repetia para mim
sombra. Dentro do bosque, natural só existe dentro da mesma que aquilo era ape-
o ar puro e fresco cheirava mente humana. Mas naquele nas uma crise de ansiedade
a grama molhada. Enchi os momento, tudo me pareceu que logo passaria, que tudo
pulmões e, surpreendente- terrivelmente real. ficaria bem. Mas há circuns-
mente, tive um acesso de tâncias em que toda infor-
tosse abrupto e imotivado. Intuitivamente, comecei a mação que podemos acessar
Foi uma sensação estranha, procurar a trilha por onde não faz frente ao transbor-
como se uma força invisível havia entrado, pensando em damento dos sentidos e das
tivesse me apertado a gargan- retornar aos jardins do cas- emoções. Eu sentia algo
ta. Hoje, penso que deveria telo. Todas as veredas, entre- muito ruim ali, sentia mal-
ter compreendido melhor o tanto, me pareciam iguais. dade ao meu redor. Aqueles
que se passava ali, e retorna- Não conseguia reconhecer arbustos tomavam formas de
do para junto do grupo de por onde havia passado, e de- enormes garras, e era difícil
turistas. Mas na vida, muitas pois de algumas tentativas já lutar contra a idéia de que
vezes, só nos damos conta do não sabia exatamente em que estavam ativamente tentando
perigo quando já se fez tarde direção seguir. Sem perceber, me agarrar.
demais. apertava os passos e, quando
me dei conta, estava corren- Recordava as histórias
Passado algum tempo, do. O coração disparado, a contadas pela guia. O ódio e
notei que não havia mais respiração ofegante, tinha a a vingança que moveram a
ninguém por ali e que o sensação de estar andando poderosa Catarina a armar
burburinho dos arredores em círculos. Por duas vezes intrigas e ardis, as persegui-
do castelo tinha se tornado virei o rosto, tomada por ções, os assassinatos, essas
inaudível. Apurei os ouvi- uma espécie de certeza de tramas do passado me en-
dos: o silêncio só era que- que havia alguém atrás de volviam como uma onda.
brado pelo ruído dos meus mim, mas não vi ninguém. Meu pensamento corria por
próprios passos amassando A impressão de estar sendo lembranças ruins, pelos acú-
folhas no chão. Um cer- observada, entretanto, crescia mulos de minhas próprias
to desconforto: de repente, na mesma medida em que raivas, e pelas pessoas pelas
aquele lugar que me parecera meu pânico aumentava. quais ainda nutria um in-

38 SAMIZDAT agosto de 2008


38
suspeito ressentimento. Não ***
supunha haver, dentro de
mim, tantas câmaras secretas, Não sei como saí de lá.
cheias de tantos rancores. Voltei a dar acordo de mim
Entre a folhagem, surgiam já fora do bosque, com uma
pontos brilhantes, pareciam multidão de turistas ao meu
olhos. Não que eu os visse, redor, a guia me oferecendo
apenas os pressentia. Olhos água, o som repetitivo de
dos meus desafetos, os meus uma sirene de ambulância
próprios olhos refletidos ne- se superpondo às vozes. Não
les, os olhos das mulheres de conseguia falar, queria ape-
Chenonceau. Ora invejosos nas ir embora dali.
e vingativos, ora cúmplices
e curiosos. Mesmo vestida,
Aos poucos, no caminho
a força daqueles olhares me
de volta, fui narrando minha
observava nua, sob as roupas.
história. A maioria a inter-
Como uma varredura, desli-
pretou como um ataque de
zavam pelo meu corpo como
pânico, alguns atribuíram
que em busca de tomá-lo.
minha crise ao cansaço,
Havia ali um misto de vio-
ao calor, à fome ou à sede.
lência e sedução. O brilho
Quando falei dos olhos e dos
daqueles olhares invisíveis
risos, percebi em alguns ros-
me hipnotizava e eu me
tos um ar preoupado. A guia
deixava ficar ali, prostrada,
explicou que naquela região
enquanto elas tiravam de
não nasciam arbustos de
mim um tanto de força, de
espinhos, por conta do clima,
energia. Olhos vampiros,
da temperatura e do solo.
roubavam-me a vida.
Achei melhor não comentar
mais nada. Talvez eles esti-
O desespero chegou ao vessem mesmo certos, e tudo
auge quando comecei a escu- não passasse de fantasia.
tar os risos. Risos debocha- Estava exausta, queria dormir,
dos, depois gargalhadas, cada dormir profunda e indefini-
vez mais altas, cada vez mais damente.
fortes, formando um coro de
escárnio que ecoava-me den-
O único detalhe que nun-
tro da cabeça. Parecia que o
ca consegui explicar foi que,
mundo se desfazia, que meu
ao despir-me naquela noite,
corpo se despedaçava, que
percebi meu corpo todo arra-
minha vida escoava pela pele
nhado. Braços, pernas, dorso,
e penetrava naquelas mãos
abdome, peito. Em toda parte,
de espinhos que, nesse ponto,
filetes de sangue coagulado
me aprisionavam completa-
traçavam estranhas tatua-
mente. Imersa nessa vertigem
gens. E, como que enfeitando
de sons e luzes, medo, volú-
esses desenhos, aqui e ali res-
pia e entrega, deixe-me levar.
tavam pedaços de espinhos.
Até que tudo se apagou.

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Contos

O FIO DA
MALDADE
Giselle Natsu Sato
http://www.flickr.com/photos/haniamir/954059038/sizes/o/

40 SAMIZDAT agosto de 2008


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Abriu a porta com um sexo, está com saudades? Um soco forte partiu os
sorriso cínico nos lábios. O -Puxou a garota pelo casaco, dentes da frente e fez com
cheiro de tempero perfuma- tentou abrir o zíper do jeans. que perdesse o equilíbrio.
va o ambiente com aromas Apertava com força os seios, Deitada no carpete, chutes
exóticos:- Oi Jenni, chegou mordia o pescoço, respirando cada vez mais violentos.
na hora. forte, excitado, a violência Omar descarregava anos
assustou Jennifer:- Pare com de raiva reprimida:- Eu não
- Que delícia está prepa- isso, Omar, está me machu- acredito nas suas promessas,
rando? Alguma comida espe- cando. você me traiu uma vez. Não
cial?- Ele passou o braço nos confio em você. Vai correndo
ombros da moça e beijou de Ele não soltou o braço, chamar a polícia e vou ser
leve a bochecha rosada. apertou mais forte, torcendo deportado.
e imobilizando:- Puta! Fofo-
Era um jogo, ela adorava queira, pensa que não sei o - Não. Juro que não vou
quando brincavam assim, que você fez? Minha mãe fazer isso, tomo o primeiro
precisava adivinhar o in- ligou e tenho até o final do avião para Londres. Eu não
grediente: - Acho que tem mês para voltar para Lon- agüento mais Omar, pare
alecrim e hortelã. Talvez uma dres. Eles cortaram minha com isso.
pitadinha de zátar e raspas mesada. Vadia. Porque veio
de gengibre. Acertei? atrás de mim? Omar batia sem pena. Em
nenhum momento hesitou.
O rapaz fez ar de pouco A mulher tentava soltar-se, Ela merecia cada porrada.
caso e pegou um baseado na ele era muito mais forte. Não Era uma dedo-duro safada.
ponta da prateleira. Encarava imaginou que a família de Foram namoradinhos desde
a mulher enquanto acendia e Omar contaria que ela havia a infância. Sempre juntos em
aspirava a primeira tragada. alertado sobre as drogas. O todas as ocasiões.
Sabia o quanto incomoda- namorado em poucos meses
va:- Não me olhe deste jeito. havia-se tornando um grande Ele, descendente de árabes,
Isto aqui é para relaxar. Senta distribuidor e feito amizades só era aceito porque vinha
aqui, vem ficar mais perti- com primos perigosos:- Eu te de uma família extremamen-
nho, não vou te morder. Vem avisei que queria uma vida te rica. Exibia a namorada
amor, anda logo Jennifer. nova, que precisava de liber- como um troféu.
dade. Eu nem gosto mais de
você. Tenho outras mulheres.
Tensa, queria pegar a No fundo odiava a vida na
bolsa e voltar para o hotel. Europa. Enquanto a lourinha
Mas não havia nada além do Ela precisava encontrar era eleita princesinha da pri-
silêncio no quarto impessoal uma saída: - Tudo que fiz foi mavera, ele recebia olhares
e frio. Sentia-se sozinha. O para o seu bem. Eu juro que desconfiados.
namorado não ficou satis- nunca mais vou te procurar.
feito quando ela apareceu Prometo - Sentiu a pressão
Tinha vindo para o Brasil
sem avisar. Sentiu saudades no cotovelo e a dor insupor-
em busca de paz e distância
e decidiu passar um mês de tável. Gritou quando o osso
daquela gente. Meses depois,
férias no Brasil, queria muito foi deslocado: -Por tudo que
Jennifer apareceu. Maldita.
conhecer o Nordeste. é mais sagrado, não faça isto
comigo...não me machuque
mais...deixe eu ir embora Pegou o celular e ligou
Omar acariciava os ca- para os pais, segurando firme
belos da moça:- Quer fazer

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o aparelho, machucando o caria para passar adiante. Ele jeira. Queria fazer os cortes
rosto da moça:- Vai dizer que merecia o melhor. Safados, perfeitos. Limpos.
você mentiu, estava com ciú- isto não ficaria assim.
mes e inventou tudo. Se não Resolveu sair, encontrar
fizer o que estou mandan- A mãe havia acreditado os amigos, dançar e relaxar.
do, vai ser muito pior - Ela em tudo, o problema era Daria o tempo necessário
tremia e tentava controlar o convencer o pai. Só de pen- para a segunda fase. No dia
choro, ouviu a mãe de Omar sar em retornar sentia mais seguinte cortaria a namora-
atender:- Senhora Ibrahim, é raiva da moça. da em pedaços. Separados
Jennifer. Sinto muito, eu men- em embrulhos, deixaria os
ti sobre o Omar e as drogas. pacotes em vários pontos da
Bebeu um gole do uísque
Inventei tudo porque estava cidade.
e respirou fundo. Precisava
com ciúmes dos primos. Não
clarear a mente e encontrar
senhora, eu sei que ele me
uma saída. Como iria se Bateu a porta com força
ama de verdade, ele é bom
livrar de Jennifer? Só de ima- enquanto acendia outro ba-
para mim. Sim, ele me per-
ginar a cadeia, ficou apavo- seado. O celular tocou, eram
doou. Senhora, diga à minha
rado. O cheiro de queimado os pais com as boas novas.
mãe que eu a amo.
lembrou que o assado estava Jurou que havia largado as
perdido. más companhias, prometeu
Omar arrancou o telefone que doravante Jennifer seria
e empurrou a namorada com a única companhia:- Não se
Até o prato especial havia
força contra a parede: - Des- preocupem, estamos bem, foi
sido estragado por culpa
culpe, ela está nervosa. Muito tudo um grande engano. Não,
da intrometida. Pensou no
arrependida. Por isso a voz ela acabou de sair, foi para
tempo perdido preparando
de choro. Claro que pode dar casa, vamos ao cinema e de-
o carneiro, o jogo de facas
o recado à família de Jenni- pois jantar. Fizemos as pazes.
novo, usado pela primeira
fer. Lembre que vamos passar
vez. Facões afiados e serri-
quinze dias no Nordeste. Está
lhas. Facas e cutelos de todos
bem, converse com papai e
os tamanhos. Cozinhar era o
ligue mais tarde. Conto com
hobby preferido.
a senhora. Jennifer está man-
dando um beijo.
Uma idéia começou a
tomar forma. Era tudo carne,
Inconsciente, parecia uma
não importava de que animal
boneca de trapos, toda retor-
fosse oriunda.
cida, o sangue empapando
os cabelos. Omar suspendeu
um dos braços. Flácido, ela
havia perdido as forças. Não
importava. Ouvir a mulher Voltou à cozinha, jogou o
voz implorando perdão era corpo na bancada de már-
irritante demais. more. Percebeu que ela respi-
rava suavemente. Um golpe
Correu para o quarto e certeiro atravessou o peito
cheirou mais uma carreira, a e calou o coração. Precisava
terceira do dia. Coca mistu- esperar para que o sangue
rada, cheia de resíduos. Por- esfriasse, não suportava su-

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Autora Convidada

a última
estripulia Maristela Scheuer Deves

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44
Aquele tempo já vai longe,
mas, quando penso, pareço
ainda estar vendo a cena,
como um filme muitas e
muitas vezes repetido. Éra-
mos três, nos nossos seis
ou sete anos, idade em que
alguns têm medo, mas a
maioria inocente se acha im-
batível e indesafiável. Claro,
acreditávamos (em parte) nas
histórias de fantasmas que os
irmãos mais velhos contavam
para tentar nos assustar, mas,
desconfiados de suas inten-
ções, preferíamos pensar que,
se um dia nos deparássemos
com algum ser do além, sa-
beríamos como enfrentá-los
com a nossa super-força de
crianças travessas.

Pobres de nós. Pobre Car-


los Alberto, pobre Carmem...
pobre de mim, também,
embora tenha conseguido
(terei mesmo?) me safar com
apenas algumas seqüelas... A
ingenuidade, essa estranha
força que geralmente protege
os pequenos e os encoraja a
seguir adiante e crescer, da-
quela feita foi macabramente
fatal. Vendo agora, com olhos
de adulto – e desde aquele
dia sem nenhuma ingenuida-
de –, percebo porém que não
teríamos como saber. Mes-
mo os mais velhos tinham
medo de ali passar apenas de
noite, e já fizéramos aquelas
mesmas estripulias tantas e
tantas vezes!

Foi num dia frio, junho


ou julho, não lembro direito
– embora recorde, e nunca
vá esquecer, cada momento
e cada fato desde que entra-
mos no velho cemitério. Eu,
com minha grossa japona

http://www.flickr.com/photos/felix42/453311029/sizes/l/

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de nylon marrom, recheada todos pelas quase desertas disputamos outra corri-
com um blusão de lã cas- duas quadras de rua de chão da para ver quem chegava
tanho, gorro de crochê na batido que nos separavam primeiro aos velhos túmulos
cabeça, meias grossas e botas do campo santo (santo?, me dos suicidas, colocados no
de borracha amarelas que perguntei depois, e continuo fundo do cemitério, bem
tinham sido do meu irmão. até hoje sem resposta) do vi- atrás dos outros. Várias vezes
Carmem, com seu costumei- larejo em que morávamos. Se pensei que talvez tenha sido
ro casaco de lã azul claro pelo menos soubéssemos que impressão minha, mas algo
e gorro multicolorido, que o improvisado playground me diz que eu realmente sen-
tantas vezes invejei pensando do qual tanto gostávamos só ti um pouco mais de frio nos
que se parecia com um arco- não se tornaria nas próxi- segundos que levei para che-
íris. Mesmo Carlos Alberto, mas horas a nossa morada gar até o ponto combinado.
que nunca parecia sentir frio, definitiva porque eu tive a Levemente emburrada por
naquele dia cedera às baixas proteção dos santos e porque ter sido a segunda, depois
temperaturas (ou às reco- Carmem e Carlos Alberto... de Carlos Alberto (“Isso não
mendações de sua mãe) e se bem, melhor seria que eu vale”, protestei, “os meninos
agasalhara. pudesse partilhar a vã espe- sempre são mais rápidos”),
rança de alguns, de que um não dei a mínima para uma
Mesmo entrouxados como dia eles ainda venham a ser possível queda da tempera-
estávamos, ignoramos os encontrados. tura e, sem-cerimônia como
pedidos de que brincássemos sempre, subi no túmulo mais
no quintal de minha casa. Mas, voltemos àquela próximo para mais facilmen-
Depois de tantos dias chuvo- tarde, por mais terríveis e te alcançar o topo do muro
sos em que a rala diversão dolorosas que me sejam de pedra que circundava a
se restringira à televisão e às as lembranças. Talvez seja área.
rodas de faz-de-conta, querí- melhor eu fazer de conta que
amos mais era aproveitar o estou relatando um dos fil- Andar sobre o muro do
sol e correr até onde pudés- mes que naquela tenra idade cemitério era, de longe, a
semos. Só não fomos pular gostava de assistir escondida brincadeira que mais nos
do telhado na casa da vizi- (meus pais me proibiam pen- agradava, embora nunca ti-
nha porque esta, que se ar- sando que eu fosse ter maus vesse vencedores ou vencidos
repiava só de pensar em um sonhos e acordar gritando (ou talvez por isso mesmo).
de nós quebrando um braço durante a noite, o que nunca Numa época em que sonhá-
ou perna, agora ficava vigi- aconteceu), e que desde então vamos em ser equilibristas
lante e sequer nos deixava nunca mais pude ver – pois de circo, aquele era o lugar
chegar perto do cinamomo depois da última estripulia ideal para treinos, até por-
que escalávamos para chegar do nosso trio, passei a ter que ficava longe da vista
nas telhas. Depois de esgotar pesadelos noite após noite de nossos pais e ninguém
as possibilidades das árvores sem precisar do incentivo de ali nos repreendia dizendo
próximas à minha própria vídeos de terror. E, confesso, que poderíamos cair se não
casa, alguém – ou teriam sido não me sentiria nem um fôssemos mais devagar. Sem
todos, de uma só vez? – teve pouco usurpada se não tives- falar, é claro, que desistíra-
a idéia: ir caminhar sobre os se sido um dos atores prota- mos de passar de túmulo
muros do cemitério, ativida- gonistas daquela trama... em túmulo dando beijos nos
de exploratória que costumá- anjinhos de pedra desde que
vamos fazer pelo menos uma Deviam ser umas três Carlos Alberto ficara com a
ou duas vezes por semana. horas da tarde quando boca toda inchada após ser
chegamos ao enferrujado ferroado por marimbondos
Fosse de quem fosse portão de ferro. Para ir mais instalados atrás de um desses
a sugestão, foi aceita por depressa, empurramos os três seres alados...
unanimidade, e corremos juntos, e quando ele cedeu

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As primeiras voltas trans- ba num dia de espetáculo havia mais flores nos vasos,
correram sem problemas, eu e lona cheia, resolvi treinar por isso corri até a parte
na frente, de vez em quando mais um pouco. E acho que onde não havia ninguém
dando piruetas para mostrar foi o que me salvou. sepultado e cresciam algu-
o equilíbrio, Carmem logo mas moitas floridas em meio
atrás e, fechando a fila, o Em meio a meus delírios a pés de aipim plantados por
Carlinhos (que hoje estariam circenses, cuidava pelo canto um ex-zelador.
já, como eu, perto dos 30 do olho o que os outros dois
anos se tivéssemos seguido a faziam. Se eles fossem em- Enquanto colhia alguns
ordem de ficarmos em casa). bora e me deixassem, como cachos amarelos ouvi chama-
Por que, me pergunto, como eu poderia depois dizer para rem meu nome, e virei-me
já me perguntei milhões a minha mãe que tinha sido lembrando que me perdera
de vezes, éramos crianças por idéia e insistência deles de Carmem e Carlos Alberto.
tão teimosas? Talvez alguns que eu me demorara tanto a Sem ver ninguém, levei as
puxões de orelha dados a brincar no cemitério? Claro, flores até meus bisavós e vol-
tempo tivessem surtido efei- ela já estava acostumada e tei a percorrer a área, desta
to, mas, sinceramente, duvi- sabia que essas desculpas vez chamando alto o nome
do – nada nos faria desistir eram esfarrapadas, mas era de meus colegas de aventu-
das nossas traquinagens, não melhor não facilitar... Por ras. Após uns 10 minutos de
quando, fãs que éramos de isso, desci ligeira do muro buscas, irritada porque não
desenhos de super-heróis, nos quando, depois de um mi- me respondiam, pensei que
sentíamos iguais à Mulher nuto de distração, não pude estavam escondendo-se de
Maravilha, ao Homem Ara- mais ver onde eles estavam. propósito e fiquei a matutar
nha e ao Super Homem. Sem qualquer preocupação o que fazer. A zanga dizia
que não a companhia e a que eu devia ir embora e
Cansada de andar e andar, necessária desculpa (embora deixá-los para trás, mas eu
Carmem, que se desinteres- mais uma vez eu percebesse achava que deveria armar de-
sava mais rapidamente das que a temperatura continu- pois uma vingança maior. Se
brincadeiras que inventáva- ava a cair), saí a procurá-los eu soubesse que nunca teria
mos, resolveu descer depois atrás das fileiras de jazigos. a oportunidade de me vingar,
de uma meia hora. Como e nem o quereria mais, den-
estávamos perto da fileira de O velho cemitério era tro de pouco tempo...
sepulturas das criancinhas, enorme, um verdadeiro
algumas das quais enterradas museu para as nossas explo- Comecei a correr entre
há décadas, minha peque- rações pseudo-arqueológicas. os túmulos, pensando em
na companheira se dirigiu Depois de percorrer algumas surpreendê-los, mas cons-
para lá – era outro de nossos fileiras, acabei esquecendo- tatava com uma raiva cada
passatempos ficar olhan- me de que estava atrás dos vez maior que o esconderijo
do as fotos dos falecidos, e meus amigos e fiquei a ler que tinham encontrado devia
tínhamos atração especial (sim, tínhamos sete anos, ser muito bom. Não haviam
por aqueles, que tinham sido lembro agora, pois já está- saído pelo portão, disso eu
crianças iguais a nós. Te- vamos na primeira série), tinha certeza – enquanto an-
riam eles um dia brincado soletrando com dificuldade, dava pelo muro, eu estava de
também nos mesmos muros os estranhos e enigmáti- frente para a entrada, e por
daquele cemitério?, pergun- cos epitáfios em alemão de ali eles não tinham passa-
táramos a nós mesmos não alguns túmulos mais antigos. do. “Tá bom, eu desisto, não
apenas uma vez. Ao ver o Depois, fui até onde estavam sei onde vocês estão”, gritei,
que nossa amiga fazia, Carlos enterrados meus bisavós dando a senha para que apa-
Alberto resolveu imitá-la. Jacob e Bárbara, que eu não recessem e esperando ouvir
Eu, que já estava me vendo a conhecera, e demorei-me um seus risos em resposta. Mas,
desfilar sobre a corda bam- minuto a rezar por eles. Não mais uma vez, foi o silêncio

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que me respondeu. Foi então dezenas de vezes ampliadas, pronunciar nenhuma pala-
que percebi que algo não as vozes da Carmem e do vra. E voltei a gritar quando
podia estar bem. No céu, o Carlos Alberto, não havia dú- também a lápide que osten-
sol já ia se pondo, embora eu vida. A tremedeira não tinha tava a foto do suicida mais
não tivesse percebido que se parado, mas, com a coragem próximo caiu para um lado,
passara tanto tempo assim. típica dos pequenos que dando espaço para outro
E com o anoitecer, o frio se acham que podem enfrentar rosto putrefato, e senti uma
intensificava mais e mais, qualquer coisa, corri para o mão igualmente decomposta
provocando-me calafrios – local de onde viera o som, segurar-me pelo ombro...
ou pelo menos foi o que eu disposta a salvar os meus
pensei então. amigos. Mas eu jamais, em Graças a Deus, a força
minha curta vida até aquele quase sempre nos surge
Julguei ter visto alguém dia, por mais filmes de terror quando mais precisamos
me espiar por trás de uma que eu tivesse visto escon- dela, e o medo é um com-
lápide do outro lado, e dido de meus pais, tinha bustível tão eficaz quanto
quase respirei aliviada. Ao imaginado deparar com o o mais refinado derivado
chegar lá, outra vez não que eu vi atrás do túmulo de de petróleo. Sem conseguir
havia ninguém. Já que não um enforcado que recente- desviar os olhos das outras
querem aparecer, eu pensei, mente havia sido sepultado crianças (não, das outras
ainda crente de que tudo – um daqueles sobre os quais crianças vivas, pois já alguns
não passava de mais uma costumávamos pular para al- pequenos túmulos começa-
brincadeira (inventada pela cançar a borda do muro. Até vam a liberar também suas
Carmem, com certeza, pois hoje, a cena povoa as noites cargas), desvencilhei-me
ela adorava pregar peças nos em que me reviro na cama, não sei como do braço que
outros), resolvi ir para casa. encharcando os lençóis de tentava me cingir, e saí cor-
Os outros que fossem depois, suor e acordando aos berros. rendo de costas até tropeçar
até porque deviam estar me no portão. Nessa hora, em
vendo de onde estavam. Foi No recuo entre duas que o sol já se escondia em
eu colocar o pé no portão, sepulturas, uma das quais definitivo mas ainda lança-
no entanto, que eu ouvi o parecia ter sido arrancada do va alguns raios capazes de
grito. A cidade inteira deve chão por uma força sobre- ajudar a visão, vi pela última
tê-lo ouvido, de tão forte e humana, estavam meus ami- vez os rostos agora contor-
pavoroso que foi. Não foi gos. O pavor estampado nos cidos – não sei se de dor ou
socorro, não foi me ajudem, olhos dos dois seria suficien- de puro medo – daqueles
não foi nenhuma palavra que te para acabar com quais- que eram os meus melhores
eu conhecia até então ou que quer desconfianças que ainda amigos. Então, tudo escure-
vim a conhecer depois. Foi a me restassem, mas isso não ceu, inclusive meus olhos, e
mais pura manifestação de era preciso: para garantir a só voltei a mim quando uma
horror que se poderia con- veracidade da situação, a cara multidão de pessoas que os
ceber, provavelmente ainda carcomida e cheia de vermes gritos atraíram levantaram-
maior. Tão verdadeira que do homem que em vez de me e me levaram para baixo
eu sequer teria como pensar estar dentro caixão aberto de uma torneira esquecida a
que se tratasse de encena- ali do lado, como a lógica e um canto.
ção – podíamos querer ser a razão pregavam que devia
artistas, mas ninguém tinha ser, me encarava enquanto O resto do dia, ou da noi-
adquirido ainda tal capacida- segurava meus colegas, cada te, visto que soube depois já
de dramática. um erguido do chão em serem mais de 19h, foi uma
uma de suas enormes mãos. loucura quase tão grande
Os calafrios vieram mais O grito que se ouviu então quanto a cena que eu presen-
fortes, enquanto o grito se saiu de minha boca, pois os ciara, e continua igualmen-
repetia. Eram, misturadas e outros não conseguiam mais te gravado a fel em minha

48 SAMIZDAT agosto de 2008


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memória. Atrapalhada, eu preendêramos profanadores uma traquinagem que pas-
tentava responder às pergun- de túmulos em pleno ato e sara da conta; sabia que os
tas que me faziam, mas as por isso fôramos atacados meus amigos não voltariam
respostas me saíam incoeren- (ninguém parecia ver que jamais...
tes, entre lágrimas e gritos estávamos ali há horas até
gaguejados. Só o que conse- tudo acontecer), os outros Isso aconteceu já fazem
guia balbuciar era “os rostos, dois levados e eu escapara. mais de 20 anos, e depois de
os rostos deles, eles estavam Perguntavam-me isso e aqui- meses de espera frustrada
com muito medo”. E via, mais lo, querendo que eu confir- duas pequenas cruzes foram
uma vez e repetidamente, o masse hipóteses, mas eu só colocadas junto à fileira das
mudo pedido de ajuda que conseguia chorar, até porque crianças. A cidade intei-
neles estava estampado antes nem eu mesma tinha cora- ra compareceu ao enterro
de eu desmaiar. gem de acreditar no que os simbólico, sem corpos, mas
meus olhos tinham visto. A com muita emoção. A cidade
Nem as lanternas nem o meia-noite chegou, sem que inteira, menos eu – nada nem
potente farol trazido pelos nada de novo acontecesse. ninguém me faria voltar de
bombeiros foram suficientes Para meu alívio, alguém se novo àquele lugar. E nunca
para que a Carmem e o Car- lembrou de me levar embora mais voltei, nem há cinco
los Alberto fossem encontra- antes que os outros desistis- anos, quando meu avô foi
dos. Os voluntários das re- sem das buscas para aquele sepultado. Preferi ficar na
dondezas tinham se divididos dia. Se é que se pode chamar igreja, rezando por sua alma
em grupos para cobrir todo de alívio uma noite de olhos e por todas as crianças ingê-
o cemitério, mas, passada arregalados, febre e tremores, nuas e inocentes que acre-
mais de uma hora, os únicos na qual nem eu nem meus ditam que os mortos estão
achados haviam sido sete ou pais conseguimos dormir mortos, e que só os vivos é
oito túmulos arrombados, pois eu me negava a ficar que podem nos fazer algum
com os corpos jogados fora sozinha. mal...
do caixão – estranhamente
para os outros, mas não para Fiquei mais de um mês
mim, próximos um do outro sem ir na escola, sem que-
junto ao setor dos suicidas. rer sequer sair de casa. O
Agora, já não era mais ape- sol lá fora já não era mais
nas eu que chorava baixinho. convidativo como antes, e
Ao meu lado, o pranto era não adiantava os coleguinhas
ainda maior por parte das passarem lá depois da aula
mães dos meus amigos, e me convidando para brincar
os pais também já estavam – sem a Carmem e o Carli-
quase entregando os pontos. nhos, eu não vou, respondia
O lado de fora do campo sempre, em minha surda
santo também foi investiga- teimosia, com a esperança de
do, mas se não havia nem que tudo não tivesse passa-
as pegadas que seriam de se do de um pesadelo da noite
esperar no barro ainda mole anterior. Mas, no fundo, eu
da chuva dos dias anteriores, sabia desde o princípio: sabia
quanto mais a pista dos dois que nada seria encontrado
pequenos. no cemitério, onde os cadá-
veres fedorentos já haviam
Alguns aventaram que sido reenterrados; sabia que
devia ser seqüestro, e que o não viria nenhum telefone-
pedido de resgate viria sem ma ou pedido de resgate;
demora. Outros, que sur- sabia que não se tratava de

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Autor Convidado

linea nigra
Marcelo Galvão
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50 SAMIZDAT agosto de 2008


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Os olhos azuis dela brilha- - Mais uma cerveja para o
ram quando anunciou: grávido aqui - disse um deles,
no happy hour da sexta-feira.
- Estou grávida, querido. Todos na mesa riram, menos
Você vai ser papai. o futuro pai. Outro colega
prosseguiu:
O primeiro pensamento
dele foi um perplexo “Como - A vida nunca mais é a
isso é possível?”. Ela era mesma depois do primeiro
infértil: caros tratamentos filho e não falo só das despe-
médicos, dietas especiais e sas que vão aumentar. É bom
até mesmo simpatias fracas- se acostumar com a idéia de
sadas haviam comprovado a que você será o responsável
esterilidade total. pela criança até ela comple-
tar os dezoito anos. - Cabe-
- É um milagre - a futura
ças balançaram em volta da
mãe disse ao notar a surpre-
mesa, concordando - Mas
sa no rosto dele. - Estou tão
parece que você já tá abati-
feliz.
do, deixa isso pra quando o
Ele olhou com atenção o bebê chegar e você tiver que
corpo da mulher - miúdo, trocar as fraldas fedorentas
pele imaculadamente alva, durante a madrugada.
cabelos negros e lisos - que
Novos risos. O primeiro
em breve assumiria um
confirmou:
formato novo. Uma mudan-
ça que ele bem sabia não se - Criança dá um trabalho
resumiria ao ventre arrendo- danado, mas o que importa
dado, seios pesados e pernas mesmo é que tenha saúde.
inchadas.
O futuro pai permaneceu
Sentiu as entranhas enco- calado. O outro colega ficou
lherem. sério, contemplando o que
restava da cerveja no copo.
- Vou marcar uma consul-
ta para começar o pré-natal - É, boa saúde é o que
o mais cedo possível - ela interessa. Minha prima tem
disse, abraçando-o. O mari- uma menina com paralisia
do tentou retribuir o afeto cerebral. A coitadinha fez
da melhor maneira possível. dez anos ontem, entrevada na
Esperava que ela não perce- cama. É muito triste - Entor-
besse como ele tremia, não nou a bebida em um gole,
só pelo choque da notícia, antes de continuar - Mas
mas também de medo. vocês são novos, não tem pe-
rigo da criança nascer com
###
síndrome de Down ou algo
parecido.

A notícia da gravidez se O “grávido” soltou soltou


espalhou entre os colegas um suspiro; seria um homem
de trabalho dele, dois dias de sorte se o bebê nasces-
depois; a esposa fizera ques- se com Down ou paralisia
tão que o maior número de cerebral.
pessoas soubesse do aconte-
- O que importa mesmo
cimento.

www.samizdat-pt.blogspot.com 51
é que o bebê não nasça feio se revirava ao ver aquela ria e sairia da casa.
como você! - completou o cena. Não só por presenciar
colega, rindo. a alteração diária naquele Um ser que herdaria ca-
corpo, mas porque sabia que racterísticas físicas e intelec-
seu tempo esgotava-se; havia tuais dela.
adiado por muito tempo a
### E dele.
difícil decisão que deveria
ter tomado tão logo ela lhe Pois filhos nada mais
contara a novidade. eram que cópias de seus
E assim os dias tornaram- genitores, ele concluiu . Com
se semanas, as semanas Mas existia um motivo
todas as suas qualidades e
viraram meses e o sexto mês para tal demora.
defeitos.
chegou com a futura mãe pe-
Ele amava a esposa.
sando mais de quinze quilos Felizmente, a descoberta
além do recomendado pelo Amor era um conceito da infertilidade e sua conti-
obstetra. A pele do rosto, an- estranho na sua terra natal. E nuidade, mesmo após trata-
tes tão branca, era maculada mesmo quando chegara aqui, mentos médicos, revelaram-
por manchas escuras e simé- após fugir e assumir o lugar se um bônus.
tricas ao redor dos lábios e de um homem órfão, emu-
bochechas, como as pintas O problema, como ele
lando um comportamento
de algum animal exótico. agora descobrira, é que médi-
aceitável naquela sociedade
Varizes espalhavam-se de cos também cometiam erros.
nova, ele tivera dificuldades
um lado ao outro das pernas, em comprender o que era tal - O bebê chutou! - ela gri-
enquanto estrias sulcavam emoção. tou, interrompendo os pensa-
caminhos em coxas, seios e
mentos dele. Ela aproximava-
ventre. Este era dividido ao Até conhecer aquela
se com um sorriso fixo, após
meio por uma mancha es- mulher. Ela lhe mostrou o
mais uma sessão de hidrata-
treita e comprida - conheci- que era amor e ele acabou
ção. Vestia apenas calcinha
da pelos médicos como linea por esquecer seu passado
branca; os mamilos, agora
nigra - que se estendia do turbulento em um lugar tão
marrom-escuros, eram como
meio do torso até o púbis. distante. Em uma noite quen-
olhos a encará-lo, enquanto o
te de verão, ela lhe contou
Os exames pedidos mos- umbigo, no caminho da linea
sobre o desejo de ser mãe.
travam uma gravidez normal, nigra, assemelhava-se a uma
Sua reação foi um confuso
ainda que o ultra-som não boca minúscula, desdentada
franzir de cenho. Paternidade
conseguisse diagnosticar o e de lábios salientes.
e maternidade também eram
sexo devido à posição em palavras estranhas no lugar Foi quando ele viu a man-
que o feto se encontrava. O de onde viera; para ele, ser cha que lhe dividia o torso
obstetra assegurou que não pai e mãe resumia-se ao ma- ondular como uma serpente.
havia motivo para preocu- cho copulando com a fêmea Piscou com força para ter
pação; a futura mamãe devia e esta parindo, meses depois, certeza do que acontecia e
aproveitar cada momento da uma criatura que se torna- quando abriu as pálpebras,
gravidez. ria uma máquina de matar. dezenas de outras linhas es-
Macho e fêmea nunca mais curas, finas como veias, proli-
Era o que ela fazia. Todos
veriam a prole pelo resto de feraram-se a partir da linea
os dias despia-se e alisava
suas vidas curtas. nigra, parecendo as patas de
com creme hidratante o
ventre redondo, observando uma centopéia. Em questão
A confusão inicial deu
com curiosidade seu perfil de segundos, estenderam-se
lugar ao pavor quando desco-
no espelho do banheiro, uma pelo ventre e, retorcendo-se
briu o conceito de paternida-
letra B gigante refletindo-se como tentáculos, desceram
de naquele verão. Não con-
na superfície. até a virilha.
seguia explicar para a esposa
o perigo que era gerar um Ele levantou o olhar e viu
O estômago do marido
descendente seu, que cresce-

52 SAMIZDAT agosto de 2008


52
as aréolas dos mamilos au- ligação caíra. Um berro aflito soou lá
mentando de tamanho, avan- fora. Tremendo, o pai correu
çando rapidamente sobre os Ele refez o trajeto para até o muro que dividia a
seios brancos. casa em menos de cinco mi- propriedade. De algum lugar
nutos, quando o normal seria mais distante no bairro veio
Algo viscoso agarrou-lhe o dobro. Um odor repugnan- outro grito desesperado e
a mão. te - mistura de sangue, fezes, agudo; poderia ser de mulher
urina - o atingiu assim que ou criança.
- Sente como nosso nenê cruzou o umbral da porta. A
chuta forte - a esposa disse, casa estava em silêncio. Seu rosto se contorceu e
resquícios do creme hidra- ele desabou de joelhos na
tante nas palmas lambuzan- De onde estava, podia ver grama do quintal. Os tremo-
do a mão do marido. Com a esposa estendida no sofá, res aumentaram, na mesma
um safanão, ele afastou-se o rosto voltado para cima, proporção da algazarra na
dela; inventou uma desculpa olhos abertos como se verifi- vizinhança. Parecia que ele
e saiu correndo dali, contro- casse o lustre. Seu braço es- chorava violentamente, mas
lando-se para não vomitar. tava a centímetros do telefo- tal impressão desaparecia
ne fora do gancho, enquanto quando se escutava suas arti-
Ela pareceu não se impor- suas pernas encontravam-se culações estalando, enquanto
tar com o comportamento abertas uma posição inacei- placas ósseas afiadas rasga-
dele. Apenas continuou a tável para uma moça de boa vam pele e roupas, fileiras de
acariciar o ventre, os cabe- criação. espinhos brotavam do couro
los escorridos cobrindo-lhe
cabeludo e dentes eram subs-
o rosto, entrevendo-se entre Era apenas o que ele podia
tituídos por presas enormes.
as madeixas negras os lábios distinguir. O resto daquele
retesados em um sorriso. corpo miúdo era agora uma Janelas sendo despedaça-
polpa brilhante de carne e das, alarmes de casas ativa-
ossos dilacerados. dos, veículos explodindo: o
### caos era total no bairro.
Ele tentou não imaginar o
desespero da esposa ao sen- Mas tudo o que ele ouvia
tir garras curvas como foices era uma voz repetindo-lhe
O tempo se esgotava, ele abrirem caminho pelas suas que um pai era responsável
concluiu enquanto cami- vísceras e ver um crânio, por seus filhos.
nhava no parque localizado coberto de pêlos pontiagudos
a algumas quadras da casa. como espinhos, surgir entre Com esse pensamento
Ele era também o responsá- suas pernas. atravessando seu cérebro, ele
vel pela concepção daquela farejou o ar e correu sob gar-
Com os olhos embaçados ras curvas atrás de sua nova
criança, no final das con-
de lágrimas, notou uma tri- prole..O homem deu uma
tas; não podia fugir da sua
lha larga de sangue que co- olhada para cima (como que
responsabilidade de pai. Era
meçava no sofá e seguia até agradecendo), baixou o cano
preciso interromper a gravi-
a cozinha. Cautelosamente, da arma e jogou fora o peda-
dez de alguma forma.
acompanhou o rastro viscoso ço de fumo que mascava. Em
Pensava em como faria cômodo adentro. A primei- seguida, retirou, do bolso da
isso quando seu celular ra coisa que notou é que a calça, um telefone celular e,
tocou. O identificador de porta que ligava a cozinha sem olhar para o corpo es-
chamadas mostrava o núme- ao quintal estava destroçada. tendido no chão sujo, come-
ro da casa. A segunda era que a trilha çou a apertar - lentamente e
dividia-se em duas. com frieza - vários números.
Atendeu a ligação e um
berro soou no seu ouvido, Pelo visto, o ultra-som não
seguido por uma cacofonia soubera precisar apenas o
estridente, logo substituída sexo do feto.
pelo tom monótono de que a

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Autor Convidado

MOVIDO
PELA FOME
JRM Torres
http://www.flickr.com/photos/penguinbush/2768719983/sizes/o/

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Ricardo sentiu as trans-
formações ocorrerem em seu
corpo.

Escondeu-se atrás de uma


árvore, naquele matagal
denso, e ajoelhou-se no chão
sujo. Chegou a rezar, para
impedir que as coisas acon-
tecessem. Em vão, pois sabia
que o processo era irrever-
sível. Sentia dores e gemia,
enquanto a metamorfose se
processava.

Aos poucos, a pele se


estendeu, adquirindo uma
tonalidade escura. Os pêlos
brotaram, grossos e negros,
e espalharam-se por todo
o corpo, dos pés à cabeça.
Tudo foi se modificando. O
nariz cresceu, tornando-se
afilado e grotesco, a boca se
alargou, os dentes cresceram,
afiados e sinistros. Nos olhos,
as pupilas se dilataram e a
íris tornou-se vermelha. As
sobrancelhas desproporcio-
nais se uniram. A testa se
enrugou, os ossos da face
se estreitaram, os cabelos se
multiplicaram. Seu rosto ad-
quiriu, então, uma complei-
ção canina e sobrenatural.
As mãos, antes pequenas e
normais, tornaram-se imen-
sas e disformes, os dentes
longos e as unhas afiadas se
destacando. Garras cruéis!
Pés largos! Olhar insano!

Seu corpo, de modo geral,


cresceu assustadoramente.
Tinha, nesse momento, dois
metros de altura, largo, pelu-
do e musculoso. Sua roupa

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se rompeu, ante a mudança telhados compostos de palha Logo o avistou. O vulto
de tamanho. Restava-lhe seca. Não havia a presença saiu de um beco, deslocan-
a calça rasgada, agora um de qualquer ser humano nas do-se lentamente, parando
short minúsculo, que mal imediações. Algo previsível. no meio da rua, a cerca de
lhe cobria os órgãos genitais. Afinal, a notícia de que um duzentos metros local de
Quem ali adentrasse, naquele ser misterioso matara seis onde se encontrava. Parou
instante, iria ver uma mis- pessoas na região se espalha- e ficou de frente para ele,
tura de homem com lobo, ra depressa, naquela localida- como se o esperasse. Sentiu
horripilante e asquerosa. de do nordeste, apavorando a saliva escorrer de sua boca,
os moradores. ante aquele odor delicioso.
Aos poucos, a sanidade Antevia o prazer de sabore-
esvaiu-se de seus neurônios, Dois cachorros, ao vê-los, ar a carne mais saborosa do
dando lugar aos pensamentos ganiram de terror e recua- universo! O gosto do sangue!
maléficos e... à fome. Levan- ram. Urrou baixo, para não A delícia que seria dilacerar
tou-se, urrando alto. A fome chamar a atenção, lançando cada naco daqueles músculos,
o dominava, dolorosa, e era sobre eles seu olhar de ódio. daquele... corpo. Maravilhoso!
como um maçarico ignóbil, Entre espasmos violentos, os Sua fome estava prestes a ser
queimando-lhe as entranhas. animais correram, desespe- saciada! Sim. Bastava correr
rados, procurando fugir de (numa perseguição alucinan-
sua presença satânica. Logo te) para cima do vulto e ata-
Ricardo, o entregador de
desapareceram atrás de um cá-lo. Seus dentes cortantes e
jornais, que andava de bi-
das casas. Não queria comer suas garras afiadas fariam o
cicleta pelas ruas daquela
cachorros, pois seu corpo an- resto. Não haveria falhas.
cidadezinha do interior, não
existia mais. O ser animales- siava por outro tipo de carne.
co que tomou o lugar dele A fome lhe era insuportável. Seria sua sétima vítima.
começou a andar, o corpo
curvado, na direção das casas Percorreu os duzentos me- No entanto...
daquele bairro pobre. A noite tros da rua deserta e dobrou
era quente, mas um vento à direita. Fuçava o ar, seu ***
frio começava a soprar do nariz poderoso com capaci-
norte. No céu, a lua cheia, dade para perceber e inalar
Algo estava errado!
límpida e resplandecente, os odores mais distantes.
dava seu show, iluminando o
ambiente. A lua mortal, que ***
De repente, notou a pre-
hipnotizava e dominava, com sença daquilo que mais de-
sua força invisível. sejava. Havia um ser humano Percebeu que... não ha-
por perto! Um ser humano via medo naquele ser! Seus
O animal (ou entidade) ao ar livre, que ousou sair de instintos animalescos diziam
aumentou as passadas, mo- uma das casas. Ótimo! Seu que não havia medo! Inacre-
vido pela fome, e saiu do corpo estremeceu, a fome ditável! Bizarro! Não conse-
matagal. Apoiava as mãos penetrando seu íntimo com guia captar o inebriante e
no chão e seus passos eram um esgar feroz. A ansiedade vivificante cheiro do medo
desconexos. Percorreu a rua lhe era insuportável, ante exalando daquele vulto. O
de terra batida. As casas, rús- aquele cheiro tão peculiar e medo, comum a todos os
ticas e humildes, eram feitas conhecido. Parou no meio da seres humanos.
de barro amassado, estreitas rua e procurou localizar sua
e de um pavimento, com os provável vítima. O que estava acontecendo?

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Por que ele não fugia, não ro apontando na sua direção. A lua brilhava, linda e res-
procurava correr, como fize- Numa fração de segundo, plandecente, naquela madru-
ram os cachorros e as outras compreendeu tudo. Tentou gada friorenta.
vítimas? Por que permanecia parar de correr, para desviar-
parado no meio rua, numa se da força do que vinha pela O homem deu uma olha-
atitude arrogante e desafiado- frente. Não deu tempo. Ele, o da para cima (como que
ra? Seria um suicida? Ou um algoz, o animal sanguinário agradecendo), baixou o cano
louco? Um psicopata, imerso e assassino, foi vítima de sua da arma e jogou fora o peda-
nas suas alucinações, de tal autoconfiança e... da fome. O ço de fumo que mascava. Em
forma que não possuía aque- barulho da explosão retiniu, seguida, retirou, do bolso da
le sentimento tão intrínseco nítido e brutal, em seus ouvi- calça, um telefone celular e,
e dominante? Um homem dos sensíveis. Outras explo- sem olhar para o corpo es-
sem medo? Isso era possível? sões se fizeram ouvir. Urrou tendido no chão sujo, come-
de dor, ao sentir os projéteis çou a apertar - lentamente e
Mas isso não tinha im- penetrando seu corpo. Te- com frieza - vários números.
portância. Ele iria morrer e riam sido quatro? Cinco?
teria seu corpo estraçalhado Seis? Penetraram sua carne,
e seus gritos seriam ouvidos rasgando veias e artérias.
a quilômetros. Sua morte
seria tão terrível quanto à
dos demais. Pagaria caro sua
prepotência e imprudência. Caiu no chão, a dois
Ninguém poderia salvar metros do vulto. Não che-
aquele louco! gou a vê-lo, uma vez que seu
próprio corpo entrou em
Movido pela fome e pelo agonia. O sangue brotava dos
ódio, movimentou o corpo e ferimentos. Não conseguia
disparou, na direção do vul- respirar. A dor! A maldita
to, enquanto soltava seu urro dor era atroz! Espalhou-se
animalesco. Foi uma corrida por cada poro, cada músculo,
desenfreada, já sabendo que dominando-o e enlouquecen-
o vulto correria para se es- do-o. Não tinha forças! Não
conder. Ele tentaria, mas não tinha forças sequer para ras-
conseguiria escapar. tejar. Enquanto morria, sentiu
que Ricardo, o entregador de
Porém, algo estranho jornais, retornava do limbo,
aconteceu! na transformação de todas
as noites de lua cheia. Urrou
de dor e esse foi seu último
Sentiu, naquele momento,
gesto.
o cheiro da morte!

Ricardo voltou, mas estava


***
morto, juntamente com seu
hospedeiro.
Sentiu...
***
... quando viu o cano escu-

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Tradução

O GATO PRETO
Edgar Allan Poe

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Não espero nem peço coração era tão evidente, que
que se dê crédito à história me tomava alvo dos grace-
sumamente extraordinária e, jos de meus companheiros.
no entanto, bastante domésti- Gostava, especialmente, de
ca que vou narrar. Louco se- animais, e meus pais me
ria eu se esperasse tal coisa, permitiam possuir grande
tratando-se de um caso que variedade deles. Passava com
os meus próprios sentidos se eles quase todo o meu tem-
negam a aceitar. Não obstan- po, e jamais me sentia tão
te, não estou louco e, com feliz como quando lhes dava
toda a certeza, não sonho. de comer ou os acariciava.
Mas amanhã posso morrer Com os anos, aumentou esta
e, por isso, gostaria, hoje, de peculiaridade de meu caráter
aliviar o meu espírito. Meu e, quando me tomei adulto,
propósito imediato é apre- fiz dela uma das minhas
sentar ao mundo, clara e su- principais fontes de prazer.
Edgar Allan Poe (Boston, 19 de cintamente, mas sem comen- Aos que já sentiram afeto
Janeiro de 1809 — Baltimore, 7 de tários, uma série de simples por um cão fiel e sagaz, não
Outubro de 1849) foi um escritor, acontecimentos domésticos. preciso dar-me ao trabalho
poeta, romancista, crítico literário e Devido a suas conseqüên- de explicar a natureza ou
editor estado-unidense.
cias, tais acontecimentos me a intensidade da satisfação
aterrorizaram, torturaram e que se pode ter com isso. Há
Poe é considerado, juntamente com instruíram. algo, no amor desinteressado,
Jules Verne, um dos precursores e capaz de sacrifícios, de um
da literatura de ficção científica e animal, que toca diretamente
fantástica modernas. Algumas das No entanto, não tenta-
rei esclarecê-los. Em mim, o coração daqueles que tive-
suas novelas, como The Murders in
the Rue Morgue (Os Crimes da Rua quase não produziram outra ram ocasiões freqüentes de
Morgue), The Purloined Letter (A coisa senão horror _ mas, em comprovar a amizade mes-
Carta Roubada) e The Mystery of muitas pessoas, talvez lhes quinha e a frágil fidelidade
Marie Roget (O Mistério de Maria de um simples homem.
pareçam menos terríveis que
Roget), figuram entre as primeiras
obras reconhecidas como policiais, grotesco. Talvez, mais tarde,
e, de acordo com muitos, as suas haja alguma inteligência que Casei cedo, e tive a sorte
obras marcam o início da verdadeira reduza o meu fantasma a de encontrar em minha mu-
literatura norte-americana. algo comum _ uma inteli- lher disposição semelhante à
gência mais serena, mais ló- minha. Notando o meu amor
gica e muito menos excitável pelos animais domésticos,
do que, a minha, que perce- não perdia a oportunidade
ba, nas circunstâncias a que de arranjar as espécies mais
me refiro com terror, nada agradáveis de bichos. Tínha-
mais do que uma sucessão mos pássaros, peixes dou-
comum de causas e efeitos rados, um cão, coelhos, um
muito naturais. macaquinho e um gato.
http://www.flickr.com/photos/seandreilinger/133376807/sizes/o/

Desde a infância, toma- Este último era um ani-


ram-se patentes a docilidade mal extraordinariamente
e o sentido humano de meu grande e belo, todo negro
caráter. A ternura de meu e de espantosa sagacidade.

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Ao referir-se à sua inteligên- de maltratá-lo, ao passo que minha orgia noturna, ex-
cia, minha mulher, que, no não sentia escrúpulo algum perimentei, pelo crime que
íntimo de seu coração, era em maltratar os coelhos, praticara, um sentimento
um tanto supersticiosa, fazia o macaco e mesmo o cão, que era um misto de horror
freqüentes alusões à antiga quando, por acaso ou afeto, e remorso; mas não passou
crença popular de que todos cruzavam em meu caminho. de um sentimento superfi-
os gatos pretos são feiticeiras Meu mal, porém, ia tomando cial e equívoco, pois minha
disfarçadas. Não que ela se conta de mim _ que outro alma permaneceu impassível.
referisse seriamente a isso: mal pode se comparar ao Mergulhei novamente em
menciono o fato apenas por- álcool? _ e, no fim, até Pluto, excessos, afogando logo no
que aconteceu lembrar-me que começava agora a enve- vinho a lembrança do que
disso neste momento. lhecer e, por conseguinte, se acontecera.
tomara um tanto rabugento,
Pluto _ assim se chamava até mesmo Pluto começou a Entrementes, o gato se
o gato _ era o meu preferi- sentir os efeitos de meu mau restabeleceu, lentamente.
do, com o qual eu mais me humor. A órbita do olho perdido
distraía. Só eu o alimenta- apresentava, é certo, um
va, e ele me seguia sempre Certa noite, ao voltar a aspecto horrendo, mas não
pela casa. Tinha dificuldade, casa, muito embriagado, de parecia mais sofrer qualquer
mesmo, em impedir que me uma de minhas andanças dor. Passeava pela casa como
acompanhasse pela rua. pela cidade, tive a impres- de costume, mas, como bem
são de que o gato evitava a se poderia esperar, fugia,
Nossa amizade durou, minha presença. Apanhei-o, tomado de extremo ter-
desse modo, vários anos, e ele, assustado ante a minha ror, à minha aproximação.
durante os quais não só o violência, me feriu a mão, le- Restava-me ainda o bastante
meu caráter como o meu vemente, com os dentes. Uma de meu antigo coração para
temperamento _ enrubesço fúria demoníaca apoderou-se, que, a princípio, sofresse
ao confessá-lo _ sofreram, instantaneamente, de mim. Já com aquela evidente aver-
devido ao demônio da intem- não sabia mais o que estava são por parte de um animal
perança, uma modificação fazendo. Dir-se-ia que, súbito, que, antes, me amara tanto.
radical para pior. Tomava- minha alma abandonara o Mas esse sentimento logo se
me, dia a dia, mais taciturno, corpo, e uma perversidade transformou em irritação. E,
mais irritadiço, mais indi- mais do que diabólica, cau- então, como para perder-me
ferente aos sentimentos dos sada pela genebra, fez vibrar final e irremissivelmente,
outros. Sofria ao empregar todas as fibras de meu ser. surgiu o espírito da perversi-
linguagem desabrida ao Tirei do bolso um canivete, dade. Desse espírito, a filoso-
dirigir-me à minha mulher. abri-o, agarrei o pobre ani- fia não toma conhecimento.
No fim, cheguei mesmo a mal pela garganta e, friamen- Não obstante, tão certo como
tratá-la com violência. Meus te, arranquei de sua órbita existe minha alma, creio que
animais, certamente, sentiam um dos olhos! Enrubesço, a perversidade é um dos im-
a mudança operada em meu estremeço, abraso-me de ver- pulsos primitivos do coração
caráter. Não apenas não lhes gonha, ao referir-me, aqui, a humano - uma das faculda-
dava atenção alguma, como, essa abominável atrocidade. des, ou sentimentos primá-
ainda, os maltratava. Quanto rios, que dirigem o caráter
a Pluto, porém, ainda desper- Quando, com a chegada do homem. Quem não se viu,
tava em mim consideração da manhã, voltei à razão _ centenas de vezes, a cometer
suficiente que me impedia dissipados já os vapores de ações vis ou estúpidas, pela
única razão de que sabia que

60 SAMIZDAT agosto de 2008


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não devia cometê-las? Acaso da e eu conseguimos escapar Logo que vi tal aparição,
não sentimos uma inclinação do incêndio. A destruição pois não poderia considerar
constante mesmo quando foi completa. Todos os meus aquilo como sendo outra
estamos no melhor do nosso bens terrenos foram tragados coisa, o assombro e terror
juízo, para violar aquilo que pelo fogo, e, desde então, me que se me apoderaram foram
é lei, simplesmente porque a entreguei ao desespero. extremos. Mas, finalmen-
compreendemos como tal? te, a reflexão veio em meu
Esse espírito de perversida- Não pretendo estabelecer auxílio. O gato, lembrei-me,
de, digo eu, foi a causa de relação alguma entre causa fora enforcado num jardim
minha queda final. O vivo e e efeito - entre o desastre existente junto à casa. Aos
insondável desejo da alma de e a atrocidade por mim gritos de alarma, o jardim
atormentar-se a si mesma, de cometida. Mas estou des- fora imediatamente invadi-
violentar sua própria nature- crevendo uma seqüência do pela multidão. Alguém
za, de fazer o mal pelo pró- de fatos, e não desejo omi- deve ter retirado o animal da
prio mal, foi o que me levou tir nenhum dos elos dessa árvore, lançando-o, através
a continuar e, afinal, a levar a cadeia de acontecimentos. de uma janela aberta, para
cabo o suplício que infligira No dia seguinte ao do in- dentro do meu quarto. Isso
ao inofensivo animal. Uma cêndio, visitei as ruínas. As foi feito, provavelmente, com
manhã, a sangue frio, meti- paredes, com exceção de a intenção de despertar-me.
lhe um nó corredio em torno uma apenas, tinham desmo- A queda das outras paredes
do pescoço e enforquei-o no ronado. Essa única exceção havia comprimido a vítima
galho de uma árvore. Fi-lo era constituída por um fino de minha crueldade no gesso
com os olhos cheios de lágri- tabique interior, situado no recentemente colocado sobre
mas, com o coração trans- meio da casa, junto ao qual a parede que permanecera de
bordante do mais amargo se achava a cabeceira de pé. A cal do muro, com as
remorso. Enforquei-o porque minha cama. O reboco havia, chamas e o amoníaco des-
sabia que ele me amara, e aí, em grande parte, resistido prendido da carcaça, produ-
porque reconhecia que não à ação do fogo _ coisa que zira a imagem tal qual eu
me dera motivo algum para atribuí ao fato de ter sido agora a via.
que me voltasse contra ele. ele construído recentemente.
Enforquei-o porque sabia que Densa multidão se reunira Embora isso satisfizesse
estava cometendo um peca- em torno dessa parede, e prontamente minha razão,
do _ um pecado mortal que muitas pessoas examinavam, não conseguia fazer o mes-
comprometia a minha alma com particular atenção e mo, de maneira completa,
imortal, afastando-a, se é que minuciosidade, uma parte com minha consciência,
isso era possível, da miseri- dela, As palavras “estranho!”, pois o surpreendente fato
córdia infinita de um Deus “singular!”, bem como ou- que acabo de descrever não
infinitamente misericordioso tras expressões semelhantes, deixou de causar-me, apesar
e infinitamente terrível. despertaram-me a curiosida- de tudo, profunda impressão.
de. Aproximei-me e vi, como Durante meses, não pude
Na noite do dia em que se gravada em baixo-relevo livrar-me do fantasma do
foi cometida essa ação tão sobre a superfície branca, a gato e, nesse espaço de tem-
cruel, fui despertado pelo figura de um gato gigantesco. po, nasceu em meu espírito
grito de “fogo!”. As cortinas A imagem era de uma exati- uma espécie de sentimento
de minha cama estavam em dão verdadeiramente mara- que parecia remorso, em-
chamas. Toda a casa ardia. vilhosa. Havia uma corda em bora não o fosse. Cheguei,
Foi com grande dificuldade tomo do pescoço do animal. mesmo, a lamentar a perda
que minha mulher, uma cria- do animal e a procurar, nos

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sórdidos lugares que então Continuei a acariciá-lo olhos. Tal circunstância, po-
freqüentava, outro bichano e, quando me dispunha a rém, apenas contribuiu para
da mesma espécie e de apa- voltar para casa, o animal que minha mulher sentisse
rência semelhante que pudes- demonstrou disposição de por ele maior carinho, pois,
se substituí-lo. acompanhar-me. Permiti que como já disse, era dotada, em
o fizesse _ detendo-me, de alto grau, dessa ternura de
Uma noite, em que me vez em quando, no caminho, sentimentos que constituíra,
achava sentado, meio atur- para acariciá-lo. Ao chegar, em outros tempos, um de
dido, num antro mais do sentiu-se imediatamente à meus traços principais, bem
que infame, tive a atenção vontade, como se pertencesse como fonte de muitos de
despertada, subitamente, por a casa, tomando-se, logo, um meus prazeres mais simples
um objeto negro que jazia dos bichanos preferidos de e puros.
no alto de um dos enormes minha mulher.
barris, de genebra ou rum, No entanto, a preferência
que constituíam quase que De minha parte, passei a que o animal demonstrava
o único mobiliário do recin- sentir logo aversão por ele. pela minha pessoa parecia
to. Fazia já alguns minutos Acontecia, pois, justamente o aumentar em razão direta
que olhava fixamente o alto contrário do que eu esperava. da aversão que sentia por
do barril, e o que então me Mas a verdade é que - não ele. Seguia-me os passos com
surpreendeu foi não ter visto sei como nem por quê _ seu uma pertinácia que dificil-
antes o que havia sobre o evidente amor por mim me mente poderia fazer com
mesmo. Aproximei-me e desgostava e aborrecia. Lenta- que o leitor compreendes-
toquei-o com a mão. Era mente, tais sentimentos de se. Sempre que me sentava,
um gato preto, enorme _ tão desgosto e fastio se conver- enrodilhava-se embaixo de
grande quanto Pluto _ e que, teram no mais amargo ódio. minha cadeira, ou me sal-
sob todos os aspectos, salvo Evitava o animal. Uma sensa- tava ao colo, cobrindo-me
um, se assemelhava a ele. ção de vergonha, bem como com suas odiosas carícias.
Pluto não tinha um único a lembrança da crueldade Se me levantava para andar,
pêlo branco em todo o corpo que praticara, impediam-me metia-se-me entre as pernas
_ e o bichano que ali estava de maltratá-lo fisicamente. e quase me derrubava, ou
possuía uma mancha larga Durante algumas semanas, então, cravando suas longas e
e branca, embora de forma não lhe bati nem pratiquei afiadas garras em minha rou-
indefinida, a cobrir-lhe quase contra ele qualquer violência; pa, subia por ela até o meu
toda a região do peito. mas, aos poucos - muito gra- peito. Nessas ocasiões, embo-
dativamente _ , passei a sen- ra tivesse ímpetos de matá-lo
Ao acariciar-lhe o dorso, tir por ele inenarrável horror, de um golpe, abstinha-me
ergueu-se imediatamente, fugindo, em silêncio, de sua de fazê-lo devido, em parte,
ronronando com força e odiosa presença, como se à lembrança de meu crime
esfregando-se em minha fugisse de uma peste. anterior, mas, sobretudo _
mão, como se a minha aten- apresso-me a confessá-lo _
ção lhe causasse prazer. Era, Sem dúvida, o que au- , pelo pavor extremo que o
pois, o animal que eu procu- mentou o meu horror pelo animal me despertava. Esse
rava. Apressei-me em propor animal foi a descoberta, na pavor não era exatamente
ao dono a sua aquisição, mas manhã do dia seguinte ao um pavor de mal físico e,
este não manifestou interes- que o levei para casa, que, contudo, não saberia defini-
se algum pelo felino. Não o como Pluto, também havia lo de outra maneira. Quase
conhecia; jamais o vira antes. sido privado de um dos me envergonha confessar _
sim, mesmo nesta cela de cri-

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minoso _ , quase me enver- à imagem do Deus Altíssimo. a ponto de perder o juízo.
gonha confessar que o terror Oh, grande e insuportável in- Apanhando uma machadi-
e o pânico que o animal me fortúnio! Ai de mim! Nem de nha e esquecendo o terror
inspirava eram aumentados dia, nem de noite, conheceria pueril que até então contive-
por uma das mais puras fan- jamais a bênção do descanso! ra minha mão, dirigi ao ani-
tasias que se possa imaginar. Durante o dia, o animal não mal um golpe que teria sido
Minha mulher, mais de uma me deixava a sós um único mortal, se atingisse o alvo.
vez, me chamara a atenção momento; e, à noite, desper- Mas minha mulher segurou-
para o aspecto da mancha tava de hora em hora, to- me o braço, detendo o gol-
branca a que já me referi, e mado do indescritível terror pe. Tomado, então, de fúria
que constituía a única di- de sentir o hálito quente da demoníaca, livrei o braço do
ferença visível entre aquele coisa sobre o meu rosto, e obstáculo que o detinha e
estranho animal e o outro, o seu enorme peso _ encar- cravei-lhe a machadinha no
que eu enforcara. O leitor, nação de um pesadelo que cérebro. Minha mulher caiu
decerto, se lembrará de que não podia afastar de mim _ morta instantaneamente, sem
aquele sinal, embora grande, pousado eternamente sobre o lançar um gemido.
tinha, a princípio, uma forma meu coração!
bastante indefinida. Mas, Realizado o terrível assas-
lentamente, de maneira quase Sob a pressão de tais sínio, procurei, movido por
imperceptível _ que a minha tormentos, sucumbiu o súbita resolução, esconder o
imaginação, durante muito pouco que restava em mim corpo. Sabia que não pode-
tempo, lutou por rejeitar de bom. Pensamentos maus ria retirá-lo da casa, nem de
como fantasiosa _, adquirira, converteram-se em meus dia nem de noite, sem correr
por fim, uma nitidez rigorosa únicos companheiros _ os o risco de ser visto pelos
de contornos. Era, agora, a mais sombrios e os mais vizinhos.
imagem de um objeto cuja perversos dos pensamentos.
menção me faz tremer... E, Minha rabugice habitual se Ocorreram-me vários pla-
sobretudo por isso, eu o en- transformou em ódio por nos. Pensei, por um instante,
carava como a um monstro todas as coisas e por toda a em cortar o corpo em pe-
de horror e repugnância, do humanidade _ e enquanto eu, quenos pedaços e destruí-los
qual eu, se tivesse coragem, agora, me entregava cega- por meio do fogo. Resolvi,
me teria livrado. Era agora, mente a súbitos, freqüentes depois, cavar uma fossa no
confesso, a imagem de uma e irreprimíveis acessos de chão da adega. Em seguida,
coisa odiosa, abominável: a cólera, minha mulher - po- pensei em atirá-lo ao poço
imagem da forca! Oh, lúgu- bre dela! - não se queixava do quintal. Mudei de idéia e
bre e terrível máquina de nunca convertendo-se na decidi metê-lo num caixote,
horror e de crime, de agonia mais paciente e sofredora das como se fosse uma merca-
e de morte! vítimas. doria, na forma habitual,
fazendo com que um car-
Na verdade, naquele mo- Um dia, acompanhou-me, regador o retirasse da casa.
mento eu era um miserável para ajudar-me numa das Finalmente, tive uma idéia
_ um ser que ia além da tarefas domésticas, até o po- que me pareceu muito mais
própria miséria da huma- rão do velho edifício em que prática: resolvi emparedá-lo
nidade. Era uma besta-fera, nossa pobreza nos obrigava na adega, como faziam os
cujo irmão fora por mim a morar, O gato seguiu-nos monges da Idade Média com
desdenhosamente destruído... e, quase fazendo-me rolar as suas vítimas.
uma besta-fera que se engen- escada abaixo, me exasperou
drara em mim, homem feito

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Aquela adega se prestava O passo seguinte foi No quarto dia após o
muito bem para tal propó- procurar o animal que havia assassinato, uma caravana
sito. As paredes não haviam sido a causa de tão grande policial chegou, inesperada-
sido construídas com mui- desgraça, pois resolvera, fi- mente, a casa, e realizou, de
to cuidado e, pouco antes, nalmente, matá-lo. Se, naque- novo, rigorosa investigação.
haviam sido cobertas, em le momento, tivesse podido Seguro, no entanto, de que
toda a sua extensão, com um encontrá-lo, não haveria dú- ninguém descobriria jamais
reboco que a umidade impe- vida quanto à sua sorte: mas o lugar em que eu ocultara
dira de endurecer. Ademais, parece que o esperto animal o cadáver, não experimentei
havia uma saliência numa se alarmara ante a violência a menor perturbação. Os
das paredes, produzida por de minha cólera, e procurava policiais pediram-me que os
alguma chaminé ou lareira, não aparecer diante de mim acompanhasse em sua busca.
que fora tapada para que enquanto me encontrasse Não deixaram de esquadri-
se assemelhasse ao resto da naquele estado de espírito. nhar um canto sequer da
adega. Não duvidei de que Impossível descrever ou ima- casa. Por fim, pela terceira
poderia facilmente retirar os ginar o profundo e abenço- ou quarta vez, desceram
tijolos naquele lugar, intro- ado alívio que me causava novamente ao porão. Não me
duzir o corpo e recolocá-los a ausência de tão detestável alterei o mínimo que fosse.
do mesmo modo, sem que felino. Não apareceu também Meu coração batia calma-
nenhum olhar pudesse des- durante a noite _ e, assim, mente, como o de um ino-
cobrir nada que despertasse pela primeira vez, desde sua cente. Andei por todo o po-
suspeita. E não me enganei entrada em casa, consegui rão, de ponta a ponta. Com
em meus cálculos. Por meio dormir tranqüila e profun- os braços cruzados sobre o
de uma alavanca, desloquei damente. Sim, dormi mesmo peito, caminhava, calmamen-
facilmente os tijolos e ten- com o peso daquele assassí- te, de um lado para outro. A
do depositado o corpo, com nio sobre a minha alma. polícia estava inteiramente
cuidado, de encontro à pare- satisfeita e preparava-se para
de interior. Segurei-o nessa Transcorreram o segundo sair. O júbilo que me inunda-
posição, até poder recolocar, e o terceiro dia _ e o meu va o coração era forte demais
sem grande esforço, os tijolos algoz não apareceu. Pude para que pudesse contê-lo.
em seu lugar, tal como esta- respirar, novamente, como Ardia de desejo de dizer uma
vam anteriormente. Arranjei homem livre. O monstro, palavra, uma única palavra,
cimento, cal e areia e, com aterrorizado fugira para à guisa de triunfo, e também
toda a precaução possível, sempre de casa. Não toma- para tomar duplamente evi-
preparei uma argamassa que ria a vê-lo! Minha felicida- dente a minha inocência.
não se podia distinguir da de era infinita! A culpa de
anterior, cobrindo com ela, minha tenebrosa ação pouco _ Senhores _ disse, por
escrupulosamente, a nova me inquietava. Foram feitas fim, quando os policiais já
parede. Ao terminar, senti-me algumas investigações, mas subiam a escada _ , é para
satisfeito, pois tudo correra respondi prontamente a mim motivo de grande satis-
bem. A parede não apre- todas as perguntas. Procedeu- fação haver desfeito qualquer
sentava o menor sinal de se, também, a uma vistoria suspeita. Desejo a todos os
ter sido rebocada. Limpei o em minha casa, mas, natu- senhores ótima saúde e um
chão com o maior cuidado e, ralmente, nada podia ser pouco mais de cortesia. Diga-
lançando o olhar em tomo, descoberto. Eu considerava se de passagem, senhores,
disse, de mim para comigo: já como coisa certa a minha que esta é uma casa muito
“Pelo menos aqui, o meu tra- felicidade futura. bem construída... (Quase não
balho não foi em vão”. sabia o que dizia, em meu

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insopitável desejo de falar atacaram a parede, que caiu
com naturalidade.) Poderia, por terra. O cadáver, já em
mesmo, dizer que é uma casa adiantado estado de decom-
excelentemente construída. posição, e coberto de sangue
Estas paredes _ os senhores coagulado, apareceu, ereto,
já se vão? _ , estas paredes aos olhos dos presentes.
são de grande solidez.
Sobre sua cabeça, com a
Nessa altura, movido por boca vermelha dilatada e
pura e frenética fanfarro- o único olho chamejante,
nada, bati com força, com a achava-se pousado o ani-
bengala que tinha na mão, mal odioso, cuja astúcia me
justamente na parte da pa- levou ao assassínio e cuja voz
rede atrás da qual se achava reveladora me entregava ao
o corpo da esposa de meu carrasco. Eu havia empare-
coração. dado o monstro dentro da
tumba!
Que Deus me guarde e
livre das garras de Satanás!
Mal o eco das batidas mer-
gulhou no silêncio, uma voz
me respondeu do fundo da
tumba, primeiro com um
choro entrecortado e abafa-
do, como os soluços de uma
criança; depois, de repente,
com um grito prolongado,
estridente, contínuo, comple-
tamente anormal e inumano.
Um uivo, um grito agudo,
metade de horror, metade de
triunfo, como somente pode-
ria ter surgido do inferno, da
garganta dos condenados, em
sua agonia, e dos demônios
exultantes com a sua conde-
nação.

Quanto aos meus pen-


samentos, é loucura falar.
Sentindo-me desfalecer,
cambaleei até à parede opos-
ta. Durante um instante, o
grupo de policiais deteve-se
na escada, imobilizado pelo
terror. Decorrido um mo-
mento, doze braços vigorosos

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Tradução
THE RAVEN
Edgar Allan Poe

Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,


Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
`'Tis some visitor,' I muttered, `tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more.'

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,


And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels named Lenore -
Nameless here for evermore.

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O CORVO
Edgar Allan Poe
Tradução: Fernando Pessoa

http://www.flickr.com/photos/pagedooley/2787381665/sizes/o/
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,


E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

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And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
`'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more,'

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,


`Sir,' said I, `or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you' - here I opened wide the door; -
Darkness there, and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, `Lenore!'
This I whispered, and an echo murmured back the word, `Lenore!'
Merely this and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,


Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
`Surely,' said I, `surely that is something at my window lattice;
Let me see then, what thereat is, and this mystery explore -
Let my heart be still a moment and this mystery explore; -
'Tis the wind and nothing more!'

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,


By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
`Though thy crest be shorn and shaven, thou,' I said, `art sure no craven.

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Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,


"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,


Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,


Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,


Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura


Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,

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Ghastly grim and ancient raven wandering from the nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,


Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door -
Bird or beast above the sculptured bust above his chamber door,
With such name as `Nevermore.'

But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only,
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered `Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.'
Then the bird said, `Nevermore.'

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,


`Doubtless,' said I, `what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his hope that melancholy burden bore
Of "Never-nevermore."'

But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking `Nevermore.'

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing


To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!

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Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,


Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,


Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,


"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,


Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo


À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

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Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he has sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil! -


Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by horror haunted - tell me truly, I implore -
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil!


By that Heaven that bends above us - by that God we both adore -
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels named Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels named Lenore?'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Be that word our sign of parting, bird or fiend!' I shrieked upstarting -
`Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting


On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!

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Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!


Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!


Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!


Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda


No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

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Teoria Literária

O PRAZER DO
TERROR
Herny Alfred Bugalho

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As pessoas são atraídas questão. Exatamente por No Terror, buscamos a
para a Literatura por várias isto, somos atraídos por esta confrontação com aquilo que
razões, desde a mais pura e questão. nos inquieta e nos repele: a
descompromissada busca por A religião abrange a morte violenta, sangue, vísce-
divertimento até complexos morte pelo prisma da es- ras, o desconhecido, as trevas
anseios estéticos. perança. Em boa parte das e o sobrenatural.
Para leitores de gêneros religiões monoteístas (e em E deste confronto obtemos
leves, como romances ro- várias politeístas), a morte é o prazer do medo controla-
mânticos ou de aventura, a um umbral para uma outra do. Divertimo-nos com o que
motivação é quase eviden- existência, na qual usufruire- tememos porque sabemos
te: pomo-nos em lugar do mos de prazeres ou danação que aquilo ocorre ao outro,
mocinho ou da mocinha, de acordo com nossos atos seja ao personagem duma
torcemos por eles, identifi- durante a vida. O Terror, por narrativa literária ou cinema-
camo-nos com sua história, outro lado, apresenta a morte tográfica, seja ao protagonista
desejamos ser como eles. como o mistério que é. Nem duma narrativa oral, comu-
No entanto, no gênero de tudo em Terror precisa de mente contada por alguém
Terror, caminhamos por um explicação — fantasmas, que não está inserido no
terreno arenoso. Certamente zumbis, vampiros se manifes- enredo. Sentimos calafrios,
que a maioria dos leitores tam, superam e transcendem temos pesadelos à noite, mas
não gostaria de estar no a morte, desafiam a racionali- no íntimo nos contentamos
lugar do protagonista — o dade e os dogmas religiosos. por saber que aquilo não
qual muitas vezes é a vítima. Nem por isto a religião ocorreu conosco. O prazer
Tampouco podemos esperar e o Terror são excludentes. do Terror decorre por causa
que o leitor se identifique Cada uma apresenta uma do medo em potência.
com a causa do terror. O perspectiva sobre o assun- No entanto, assim como
Terror, em essência, é o que to — a religião buscando se dá com o humor, o terrí-
nos repele. É nesta repulsa certezas, enquanto o Terror vel se insere num contexto
que podemos encontrar a explora os pontos-cegos, as histórico e social. Os tabus
atração do gênero. incertezas. duma civilização nem sem-
O Terror trabalha com os Para Bataille, a morte pre correspondem aos tabus
medos essenciais da Humani- é o grande tabu, ao lado de outra. Numa sociedade
dade. Uma das características do sexo. Na verdade, tan- onde o canibalismo é acei-
fundamentais do ser humano to o sexo quanto a morte to, a cena dum ser humano
primitivo, em oposição a se aproximam, pois ambas devorando outro dificilmente
demais antropóides, é o culto representam o fim da indivi- causaria repulsa.
à morte. A compreensão da dualidade. No gozo orgástico, O gênero Terror exige
morte e a necessidade de al- perdemos a consciência de muito do escritor para a
gum tipo de ritual funerário nós mesmos, despersonaliza- obtenção dum efeito satis-
é um marco emblemático. mo-nos, na morte, perdemos fatório. Desta dificuldade
Desde então, a morte nossa identidade enquanto origina-se o amplo espectro
permanece um enigma. A sujeitos, deixamos de ser. de subgêneros do Terror, que
despeito de todos os dogmas Não é por acaso que em exploram desde a escatologia
religiosos, de crenças pesso- vários filmes de Terror, o mais grotesca — o trash —
ais, de explicações biológicas, assassino em série perse- até os que se enveredam em
a morte permanece um dos gue e executa quem possui sutilezas psicológicas.
grandes enigmas da exis- relações sexuais. Isto não Apesar de pouco explora-
tência. O que há para além é apenas um resquício da do entre autores lusófonos,
dela? Mero fim, ou início moral puritana, mas a íntima o Terror ilumina os precon-
http://www.flickr.com/photos/totemik/2376276117/sizes/l/

duma outra vida? relação entre duas instâncias ceitos, os valores e as crenças
biológicas que se mesclam à da comunidade na qual se
Não temos uma expli- dinâmica da vida e da orga-
cação definitiva para esta origina.
nização social.

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Crônica

UM SOM NO
ESCURO José Bispo

http://www.flickr.com/photos/onwuma/100626563/sizes/l/

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76
Nesse Setembro de 75, dois aparato, saltaram dos jipes
jovens portugueses, colegas em atitude de grande sanha
de profissão, aproveitavam as bélica e, sem darem tempo a
férias e um Dyane comprado qualquer explicação, gritaram
há pouco para espraiarem a que os suspeitos saíssem do
liberdade por paragens além- carro. Tensos. Os jovens saí-
fronteiras. Levavam uma ram, ofuscados pela luz forte
tenda canadiana e acampa- dos faróis, para logo ouvirem
vam onde calhava. Viajavam ordens de «manos en el aire!»,
ao sabor dos acontecimentos, quase abafadas pelo matra-
confiados nas benevolências quear metálico de muitas
do acaso. culatras puxadas atrás.

Em Vitória, já país basco, a Quem vos conta isto le-


notícia do dia era a morte de vantou as mãos lentamente,
mais um «carabinero». Pres- virou-se e apoiou-as no carro,
sentindo a morte iminente rodando o rosto para o lado
de Franco, os separatistas da contrário ao dos guardas,
ETA intensificavam o número para que nem o olhar pudes-
de atentados. se fornecer qualquer pretexto
ao nervosismo revanchista
Petiscaram num bar e vol- dos carabineiros. Durante
taram à estrada procurando uma eternidade de segundos,
um local para acampar. Uns esperou ser trespassado, se-
quilómetros à frente, encon- não por um sem-número de
traram um terreno plano ao balas à queima-roupa, com
lado da estrada e entraram. certeza por aquela que só
Ainda de faróis acesos e mo- obedece ao diabo e que é dis-
tor a trabalhar, foram rapi- parada até pelas espingardas
damente cercados por vários descarregadas.
guardas que iam a passar em
dois jipes. Tentaram explicar-
se em espanhol, mas, porque
falassem suficientemente
bem, porque a matrícula co-
meçava pelas mesmas letras
que as de Burgos, ou pela
ideia apetecível aos militares
de que tinham apanhado dois
terroristas, não estava a ser
fácil convencê-los da origem
lisboeta dos intrusos.

Nisto, chegaram mais


guardas comandados por um
graduado. Estes, nem dúvidas
tiveram. Ao verem aquele

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Crônica

NATIVITY IN BLACK
Volmar Camargo Junior
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78 SAMIZDAT agosto de 2008


78
Amanhece e uma notícia chorado novamente durante
macabra corre pela cidade. o enterro.
No início da noite anterior,
um bebê veio ao mundo,
mas é declarado morto pelo
O caso do bebê aconteceu
obstetra. Poucas horas depois,
de verdade. Para falar com
durante o velório, mergulha-
sinceridade, as histórias que
dos em profundo pesar e no
contaram em Canela sobre
frio silêncio da madrugada,
a criança ter chorado no
ouve-se o choro do bebê vin-
próprio velório ocorreram
do de dentro do caixão.
mesmo. É impossível não se
Ao longo do dia, o terror e sensibilizar com um caso
o desconforto dessa história assim: não só pelo sofrimento
bizarra alastraram-se de tal dos pais da criança, de uma
maneira que no telejornal moça e um rapaz que acaba-
do meio-dia, da emissora de ram de perder o bebê, mas
maior audiência, a manchete pelo repúdio e a revolta da
teve destaque entre outras população contra o hospital
tantas mortes. Durante a e os médicos que atenderam
tarde, nas repartições pú- este caso. O problema é que
blicas, nas empresas, bares, até o final daquele dia, das
esquinas, em todos os cantos, vinte e quatro horas seguin-
não se falava de outra coisa: tes aos fatos acontecidos,
o bebê não fora simplesmen- essa revolta era baseada na
te enterrado vivo, mas fora boataria. Queria-se pôr o
enterrado vivo com a ciência hospital abaixo sem dar um
dos médicos e enfermeiros direito de defesa aos outros
que atenderam a mãezinha à envolvidos.
hora do parto.
Não entro no mérito de
Cai sobre a cidade a es- quem teria começado. Talvez
curidão incômoda de uma o cadaverzinho jamais tenha-
noite úmida e fria. Nos lares, se movido, ou suspirado, ou
e novamente nos noticiários chorado como dizem. Mas
televisivos, o relato acres- alguém julgou ter percebido,
cido de todas as certezas e da vaga impressão à cer-
colhidas durante o dia: teza absoluta está o espaço
houve testemunhas de que a de um boato. E, se há nesse
criança suspirava enquanto boato um elemento repulsivo,
preparavam-na para deitá- bizarro, medonho, aí está o
la no minúsculo esquife. fermento para nascer uma
E que mexeu as perninhas crença. A realidade nasce,
quando tentaram reanimá-la não do conhecimento, mas
pela segunda vez. E até teria da crença.

www.samizdat-pt.blogspot.com 79
Poesia

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LABORATÓRIO POÉTICO
Poetrix Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

Enforcamento
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Ouço corações distantes, ouço muitos


Sou como este cadafalso, cego e mudo.

Cessa o rufar de tambores.

Vizinhaça do Cemitério
Rumorejam e choram jovens falecidos
Por obséquio, peço-vos silêncio.
Respeitem um velho defunto.

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80 SAMIZDAT agosto de 2008


80
Poesia

SONETO
Volmar Camargo Junior

A Noite do Levante

Levantemo-nos, ó gente morta!


Aguarda-nos a insurreição.
Daremos àqueles que andam
Inesperada lição.

Levantemo-nos, ó putrefados!
Os vivos querem diversão.
Esquecem-se que malfadados
Os tempos na Terra serão.

Miremos o terror nas frontes!


Saiamos desses mausoléus.
A noite é dos mortos errantes.

Vamos, que a treva é nos céus!


Vermelho já é o horizonte.
Colhamos os nossos troféus!

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82 SAMIZDAT agosto de 2008
82

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B R E O S AU TO R E S D A
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SAMIZDAT
SOBRE OS AUT
ORES DA

SAMIZDAT
SOBRE OS AUTORES DA

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SOBRE
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TORES
SAMIZ DA

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www.samizdat-pt.blogspot.com 83
83
s
erto Barro s-
Carlos Alb e nordestino
s, desenhi
fi l h o d m a d o ,
Paulistano
, ástico for
s e m p r e , artista pl s s i o n a l como
ta desd e v i da pro fi
a
Começ o u s u u seu ras-
escritor. t ã o , já deixo
, de s d e e n Culturais,
educador e a s e Centros
G’s, E s c o l pedagógi-
tro por ON s a r tísticos e
tra b a l h o influência
através de q u e têm forte
riê n c i a s organiza
cos – expe . A tualmente, a
sobre seus
es c r i t o s ças, estud
u s t r a ç ã o para crian e s c r e v e
il te e
oficinas de e m H i s t ória da Ar
çã o
pós-gradua ernet.
p u b l i c a ç ões na int
para
il.com
ador@hotma
carloseduc pot.com
nome.blogs
http://des

Giselle Sato
Giselle se autodefine apenas como uma contadora de his-
tórias carioca. Estudou Belas Artes e foi comissária de bordo
— cargo em que não fez muita arte, esperamos. Adora viajar
(felizmente!) e fala alguns idiomas.
Atualmente se diverte com a literatura, participando de
concursos e escrevendo para diversos sites pela net. Gosta de
retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam
a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente pa-
norama da sociedade em que vivemos, principalmente daquilo que é
comumente jogado
para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.
gisellesato@superig.com.br
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

Guilherme Rodrigues
Estudante Letras na
Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde
sempre morou. Nutre
grande paixão por Línguas,
Literatura e Lingüística,
áreas em que se dedica
cada vez mais.
garodrix@yahoo.com.br

o
Henry Alfred Bugalh
a pela UFPR, com
É formado em Filosofi ra e
pecialista em Literatu
http://bonfireblaze.files.wordpress.com/2007/12/grafiti_wall.jpg

ên fas e em Es tét ica . Es


as
atro romances e de du
História. Autor de qu
.
coletâneas de contos
Nova York, com sua
Mora, atualmen em te,
sua cachorrinha.
esposa Denise e Bia,
.com
henrybugalho@gmail
www.maosdevaca.com

84 SAMIZDAT agosto de 2008


84
Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão,
xadrezista e pintor amador,
licenciado recente em His-
tória da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita,
em Lisboa.

José Espírito Santo


ra e pós
Informático com licenciatu
ad e de Ciê ncias da
graduação na Faculd há largos
bo a, tra ba lha
Universidade de Lis
sultoria, sendo
anos em formação e con
ses de Dados, Sistemas
especialista em Ba
e Middleware de
de Gestão Transaccional
la escrita surgiu
“Messaging ”. A paixão pe
ano de 2007
recentemente, tendo no
ços” (contos) e
produzido os livros “Esbo
(poesia). Vive
“Onde termina esta praia” erca, uma pequena cidade
um pouco a norte de
em Po rtu gal em Alv
com a família
Lisboa. jjsanto@gmail.com
.blogspot.com/
http://www.riodeescrita

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Facul-
dade de Medicina da Univer-
sidade de São Paulo, trabalha
como psiquiatra e psicanalista.
Apaixonada por literatura e lín-
guas estrangeiras, lê sempre que
pode e brinca de escrever de vez
em quando. Paulistana convicta,
lo.
vive desde sempre em São Pau

marciasz@hotmail.com

Volmar Camargo Ju
nior é gaúcho. Form
em Letras pela Unive ado
rsidade de Cruz Alta,
leciona por sua próp não
ria vontade. Entrou na
em 2004, e desde en ECT
tão já morou em meia
de “Pereirópolis” pelo dúzia
Rio Grande. Atualm
vive com a esposa Na ente
tascha em Canela, na
Gaúcha. Dividem o ap Serra
artamento com Marie,
uma gata voluntario
sa e cínica.

v.camargo.junior@gm
http ail.com
:// re ca ntodasletras.uol.com
www.samizdat-pt.blogspot.com 85
.br/autore s/vcj
Também nesta edição,
textos de

Carlos Alberto Barros JRM Torres

Edgar Allan Poe José Espírito Santo

Giselle Natsu Sato Marcelo Galvão

Guilherme Rodrigues Marcia Szajnbok

Henry Alfred Bugalho Maristela Deves

Joaquim Bispo Volmar Camargo Junior

86 SAMIZDAT agosto de 2008


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