206 introDucio ao EstuDO Do DiREITO
cigarros estando a venda e, em meios de comunicagao vidria em pleno fun-
cionamento, fuma-se. Essa é a nogdo também conhecida como costume contra
legem.
Desses trés tipos de cessaciio da validade, a caducidade nao causa
problemas; sendo admitida com trangiiilidade Pela doutrina dogmatica. J4 o
desuso que, ao contrério da caducidade, nao tem na prépria previsdo da si-
tuagdo razao que a torna inaplicavel, cria alguma dificuldade. O exemplo da
pesca € por demais ébvio. HA casos mais complicados que se verificam quan-
do 0 pressuposto de aplicagéio da norma nao é um fato natural, mas um dado
da cultura, com sua carga emocional e valorativa. Por exemplo: uma norma
que prescrevesse a proibicdo do uso de chapéu no recinto de aula teria cessa-
do de valer quando este habito (de usar chapéu, em geral) nao mais existis-
se? Caso um aluno, nessa nova situacao, usasse um chapéu em plena aula,
poderia o professor aplicar a norma? Ou ela estaria invalidada por desuso? O
caso do costume negativo é ainda mais dificil, posto que temos uma omissiio
generalizada, apesar da ocorréncia das condigées de aplicagdo da norma.
Aqui o elemento valorativo e emocional é mais relevante ainda, pois teriamos
que demonstrar uma incompatibilidade entre a norma e as instituigdes (ver
item 4.1.3). Por essas razdes, temos de admitir que a caducidade produz seus
efeitos por mera verificacdo, mas o desuso e o costume negativo exigem justi-
ficagao.
4.3.2.2. CONSISTENCIA DO SISTEMA
Quando falamos da revogacéio por incompatibilidade, tocamos num
dos temas centrais da teoria do ordenamento: sua consisténcia. Por consis-
téncia deve ser entendida a inocorréncia ou a extirpacéo de antinomias, isto
é, da presenca simultanea de normas validas que se excluem mutuamente.
De certa forma, j4 mencionamos a questo, ao falar de norma-origem, como
aquela que principia nova série e que n&o se deriva de nenhuma outra por
que, em relacio a elas, é contraditéria ou incompativel. Com isso, quisemos
dizer que, do ponto de vista zetético, é possivel discutir se a consisténcia do
ordenamento é ou nado como uma qualidade essencial de seu sistema. Nao
obstante, reconheciamos que (ver item 4.3.1.4) a concep¢aio do ordenamento
como um sistema unitdrio e consistente, dirfamas agora, é um pressuposto
(ideolégico) que a dogmatica assume prevalecentemente. Por isso, a andlise
das antinomias normativas é um tema importante para a concepgiio do orde-
namento.
4.3.2.2.1 Antinomia juridica
O termo antinomia aparece ja na antigtiidade, por exemplo, em Plu-
tarco e Quintiliano, mas seu sentido mais impregnante de relevancia para oDOGMATICA ANALITICA OU A CIENCIA DO DIREITO COMO TEORIA DA NORMA 207
mundo juridico data do século XVII. Gloclenius (1613) distingue entre anti-
nomia no sentido lato e estrito, o primeiro ocorrendo entre sentencas e pro-
posicdes, o segundo entre leis (pugnantia legum inter se); 0 sentido estrito é
assumido mais tarde por A. Eckolt (1660). Ambos ja distinguem entre anti-
nomia real e aparente. No século XVII, J. H. Zedler (1732) define antinomia
como contrariedade de leis que ocorre quando duas leis opdem-se ou mesmo
se contradizem: A. G. Baumgarten (1770) fala em antinomia entre direito
natural e direito civil (cf. Ferraz Jr., 1978, v. 7).
Uma definigéo de antinomia exige as seguintes distincdes:
a) Antinomia ldgico-matemdtica. Embora o termo tenha sido consa-
grado por seu uso juridico, a expressao antinomia é hoje mais rigorosamente
definida no campo da légica. Segundo Quine (1962:85), uma antinomia gera
autocontradi¢do por processos aceitos de raciocinio,
Stegmiiller (1957:24) fala-nos, assim, de antinomia como um enun-
ciado que é simultaneamente contraditério e demonstravel. Essa definicio
corresponde 4 chamada antinomia légico-matematica e ocorre em sistemas
formais. Seu exemplo mais conhecido € o da classe de todas as classes que
nao séo membros de si mesmas. Por exemplo, se dizemos que o universo 16-
gico divide-se em A, classes que se incluem a si mesmas, e B, classes que nao
se incluem a si mesmas, podemos dizer também que a classe B, sendo um
membro de si mesma, entéo ndo é um membro de si mesma, visto que B é a
classe das classes que nao sao membros de si mesmas. Mas, em conseqiién-
cia, se B nao é membro de si mesma, entao satisfaz 4 condicado de ser mem-
bro de si mesma; é um membro de si mesma precisamente porque ndo é um
membro de si mesma, pois o fato de nao ser membro de si mesma constitui a
distingéo essencial de todas as classes que compéem B. Essa conseqiiéncia
paradoxal baseia-se numa rigorosa deducio légica na violaco das leis da 16-
gica, donde o cardter antinémico da contradigao.
Essa antinomia envolve uma faldcia, denunciada por Russell, por
meio de sua teoria dos tipos légicos. Russell postula, para evidencid-la, o
Principio segundo o qual tudo o que envolve a totalidade de um conjunto nado
deve ser parte do conjunto.
A antinomia légico-matemdtica pode ser apontada num famoso pro-
blema constitucional, referente a uma constituigéo formal, que contém regras
Para sua prépria reforma, e essas regras s4o consideradas como parte da
constituigao e, em conseqiiéncia, estéo sujeitas ao mesmo procedimento de
teforma que elas mesmas estabelecem. Considerando que uma autoridade
Al, constituida pelas regras que regulam a modificagao da constitui¢io, mo-
difique aquelas regras, terlamos uma nova condi¢do para modificar a consti-
tuigéo, 0 que conduziria 4 seguinte antinomia: a autoridade A7 tem compe-
téncia para modificar qualquer norma constitucional, sendo ela, portanto, ao208 wrropugio ao EsTup0 no DIREITO,
mesmo tempo, uma autoridade origindria e uma autoridade cuja competén-
cia deriva das Tegras que ela modificou; ora, se a autoridade é origindria, nao
ma outra regra, isso significa que
podendo derivar sua competéncia de nenhu:
Tosamente, sé é verdadeiro
homem $6 estar mentindo se estiver dizendo a verd:
zendo a verdade, se estiver mentindo. Essa antinomia