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Condessa de Ségur
Infanto-Juvenil
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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur
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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur
A Minha Neta
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A partida
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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur
HELENA - Então vai a casa da tia saber se ele está pronto para partir
amanhã de madrugada.
João deitou a correr. Helena ficou à porta a olhá- lo. Quando deixou de
o ver, voltou para dentro, juntou as mãos num gesto de desespero, caiu de
joelhos e exclamou por entre lágrimas:
- Meu filho, meu querido Joãozinho! Também ele tem que partir e
deixar-me. Também ele vai correr mil perigos nesta viagem! Meu filho,
meu querido filho!. . . E eu tenho de esconder o meu desgosto, as minhas
lágrimas, para o encorajar! Devo parecer insensível à sua ausência,
quando o meu coração estremece de inquietação e de dor! Pobre filho! A
miséria obriga-me a mandá-lo para junto do irmão. Deus da bondade,
protegei-o! Maria, Mãe de Misericórdia, não o abandoneis, velai por ele!
A pobre mulher continuou a chorar durante algum tempo, depois
levantou-se, lavou os olhos, vermelhos de lágrimas, e esforçou-se por
parecer calma e tranquila quando João voltasse.
João andou rapidamente até à curva do caminho, enquanto a mãe o
podia avistar. Quando lhe pareceu que ela já o não via, parou, olhou
tristemente a estrada que acabava de percorrer, tudo o que o rodeava, e
pensou que, na manhã seguinte, passaria ali pela última vez. E pôs-se,
também, a chorar.
Mas depressa reagiu. Limpou os olhos, procurou distrair-se, pensando
no irmão de quem era muito amigo, e quando chegou a casa da sua tia
Mariana já estava bem-disposto. Quando ia a entrar deteve-se, assustado
e surpreendido. Ouvia gritos, gemidos, soluços. Transpôs a porta. Sua tia
estava sozinha e parecia descontente, mas decerto não fora ela quem
soltara os gritos e os gemidos que acabava de ouvir.
- És tu, Joãozinho? Que queres?
JOÃO - A mamã mandou-me saber se o Joanico estava pronto para
amanhã, minha tia. E se ele ia ficar esta noite lá a casa ou se ia amanhã
de madrugada, para partirmos juntos.
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TIA - Eu não posso com este rapaz. Há uma hora que está a berrar;
não quer obedecer-me. Já lhe disse mais de dez vezes que fosse ter
contigo. Andam as pedras? Assim anda ele. Ouve-lo gemer e chorar?
JOÃO - Então onde é que ele está, minha tia?
TIA - Está lá fora, atrás da casa. Vai procurá-lo, Joãozinho, e vê se
consegues trazê-lo.
João saiu, deu a volta à casa. Não viu ninguém nem ouviu mais nada.
Chamou:
- Joanico!
Mas Joanico não respondeu. Entrou novamente em casa.
TIA - Então, convenceste-o a ir contigo?
JOÃO - Não o vi, minha tia. Olhei para todos os lados, mas não o
encontrei.
TIA - Ora essa! Onde foi ele meter-se?
A tia saiu, deu a volta à casa, chamou e, como João, não encontrou
ninguém.
- Acaso terá fugido para te não acompanhar amanhã?
João estremeceu à ideia de fazer sozinho uma viagem tão comprida e
de andar sozinho em Paris, nessa cidade tão grande (tinha escrito o irmão)
que não era possível percorrê- la num só dia. Mas depressa se dominou e
resolveu encontrar o primo, ainda que tivesse de o procurar toda a noite.
Ele e a tia continuaram a procurar, sem resultado.
- Grande mau - murmurava ela. - Detestável criança! Se tu vais sem
ele, Joãozinho, e ele me aparece depois da tua partida, eu não o recebo,
pode ele ter a certeza.
Enquanto a tia falava, João, que procurava por toda a parte, lembrou-
se de espreitar num velho canil e viu o Joanico agachado lá ao fundo.
- Aqui está ele, aqui está ele! - gritou João. Vamos, Joanico, anda cá.
Joanico não se mexeu.
- Espera, eu o obrigo a sair do seu esconderijo
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é corajoso! Olha para a cara dele, tão alegre. O quê? Tens os olhos
vermelhos, Joãozinho! Que é isso? Um argueiro num olho?
João olhou para a mãe. Os seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Quis sorri, falar, mas o sorriso era um esgar e a voz não lhe podia sair da
garganta.
A mãe inclinou-se para ele, abraçou-o, e saiu para ir buscar lenha,
disse ela. Quando voltou, a boca sorria, mas os olhos tinham chorado.
Poisaram apenas um instante, com ansiedade, no rosto do filho esperando
que ele não se apercebesse do seu enorme desgosto.
Joãozinho observava-a, também com tristeza. Cruzaram os seus
olhares. Ambos compreenderam a dor que sentiam, o esforço que faziam
para a dissimular, e a necessidade de se incutirem, mutuamente,
coragem.
- Deus é bom, mamã. Ele nos protegerá! disse João, comovido. - E que
felicidade ter-me ensinado a escrever! Escrever-lhe-ei sempre que tenha
dinheiro para uma carta.
HELENA - E o senhor abade prometeu-me um postal todos os meses.
Mas agora temos aqui o nosso coelho que está a pedir: comei-me!
E sentaram-se à mesa.
- Belo coelho! - disse João, engolindo o último bocado.
- Que pena não haver mais! - suspirou Joanico.
- E com que prazer vocês comerão amanhã o que ficou! - disse
Helena, sorrindo.
JOÃO - O que ficou? Ainda há alguma coisa?
HELENA - Olá, e um bom bocado. As duas pernas, uma para cada um.
JOÃO – Mas, como foi isso? A mamã não comeu?
HELENA - Ai não, não comi! Não sou tão tola que não saboreie
semelhante petisco.
Dizia a verdade: tinha saboreado, realmente, visto ter-se servido da
cabeça e das patas. João quis ainda que ela explicasse que porção de
coelho comera, mas ela interrompeu-o.
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facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a
oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer
recebê-lo em nosso grupo.
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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur
O encontro
No dia seguinte, de madrugada, Helena levantou-se, fez dois
embrulhos com o farnel, meteu-os na trouxa da roupa e tratou do
pequeno-almoço. Ao pão seco, que era o habitual, juntou uma chávena de
leite quente. Por isso, quando os pequenos se levantaram, esta esplêndida
refeição dissipou a tristeza de João e as inquietações de Joanico.
A pequena dormia ainda.
Chegou o momento da separação. A tristeza apertava o coração de
todos. Helena abraçou dez vezes, cem vezes o seu querido Joãozinho.
Abraçou Joanico, abençoou os dois e mostrou a João algumas moedas que
tinha na algibeira.
- Os nossos amigos de Kérantré mandaram-te este peculiozinho, em
paga dos pequenos serviços que lhes prestaste, Joãozinho. O senhor
abade também aí pôs a sua moeda.
João quis agradecer, mas as palavras não lhe saíam da garganta.
Abraçou a mãe ainda com mais força, soluçou um instante e soltou-se-lhe
dos braços. Limpou os olhos e, como o irmão, pôs-se a caminho de sorriso
nos lábios e sem voltar a cabeça para lançar um último olhar à mãe e à
casa.
Agora compreendo - pensava ele - porque é que o Simão andava tão
depressa e não se voltou para nos ver e sorrir. Ele chorava e queria ocultar
as lágrimas à mamã.
Enquanto João se afastava rapidamente de tudo o que lhe era querido
e se encorajava, Joanico seguia-o a custo, choramingava, chamava o
companheiro, que o não ouvia, tremia por ficar para trás e desolava-se por
deixar uma tia que não estimava e uma região de que não tinha pena, a
fim de ir para uma cidade que detestava pela sua vastidão e para junto de
um primo que mal conhecia.
Tenho a certeza de que o Simão não se quer ralar comigo - pensava
ele. - Só há-de querer saber do João. Eu ficarei para o canto, sem ninguém
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que trate de mim. Como sou desgraçado! O João é muito mais feliz. Está
sempre alegre, sempre contente. Toda a gente gosta dele, todos lhe dizem
amabilidades. E a mim ninguém me olha sequer; e quando, por acaso, me
falam, é para chamarem chorão, desenxabido, aborrecido e outras coisas
assim. E querem que eu seja alegre? Tenho motivos para isso, realmente?
Tenho as algibeiras cheias! Dois francos que o senhor abade me deu! E
João tem tanto dinheiro que nem lhe sabe a conta! Todos lhe deram, disse
a tia. Eu sou muito desgraçado! Nada de bom me acontece!
Reflectindo e afligindo-se assim, Joanico atrasou o passo, sem dar por
isso. Quando voltou a si, levantou os olhos, olhou para diante, para trás, à
direita, à esquerda, e não viu o primo João. O medo foi tamanho que as
pernas lhe tremeram. Obrigado a parar, nem sequer teve forças para o
chamar.
Passado um bocado, deitou a correr para alcançar João. Numa das
voltas do caminho viu confusamente uma capelinha à beira da estrada e
ia passar adiante, sempre correndo, soprando e suando, quando ouviu
chamarem-no.
Reconheceu a voz de João e parou, alegre mas surpreendido, porque
o não via.
- Joanico - repetia a voz de João – vem estou aqui.
JOANICO - Onde estás tu? Não te vejo.
JOÃO - Na capela de Nossa Senhora.
- Ora essa! - disse Joanico, entrando. – Que fazes aí?
- Rezo - respondeu João. - Rezo e sinto-me consolado. Parece que
Nossa Senhora também confortou a mamã. Vejo sinais de lágrimas nos
teus olhos, pobre Joanico. Vem rezar e ficarás consolado como eu.
JOANICO - Por quem queres tu que eu reze? Não tenho mãe.
JOÃO - Reza pela tua tia, que te recolheu durante três anos.
JOANICO - Oh! A minha tia! Não vale a pena.
JOÃO - Não é bem assim, Joanico. Mas reza então por ti, se não queres
rezar pelos outros.
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JOANICO - Por mim? É inútil. Eu sou infeliz e faça o que fizer, hei-de
sê-lo sempre. Além de que tudo me é indiferente.
JOÃO - Tu és infeliz porque queres. A não ser eu ter mãe e tu não,
estamos nas mesmas condições. Eu considero-me feliz e tu lastimas-te por
tudo.
JOANICO - Nós não estamos nas mesmas condições: tu tens não sei
quanto dinheiro e eu só tenho dois francos.
JOÃO - Se a tua infelicidade consiste só nisso, depressa a faço
desaparecer, pois vou dividir o dinheiro contigo.
JOANICO (um pouco envergonhado) - Não, eu não disse isso. Não to
peço nem o queria.
JOÃO - Quem pede e quer sou eu. Nós vamos juntos, chegaremos
juntos e juntos ficaremos. É justo que gozemos juntos a bondade dos
nossos amigos.
E sem esperar mais, João tirou da algibeira a velha bolsa de couro
cheia de moedas que a mãe lhe tinha dado. Sentou-se à porta da capela,
obrigou Joanico a sentar-se ao pé dele, esvaziou a bolsa e começou a
divisão:
- Um franco para ti, um franco para mim.
E continuou assim, até que deixou nas mãos de Joanico metade do
seu tesouro.
Joanico agradeceu ao primo, um pouco confuso. Agarrou no dinheiro e
meteu-o na algibeira.
- Tenho mais dois francos do que tu - disse ele.
JOÃO - Como, se eu dividi ao meio?
JOANICO - Porque eu tinha dois francos que me deu o senhor abade.
JOÃO - Ah! É verdade! Estás mais rico do que eu. Bem vês que não és
tão infeliz como dizias.
JOANICO - Não sei. Eu tenho enguiço. Pode vir um ladrão e levar tudo
o que tenho.
- Nem tu supunhas ser tão bom profeta – disse uma voz forte por
detrás das crianças.
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O ladrão desmascara-se
As crianças seguiram o desconhecido. João agradecendo a Deus e a
Nossa Senhora o encontro com um ladrão tão bom, tão rico e tão
generoso, e Joanico lastimando o seu enguiço e invejando a boa sorte de
João.
Durante o percurso de légua que separava a capela da cidade, o
ladrão procurou fazer falar as crianças, sobretudo João, que lhe agradava
singularmente. Joanico, descontente por não ter tido, como o primo, uma
gratificação do ladrão, mal respondia e queixava-se da fadiga, do calor e
do comprimento da viagem.
DESCONHECIDO - Eu não te obrigo a seguir-me, choramingas. Fica
para trás, se queres.
JOANICO - Pois fico! Para os lobos me comerem!
DESCONHECIDO - Os lobos! No mês de Junho, à hora do Sol!
JOANICO - Não há Sol que os detenha. Os lobos não têm medo do Sol.
Ainda não há muito tempo que vi dois em Kermandio.
DESCONHECIDO - Tomaste cães por lobos, com certeza.
Após alguns instantes de silêncio, o desconhecido pôs-se a perguntar
a João pela mãe. O interesse que ele parecia ligar à conversa deu ânimo a
João, que disse:
- Quer o senhor prestar-me um grande favor?
DESCONHECIDO - Da melhor vontade, se puder, amigo. Mas porque
me fazes esse pedido, se mal me conheces?
JOÃO - Porque o senhor tem cara de boa pessoa. E porque vejo que se
interessa por mim, e é muito capaz de obsequiar de novo um pobre rapaz
como já obsequiou.
DESCONHECIDO (sorrindo) - Muito bem, meu amigo. Que favor é que
tu queres que te faça?
JOÃO - Olhe, meu senhor: é receber os vinte francos que me deu e
levá-los à minha mãe. Diga-lhe que é o seu Joãozinho que lhos manda, e
que foi o senhor quem lhos deu.
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A carroça e Kersac
João e Joanico caminharam algum tempo, sem dizer palavra.
- Ouve lá, João - disse por fim Joanico - quantos dias julgas tu que
serão precisos para chegarmos a Paris?
JOÃO - Não sei. Ainda me não lembrei de os contar.
JOANICO - Quantas léguas andaremos nós por dia?
JOÃO - Para aí cinco ou seis.
JOANICO - Mas isso não nos diz quantas léguas são daqui a Paris.
JOÃO - Podíamos ter perguntado ao senhor ladrão, ele ter-nos-ia dito.
JOANICO - Ele não sabe mais do que nós. Esta gente rica viaja de
carro e não sabe calcular distâncias.
Em frente de uma casa por onde tinham de passar, estava uma
carroça com o cavalo atrelado. Um homem saiu da casa e preparava-se
para subir para a carroça. João correu para ele, tirou delicadamente o
chapéu e perguntou:
- O senhor pode dizer-nos quantas léguas são daqui a Paris?
HOMEM - Daqui a Paris! Mas tu não vais até Paris, pois não, rapaz?
JOÃO - Perdão, meu senhor; eu e o Joanico vamos para lá para nos
juntarmos a Simão e ganharmos a nossa vida porque na aldeia não há
onde trabalhar; e nós queríamos saber se era muito longe, e quantos dias
nos faltam para lá chegar.
HOMEM - Ó meu Deus! Mas vocês terão de ir a pé?
JOÃO - Perdão, meu senhor; assim é preciso. Nós não temos meios
para ir numa bela carroça como o senhor.
HOMEM - Mas, desgraçadinhos: vocês sabem que daqui a Paris são
cento e vinte léguas?
JOÃO - É muito! Mas lá chegaremos, da mesma maneira. Muito
obrigado, meu senhor. Desculpe tê-lo incomodado.
HOMEM - Nada de incómodos, meu amigo. Mas, agora me lembro, eu
vou para Vannes. Subam para a carroça. O vosso caminho é este, e
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sempre adiantam quatro léguas, porque vocês não estão a mais de uma
légua de Auray.
JOÃO - Mil vezes obrigado, meu senhor; não é para recusar.
HOMEM - Então subam depressa e partamos. Não posso demorar-me.
João subiu rapidamente e obrigou a subir Joanico, que não tinha dito
uma palavra. João sentou-se ao pé do dono do carro, Joanico colocou-se no
canto mais afastado. O bom homem que acabava de recolher os pequenos
viajantes fustigou os cavalos e partiram a trote. João estava encantado,
nunca tinha andado tão depressa, Joanico parecia assustado. Agarrava-se
com todas as forças às grades da carroça. O condutor voltou-se e olhou
para Joanico.
HOMEM - O teu companheiro parece mudo!
João riu com vontade.
JOÃO - Mudo! Isso sim! Tem a língua bem desembaraçada. Não diz
nada, porque tem medo.
HOMEM - Medo de quem?
JOÃO - Não sei, meu senhor. Ele está sempre com medo. Joanico,
responde a este senhor, que tem a gentileza de se interessar por ti.
JOANICO - Que queres tu que eu diga? Não posso conversar quando
estou com medo.
JOÃO - Vê? Eu bem dizia.
HOMEM - E de que tens tu medo, palerma?
JOANICO - Tenho medo do seu cavalo, que corre a toda a brida, e
tenho medo de si também. Sei lá quem o senhor é!
HOMEM - O quê? Garoto velhaco! Então eu tenho a bondade de te
recolher na estrada, e tu atreves-te a insinuar que eu sou um maroto, um
ladrão, um assassino, talvez? Se não fosse o teu companheiro, fazia- te já
descer e deixava-te ir a pé que era bem o que merecias.
JOÃO - Perdoe-lhe, meu senhor! Ele não sabe o que diz quando tem
medo. É assim mesmo. Assusta-se com tudo e tudo lhe desagrada.
HOMEM - Não é como tu, não. Pareces-me um rapaz corajoso.
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O desastre
KERSAC - Deste-me sorte, rapaz! Fiz um negócio magnífico com os
meus leitões.
JOÃO - É Deus que o recompensa, meu senhor, da caridade que teve
connosco.
KERSAC - E é por isso que digo que me trouxeste sorte.
JOÃO - Só eu não, senhor. Metade foi o Joanico.
KERSAC - Oh! Oh! Julgas isso? Não tem cara de quem dâ sorte. Olha
para ele: dorme que nem um rato e mesmo a dormir se aborrece e se
zanga.
João voltou-se. Com efeito, Joanico tinha uma expressão tão irntada e
maçada, que ele não pôde deixar de rir. A sua alegria comunicou-se a
Kersac, que estava de bom humor, devido ao negócio dos leitõezinhos, e
os dois riram tão alto que Joanico acordou e pôs-se a olhar à sua volta.
- Que aconteceu? Porque é que estão a rir?
Por única resposta continuaram às gargalhadas, o que Joanico achou
de mau gosto. Voltou a deitar-se e a fechar os olhos, mas, de vez em
quando, abria-os para lançar um olhar irritado, que não fazia mais do que
excitar o riso de João e Kersac.
O cavalo trotava sempre. Kersac reparou que ele tinha bom pêlo, que
estava bem limpo e bem tratado.
- Sabes, rapaz, que me agradas muito? – disse ele a João. - Gostava
que ficasses comigo.
JOÃO - Oh! É impossível, meu senhor.
KERSAC - Porquê?
JOÃO - E o Joanico?
KERSAC - Ah É verdade O demónio do Joanico! Muito gostaria de ver-
te livre dele.
JOÃO - Ele não me incomoda, meu senhor, pelo contrário, eu sei que
lhe sou preciso.
KERSAC - Já ele não pode dizer outro tanto.
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culpa, dava-te uma sova que te fazia dançar até amanhã. Vai-te embora e
não apareças mais na minha frente, pássaro agoirento.
Joanico não esperou que lho repetisse. Ele também tinha pressa em
fugir aos olhares coléricos de Kersac, e refugiou-se no canto mais escuro
da cavalariça.
João havia chamado gente, para ajudarem Kersac a descer do cavalo.
Como era alto e forte, tiveram dificuldade em o levar para um quarto do
rés-do-chão que, felizmente, estava vago.
Depois de o doente se encontrar convenientemente instalado, João
sentou-se numa cadeira ao pé dele.
KERSAC - Então, que fazes tu aí? Não te vais deitar como o Joanico?
JOÃO - Vou-me deitar ao pé do senhor; dormirei muito bem numa
cadeira.
KERSAC - Estás doido? Passar a noite numa cadeira? Por causa da
torcedela de um pé? Vai-te deitar.
JOÃO - Mas o senhor não se pode levantar nem fazer-se ouvir. Se de
noite lhe falta alguma coisa?
KERSAC - Que queres tu que me falte? Vou dormir até de manhã. Vai-
te embora, boas noites.
João não disse nada, soprou a vela e fingiu que saía. Mas tornou a
entrar, sem fazer barulho, estendeu-se em cima de três cadeiras e não
tardou a adormecer.
A meio da noite João foi acordado pela extraordinária agitação de
Kersac, que gemia, se voltava, soprava como um búfalo, e que acabou por
dizer a meia- voz:
- Não devia ter mandado embora o João. Talvez ele me aliviasse.
- Estou aqui, meu senhor - disse João, aproximando-se da cama de
Kersac.
KERSAC - Como? Tu aqui? Desde quando?
JOÃO - Não cheguei a sair. Apenas fingi. Mas o senhor sofre. Que
posso fazer para o aliviar?
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Visita a Kérantré
Enquanto João e Joanico avançavam com uma velocidade que jamais
tinham calculado, Kersac dirigia-se para casa tão depressa quanto o
cavalo podia. Chegou a Vannes e demorou-se duas horas para regularizar
a compra dos leitõezinhos.
Retomou, em seguida, o caminho de Kérantré e não tardou a chegar e
a encontrar a casa de Helena, que reconheceu à primeira vista, depois da
descrição que João lhe tinha feito.
Vendo à beira do caminho, junto de um bosque, uma casita revestida
de hera, parou o cavalo e dirigiu-se a uma linda rapariguinha de cinco a
seis anos, que brincava em frente da casa:
- Não é aqui que mora a viúva Helena Dutec?
A pequenita levantou-se, olhou, sorriu e respondeu:
- Não sei, meu senhor.
- Como, não sabes? Não moras aqui?
PEQUENA - Sim, senhor. Estou muito contente, não penso mais na
mamã.
KERSAC - Sabes onde é a casa do Joãozinho?
PEQUENA - Sim, meu senhor. É aqui. Eu durmo na cama dele. Foi a
mamã do João que disse.
KERSAC - Mas não é a Sra Helena Dutec que mora aqui?
PEQUENA - Não sei, meu senhor.
KERSAC - Ela é que é tua mamã, penso eu, visto que dormes na cama
do teu irmão.
PEQUENA - Eu não tenho mamã e o João não é meu irmão.
KERSAC - Diacho da rapariga! Não compreendo nada do que ela diz.
Deve ser esta a casa do João. Será mais rápido descer e ir ver.
Kersac desceu, prendeu o cavalo a uma das árvores que estavam
perto da casa e entrou. Como não viu ninguém, atravessou toda a casa
acabando por sair por uma porta traseira, que dava para um quintalzito.
Avistou uma mulher a sachar um canteiro de couves.
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KERSAC - Minha boa senhora: sabe onde mora a Sra Helena Dutec?
A mulher ergueu-se rapidamente.
HELENA - Sou eu, senhor. Vem buscar a pequenita?
KERSAC - De maneira nenhuma. É a senhora que procuro. Prometi-o
ontem ao meu bom Joãozinho, e venho dar-lhe notícias dele.
HELENA - Entre, entre, meu senhor. Muito estimo vê-lo e ouvi-lo falar
do meu filho.
E grossas lágrimas lhe caíam dos olhos, enquanto fazia entrar Kersac
e procurava um banco para ele se sentar.
HELENA - O senhor desculpe recebê-lo tão mal.
KERSAC - Estou aqui muito bem, minha senhora. Deixei João e Joanico
ontem de manhã, em Malansac, a quinze léguas daqui. Ficaram muito
bem.
- Quinze léguas! - gritou Helena. - Como puderam eles andar tanto? Vi
ontem um senhor que os deixou em Auray às dez horas da manhã!
KERSAC - Para dizer a verdade, ajudei-os um pouco. Tenho uma
propriedade perto de Sant'Ana. Eu ia para Vannes e mandei-os subir para
a carroça. De Vannes fui a Malansac. Isto poupou-lhes mais seis léguas. Aí
dormimos. Meti-os no caminho de ferro. Devem ter chegado a Paris esta
manhã, às quatro horas.
HELENA - Já! A Paris! Como é possível?
KERSAC - Eu explico-lhe, Sra Helena. A esta hora estão eles com
Simão.
Kersac contou-lhe tudo o que se passara entre ele, João e Joanico,
sem nada omitir.
Quando acabou e explicou que tinha pago os bilhetes do caminho de
ferro, Helena não se conteve. Comovida e reconhecida, agarrou nas mãos
de Kersac e apertou-as nas suas contra o coração.
HELENA - Que Deus o abençoe, meu querido senhor! Que ele lhe
pague tudo o que fez pelo meu Joãozinho e pelo Joanico!
KERSAC - Oh! Quanto a esse, minha querida senhora, não tem nada
que me agradecer, porque não foi por ele nem por caridade que o tratei
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como ao nosso Joãozinho, mas para ser agradável a este. Tem um bom
filho, Sra Helena, e sinto muita vontade de lho pedir.
HELENA - Para quê, meu senhor?
KERSAC - Para o ter em casa, na herdade.
HELENA - Ele é ainda muito novo, meu senhor.
O irmão mandou-o ir para um serviço mais fácil. Quando for mais
velho, então terei muito gosto que vá para a casa do senhor.
KERSAC - E quem é esta pequena? João não me falou nela.
HELENA - Ele não a conhece, por assim dizer, meu senhor.
Helena deu um bocado de pão à criança e contou a Kersac o seu
encontro com a pequenita, na véspera da partida de João.
KERSAC - Não se inquiete com a pequenita, minha boa senhora, eu
darei providências.
HELENA - O senhor! Mas não me conhece! Pode julgar. . .
KERSAC - Conheço, conheço. Já a conhecia antes de a ver, e agora
conheço-a como se fossemos velhos amigos. Voltarei a vê-la. Percorro
muitas vezes a região, em negócios da minha propriedade. Passarei por
sua casa todas as vezes que tenha tempo. Até à vista!
Kersac cumprimentou Helena amigavelmente, acariciou a pobre
pequenita abandonada, pela qual já se interessava e foi soltar o cavalo.
Subiu para a carroça, e afastou-se rapidamente.
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SIMÃO - Não. Tu, Joanico, ficas muito perto daqui, na Rua Rivoli. E
perto do João, que ficará comigo.
JOÃO - Que serviço faremos nós?
SIMÃO - O serviço de um café é um bom lugar, mas fatigante.
JOÃO - Fatigante, porquê?
SIMÃO - Porque é preciso ser activo, vigilante, atento, para nada
quebrar, nem entornar. Farás bom serviço.
JOANICO - Eu também o faria.
SIMÃO - Tu? Tu não és suficientemente desembaraçado. Mandar-te-
iam logo embora.
Joanico não disse nada: amuou.
SIMÃO - Ah! Ah! Ah! Que cara fu fazes! Produziria bom efeito num
café! Todos os fregueses fugiriam para nunca mais voltarem!
Joanico ficou ainda mais aborrecido. Simão encolheu os ombros e riu.
- Sempre o mesmo! - disse ele. - Ah! São quase sete horas. É preciso
ir para o café, João. E tu, Joanico, vais-te apresentar ao teu patrão. Sê
muito delicado e alegra-te, porque um merceeiro deve ser brincalhão.
Simão tirou um pão do armário, cortou três grossas fatias, deu uma
a João, outra a Joanico, e meteu a terceira ao bolso. Desceram os cinco
andares e entraram num café muito asseado, muito bonito. João e Joanico
ficaram pasmados em frente dos espelhos, das cadeiras de veludo, das
mesas esculpidas, etc.
Enquanto eles admiravam, Simão foi falar ao dono do café, e voltou
pouco depois com um bocado de queijo e leite.
- Tomemos o pequeno-almoço - disse ele antes que chegue gente. E
depressa, porque há que fazer! É preciso limpar e arrumar tudo.
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PONTOIS - É jeitoso. Diga lá, Simão: quer trocar? Leve o outro e dê-me
esse.
SIMÃO - Não, não, Pontois, cada qual fica com o seu. Este é meu
irmão, Joanico é meu primo. Até à vista. Eu amanhã venho saber como vai
isto. Coragem, Joanico, não te atrapalhes com tão pouco. Até amanhã.
Joanico não respondeu; estava descontente com a diferença que
Simão estabelecia entre o irmão e o primo.
Nos primeiros dias, Joanico não fez outra coisa senão recados, e andar
na companhia dos empregados, que percorriam todos os bairros de Paris,
de maneira que ele começou a conhecer as ruas e os usos comerciais.
Por seu lado, João fazia a aprendizagem de criado de café. A sua
inteligência, alegria, boa vontade e delicadeza, depressa conquistaram as
boas graças dos fregueses. Gostavam de o fazer tagarelar e que ele os
servisse. Recebia com frequência boas gorjetas que entregava fielmente a
Simão. Este confiava no sucesso do irmão e à noite, no seu pequeno
quarto, os dois agradeciam a Deus tê-los juntado. João era feliz. Os seus
únicos momentos de tristeza eram aqueles em que a recordação da mãe o
perturbava. Algumas vezes uma lágrima humedecia-lhe os olhos, mas
depressa readquiria coragem, vendo o irmão tão feliz com a sua presença.
Uma vez, pelo meio-dia, um senhor entrou no café.
Era um homem novo, de boa figura, porte elegante, que examinava a
casa, os criados e a freguesia. Os seus olhos demoraram-se em Simão
com um ligeiro movimento de surpresa. Sentou-se a uma mesinha e
chamou:
-Rapaz!
Acorreu um dos criados.
- Não, meu amigo, não é a ti que eu quero. Quero o Simão.
O rapaz afastou-se, um pouco surpreendido, e advertiu Simão de que
um senhor o chamava.
SIMÃO - V. Ex. chamou? Que deseja?
DESCONHECIDO - Sim, foi a ti que chamei, Simão. Traz-me duas
costeletas e um ovo.
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A lição de dança
Tempos depois, o João disse, certa manhã, ao Sr. Abel, enquanto o
servia:
- O senhor gostava de ir a um baile?
SR. ABEL - A um baile? Não é para recusar. Que espécie de baile?
JOÃO - Um rico baile, meu senhor. Dança-se, e Simão já me ensinou
como se dançava. Á noite no nosso quarto, ensaiamo-nos. É muito
divertido, meu senhor. Vá! Sabe dançar?
SR. ABEL (com fingida tristeza) - Pobre de mim! Não sei. Se me
quisesses ensinar. . .
JOÃO - Da melhor vontade. Mas onde?
SR. ABEL - Aqui, entre as mesas. Não há ninguém.
JOÃO - Podem ver-nos lá de fora.
SR. ABEL - E se virem? Não é proibido dançar! Que mal faz?
JOÃO - Nenhum, senhor, certamente. . . Mas será um pouco esquisito
verem-nos dançar os dois. . . Não acha?
SR. ABEL - Ora! Eu tomo a responsabilidade. Se não gostarem, eu lhes
responderei. E se se rirem de nós, nós rimo-nos deles. Vamos, começa lá.
O Sr. Abel levantou-se e foi-se pór no meio do café, à espera. João
colocou-se em frente dele e começou a saltar, ou melhor, a espinotear,
atirando com os pés para diante, para trás, para a direita e para a
esquerda.
- Comece, meu senhor. . . Salte mais!. . . Mais alto ainda! Mais alto
ainda!. . . Atire o pé direito. . . e o pé esquerdo. . . para a frente. . . para
trás. . . Muito bem.
O Sr. Abel, que tinha começado a sorrir e com afectada falta de jeito,
acabou por se animar e rir de tal maneira, que os transeuntes se
aglomeraram às portas e às janelas.
João depressa compreendeu que o Sr. Abel podia ser seu mestre de
dança, dava saltos, piruetas, e fazia vários passos que João procurava,
inutilmente, imitar.
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Os fatos novos
No dia seguinte, quando o Sr. Abel foi almoçar ao café, João correu,
todo contente.
JOÃO - O senhor sabe o que nos aconteceu?
SR. ABEL – Não. Como queres tu que eu saiba?
JOÃO - Ontem à tarde um senhor perguntou pelo Simão e por mim.
Estava à nossa espera em casa do porteiro. O tal senhor disse que nos ia
tirar as medidas para nos fazer uns fatos novos. Simão recusou. . .
SR. ABEL (contrariado) - Porquê? Devia aceitar.
JOÃO - Ele não queria gastar tanto dinheiro!
SR. ABEL (da mesma forma) - Mas, se lhos davam.
JOÃO - Oh! Como foi que adivinhou? O tal senhor disse que tinha
ordem para nos vestir, que já estava tudo pago e não sei que mais. . . O
Simão hesitou e o tal senhor disse que tinha ordem de fazer os fatos,
senão que perdia o freguês. O Simão perguntou quem era ele e porque
fazia isso. O senhor disse que é um grande artista, um pintor, que é muito
bom e muito original, que nos viu um dia mal vestidos e que nos quer
bem-postos. Ele também disse que, se nós não o deixássemos fazer os
fatos, lhe faríamos perder o seu melhor cliente. Por fim, o Simão
consentiu. O tal senhor tirou-nos as medidas, traz-nos os fatos dentro de
dias, e nós estaremos que nem uns príncipes no baile do Sr. Amédée. Só
falta o calçado, a gravata e a roupa branca. Mas, quanto à roupa, o Simão
disse que abotoávamos os fatos para esconder a camisa e a gravata.
Assim já fica bem.
SR. ABEL - O alfaiate é imbecil! Como foi que ele não pensou na roupa
e nas botas?
JOÃO - Não injurie o pobre homem, senhor. Ele não teve culpa. Fez o
que lhe mandaram.
SR. ABEL - Tens razão. O outro é que é um estúpido, um imbecil.
JOÃO - Oh! Um senhor tão bom, que se interessa por nós sem nos
conhecer e nos faz tamanha esmola, com tanta bondade e tanta graça!
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SR. ABEL - Digo-te que é um animal. Quando se faz uma boa acção é
preciso não a deixar em meio. Que bonita figura vocês hão-de fazer, de
fatos elegantes, sapatos de aguadeiro e uma gravata de algodão aos
quadrados! E o chapéu? Pensaram nele?
JOÃO - Não, senhor. Mas não se anda de chapéu numa casa fina, onde
se dança. Eu e o Simão vamos sem chapéu. É tão perto! De mais a mais é
de noite.
O Sr. Abel almoçou num instante, naquele dia. Disse ao João que o
servisse sem demora, porque estava com pressa. João despachou-se. O Sr.
Abel também, de maneira que, um quarto de hora depois, saiu.
Simão e João viam Joanico cada vez menos, mas sabiam que ele ia ao
baile do Sr. Amédée.
JOÃO - Pobre Joanico! Ele tão mal vestido e nós tão bem!
SIMÃO - Diverte-se na mesma. Mas nós podíamos emprestar-lhe o teu
fato velho, ainda está muito bom.
JOÃO - E deve-lhe estar bem, porque somos da mesma estatura. Se
lhe fosse dizer?
SIMÃO - Vai, sim, mas não te demores. Pode vir gente.
JOÃO - É só o tempo de lhe dizer o que resolvemos e ele responder
sim ou não.
João saiu, a correr. Ao chegar à porta da mercearia, ouviu vozes
alteradas e não tardou a perceber que era o Sr. Pontois que ralhava
duramente com Joanico.
SR. PONTOIS - Digo-te que tenho a certeza. A minha mulher viu-te
tirar um punhado de tâmaras e de figos. Ela viu-tos comer.
JOANICO - Não, senhor. Eu tirei-os para os pôr na montra.
- Mentiroso! Ladrão! - gritava o Sr. Pontois. E, atirando-se a Joanico,
puxou-lhe os cabelos, deu-lhe bofetadas e pontapés e empurrou-o para o
fundo da loja.
SR. PONTOIS - É a décima, a centésima vez que me roubas, velhaco.
Se te apanho outra vez, ponho-te na rua como ladrão.
O Sr. Pontois foi-se embora, sem ver João, e deixou Joanico a chorar.
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ficar melhor e luvas que entravam sem esforço, porque João e Simão não
queriam ter as mãos apertadas.
O alfaiate levara o cuidado ao extremo de pôr lenços nos bolsos dos
casacos. Simão e João não sabiam como exprimir o seu reconhecimento.
Incumbiram o alfaiate de apresentar os agradecimentos mais afectuosos,
mais respeitosos, ao benfeitor desconhecido.
Quando o Sr. Abel chegou, João que o esperava com grande
impaciência, serviu-lhe o almoço.
JOÃO - Oh! Se soubesse como o Sr. Pintor é bom, ficava arrependido
do que disse no outro dia. O bom, o excelente Sr. Pintor pensou em tudo,
até lenços brancos e finos para nos assoarmos! Chapéus, peúgas, roupa,
luvas, nada nos falta, nada! Não comove tanta bondade? Sim, senhor, é
verdade o que lhe digo. Quando levámos as coisas para o nosso quarto,
Simão e eu ajoelhámos para pedir a Deus que abençoasse o Sr. Pintor. Não
há senão uma coisa que nos desgosta: é não podermos testemunhar- lhe o
nosso reconhecimento, o nosso vivo afecto. É um peso para o nosso
coração.
O Sr. Abel não comia. Escutava com visível enternecimento as
entusiásticas palavras de João, filhas do seu reconhecimento. Não
despregava os olhos dele um instante. Admirava o seu lindo rosto tornado
ainda mais belo pelo entusiasmo que lhe iluminava o olhar. Estava
surpreendido com a linguagem quase eloquente deste pobre camponesito
que, poucos meses antes, apenas falava a linguagem própria do campo.
João já não falava e o Sr. Abel olhava-o ainda. Pelo seu lado, João não
pensava nem no café nem no serviço. Inteiramente dominado pela
gratidão ficara imóvel, com os olhos húmidos, e toda a sua atitude
exprimia um profundo sentimento de gratidão e afecto.
- És bom rapaz: tens bom coração e sabes reconhecer o que te fazem,
João - disse, por fim, o Sr. Abel, apertando-lhe a mão com força. - E agora
traz-me o café bem quente.
João foi buscá-lo.
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- O senhor - disse ele quando voltou - não poderia saber, por esse
alfaiate, o nome do nosso generoso benfeitor? Gostava tanto de poder
agradecer-lhe!
ABEL - Talvez possa saber, meu amigo. Vou informar- me. E até à
noite, em casa do Sr. Amédée! chegarei um pouco tarde, pelas dez horas,
porque antes tenho que fazer. . .
O dia passou lentamente. A impaciência de Simão e João aumentava
à medida que se aproximava a hora do baile. O patrão deu-lhes licença
cedo. Jantaram à pressa e treparam ao seu quinto andar, ligeiros como
esquilos. Lavaram-se, pentearam-se com esmero. Depois começou a
grande toilette. A roupa branca e os fatos foram outra vez examinados,
admirados. João abraçava todas as peças que vestia. Combinaram não se
verem um ao outro enquanto não estivessem prontos.
- Acabaste? perguntou João.
SIMÃO - Ainda não. Espera um instante que eu vista o casaco.
A um sinal combinado, os dois irmãos voltaram-se e soltaram uma
exclamação de alegria.
JOÃO - Estás tão bonito, Simão! Pareces um senhor a valer!
SIMÃO - E tu?! Um príncipe não faria melhor figura!
JOÃO - Tens os cabelos tão lisos e tão bem arranjados!
SIMÃO - E que rica apresentação tu tens!
JOÃO - E como os teus pés parecem pequenos! E como estás
elegante! O bom, o excelente Sr. Pintor! Parece-me que, se o visse, não
poderia deixar de o abraçar.
SIMÃO - E eu? Apertava-lhe as mãos até lhe partir os ossos!
JOÃO (rindo) - Isso não! Não quero que lhe partas os ossos! Bonita
maneira de lhe provar o nosso reconhecimento!
SIMÃO (rindo) - É uma maneira de dizer, tu bem sabes. É apenas para
exprimir quanto estou feliz e reconhecido.
JOÃO - A menina Aimée vai achar-te de trás da orelha!
SIMÃO - Sim, ela nunca me viu tão bem vestido. Para dizer a verdade,
custava-me ir a este baile com o fato velho.
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contradança começa. Façam de conta que não há mais nada, mas, quase
no fim, eu digo: alto! Cada um de nós agarra imediatamente uma menina
e obriga-a a valsar, quer ela queira quer não. O último que chegar ao seu
lugar paga um ponche aos outros dançarinos.
DANÇARINO-E se a menina não souber valsar?
SR. ABEL - Tanto pior para o homem. É preciso que ele a obrigue a
valsar, melhor ou pior, até darem uma volta ao salão. Entremos e sejamos
discretos. Lembrem-se de que, embora ela grite, ou ofereça resistência, é
preciso dar uma volta ao salão, a valsar para ter direito ao ponche, e de
que o último a chegar é quem o paga.
Entraram no salão. Todos esperavam ter direito ao ponche, e nenhum
admitia a possibilidade de o pagar. Escolheram par. Havia mais rapazes do
que meninas, de maneira que as feias foram tão convidadas como as
bonitas. Joanico encontrou todas as meninas já comprometidas. Havia
apenas a ruiva gorda. Convidou-a.
Que me importa? - pensou ele - Mal dêem o sinal, agarro-me a uma
menina magra e leve e deixarei a gorda a quem tiver força para a levar.
Cada qual ocupou o seu lugar. Furrunfunfum, furrunfunfum, começou
a música, e a contradança também. As meninas, que esperavam qualquer
coisa extraordinária, admiravam-se de não verem nada e ficaram
contrariadas. Quando a contradança estava a acabar, o Sr. Abel disse:
alto! Os rapazes precipitaram-se para as meninas que preferiam, e que
outros não tinham ainda roubado. As meninas assustaram-se e resistiram,
os rapazes insistiram. As meninas procuravam fugir, as mães quiseram
intervir; a disputa tornou-se geral, e a confusão atingiu o cúmulo. Por fim,
a maior parte das meninas começou a compreender; a ordem
estabeleceu-se.
Já os pares tinham dado a volta a dançar, e ainda um continuava a
mover-se: era Joanico e a ruiva gorda. Abandonada por Joanico, ninguém a
tinha querido e Joanico, apresentando-se tarde a todas as outras meninas
e estremecendo à ideia de ter de pagar o ponche, considerou-se muito
feliz ao tornar a encontrar a ruiva gorda, que logo agarrou para valsar,
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Marotices de Joanico
Quando Joanico entrou em casa, apressou-se a tirar e a contar o
dinheiro que trazia na algibeira. Ele bem contou e bem procurou a moeda
de ouro que o desconhecido lhe dera. Ficou desesperado, contava com os
vinte francos para comprar o fato que Simão lhe emprestara. Chorou,
bateu com os punhos na cabeça, mas todo esse desespero não lhe
restituiu os vinte francos.
Depois de ter reflectido sobre o que devia fazer resolveu ir no dia
seguinte contar o caso a João, para, contando com o seu bom coração,
procurar enternecê-lo e fazer com que lhe desse os quatro francos do
ponche, que pagara. Esta esperança acalmou-o e dormiu
sossegadamente.
No dia seguinte, ainda cedo, Joanico aproveitou-se de um recado que
o patrão lhe mandou fazer para entrar no Café Métis e falar a João. Simão
estava presente, o que contrariou Joanico. Receava ele que Simão não se
deixasse impressionar como João, pelas suas choraminguices e súplicas.
Depois de ter esperado, inutilmente, que Simão se afastasse, decidiu-
se a falar:
- Sou muito infeliz - começou ele. - Tive ontem uma grande perda.
JOÃO - Uma perda? Tu? Que foi?
JOANICO - Eu queria comprar ao Simão o fato que ele me emprestou
ontem à noite, e metera na algibeira uma moeda de vinte francos para o
pagar; quando voltei para casa já a não tinha.
Simão fez um movimento como quem se ia a levantar da cadeira,
mas tornou a sentar-se e não disse nada. O Sr. Abel acabava de entrar e
fazia-lhe sinal para que se sentasse e deixasse falar João e Joanico, ambos
estavam de costas voltadas e não o podiam ver.
JOÃO - Vinte francos! Tu perdeste vinte francos? Pobre Joanico! Tenho
muita pena!
Não era isto o que Joanico pretendia. Ele esperava melhor do bom
coração do primo. E continuou.
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João tinha ouvido tudo, e compreendido: olhava para o Sr. Abel com
uma expressão particular. De repente, caminhou para ele, abraçou-lhe os
joelhos e exclamou.
- O senhor é que é o Sr. Pintor; o senhor é o nosso benfeitor, o
coração de ouro que nos quer bem. Adivinho-o. Tenho a certeza: é o
senhor. Sim, é o senhor! Deixe-me beijar-lhe as mãos e dizer-lhe quanto
gosto de si, quanto o respeito, com que ternura penso em si, como sou
feliz em encontrá-lo. Querido Sr. Abel! Simão será feliz graças ao senhor!
Que Deus o abençoe! Que Deus o proteja! Que Deus o recompense...
E desatou a soluçar.
O Sr. Abel, muito comovido, levantou-o, apertou-o nos braços, beijou-
lhe a testa, as faces banhadas de lágrimas, e estendeu a mão a Simão,
que a apertou nas suas e que, cedendo a uma atracção irresistível, a
beijou, curvando-se profundamente.
SR. ABEL - Estou descoberto! Não há meio de resistir à perspicácia
deste Joãozinho! Vocês têm-me dado momentos de muita felicidade,
patenteando-me os tesouros de duas belas almas sinceramente cristãs e
honestas! Não tenho pais, não tenho mulher nem filhos, portanto posso,
sem prejudicar ninguém, ter o prazer de vos fazer bem. Mas. . . aí vem
gente.
Levanta-te, Joãozinho, Simão, tu hás-de ter-me ao corrente dos teus
negócios - ajuntou o Sr. Abel, sorrindo e apertando-lhe a mão. E se te
falarem na tua fortuna, fica sabendo que já tens três mil francos em
obrigações do Caminho de Ferro de Leste e que em breve terás muito
mais.
SIMÃO - Oh! Senhor!
SR. ABEL - Chut. Está aí gente. Até amanhã meus filhos. Adeus,
Joãozinho, tu é que tens um coração de ouro. . . Silêncio! Até amanhã.
O Sr. Abel saiu, sentindo-se quase tão feliz como os seus dois
protegidos.
À noite, Simão e João subiram ao quarto para escreverem à mãe,
mas primeiro abraçaram-se e felicitaram-se. Rezaram juntos a Deus.
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- Que Deus nos faça assim egoístas, a todos nós, Sr. Kersac.
KERSAC - E notícias dos pequenos?
HELENA - Escreveram-me ambos, Sr. Kersac. O Sr. Abel tem sido
muito bom para eles. Ali está uma pessoa que tem um verdadeiro coração
de ouro, como diz o meu João.
E Helena contou a Kersac tudo o que o Sr. Abel tinha feito e
prometido, como arranjara a Simão um excelente casamento.
KERSAC - Mas, nesse caso, daqui a um ou dois anos, a senhora tem
de ir ao casamento.
HELENA - Eu, senhor! A um casamento a Paris? Que ia eu lá fazer,
meu Deus! E que figura a minha!
KERSAC - Deve ir. A mãe deve estar presente.
HELENA - A mãe sim, mas a madrasta não.
KERSAC - Como, a madrasta?
HELENA - Sim, meu senhor. Eu não tenho outro filho além do meu
Joãozinho. Quando casei com o meu marido, já o Simão tinha perto de
nove anos.
KERSAC - Aí está uma bela descoberta. Então que idade tem?
HELENA - Tenho trinta e três anos, meu senhor. Casei-me aos
dezassete.
KERSAC - Eu bem dizia comigo: “Esta mulher está muitíssimo bem
conservada! Quem diria que ela tem um filho de vinte e quatro anos!”. Ah!
Mas isso que me diz dá-me muito prazer, e já lhe digo porquê. Como sabe,
eu sou solteiro e preciso de uma mulher para a herdade, uma mulher que
dirija a casa, que trate da cozinha, enfim, que faça os serviços de uma
caseira. Até agora não tenho tido sorte. Não consegui ainda encontrar
uma mulher honesta, activa, inteligente, que zele pelos meus interesses e
que saiba administrar uma herdade. Pensei em si, mas dizia comigo: “Ela
tem um filho de vinte e quatro anos portanto, tem, pelo menos, quarenta e
um ou quarenta e dois anos. É tarde para começar.” E, afinal, tem apenas
trinta e três! Mas, é esplêndido! Vê, é Deus que atende a sua súplica, visto
que Lhe pediu que me fizesse feliz! E eu sou feliz! Não terei mais nada que
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recear, nem que vigiar, nem que ralhar. Tudo caminhará bem, quando eu
adoecer, trata de mim, quando me ausentar, toma a direcção de tudo.
- Mas - disse Helena, rindo - o senhor resolveu tudo isso sem saber se
eu posso, se conheço o serviço de uma herdade, se sei ordenhar uma vaca
e criar galinhas. Uma caseira deve saber tudo isso a fundo.
Kersac deteve-se, consternado.
- É verdade! E não sabe? Diga depressa acrescentou, com vivacidade,
vendo que ela hesitava.
HELENA - Sei, sim, senhor. Sou filha de um proprietário, trabalhei
numa herdade desde que me conheço. Só a deixei depois da morte do
meu pai e do meu marido.
KERSAC - Então por que demónio me assusta? Eu não lhe pergunto se
quer, visto que pode. Desde que se trata de me ser útil não hesitará,
tenho a certeza. Quando hei-de mandar-lhe uma carroça para fazer a
mudança?
HELENA - Quando quiser. Nada me prende aqui. Não se enganou,
supondo que eu consentiria. Terei muito prazer em lhe ser prestável e
darei graças a Deus por me proporcionar maneira de lhe mostrar o meu
reconhecimento.
KERSAC - Então, para a semana. Hoje é quinta, muda na próxima
segunda-feira.
HELENA - Estarei pronta.
KERSAC – Bem, está tudo resolvido. Estou satisfeito. Não lhe falo em
ordenado, há-de passar-lhe bastante dinheiro pelas mãos, mais do que o
preciso para os gastos. Ficará com o que entender e quiser. Não preciso de
lhe fixar a quantia, pois não receio que fique com muito.
HELENA - E a Mariazita?
KERSAC - Irá consigo.
HELENA - Isso será talvez incómodo para o senhor.
KERSAC - Incómodo? Nenhum. Quando ela fizer vinte e um anos,
adopto-a e caso-a com o João. Já tracei o meu plano. Como sabe, sou
egoísta. Disponho as minhas coisas como entendo. . .
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Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de
facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a
oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer
recebê-lo em nosso grupo.
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SR. ABEL - Aqui tens a tua nova casa. Vou apresentar-te aos teus
patrões.
O Sr. Abel e João subiram a escada, entraram primeiro numa sala, e
depois noutra onde a dona da casa estava sentada a uma secretária a
escrever.
- É o senhor, meu caro Abel! - disse ela, levantando-se. - E esse rapaz
é o seu amigo João, sem dúvida. Veja como eu o conheço, João. . . parece
assustado! O Sr. Abel deve ter-lhe dito que será bem tratado em minha
casa.
JOÃO - O Sr. Abel disse-me que V. Ex. a é muito boa, minha senhora.
Que todos aqui são muito bons e que há um menino muito doente, que é
um santinho.
A Sra Grignan estendeu as mãos ao Sr. Abel e disse:
- Obrigada, meu amigo, por ter falado assim do meu pobre Rogério.
Ele está ansioso por conhecê-lo, João. O Sr. Abel falou-lhe em si.
JOÃO - Também eu gostava muito de o ver, minha senhora.
SRA GRIGNAN - Pois bem, siga-me. Venha também, Abel. O Rogério
fica sempre muito contente quando o vê.
A Sra Grignan abriu uma porta e fê-los entrar num quarto onde
Rogério estava deitado. Mostrava um rostozinho pálido e magro, as mãos
e os braços não tinham senão a pele e o osso. Mal podia voltar a cabeça
no travesseiro, tão enfraquecido estava pelo sofrimento. Quando os viu
entrar, um sorriso doce e amável animou-lhe um instante a expressão.
- Meu querido Sr. Abel - disse em voz débil.
- Como é bom em me vir visitar!
SR. ABEL - Como te sentes, meu filho?
ROGÉRIO - Sofro muito desde ontem, mas não me lamento. Ofereço a
Deus o meu sofrimento e Ele ajuda-me.
João, admirado, enternecido, tinha os olhos cheios de lágrimas.
Rogério avistou-o e observou-o atentamente.
ROGÉRIO - Quem é esse rapaz? Parece-me boa pessoa.
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SR. ABEL - Fico, sim, meu filho. Minha querida senhora, tenha a
bondade de apresentar o João ao mordomo. Entrego- lho. Vai, João.
Bercuss te dirá o que tens a fazer. E até amanhã, no café, pela última vez.
Antes de sair, João beijou a mão descarnada da pobre criança, que
tão profundamente o tinha impressionado e enternecido. Rogério sorriu,
mas não teve forças nem para falar, nem para se mover.
João saiu com a Sr.a Grignan que, ao chegar à sala, teve um ataque
de choro. João via-a chorar com tristeza, mas não ousou falar.
- Pobre João, entra numa casa de sofrimento!disse a Sr. a Grignan.
JOÃO - Para mim é uma casa abençoada, minha senhora.
SRA GRlGNAN - Vem, João: vou levar-te ao Bercuss, que é uma
excelente pessoa.
Chamou Bercuss e apresentou-lhe João.
SRA GRIGNAN - Ponha este rapaz ao corrente da vida que levará em
nossa casa, Bercuss. Ele é bom e piedoso. Chorou e rezou junto do nosso
pobre menino.
Bercuss apertou a mão de João e levou-o, dizendo:
- O Sr. Abel falou-me muitas vezes em ti, João. Que é que sabes fazer?
JOÃO - Eu não sei nada, senhor. Nunca estive senão num café.
BERCUSS (sorrindo) - Já é alguma coisa! E, em qualquer caso, és
modesto, o que dá boa disposição para aprender as coisas e fazê-las bem.
JOÃO - Muito obrigado pelo incitamento que me dá. Hei-de obedecer-
lhe e esforçar-me por fazer tudo o que me mandar.
BERCUSS - Muito bem, meu amigo, muito bem. E diz-me, vais à missa
com regularidade?
JOÃO - No café não podia ir lá senão aos domingos, de madrugada. E
depois, à tarde, eu e o Simão íamos à igreja, cada um por sua vez.
BERCUSS - E rezas de manhã e à noite?
JOÃO - Oh! Então não havia de rezar? O Simão e eu rezávamos
sempre juntos. Depois o Simão abençoava-me em nome da mamã, e eu
abraçava-o. Era sempre o princípio e o fim dos nossos dias.
BERCUSS - Quem é o Simão?
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JOÃO - É o meu irmão mais velho. É um óptimo irmão! O Sr. Abel tem
sido tão bom para ele. Foi quem lhe arranjou o casamento e lhe deu tudo.
BERCUSS - Gostas muito do Sr. Abel?
JOÃO - Se gosto!
E os olhos de João brilharam.
JOÃO - Gosto muito dele! Era capaz de me deixar morrer por ele! O
dia em que me pudesse sacrificar por ele, seria o mais feliz da minha vida!
Se soubesse tudo o que tem feito por mim e pelo Simão, o senhor não me
perguntava se gosto dele! E quer crer que o Sr. Abel é muito meu amigo!
Sim, senhor, apesar de eu ser um pobre rapaz sem préstimo para nada,
que não pode nem nunca poderá fazer nada por ele, tem a bondade de
gostar de mim e aprecia a minha amizade. Querido Sr. Abel! Se eu ao
menos pudesse mostrar-lhe o que sinto! Mas não posso. Não encontro as
palavras necessárias. Além disso não me atrevo!
Bercuss cada vez estava mais contente. Quando João se foi embora, o
mordomo repetiu à Sra Grignan todas as suas palavras. Ela ficou satisfeita
e, por sua vez, contou-as a Abel.
No dia seguinte, quando Abel chegou ao café, Simão e João
apressaram-se a servi-lo pela última vez. Simão mostrava-se contente
com a sorte. Mas o pobre João parecia um condenado à morte. O seu olhar
era igualmente mortificado, quer se dirigisse ao Sr. Abel, quer a Simão.
Abel mostrava-se grave, quase triste.
O almoço não levou muito tempo.
- Adeus, meus bons amigos - disse Abel, levantando-se. - Olha, Simão:
serei uma das testemunhas de casamento. Dou-te antecipadamente o
meu presente de núpcias. E entregou-lhe uma pasta.
- E a ti, meu rapaz - acrescentou ele, voltando-se para João e
agarrando-lhe as mãos - não te digo adeus. Ainda hoje te tornarei a ver;
até logo. E cuida bem do Rogeriozinho, porque, em parte, é por causa dele
que vais para casa dos Srs. Grignan.
O Sr. Abel saudou os dois rapazes com um gesto e um sorriso, e saiu.
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João aperfeiçoa-se
Os companheiros de João eram todos criados bons e honestos.
Bercuss era estimado e respeitado não só por eles mas também pelas
pessoas que tinham relações íntimas com os patrões. Ele encarregou-se
de completar a educação de João. Incutiu-lhe hábitos que ele até então
nunca tivera.
O pobre Rogeriozinho ajudava, sem o saber, o aperfeiçoamento de
João. Mandava-o chamar muitas vezes e testemunhava-lhe amizade. Os
seus sofrimentos, suportados com tanta doçura, paciência e coragem,
impressionavam o coração sensível de João. As visitas quotidianas do Sr.
Abel, os seus bons conselhos, a sua bondade constante, desenvolveram
também o espírito e as ideias de João. Compreendeu melhor a sua
posição, relativamente aos patrões.
Pouco a pouco, os vestígios dos costumes aldeãos e simplórios
desapareceram. Com a experiência e a idade, tornou-se mais senhor dos
seus sentimentos. Sentia da mesma maneira, mas não se expandia tanto.
Aprendeu a calar o que a desigualdade de condições podia tornar ridículo
ou inconveniente. Não tornou a beijar as mãos do Sr. Abel, não se pôs
mais de joelhos, olhava-o menos frequentemente e menos
afectuosamente, mas no coração, tinha o mesmo ardor, a mesma
dedicação, a mesma ternura. João sentia-se feliz rodeado por
companheiros bons, ao serviço de patrões excelentes. Encontrava à sua
volta amizade, bondade, solicitude, enfim, a verdadeira fraternidade, que
é a caridade dos cristãos. Bem longe de lhe recusarem autorização para ir
ver Simão, provocavam o ensejo dos dois irmãos se encontrarem. Bercuss
preferia trabalhar pelos dois, para João poder ter uma manhã ou uma
tarde livres. Nunca lhe negavam autorização para ir à igreja, ou tratar de
assuntos pessoais, ou ver alguma coisa interessante, ou visitar os pobres.
Se adoecia, os companheiros tratavam-no como a um irmão. Os
patrões vigiavam para que nada lhe faltasse, e o Sr. Abel vinha informar-se
do seu estado e distraí-lo com o seu espírito alegre e amável.
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Não me demoro mais de três ou quatro dias. Vou escrever para saber
o dia do casamento e o hotel onde me hei-de hospedar para ficar perto
deles. Estamos na Primavera, já faz bom tempo. Será uma viagem muito
agradável, sob todos os aspectos. Gostaria muito de voltar a ver o nosso
João. Hei-de ver se consigo trazê-lo, para a senhora o ver também.
Helena corou de alegria e exclamou:
- Trazer-me o João? Ah! Se pudesse. . .
KERSAC - E porque não hei-de poder?
HELENA - Porque ele tem as suas obrigações. E bem sabe como é
aborrecida a ausência de um criado.
KERSAC - Em Paris, não é como cá. Têm muitos criados, revezam-se
uns aos outros! Não se dá pela saída de um só.
HELENA - Parece-me que isso depende das casas. Na da Sra Grignan,
onde está o João, cada um tem as suas obrigações. É uma casa como deve
ser, uma verdadeira casa de Deus, diz o João.
KERSAC - É possível, mas sempre vou tentar. Há perto de três anos
que não vê o seu filho. É muito justo que lho cedam por alguns dias.
Helena agradeceu, mas sem acreditar muito na felicidade que o bom
Kersac lhe prometia.
Dois dias depois Kersac recebeu resposta à sua carta. O casamento
era no dia um de Maio, e estava-se já nos últimos dias de Abril. Não havia
tempo a perder.
Helena apressou-se a arranjar- lhe o fato melhor, as camisas mais
finas, as botas mais luzidias. E meteu-lhe cem francos na bolsinha do
dinheiro, julgando que era mais que o suficiente para as suas despesas.
KERSAC (rindo) - Obrigado, minha boa Helena. Foi generosa. Quanto
me deu para me divertir?
HELENA - Mais do que o preciso, senhor. Cem francos.
KERSAC (rindo mais alto) - Cem francos! Pobre mulher! Cem francos!
Isso não chega nem para a viagem, se trouxer o João.
HELENA - Ora, a sua despesa não será grande! Não gasta nada com a
comida! Quando se vai a uma boda, come- se e bebe-se para oito dias!
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Kersac em Paris
Kersac chegou a Paris, de madrugada, e meteu-se num carro, como
lhe tinha dito Jõão. Foi para o hotel da Rua de Stº Honório, escolheu um
quarto no 6º andar, comeu copiosamente, preparou-se e, seguindo as
indicações da criada, dirigiu-se ao palácio da Sra Grignan. Eram oito horas
quando lá chegou.
- Quem é que o senhor procura? - perguntou o porteiro.
KERSAC - E quem hei-de procurar senão o meu João?
PORTEIRO - Que João, senhor?
KERSAC - Como? Que João? O que está nesta casa, evidentemente!
Não conheço outro, e nenhum vale tanto como ele.
PORTEIRO - Se quer ter o incómodo de entrar, eu vou prevenir o João.
Quem devo anunciar?
KERSAC – Kersac. O seu amigo Kersac.
PORTEIRO - Faça o favor de me seguir.
KERSAC - Da melhor vontade, meu amigo.
Kersac seguiu-o passo a passo. Chegou à escada, parou.
KERSAC (olhando para todos os lados) - Mas. . . por onde hei-de subir?
PORTEIRO - Pela escada que está na sua frente, senhor.
KERSAC- Sobre este tapete que vai por ela acima?
PORTEIRO (sorrindo) - Sim, senhor. Não há outro caminho.
KERSAC - Muito bem! Espere um bocado, o meu João não se importa. .
. E ele passa por cima disto todos os dias?
PORTEIRO (sorrindo) - Dez vezes, vinte vezes por dia, senhor.
KERSAC - Se tem algum jeito andar por cima de coisas tão boas! -
Kersac baixou-se, passou a mão pela passadeira. - É macio como veludo.
Faziam-se daqui esplêndidas mantas para cavalos, e cobertores
excelentes, de muito agasalho!
Kersac decidiu-se a pôr um pé, depois outro, em cima da bela
passadeira. Subiu lentamente, com respeito pelo lindo tecido, olhando, em
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KERSAC - Bem sei! Mas também não me vou casar com uma rapariga
de dezoito anos, como Simão. Escolho uma mulher da minha idade, pouco
mais ou menos.
JOÃO - E onde a vai descobrir?
KERSAC - Já descobri. A tua mãe!
JOÃO (surpreendido ao principio, e rindo em seguida) - A mamã! A
mamã! O senhor não pensa no que diz! A mamã tem uns trinta e quatro
anos!
KERSAC - E eu? Já tenho trinta e oito para trinta e nove. Bem vês,
João: eu preciso de alguém em quem deposite confiança para administrar
a herdade. Além disso, que seja uma pessoa boa e carinhosa, que eu
possa estimar, uma pessoa arranjada, económica, que me leve a fazer
economias. Que seja asseada, agradável, que não afugente quem vai à
herdade tratar de negócios comigo. Encontro todos estes predicados na
tua mãe. Ela parece mais nova do que é, mas isso não importa. É melhor
assim, do que se a tomassem por minha mãe. Isso desagrada-te, meu
amigo?
JOÃO - Como é que isso me podia desagradar? Pelo contrário, acho
que é uma felicidade, uma grande felicidade! Pobre mamã, que tem sido
tão infeliz! E Deus proporciona-lhe o ensejo de casar com um homem tão
excelente como o senhor! Meu caro Sr. Kersac! Nesse caso, vai ser meu
pai! Ah! Ah! Ah! Que engraçado!
KERSAC - Tu não pensavas em tal, nem eu, quando te levei na carroça
para Malansac. E queres acreditar uma coisa? Dediquei-me tanto a ti
nessa viagem, que comecei logo a estimar também a tua mãe. E a ideia
de casar com ela veio-me por tua causa, para poder tornar a ver-te, um
dia, e fazer-te feliz. Além disso, há-de haver uns três meses, pouco mais
ou menos, recebi uma carta assinada por um amigo, que me dizia: “Se
quer ser feliz, Sr. Kersac, e se é efectivamente o homem bom que eu julgo,
case com a mãe do seu amigo João, que bem o merece. Não terá de que
se arrepender.” Esta carta acabou de me decidir. Pensei no teu futuro, no
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meu, e disse com os meus botões: “Helena será minha mulher e João será
meu filho!”
JOÃO - Obrigado, obrigado. Mil vezes obrigado. Tive realmente muita
sorte em encontrar dois homens tão bons como o senhor e o Sr. Abel.
KERSAC - Muito gostava eu de ver o teu Sr. Abel. Já o estimo só de te
ouvir falar nele.
JOÃO - Deixe estar que lho hei-de dizer. Agora vou às minhas
obrigações. Não quero que o bom Bercuss se fatigue muito por minha
causa.
KERSAC - E eu vou contigo, não te deixo um instante. Já te olho como
se fosses meu filho. Mas não digas nada do que contei senão ao Simão.
Não quero que se riam de mim.
JOÃO - Deixe dizer só ao Sr. Abel. Costumo contar-lhe o que me diz
respeito.
KERSAC - A ele podes dizer. Até eu lho dizia, se o visse.
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ROGÉRIO - Sr. Kersac, o João gosta muito de si. Vejo que tem razão. O
senhor é temente a Deus. Rezarei também por si.
E vendo uma lágrima na face de Kersac:
- Não chore por mim, Sr. Kersac! Cumpro a vontade de Deus e sei que
Ele me leva em breve para Si. Serei tão feliz, tão feliz que não pensarei
mais nas minhas dores.
Rogério descansou um instante. Depois adormeceu.
Kersac saiu com João. Ao atravessar a sala, não disse uma palavra
nem fez reparo em coisa nenhuma. Quando chegou ao quarto, sentou-se e
limpou os olhos às costas das mãos.
KERSAC - Nunca me impressionei tanto como agora ao pé desta pobre
criança. Senti-me comovido até ao fundo da alma! Uma criaturinha doente
e tão meiga, tão tranquila, tão feliz! E depois, a pobre mãe. . . Chora mas
não se lastima! E tudo tão calmo, e a morte tão perto! Nunca esquecerei
os instantes que passei junto dele! Se me tivessem deixado, teria lá ficado
horas.
João procurou distraí-lo e começou a contar-lhe os ditos encantadores
do Rogeriozinho, depois as suas aventuras.
Kersac ria com vontade quando Bercuss os veio chamar para comer.
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pena de a deixar. Que ela é muito boa, muito delicada, e estou convencido
de que vamos ser felizes.
SIMÃO - Então a mãe ainda não sabe nada?
KERSAC - Nem uma palavra.
SIMÃO - E se ela não quer?
KERSAC - O quê? Que é que tu dizes? Se não quiser? Demónio! Não
tinha pensado nisso! Pois bem, se ela não quiser... terei um grande
desgosto!. . . Sim, sim, será uma grande desgraça para a herdade e para
mim. Nunca poderei substituí-la. Que demónio de ideia tu tiveste, Simão!
Não tornarei a ter um momento de descanso, até chegar a casa! Mais uma
razão para não me demorar em Paris.
SIMÃO (sorrindo) - Tranquilize-se, meu querido amigo. Isto é apenas
uma hipótese. Porque havia ela de se recusar a casar consigo, se gosta
tanto de si e é tão feliz em sua casa? Esteja descansado, o senhor será o
nosso pai.
KERSAC - É possível, mas. . . não é certo. Diz-me cá, Simão: quando é
a tua boda?
SIMÃO - Depois de amanhã, Sr. Kersac. Amanhã de manhã quero ir a
casa do Sr. Abel para combinar tudo com ele.
KERSAC - Depois de amanhã é a boda. No dia seguinte à tarde vou-
me embora, para chegar a Sant'Ana de manhã cedinho.
SIMÃO - Já?
KERSAC - Assim é preciso, meu rapaz! Numa herdade o tempo que se
perde não se recupera. E depois. . . tenho de ir!
Conversaram durante algum tempo. Kersac disse que gostava de ver
a menina Aimée. Simão apresentou-o aos futuros sogros e à noiva. Kersac
sacudiu o braço do Sr. Amédée até quase o deslocar no ombro e apertou a
mão à Sra Amédée até lhe magoar os dedos. Quanto à menina Aimée,
quando ela lhe estendeu a mão, disse-lhe:
- Nada disso, nada disso! Na minha terra os padrinhos abraçam a
noiva.
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rica - tem para aí uma despesa de cem mil francos por ano. . . Já vêem se
o intendente tem ou não um bom pé-de-meia.
João estava indignado e ia protestar, mas Kersac tocou-lhe com o
cotovelo e deixou Joanico beber e falar mais.
KERSAC - O que tu fazes não é nenhuma parvoíce. Mas não vejo o que
é que ganhas com isso.
JOANICO - Ao princípio não era grande coisa, não. Uma moeda de
cinco ou dez francos, lá de quando em quando. . . Mas depois de me
habituar ao negócio, comecei a tratar de mim. . .
KERSAC - Como?
JOANICO - Entendi-me com os fornecedores. Consegui que, em vez de
abaterem vinte e cinco por cento, abatam trinta. Dou os vinte e cincfo ao
Sr. Boissec e guardo o resto.
KERSAC - Mas porque é que o Sr. Boissec não trata desses negócios?
Ele não desconfia de ti?
JOANICO - Não quer tratar deles para não ser apanhado. No caso de
se descobrir a marosca, faz recair tudo em cima de mim, põe-me na rua
como ladrão, e o patrão fica contente porque julga que o Sr. Boissec é um
modelo de probidade.
KERSAC - E tu? Ficas no meio da rua?
JOANICO - Oh! Não! Ele depressa me coloca noutra casa boa, e dá de
mim as melhores referências. Enquanto estiver desempregado, ele
sustenta-me, senão ponho tudo em pratos limpos. E lá isso de ele
desconfiar de mim, não sei se desconfia ou não. O certo é que o não dá a
entender. Não se atreve.
KERSAC - Que mal podias tu fazer-lhe?
JOANICO - Que mal? Denunciá-lo aos patrões, fazer de conta que me
sinto indignado, que sou um homem honesto, dedicado à casa, e que não
posso mais vê-los enganados por um ladrão. E há ainda outro meio: é
escrever uma carta anónima, lastimando o pobre rapaz (que sou eu) que
se vê obrigado, pela miséria, a auxiliar estas roubalheiras que o revoltam.
João não pôde mais.
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As compras de Kersac
Kersac e João entraram na loja de um ourives que, felizmente, era um
homem honrado, e não se aproveitou da ingenuidade e da ignorância
acerca dos preços das jóias, para os explorar.
Depois de muitas hesitações, acabaram por escoIher um fio de ouro.
Kersac pagou, guardou o estojo no bolso do colete, agradeceu e perguntou
onde podia adquirir um xaile. O ourives indicou-lhe um magnífico
armazém.
Quando entraram nesse armazém, Kersac não pôde acreditar no que
os seus olhos viam. O tamanho, a beleza da casa, a profusão de artigos de
todas as espécies, deslumbraram-no e não o deixavam entrar. E só depois
de muitas instâncias dos caixeiros, que perguntavam: “Que desejam os
senhores?” é que Kersac conseguiu articular: “Um xaile.”
CAIXEIRO - Que qualidade de xaile quer o senhor?
KERSAC - De boa qualidade.
CAIXEIRO (sorrindo) - Sem dúvida. Mas quer da Índia, inglês ou
francês?
KERSAC - Francês, francês. Não gosto dos ingleses e, com franqueza,
de nenhum país estrangeiro. O que é francês para mim vale mais do que
tudo.
O caixeiro guiou Kersac e João durante quase um quarto de hora,
antes de chegarem à secção de xailes.
- É aqui - disse ele por fim. - Brindé! Traz cadeiras para estes
senhores.
Brindé apressou-se a trazer duas cadeiras estofadas de veludo.
Kersac passou-lhes a mão por cima e sentou-se à bordinha, com medo de
amachucar o lindo veludo azul. João, mais habituado ao veludo e à seda,
sentou-se com menos respeito e precaução. Trouxeram os xailes. Kersac
achava-os todos magníficos, mas passava sempre a outro e não se decidia
por nenhum. O caixeiro, vendo a ingénua admiração de Kersac e João,
perguntou-lhes para que era o xaile.
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A boda
No dia seguinte, o Sr. Abel recebeu Simão, João e Kersac.
Combinaram tudo.
- Não tens que pensar em coisa nenhuma, Simão! Lá irá ter um carro,
à porta, para os Srs. Amédée e a noiva. O Sr. Kersac vai contigo. E haverá
mais carros para o João e a tua futura família. Depois da cerimónia do
casamento, almoçamos em casa do Sr. Amédée. Ás quatro horas juntamo-
nos todos na estação do caminho de ferro. Eu encarrego-me do resto.
Bilhetes, jantar, divertimentos, baile, regresso, é tudo comigo. Simão, aqui
tens os presentes que é costume o noivo dar à noiva e aos irmãos. Tu,
João, tens aqui os presentes que deves dar a Simão e à tua cunhada.
JOÃO - Muito obrigado, meu senhor, muito obrigado! Podemos ver?
SR. ABEL - Sem dúvida. Olhem.
Os presentes de Simão para a futura mulher e cunhada eram lindos
relógios com as respectivas cadeias. Para João era uma caixa. Ao abri-la,
os dois irmãos soltaram um grito de alegria. Continha duas miniaturas a
óleo, feitas pelo talentoso pintor Abel. Uma representava Simão, e a outra
o próprio pintor.
João não se conteve. Precipitou-se para o Sr. Abel e abraçou-o
afectuosamente.
Passados os primeiros momentos de alegria, João correu para os
presentes que ele próprio devia dar. Para Simão era o retrato flagrante de
João. Para Aimée era uma linda pulseira de ouro com a miniatura de Simão
no fecho.
João não cabia em si de contente. Ter em sua casa, pertencerem-lhe,
os retratos das duas pessoas que ele mais estimava no Mundo, e estes
retratos serem feitos por aquela mão tão querida, era para ele o ideal. Não
deixava de os olhar, de os beijar. Diante desta alegria todas as outras
desapareciam.
Era preciso retirarem-se e deixar o Sr. Abel descansado. Já tinha
passado a hora do seu almoço.
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- Até amanhã em casa da noiva, meus amigos. A ti, ainda hoje te vejo
em casa dos meus amigos Grignan, João. Vou lá jantar, como de costume.
Apertou-lhes as mãos e saiu, a cantar. Os amigos desceram também
com os seus tesouros. Combinairam levar sem mais demora os presentes
a Aimée.
Encontraram-na com a mãe nos preparativos do almoço do dia
seguinte. Primeiro ofereceu Simão o seu presente, depois João e depois o
Sr. Kersac. Nem Aimée nem Simão esperavam este último presente.
Cumularam Kersac de agradecimentos e de elogios pelo seu bom gosto. A
Sra Amédée pôs o fio ao pescoço da filha para ver o efeito que ele fazia.
Pouco depois Kersac e João retiraram-se. Deram uma grande volta e
Kersac ficou encantado com as belezas de Paris.
O dia passou-se mais ou menos como o anterior, entre o serviço, as
visitas a Rogeriozinho e as voltas pela cidade. No dia seguinte, Kersac e
João vestiram-se a primor. O Sr. Abel tinha dado a João um fato novo para
a boda. Antes de saírem foram-se mostrar a Rogério, que gostou muito de
os ver.
JOÃO - Menino Rogério, venho pedir-lhe que reze pela felicidade de
meu irmão.
- E pela minha, meu querido menino – disse Kersac. - Peça a Deus que
eu e minha mulher sejamos felizes, e que continuemos a ser pessoas
dignas e bons cristãos.
ROGÉRIO - Não esquecerei, Sr. Kersac. Pensarei em si e em João. Deus
há-de abençoá-los. Desejo que sejam muito felizes!
Kersac e João beijaram as mãozinhas do doente e retiraram-se.
- Mamã - disse Rogério - gosto muito do Sr. Kersac: parece-me que ele
é quase tão bom como o meu querido Sr. Abel e João. Dê-lhes, a todos os
três, uma recordação minha. Um dos livros de que tanto gosto.
A pobre senhora encheu-se de coragem para lhe prometer que
cumpriria o seu desejo.
Kersac e João foram os primeiros a chegar a casa de Simão. As
testemunhas de Aimée e as amigas apareceram pouco depois. O Sr. Abel
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carros oferecidos pelo Sr. Abel. Kersac preparava-se para recomeçar o seu
exame ao cavalo.
- Belo pêlo! - começou ele. - Baio vermelho! Bonito pescoço! Belo
peito, bem desenvolvido!
SR. ABEL - Suba, suba, meu caro! Desta vez não podemos chegar
atrasados. Faríamos falta na igreja. Lembre-se de que tenho de dar o
braço à Sra Amédée.
Kersac subiu, mas não despregou os olhos do cavalo. A entrada na
igreja foi bela e majestosa. A noiva era bonita, o noivo era simpático, os
pais estavam bem conservados, as testemunhas eram escolhidas. O Sr.
Abel e as suas condecorações atraíam todos os olhares.
A cerimónia não se arrastou por muito tempo. Na sacristia
cumprimentaram-se e abraçaram-se. O Sr. Abel teve de suportar os
elogios dos mais exaltados. Outra pessoa estaria embaraçada, mas o Sr.
Abel ria de tudo, tinha resposta para tudo. Kersac, um pouco pesado, um
pouco forte, não estava à sua vontade. Ao ver-se só no meio desta gente
que se conhecia, que se sentia em família, desejou esquivar-se. Diversas
vezes procurou sair da sacristia, mas impediam-lhe sempre a passagem.
Por fim, lá furou e desapareceu.
No momento de partir, Abel procurou Kersac, mas em vão. Nem as
pesquisas na igreja, nem os chamamentos cá fora, tiveram o condão de o
fazer aparecer. Já os recém-casados tinham seguido para casa, os
convidados apressavam-se, por causa do almoço, e o Sr. Abel,
acompanhado pelo João, continuava à procura do carro e de Kersac, em
vão, por todo o lado.
SR. ABEL - Ter-se-ia ido embora sem esperar por nós?
JOÃO - Não me parece. Além disso, o cocheiro não o consentiria.
SR. ABEL - Para te dizer a verdade, não sei o que hei-de pensar. O que
é evidente é que não vemos nem carro nem Kersac. Vem daí, vamos a pé,
mesmo com os nossos fatos de cerimónia. Felizmente não é longe.
Estavam para se meter ao caminho, quando a carruagem chegou a
trote. Kersac vinha na almofada ao lado do cocheiro.
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SR. ABEL - Onde demónio foram vocês? Porque não esperaram por
mim, Julião?
JULIÃO - Peço desculpa a V. Exa. Julguei que voltasse a tempo.
KERSAC - Não ralhe, Sr. Abel. A culpa foi minha. Enquanto o senhor
dava os parabéns e cumprimentava. . .
- Subamos - disse o Sr. Abel. - No carro me explica.
KERSAC - Dizia eu, enquanto faziam as suas vénias e se abraçavam,
eu, que já ontem fiz todos os cumprimentos, saí, para examinar a valer o
seu belo cavalo. Quanto mais o via, mais o admirava. Estava morto por
guiá- lo. E vai, disse ao cocheiro:
- Se nós déssemos uma volta onde ele pudesse trotar à vontade?
E o cocheiro disse:
- O patrão pode sair e não nos encontrar. Ele é bom patrão, e eu não
gosto de o descontentar.
E eu disse:
- Ora! Eles ainda se demoram meia hora! E em meia hora vai-se
longe, com um animal como este.
Bem percebi que o cocheiro estava lisonjeado. Ele via que era um
conhecedor que admirava o animal. Vi-o hesitar e, palavra, não me
contive, subi para a almofada e largámos. Metemos pela Rua Rivoli. Havia
pouca gente. O bicho corria que era um gosto. Nos Campos Elíseos,
larguei- lhe as rédeas, cortávamos o ar. Num abrir e fechar de olhos
chegámos ao fundo da avenida. O cocheiro começou a inquietar-se.
Voltámos, e o animal trotava que espantava uma pessoa. Infelizmente não
se demoraram muito na sacristia, pois nós não gastámos mais de dez
minutos no caminho. E agora, que conheço o animal, digo-lhe que não
sabe o tesouro que tem, e que é uma barbaridade fazê-lo andar nas ruas
de Paris, e constranger-lhe o andamento, e fazê-lo esperar às portas. Se
estivesse no seu lugar, tratava-o de outra maneira. Que barbaridade!
SR. ABEL - Calma, meu bom Kersac. Prometo tratá-lo de outra
maneira daqui em diante. Mas hoje tem de trabalhar em honra de Simão.
Chegámos. Não me contrariava nada almoçar.
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SR. ABEL - Não se inquietem, vejo além dois amigos meus. Eles e nós
três somos cinco, ocupamos um compartimento e assim já não vai mais
ninguém.
O Sr. Abel foi chamar os seus amigos Caim e Sem.
SR. ABEL - Por aqui, por aqui, meus amigos! Aqui está o meu amigo
Kersac e o meu amigo João. Sr. Kersac, apresento-lhe os meus amigos
Caim e Sem. Seguimos todos juntos. O Sr. Amédée autorizou-me a
convidá-los.
- O Antigo Testamento todo reunido - disse Kersac, rindo com o seu
riso franco. - Sr. Caim, não nos vai tratar como irmãos, não é verdade?
SR. CAIM - Isso é que vou. Mas serei um Caim regenerado, um Caim
do Novo Testamento.
Entraram para um compartimento vazio e fecharam a portinhola.
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O martelo mágico
A viagem não demorou muito. Desceram em Saint-Cloud. Havia feira
na cidade. Passearam por toda a parte. Jogaram todas as espécies de
jogos. Viram coisas mirabolantes, veados com cinco pés, carneiros com
duas cabeças, gigantes de quatro anos que pareciam homens de trinta,
com barba e bigodes. Finalmente, um burro que tinha a cabeça onde os
outros têm a cauda.
Esta última maravilha via-se numa barraca onde havia outros animais
curiosos. O burro encontrava-se sozinho num lugar reservado, separado
por uma lona, dos outros animais. Só foi anunciado depois de uma
conversa misteriosa entre o Sr. Abel e o dono dos animais.
- Entrai, meus senhores e minhas senhoras, entrai! Só um de cada
vez! Meus senhores e minhas senhoras, entrai!
Kersac foi o primeiro e pagou dois cêntimos. Não tardou a sair, rindo
às gargalhadas.
DIVERSAS VOZES - Que é? Que está lá? É verdade que o burro tem a
cabeça onde os outros têm a cauda?
KERSAC - É verdade! E vale bem a pena dar os dois cêntimos para o
ver e prometer segredo ao dono do animal. Que comédia! Que bela
comédia!
A alegria de Kersac excitou a curiosidade de todos os convidados do
casamento e de todas as pessoas presentes. Todos quiseram entrar e
todos saíam rindo como Kersac e discretos como ele. Por fim, aquela
multidão que se não desfazia, e ria e aplaudia, chamou a atenção dos
polícias. Não conseguiram que lhes explicassem o que era, e para
saberem do que se tratava tiveram de entrar por sua vez. Entraram. . .
sem pagar, na qualidade de polícias, e viram um burro numa cocheira,
com a cabeça virada para o rabo, isto é, o rabo preso à manjedoura e a
cabeça voltada para os espectadores. Os polícias não sabiam se haviam
de rir ou de castigar. O Sr. Abel interveio e disse que tinha sido ele quem
inventara o divertimento. Defendeu tão bem a causa do dono da barraca,
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SELVAGEM - Aqui está, meu senhor! Deve ser coisa boa! A moeda está
escondida e o papel traz qualquer coisa escrita.
O selvagem leu:
- Para o Joanico.
Desembrulhou o papel e leu alto:
- Ladrão.
- Um cêntimo - acrescentou. - Sempre a mesma coisa. É um martelo
mágico, meu senhor, mas recompensa e castiga!
Joanico estava espantado e furioso. A multidão repetia: Ladrão!
Ladrão! O medo apoderou-se dele, afastou-se prudentemente e
desapareceu.
Depois do martelo mágico, os três selvagens cantaram árias tirolesas
e cançonetas alegres. A multidão aplaudia, a bandeja enchia-se. Depois
das canções fizeram sortes de prestidigitação e outras habilidades, por fim
um rufo de tambor anunciou que a representação estava acabada.
Os selvagens, vivamente aplaudidos, desceram do estrado, despiram-
se, lavaram a cara na barraca e transformaram-se em Caim, Abel e Sem.
Entregaram ao pobre charlatão o produto dos peditórios, que somava mais
de cinquenta francos. O infeliz agradeceu reconhecidamente, com as
lágrimas nos olhos.
O Sr. Abel e os amigos procuraram juntar-se aos companheiros. Não
tardaram a encontrá-los. João estava inquieto com a longa ausência do Sr.
Abel, mas Kersac tinha-lhe dito que, sem dúvida, haviam ido ao Salão dos
Cem Talheres apressar o jantar.
Ninguém o reconhecera na exibição dos selvagens.
O Sr. Abel propôs irem jantar. A proposta foi acolhida com alegria. O
almoço já ía longe, e estavam resolvidos a fazer honra ao jantar.
Os convivas sentaram-se. O jantar começou no mesmo rigoroso
silêncio do almoço. Como de manhã, começaram a animar-se depois dos
primeiros pratos e tornaram-se alegres e ruidosos à aproximação do
assado. O jantar era primoroso e os vinhos de primeira qualidade.
Cantaram. Quando chegou a vez do Sr. Abel, ele, Caim e Sem entoaram as
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A morte de RogerioZinho
Kersac e João estavam fatigados. No dia seguinte dormiram até tarde.
Quando o Rogeriozinho mandou dizer ao João que fosse ter com ele,
Kersac dormia ainda e João acabava de se vestir. Apressou-se a ir ter com
o pobre doente, que o recebeu com o seu sorriso meigo e amável.
ROGÉRIO - Ontem vieste muito tarde. Divertiste-te muito?
JOÃO - Muito, menino Rogério. Mas nem por isso deixei de pensar em
si.
ROGÉRIO - Obrigado, meu bom João. Conta-me o que fizeste.
João contou a história dos saltimbancos e do martelo mágico, a pouca
sorte de Joanico, que tinha perdido três francos quando queria ganhar uma
moeda de ouro.
Em seguida falou no jantar, na lição de dança, no baile e em tudo o
que podia divertir Rogério e distraí-lo do seu sofrimento. A pobre criança
sorria, não tinha forças para rir. Agradecia a João com o olhar; nos
momentos em que sofria muito, fazia-lhe sinal para que interrompesse a
narrativa. João ficou assim uma hora com ele. Em seguida, voltou para
junto de Kersac, que acabava de acordar e que ficou envergonhado
quando soube que eram dez horas e ainda estava na cama.
KERSAC - Não estou acostumado a estas noitadas, a estas fadigas
extraordinárias e a estas refeições intermináveis, que nos deixam pesados
e preguiçosos! Na herdade, fatigo-me mais e tenho menos necessidade de
repouso. Felizmente, amanhã de manhã já volto para lá. E logo que
chegue, trato com a tua mãe do que nos interessa. Quanto mais cedo,
melhor. Tinha-lhe prometido levar-te, queres vir passar alguns dias
connosco?
JOÃO - Gostava muito de ir, mas não posso deixar o meu pobre
Rogeriozinho no estado em que se encontra. Não valho nada, mas ele está
sempre a chamar-me, e consigo distraí-lo um pouco.
KERSAC - Tens razão, meu filho, és um rapaz às direitas.
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Dois casamentos
A familia ficou mergulhada numa dor profunda, mas nunca se lhe
ouviu um queixume. Abel quase os não deixava. Os meses, os anos,
passaram-se assim.
A reputação de Abel aumentou ainda mais. Os seus últimos quadros
fizeram furor. Recebeu o título de barão depois da exposição onde
alcançou tão brilhante êxito. Continuou a sua vida simples e benfazeja. A
pouco e pouco, restringiu o círculo das suas relações íntimas e cada vez
dedicou mais tempo aos seus amigos Grignan.
Susana chegou à idade em que uma herdeira nova, bonita, rica,
encantadora, é requestada. A partir de então, o casamento de Susana
Grignan com o barão de N. tornou-se o assunto de todas as conversas: a
reputação e a celebridade de Abel tinham-no posto no número dos bons
partidos, e muitas mães invejaram a felicidade da Sra Grignan.
Três anos antes deste acontecimento, Kersac regressara alegremente
à herdade de Sant'Ana. O seu primeiro cuidado foi procurar Helena, que
enncontrou na cozinha, ocupada com os serviços caseiros.
- Helena, Helena, cá estou eu! - gritou Kersac. - E bem contente por
ter voltado!
HELENA - E João?
KERSAC - O João está muito bem. Vem daqui a mais algum tempo.
Depois lhe explico. E eu venho pedir- lhe uma coisa.
HELENA - Tudo o que quiser, senhor; bem sabe se tenho ou não
vontade de lhe obedecer em tudo, se a sua vontade não é a minha.
KERSAC - Oh! Não se trata de obedecer; trata-se de querer.
HELENA - Isso para mim é a mesma coisa. Quero tudo o que o senhor
quiser.
KERSAC - Isso é verdade? Então. . . Ora bolas. Tenho medo da Palavra,
tenho medo...
HELENA - Que é então, meu Deus? Foi. . . o meu Joãozinho?
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KERSAC - Não se trata de Joãozinho! Belo rapaz. Estou doido com ele.
. . mas não é dele que se trata. Trata-se de si.
HELENA - Mas fale, senhor! Assusta-me!
KERSAC - Helena, Helena, não adivinha?
E como Helena o olhava com uns grandes olhos espantados, Kersac
tomou-a nos braços, quase a sufocando, e disse por fim:
- Quero que seja minha mulher!
Depois largou-a tão subitamente, que Helena caiu para cima de um
banco que estava atrás dela, não se magoando só por pouco.
A surpresa e a queda deixaram-na imóvel. Kersac receou tê-la
magoado.
- Que animal eu sou! - gritou ele. - Helena, minha pobre Helena, está
magoada? Dói-lhe alguma coisa?
HELENA - Não estou magoada, senhor, não me dói nada. Mas estou
tão admirada que não compreendo. Não sei o que foi que quis dizer.
KERSAC - Ora essa! Não é difícil de compreender! A senhora é uma
mulher excelente, activa, e está ao par dos trabalhos de uma herdade. Eu
sou solteiro, aborreço-me de o ser, e quero casar consigo. É muito simples
e muito natural. Eu pergunto-lhe: Quer-me, sim ou não? Se diz que sim,
faz-me muito feliz, paga-me tudo o que a senhora diz que me deve. Se diz
que não, é porque então é uma ingrata, um mau coração, dá-me um
desgosto em recompensa do que fiz por si. Vamos, Helena, responda
depressa em vez de me olhar com esse ar espantado, como se eu a
acabasse de matar.
HELENA - Sr. Kersac, será possível que tenha essa ideia?
KERSAC - Sim ou não?
HELENA - Sim, mil vezes sim. Pode duvidar da alegria com que aceito
esse novo benefício?
KERSAC - Até que enfim! O maroto do Simão sempre me atormentou!
E correu a comunicar aos criados a surpreendente nova do seu
casamento.
KERSAC - Pois bem, não se surpreendem?
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Esta égua foi uma fonte de alegria para Kersac. Todos os dias
inventava pretextos para a atrelar a um carro ligeiro, e fazia-a trotar
durante uma hora ou duas, não se cansando de a ver cortar os ares e
causar a admiração de quantos encontrava.
Uma vez levou Helena, mas ela pediu que a não levasse mais, porque
uma corrida tão rápida lhe metia medo.
Pouco tempo depois da morte do menino Rogério, receberam a visita
do João. Para distrair Susana do seu desgosto, o Sr. e a Sra Grignan
fizeram uma viagem à Suíça e ao norte da Itália, com o seu amigo Abel.
Conseguiram-no em parte, mas Susana continuou a falar com o Sr. Abel
acerca do seu irmão Rogério, e, para ambos, esta recordação tinha um
encanto indefinível.
Os Srs. Grignan levaram apenas Bercuss. E foi durante esta viagem
que João obteve, sem dificuldade, por intermédio do Sr. Abel, licença para
ir à terra.
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Terceiro casamento
Três anos depois, quando o Sr. Abel já fazia parte da família por se ter
casado com Susana, João anunciou- lhe que Kersac e Helena estavam
numa grande aflição. O dono da herdade, que Kersac arrendara havia mais
de vinte anos, acabava de morrer; a propriedade encontrava-se à venda, e
já tinham entrado em negociações com alguém que a queria explorar
directamente.
- Não te aflijas, meu amigo - disse-lhe Abel. Essa venda ainda se não
fez. Talvez não se faça.
Efectivamente, dias depois, João soube pelo Sr. Abel que a herdade
tinha sido vendida a alguém que fazia com Kersac um contrato de
arrendamento, que devia durar enquanto o rendeiro vivesse.
João ficou tão surpreendido com esta coincidência, que Abel não pôde
deixar de sorrir.
- Senhor - disse João - o senhor Ladrão e o senhor Pintor não terão
entrado neste negócio?
SR. ABEL (rindo) - É possível. Eu sei que o senhor Pintor queria
comprar uma casa na Bretanha.
JOÃO - Oh! Que felicidade! A sua bondade nunca se cansa!
Fora realmente o Sr. Abel quem comprara a herdade de Sant'Ana,
para lá construir um palacete para residência de verão. Esta compra fez a
felicidade de Kersac e de Helena, bem como a de João, que passava perto
da mãe sete ou oito meses por ano, sem contar com a família que
habitava o palacete.
Quando Maria fez dezoito anos, Kersac, que a estimava
carinhosamente e que não tinha filhos do seu casamento com Helena,
cumpriu a antiga promessa: declarou que ia adoptar Maria. Faltava a
segunda parte do projecto: casá-la com João. O rapaz tinha vinte e sete
anos, continuava no palácio de Grignan, só com a diferença de que
passara para o serviço particular do seu benfeitor, do seu querido Sr. Abel.
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Falando-se deles, podia-se dizer com verdade tal patrão, tal criado. Um era
o patrão ideal, e outro, o criado ideal.
Quando Kersac adoptou Maria, Abel que se entendia com ele para
conseguir que o casamento se fizesse, notou que João se tornava
pensativo, menos alegre, e fez-lho notar.
JOÃO - Que quer, meu senhor? À medida que os anos passam, a gente
torna-se mais reservada e mais séria.
SR. ABEL (sorrindo) - Mas, meu amigo, tu tens apenas vinte e sete
anos. Ainda não chegaste à velhice.
JOÃO - Ainda não, meu senhor, mas para lá caminho.
SR. ABEL - João, tu escondes-me alguma coisa e isso não está certo.
Tu, que não tinhas segredos para mim, tens agora um, e já há muitos
meses.
JOÃO - Perdoe, meu senhor. Não se trata de um segredo, é apenas
uma coisa que me entristece, apesar dos meus esforços em contrário.
SR. ABEL - Então que é, João? Conta-me lá! Que receias? Não
conheces muito bem a minha amizade por ti?
JOÃO - Oh! Conheço, sim, senhor; e a sua indulgência e a sua
bondade. É que eu gosto muito de Maria: queria casar com ela. E isso é
impossível, porque, se me casasse, o meu sogro e a minha mãe haviam de
nos querer em casa. E se eu o deixasse, meu senhor, seria tão infeliz, tão
ingrato, tão egoísta, que não teria um momento de descanso e morreria
de pena. Contei tudo à Maria, ela compreendeu e resolvemos ficar
solteiros. Consola-me a ideia de não o deixar nunca e de viver muito feliz
na companhia do senhor e da senhora, tentando assim retribuir os muitos
favores que tenho recolhido.
E, dizendo estas palavras, a voz sumiu-se-lhe. Voltou-se, como para
arranjar qualquer coisa, e desapareceu.
O Sr. Abel ficou triste e pensativo.
- Feliz! Pobre rapaz! Pobre rapaz! É por mim que sacrifica a sua
felicidade. Não posso aceitar tal coisa. Antes de um mês há-de casar.
O Sr. Abel tocou. Entrou o criado Baptista.
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E Joanico?
E Joanico?
Ai Pobre Joanico, ele está longe de levar a vida doce e feliz de João e
de seus amigos.
Os leitores lembram-se da sua última conversa, no café, com Kersac e
João. Continuou a sua vida de gatuno. Um dia adoeceu devido ao abuso
das bebidas. Os patrões desembaraçaram-se dele como fazem todos os
patrões que não se importam com os criados, mandando-o para o hospital.
Durante a sua doença, foi o Sr. Boissec em pessoa quem tratou dos
negócios. Descobriu as gatunices de Joanico. Em vez de se acusar, em
virtude do mau exemplo e dos maus conselhos que lhe tinha dado, voltou-
se contra ele, chorou as quantias consideráveis que Joanico lhe tinha
subtraído, e resolveu castigá-lo severamente.
No hospital, Joanico, comparando o seu abandono com a situação tão
feliz de João, pôs-se a reflectir, e essas reflexões poderiam dar bom fruto
se Joanico tivesse mais fé e coragem.
Mas, quando saiu do hospital e se arrastou, pálido e fraco, até casa
dos patrões, Boissec recebeu-o com injúrias e ameaças, e mandou-o pôr
na rua pelos criados.
E Simão?
Simão vive feliz e contente. É bom marido, bom filho e, sempre, bom
cristão. O sogro aborrece-o algumas vezes com questões comerciais. Ele
acha Simão muito dedicado, muito consciencioso. Simão assegura que é
simplesmente honesto, e que não fará nenhum negócio que não seja
perfeitamente leal e honroso. No armazém, os fregueses gostam mais de
se entender com o genro do que com o sogro. Este último retirou-se do
comércio, entregou o estabelecimento aos filhos e vê, com surpresa, a
prosperidade de Simão, que já adquiriu fortuna suficiente para levar uma
vida agradável. Simão vai às vezes a Sant'Ana, onde encontra reunidos
todos os seus amigos e seu irmão João, que ele continua a estimar
carinhosamente.
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FIM
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