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NA VIDA, DEZ; NA ESCOLA, ZERO: os CONTEXTOS CULTURAIS DA APRENDIZAGEM DA MATEMATICA* Terezinha Nunes Carraher, David William Carraher € Analiicia Dias Schliemann Do Mestrado em Psicologia ~ Universidade Federal de Pernambuco ~ BRASIL. “Nossos agradecimentos a Elisabete Maranhio de Miran- {da e Maria Eneida Didier do Régo Maciel pela ajuda imprescin dive! na coleta dos dacos ea Shirley Brice Heath que, em vista {20 nosto programa, com finaneiamento do CNPq, abriu novas Derspectivas de andise para o estudo do Fracasto escolar Cad. Pesq. Sio Paulo (42): 79-86, Agosto 1982 \Na sorveterie,o entrevistador pergunta a T., um garotinho {9 anos, que dizi ter saldo de exoola E: Por que voce saiu do escola? Porque eles no tava’ me ensinando nada A evasio @ 0 fracasso escolar aparecem hoje entre 0s problemas de nosso sistema educacional que so estu: dados de forma relativamente intensa. A concepeio de fracasso escolar aparece alternativamente como fracasso dos individuos (Popovic, Esposito e Campos, 1975), fre asso de uma classe social (Lewis, 1967, Hoggart, 1957), ou fracasso de um sistema social, econdmico e politico (Freitag, 1979; Porto, 1981) que pratica uma seletivida- de socio-econdmica indevida. Neste projeto, pretende-se explorar uma outra alternativa: o fracasso escolar é o fra casso da escola, Os estudiosos da chamada “privaco cultural" ou dos “individuos marginalizados” apontam a existéncia ddas mais variadas deficiéncias entre criangas de ambier- tes desfavorecidos, deficiéncias estas que sio tanto de na- tureza cognitiva como de ordem afetiva e social. A crian- gaproduto da privacéo cultural demonstra deficiéncias nas funcdes psiconeurolégicas, bases para a leitura e ma temética, conceitos basicos, operacdes cognitivas ¢ lin: guagem (Poppovic, Esposito e Campos, 1975), um au: to-conceito pobre, sentimentos de culpa e vergonha, pro: bblemas familiares, desconhecimento de sua propria cultu- ra (Brooks, 1966) etc. — para mencionar apenas algumas das deficiéncias encontradas. Essa posi¢do resulta da con- viegio de que os processos psicolagicos desenvolvem-se ‘em funcdo da experiéncia, de modo especial da experién- cia nos primeiros anos de vida (ver comentarios em Cole, 1977), sendo que criancas de ambientes culturalmente deficitarios careceriam dessas experiéncias eruciais. Para lelamente, muitos dos pesquisadores interessados nesta questo lembram ainda @ importincia de fatores de or dem biolégica, como a nutriego (Patto, 1973) e sadde (Silva, 1979) nos primeiros anos de vida, cuja influéncia também levaria a resultados negativos no desenvolvi to dessas mesmas criangas, uma vez que a privagdo cultu: ral e os problemas de alimentacéo e sade tendem a ocorrer com maior gravidade e freqiiéncia na mesma fai xa da populacio (Birch, 1967). Esta abordagem ao pro- blema do fracasso escolar pela atribuigdo de deficiéncias ‘05 individuos que fracassam no constitui sempre uma generalizacdo grosseira relative a todas as criangas de Classe baixa. Recentemente, tem-se procurado salientar “a importancia de uma anélise do rendimento escolar em funcdo das caracteristicas individuais de familias perten- Centes & mesma classe social, sem se levar tanto em consi deracdo 0s esteredtipos criadios pelo modelo que enfatiza as deticiéncias da classe social baixa, haja vista a existén- 79 cia de alunos que, no obstante pertencerem a essa clas- se, tém bom rendimento escolar” (Coimbra, 1981, p.64- 65). Nesta segunda versio, a abordagem das deficiéncias resultantes da privago cultural continua, pois, atribuin- do importancia decisiva a certas experiéncias perticula- res, porém dissocia até certo ponto, classe social de pri- vvacio cultural, de tal modo que apenas aqueles indivi- duos da classe baixa que sofressem de fato da “sindrome da privagdo cultural” estariam fadados ao fracasso esco- lar. © problema 6 colocado de forma um pouco dife- rente por aqueles que atribuem o fracasso escolar & classe social. A atribuigdo de deficiéncias das mais diversas na- ‘turezas aos membros da classe baixa nfo é uma questo de importéncia dentro deste ponto de vista. No entanto, ‘05 proponentes desta andlise acreditam que a situagao so- cial e econdmica das classes baixas é tal que os membros dessas classes no valorizam a educa¢io, pois néo Ihe atri- ‘buem valor prético (Hoggart, 1957) e no podem permi- tir @ seus filhos 0 “luxo"” de uma educacio prolongada diante de sua necessidade de empregé-los precocemente ppara contribuir para o sustento da casa. O fracasso esco- lar no seria, pois, um fracasso real, uma vez que 56 ‘quem almeja determinado objetivo pode fracassar em al- cangé-lo. A desvalorizacdo da aprendizagem escolar ao a- do da valorizago do trabalho seria consistente com o de- sempenho efetivo dos membros da classe baixa, os quais slo “vitimas"’ da evasio e do fracasso escolar apenas aos olhos dos outros (Hoggart, 1957). Finalmente, © tercelro tipo de anélise proposta para 0 fracasso escolar, a seletividade do proprio sistema, deve ser mencionado. De acordo com esta visio do fra- ‘casso escolar, as escolas constituem aparelhos ideolégicos do estado (Freitag, 1979), reproduzindo a estrutura de classes existente através da difusio da ideologia da class dominante e da manutenedo da classe baixa nos nivei educacionais inferiores. Assim, o proprio sistema educa- ional obstrui as vias de acesso da classe baixa & educa- do formal, eliminando a possibilidade de que seus mem- bros possam resolver por si préprios os problemas sociais. ‘e econémicos que enfrentam em decorréncia da hiper-ur- banizagio (Perlman, 1977). Dentro desta visfo, Ivoneide Porto, por exemplo, aponta para a falta de integracio so: jal nas escolas do Recife como uma das formas de ma- rnutencdo da estrutura social vigente. Os colégios particu- lares so um privilégio das classes dominantes, enquanto que 05 colégios da rede piblica server as classes inferio~ Fes;.. “esta estruturacdo mediante ‘privilégios especifi- cot’ e atividades delegadas tem lugar, certamente, a par- tir de cima, isto é, é determinada por aqueles que detém © poder e, conseqientemente, o dominio. E um processo que tem sua origem no topo e alcanca a base da socie dade” (Porto, 1981, p.101; grifos da autora). A possibilidade de que o fracasso escolar ni presente o fracasso do individuo, da classe ou do sistema social, econdmico e politico mas, sim, 0 fracasso da pré- ppria escola, jd tem sido considerada por alguns, embora go possamos dizer que esta conclusio tenha sido clara mente apresentada na forma em que a concebemos. Frie- dman (1967) considera que o entusiasmo pela nocd de privagdo cultural nos meios educecionais resultou do fa- ‘to de que tal conceituaco do problema consistia numa 80 explicago razodvel para uma situacdo embaracosa e, 20 mesmo tempo, liberava os educadores da responsabilida- de de estarem envolvidos com uma escola incapaz de produzir resultados. Poppovic apresentou recentemente ‘uma andlise bastante detathada da questio do fracasso escolar. Referindo-se & explicagdo do fracasso escolar em termos de privagio cultural, ela assinala: ‘Temos, entio, para detersinar o frecasso escolar, uma ex- plicagio de fundo tocial, muito mais ampla e veridica do ‘Que a dae deficidnciasindividusis. Porém, se bem examina- inua apontando para um s6 culpado: 0 ‘luna que vem de-uma faril tanto, despre- Bho do fracasso, A instituigdo escolar, seus valores, sous imétodos, seu eritérios, sua didética, sua organizacéo con- ‘uam fora do debate (Poppovic, 196, p.20). i ‘Com relaglo 8 educacSo compensatéria, Poppovic ressalta que esta sofre do grande defeito de apenas pre- ‘tender mudar a crianca, acrescentando que uma outra inha de pensamento se faz necesséria, a de uma aborde- gem institucional, a qual deve discutir a propria escola: Etta linha de pensamento coloca que o fracasso 6 o ret tado de um inter-relacionamento mal sucedido entre o aun que provém de determinados meios sociais e a insti- tuigdo escolar. E preciso que a escola entenda seu papel ‘sociale ua Fungo numa sociedede de grupos muito diver- fificados (ibid, p20) Apesar das semelhancas entre andlise proposta por Poppovic e aquela que pretendemos explorar, deve ser salientada uma diferenca que néo consideramos; de forma alguma, secundéria. Poppovic, apds a anélise aci- ‘ma mencionada, volta-se para a consideragio de estudos ‘da marginalizacdo cultural e seus efeitos sobre a crianca (Poppovie et af., 1976), que tém a finalidade de conhe- ‘cer "as necessidades de criancas culturalmente marginal zades” (Popovic, 1981, p.20) com o intuito de desenvol- ver um curriculo que 2s atenda: “0 caminho que esco- Themos foi o do desenvolvimento de materiais curric res para os anos iniciais do primeiro grau, destinado as criangas origindrias das camadas de baixa renda e a seus professores” (ibid., p.20 - 21). Este caminho parece cons: tituir a educaedo compensatéria na escola, e no mais 0 nivel pré-escolar; constitui uma solucdo psicolégica para tum problema psicolégico, social e cultural. Contrastando com esse ponto de vista, mas tam- bém seguindo uma abordagem institucional, pode-se pro- por para a questdo das diferencas inter-classes uma abor- dagem semelhante aquela proposta por Gay e Cole (1967) e Cole (1977) para as diferencas transculturais. Embora certas criancas de algumas culturas ~ ou, neste caso, das classes baixas — possam néo participar de expe- rigncias especificas encontradas rotineiramente pelas criangas de nossa classe média, elas nfo séo criangas pri- vades de qualquer experiéncia. No contexto do estudo das dificuldades de aprendizagem da matemética, Gay © Cole partiram, ento, do pressuposto de que era neces- sério conhecer melhor a matemética inerente as ativida- des da vida didria na cultura dessas criangas a fim de construir, a partir dessa matemética, pontes ¢ ligacdes cfetivas para a matemética mais abstrata que a escola pretende ensinar. Além disso, Cole (1977) sugere que Cad. Pesq. (42) Agosto 1982 fato corriqueiro de que as pessoas desempenham com ‘maior habilidade aquelas tarefas em que tém mais prética levou-o a pressupor também que os processos cognitivos podem ser de natureza situacional, o que implica em ser Possivel encontrar-nos sujeitos que demonstrem uma ha- bilidade em certo contexto e néo em outrols). Os exames de habilidades de discriminagio visual, por exem- plo, reatizados na entrada da escola para verificar a pron: ido para a alfabetizacio, sio realizados via de regra ‘com figuras desenhadas, relativamente abstratas, figuras geométricas, letras e ndmeros, Se supuséssemos que tal material nao é alvo de oportunidades para a prética da discriminagdo entre as criangas chamadas culturalmente desfavorecidas, veremos que delas se esperaria um desem- penho mais baixo do que aquele que 6 exibido por erian- 5 com prética nestas discriminagdes. Podemos dat (1) concluir que as criancas-produto da privaego cultural tém deficiéncias em discriminacio visual ou, (2) pode- mos partir para uma anélise etnogréfica e experimental das situages em que a discriminagao visual de detalhes é praticada por estas criangas, caso tais situagées existam, a fim de construirmos na escola ligagbes efetivas entre as habitidades de que essas criancas jé dispSem e sua aplica- fo ao dominio particular que desejamos desenvolver. A segunda forma de lidar com o problema aproveita uma “ligdo central a ser derivada de anos de pesquisa sobre a ‘generalizacdo da aprendizagem (learning sets), isto 6, que (08 animais (inclusive o homem) aprendem habilidades ge- neralizadas de solugdo de problemas a partir de experién- cias repetidas com problemas diferentes do mesmo tipo”. (Cole, 1977, p.481). Adotar 0 enfoque institucional néo significa, por: tanto, negar a existéncia de diferencas inter-classes ou mesmo rejeitar explicactes de natureza social, econémi- a e politica para 0 fracasso escolar. Porém, as diferencas inter-classes no so concebidas simplesmente como ca- réncias, mas como diferencas de fato, e as explicagées ‘em termos do sistema sécio-econdmico-politica sto con- insuficientes, uma vez que mesmo uma mudan- ia ter resultados efetivos sobre a 08 educadores no dispéem do necessério ‘saber fazer”, como bem assinalou Poppovie (1981). As- sim sendo, 0 enfoque institucional do fracasso escolar aproxima-se da andlise de Foracchi (1974) e Campos (1975) da marginalidade, anélise em que as caracteristi- ‘@s culturais sao vistas como expresso simbélica do eco- némico e do politico, constituindo, pois, parte essencial da explicago do fendmeno. Observagdes as mais diversas tém apontado incon- sisténcias entre 0 desempenho de sujeitos “culturalmente desfavorecidos” em situacdes formais e experimentais € (© desempenho desses mesmos sujeitos em situagSes in- formais ou cotidianos. Labov (1969) registrou a existén- cia de grandes diferengas no desempenho verbal de crian- ‘gas pobres do Harlem em situacies de teste e situagdes informais. Cole (1977) salientou a inconsisténcia entre resultados experimentais e a evidéncia antropologica re- lativa a habilidade dos adultos de certas culturas africa: fnas_de adotarem a perspectiva do ouvinte. Leacock (1872) apontou a incoeréncia entre conclusées experi- ‘mentais relativas aos baixos niveis de abstracio entre ne- Na vida, dez; na escola, zerc ‘ros americanos da classe operéria e sou uso freqiente de metéforas, amplamente reconhecidas como indicages de altos nivels de abstragdo. Ao mesmo tempo, Heath (1982, a) demonstrou, nos Estados Unidos, uma corres- ondéncia extrema entre atividades de compreensio ¢ in- terpretagdo de estorias praticadas em case pelas méos americanas de classe média e pelas professoras na escola, de tal forma que a escola americana aproveita 20 mé mo as habilidedes de interprotacdo ja desenvolvidas nas criangas de clesse média, criando situagSes escolares so- melhantes ds situagdes da vida desses criangas, Por outro lado, as habilidades verbais desenvolvidas em outros ““ambientes culturais” dentro do mesmo pais ou néo so aproveitadas pela escola, ou s6 vem a ser inclufdas entre 08 objetivos da escola em épocas posteriores. (Heath, 1982, b). Demonstragies sistemticas desta discrepéncia en- tre 0 desempenho de criancas da classe baixa em situa Ges naturais e em situacdes do tipo escolar no foram ainda obtidas no Brasil. Entretanto, a andlise acima suge- re que elas provavelmente existem e devem ser cuidado- samente analisade a fim de melhor compreendermos 0 fendmeno do fracasso escolar no Brasil. Assim sondo, neste estudo exploratério, observagGes etnogréticas fo- ram combinadas com uma andlise experimental da ques- ‘Ho descrevendo-se incialmente um dos contextos cultu rais em que a solueo de problemas de matematica ocor- re naturalmente na classe beixa para, a seguir, estudar mais sistematicamente o desempenho em matemética de criancas pobres em situagGes naturais © em situacées for- mais, do tipo escolar. lum dos usos da matemética © Contexto Cultus 'Nio é incomum entre os membros da classe baixa ‘que estes tenham um ““negécio proprio”. Quando o pai ‘tem uma barraca na feira, por exemplo, alguns dos filhos podem acompanhar o pai, especialmente a partir de uma certa idade. Enquanto os menores parecer apenas “pas- sar 0 tempo" desta forma, os maiores, a partir de aproxi: madamente dez anos, auxiliam nas transaeSes, podendo mesmo assumir a responsabilidade pela venda de parte das frutas e verduras. Entre os pré-adolescentes e adoles- centes, em geral a partir de 11 - 12 anos, a ocupacio po: de tornar-se independente, e estes passam a vender co 05, pipoca, milho verde, amendoim torrado ou em pon 105 fixos ou como ambulantes. Nestas situapSes, as criancas e adolescentes resol- vem inémeros problemas de matemética, via de regra sem utilizar papel e lépis. Os problemas envolvem mult plicago (1 coco custa x: 4 cocos custam 4x), soma (0 prego de 4 cooos mais 0 prego de I2 limes) e subtracso (Cr$ 500,00 menos y, para encontrar 0 trove). A divisio parece ocorrer menos freqiientemente mas aparece em alguns contextos como 0 quilo de feijdo verde custa x, meio quilo custa x/2 ou 0 quilo de cebola custa x, 200 '8. custam x/5, A diviséo também aparece em situacées mais complexas, como no célculo do preco de um quilo ¢ meio, onde normalmente soma-se o pre¢o de meio qui 40 a0 de um quilo ou no célculo de um quilo e novecen- tas gramas onde se subtrai o valor de com gramas do ve- ar

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