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A literatura hindu e a síntese do hinduísmo

Pedro Kupfer

Hinduísmo é o termo empregado hoje em dia para designar as instituições culturais, religiosas
e sociais da grande maioria da população indiana. O hinduísmo faz sua aparição no contexto
da civilização vêdica, durante o alvorecer da nação indiana.

Embora não exista uma data precisa a partir da qual possa se dizer que surge a civilização
hindu, poderíamos localizá-la entre o declínio da civilização vêdico-harappiana (2200-1900
a.C.) e o século VI a.C., a partir do qual possuímos registros escritos.

Não temos evidências históricas para o milênio anterior à época clássica na Índia, mas temos
abundante material nos planos filosófico e religioso. As primeiras escrituras do hinduísmo não
possuem uma data precisa, foram compostas e transmitidas oralmente durante um lapso de
tempo incerto antes de serem transcritas, embora a tradição oral (parampará) estivesse
largamente desenvolvida.

O termo hinduísmo não deve restringir-se apenas ao âmbito religioso, pois não seria uma
religião tal como se concebe no Ocidente: não possui um fundador, nem hierarquia, dogmas,
liturgia ou profetas. Aliás, nem sequer existe uma palavra para designar essa instituição em
sânscrito. A que mais se aproximaria é dharma, que se traduz mais precisamente como lei
humana ou social. Também não existe um termo para designar Deus.

Distinguimos quatro grandes momentos na formação do hinduísmo clássico:

1) O período vêdico (1400-500 a.C.), que compreende a transcrição para o nágarí de obras de
tradição oral que remontam à idade vêdica (7000-4000 a.C.): Vedas, Brahmánas, Upanishads
e Áranyakas, que formam a base de uma importante porção ulterior da filosofia hindu.

2) A literatura épica: o Mahabhárata, o Rámáyána e os Puránas, epopéias e escritos


mitológicos surgidos com anterioridade ao ano 3000 a.C. e transcritos para o nágarí entre os
séculos III a.C. e IV d.C.

3) A grande síntese hindu, momento em que começam a se configurar as seis escolas


filosóficas tradicionais (darshana), o dharma, o sistema de castas, o uso do sânscrito como
língua sagrada e a diferença entre Revelação (Shruti) e Tradição (Smriti), de 1400 a.C. até o
século V d.C.

4) O Bhakti Yoga ou hinduísmo devocional, que embora tenha raízes antigas, alcançou força
considerável entre os séculos VII e XVI d.C.

1) O período vêdico

A) O gênero mais antigo é o dos Vedas, uma coleção de hinos e fórmulas rituais através dos
quais o oficiante e harmonizava com as forças naturais. Embora de temática aparentemente
limitada, estes livros revelam-se obras primas do ponto de vista literário, dando-nos uma visão
global da cultura, dos valores e da forma de vida do povo vêdico.

Existem quatro Vedas: o Rig, o Sáma, o Yajur e o Atharva. O primitivo panteão hindu era
muito complexo e até contraditório, pois os diversos autores inseriram ao longo dos séculos
inúmeras concepções diferentes. Mesmo assim, podemos identificar claramente as diferentes
forças da Natureza encarnadas nestes deuses: Súrya, Vishnu e Savitr são divindades solares,
Agni personifica o fogo; Váyu relaciona-se com o vento, Rudra-Shiva é o deus terrível, Mitra e
Varuna são os conservadores da criação e Indra o deus guerreiro.

B) Os Brahmánas são tratados escritos pelos sacerdotes que versam sobre a prática litúrgica e
expõem a cosmogonia primitiva do Purushasukta: o nascimento do homem primordial através
de ascese extrema (tapas) e sacrifício, que garante a continuidade da criação através da
repetição do gesto criador.

C) Já nos Áranyakas (Livros da Floresta) e nas Upanishads (ensinamentos ouvidos aos pés de
um Mestre), os hindus passam a aplicar as técnicas contemplativas, havendo uma
transferência de interesses do mero ritual para a meditação.

Começam assim a questionar o universo, a natureza da realidade suprema, o porque da


existência humana e as relações entre essa realidade e o homem. Inferiram que a natureza
suprema é igual à natureza humana e que é possível alcançar a fusão dessas realidades
através das técnicas contemplativas. Há treze Upanishads reveladas (Shruti), das quais três
tratam do Yoga e descrevem técnicas de meditação: Svetáshwatara, Maitrí e Kena. Todas as
outras são posteriores, e pertencem à Tradição (Smriti).

2) A literatura épica

Ganha popularidade ao mesmo tempo em que se delineiam as principais tendências do


hinduísmo: o shivaísmo, o vaishnavismo e o culto de Shaktí nas suas diversas formas. As
epopéias mais importantes são o Mahabhárata e o Rámáyána. A primeira obra, O Grande
(Combate) dos Bháratas, é um poema épico escrito em 100.000 slokas, estrofes de dois ou
quatro versos, oito vezes maior do que a Ilíada e a Odisséia juntas. Descreve a cruenta
batalha renhida entre os Pándavas e seus primos Kauravas pelo reino de Bhárata.

Essa guerra, embora real, é uma verdadeira alegoria sobre o ser humano e a eterna
conflagração de poderes entre o bem e o mal. Posteriormente será acrescentada à sua
estrutura a Bhagavad Gítá, poema no qual o avatára Krishna, ensina ao príncipe guerreiro
Arjuna os princípios de três tipos de Yoga: Karma, Jñána e Bhakti Yoga.

O Rámáyána, ou Feitos de Ráma, que possui numerosas versões, conta as aventuras de Ráma
para resgatar a sua amada Sítá do seu raptor, o demônio Rávana. É necessário precisar que as
datas aqui mencionadas referem-se ao momento em que estas obras, de transmissão oral,
foram transcritas para pergaminhos ou folhas de palmeira (pushtaka).

Existem atualmente estudiosos que situam a origem do Veda e dos épicos na última era
glacial, ao redor de 8000 anos atrás. Paralelamente às epopéias surgem os dezoito Grandes e
os dezoito Pequenos Puránas, crônicas, mitos e lendas arquetípicos utilizados desde tempos
imemoriais como fonte de educação popular. Os Puránas e os épicos possuem para a nação
hindu o mesmo valor exemplar e a mesma importância que o Ocidente outorga à História.

3) A síntese hindu

É o momento em que se definem as grandes instituições e tendências filosóficas, no fim do


período upanishâdico. Neste período perfilam-se as seis grandes escolas de filosofia (darshana)
e outras instituições tradicionais: a concepção do sistema de castas (varna), os códigos da lei
(dharma) e a literatura sânscrita clássica, que inclui textos sobre fonética, gramática,
astronomia, matemática e outras ciências.

As epopéias (Mahabhárata, Rámáyána), Puránas (crônicas e mitos populares), Ágamas


(manuais de culto), Tantras (tratados filosóficos) e darshanas (pontos de vista filosóficos),
constituem a Tradição (Smriti), oposta e posterior à Revelação (Shruti), que inclui os Vedas,
Brahmánas, Áranyakas e as treze primeiras Upanishads.

Os seis darshanas, pontos de vista ou escolas filosóficas, formam três pares: Sámkhya/Yoga,
Nyáya/Vaisheshika e Mímánsá/Vedánta. O Sámkhya e o Yoga formam sem dúvida o par mais
antigo de darshanas, tendo suas raízes profundamente fincadas na Índia aborígene.
O Sámkhya (lit., número, discriminação) é uma filosofia especulativa de fundo dualista que
poderia ser definida como emanacionista: os seus vinte e quatro princípios (tattwa) formam
uma estrutura vertical, na qual cada elemento ou grupo de elementos emana dos anteriores, e
todos do par original Purusha/Prakriti. Através dos diferentes tattwas circulam três estados
(guna) que definem por interação todo o existente: sattwa (leveza, equilíbrio), rajas (ação,
emoção), e tamas (inércia, escuridão).

O Yoga é um conjunto sistematizado de técnicas que visam a alcançar o estado não


condicionado da hiperconsciência (samádhi). À diferença dos outros darshanas, que são
meramente especulativos, o Yoga utiliza práticas contemplativas para atingir o estado do não
condicionamento.

O Yoga está inextrincavelmente ligado ao Sámkhya, e faz suas as premissas deste último.
Antes de ser reconhecido como darshana, o Yoga já tinha alguns milênios de existência,
estando ligado ao Niríshvara Sámkhya, ou Sámkhya ateísta. A partir da sua inclusão na grande
síntese hindu, já com o status de darshana, passa a receber também o nome de Sêshwara
Sámkhya, ou Sámkhya teísta, pois reconhece a existência de um Princípio Criador que estava
fora das asserções do Sámkhya ateísta, mais antigo.

O Nyáya e o Vaisheshika são ramos separados da mesma escola, complementam-se entre si e


ficaram virtualmente amalgamados em um único sistema filosófico. Nyáya (penetrar,
compreender) é uma palavra que significa investigação analítica, e foi tomada em um sentido
menos amplo como lógica. Esta é a corrente que mais se aprofundou nos processos e leis do
pensamento, e baseia-se em compreensão exata e argumentação correta, estabelece uma
clara diferença entre matéria e espírito.

O Vaisheshika expõe o ponto de vista atomista, explicando a origem, a estrutura e a evolução


do Universo. O mundo material é composto de átomos (anu), unidades especiais, eternas e
imutáveis que se caracterizam apenas pela sua particularidade (vishêsha), donde o nome.

O Mímánsá (exame, forma, regra) ou Púrva Mímánsá não é um sistema filosófico propriamente
dito, mas um dogmático sistema de interpretação das escrituras vêdicas que versa sobre como
devem ser feitos os rituais e as cerimônias religiosas.

O Vedánta (o fim do Veda) é um darshana monista (adwaita ), que tem como objetivo acabar
com a ignorância metafísica. Está baseado na interpretação das Upanishads e propõe a teoria
da máyá (ilusão), segundo a qual o mundo não é real da forma como o percebemos. Também
recebe o nome de Uttara Mímánsá.

4) O hinduísmo devocional

O culto devocional (bhakta) de Shiva, Shaktí e Vishnu possui os seus próprios textos: os
Ágamas e os Tantras. O culto de Shiva e Vishnu já aparece nos épicos, sendo de grande
importância no sul da península indiana. Existem diversas correntes do shivaísmo e do
shaktismo que integram práticas do Yoga e do Tantra. Nelas reconhecemos formas de culto à
Natureza que remetem às populações proto-australóides da Índia pré-histórica.

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