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218 inTRODUCAO AO ESTUDO DO DIREITO Essa distincao nao é corrente na dogmatica. Em geral, validade e vi- géncia confundem-se como conceitos. No entanto, se os separamos, ganhi mos uma base importante. Uma norma que, tendo percorrido todos os trami- tes para sua produc¢do, entra ao sistema, é valida. Promulgada, comeca a viger, isto 6, corre o tempo de validade ¢ ela é aplicdvel, pode produzir efei- tos (salvo se sua eficdcia for suspensa). A inexisténcia significa que 0 ato pro- dutor da norma nao é reconhecido absolutamente pelo sistema; é como se a norma nado existisse, nao cabendo falar nem de sua vigéncia, nem de sua efi- cdcia, sendo, por conseguinte, inexistentes seus efeitos. A nulidade significa que o ato produtor é reconhecido pelo sistema; a norma, em principio, entra no sistema, mas por um defeito de producdo tem desconsiderada sua vigén- cia desde o momento de sua promulgagio, e sdo nulos (ex tunc} todos os seus efeitos. Sobrevindo a declaracdo de sua nulidade, esta declaracao pode ter um efeito revogador e a norma sai do sistema, embora, por vezes, a de- claragao nao tenha tal efeito, havendo necessidade de uma norma revogado- ra, como € c caso de declaracgdo de inconstitucionalidade em certos sistemas: a norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal tem sua eficdcia suspensa pelo Senado, devendo ser revogada por ato da autoridade que a promulgou. A anulabilidade significa que 0 ato produtor é reconhecido pelo sistema, a norma entra no sistema, mas tem um defeito de produgdo nao essencial, sendo vigente desde a promulgacao e produzindo efeitos até que sobrevenha o pedido de anulagado, quando, entao, ela perde sua vigéncia, contendo a anulagdo um efeito revogador ex nunc (desde 0 momento em que ocorre), ressalvados os efeitos até entao produzidos. 4.3.2.3 COMPLETUDE DO SISTEMA: LACUNAS A concepcao do ordenamento como sistema dinamico envolve, por fim, o problema de saber se este tem a propriedade peculiar de qualificar normativamente todos os comportamentos possiveis ou se, eventualmente, podem ocorrer condutas para as quais o ordenamento nao oferece qualifica- cao. Veja um exemplo classico: 0 furto de energia elétrica que, quando pas- sou a representar um problema para a ordem juridica, ndo era configurado por nenhum tipo penal (que falava em furtar coisa mével, nado se enquadran- do energia elétrica como tal, devendo, entdo, por forca do principio nullun crimen nulla poena sine lege, ser admitido como comportamento penalmente admissivel). Trata-se da questao da completude (ou incompletude) dos siste- mas normativos também conhecida como problema das lacunas do ordena- mento. Nos quadros da dogmatica analitica, que elabora a sistematizacao do ordenamento, a quest4o é controvertida. Ha autores que afirmam ser a pleni- tude légica dos ordenamentos uma ficeéo doutrindria de ordem pratica, que DOGMATICA ANALITICA OU A CIENCIA DO DIREITO COMO TEORIA DA NORMA 219. permite ao jurista enfrentar os problemas de decidibilidade com um maximo de seguranga. Trata-se de uma ficg@o porque o ordenamento de fato é reco- nhecido como lacunoso (cf. Geny, 1925:193). Ha outros que afirmam ser a incompletude uma ficgdo pratica, que permite ao juiz criar direito quando o ordenamento, que, por principio, é completo, parece-lhe insatisfatério no caso em questao (Kelsen, 1960:35). A questdo das lacunas tem dois aspectos. Um refere-se a sua configu- ragdo sistematica, ou seja, 4 discussdo do cabimento das lacunas no sistema. £ o problema da completude. Outro refere-se A questo de, admitida a in- completude (de fato ou como ficc4o), dizer como devem ser preenchidas as lacunas. E 0 problema da integracao do direito pelo juiz. Desse problema va- mos falar quando abordarmos a dogmatica hermenéutica (ver item 5.3). Historicamente, 0 problema das lacunas surge como questio tedrica desde o momento em que a idéia de sistema impGe-se 4 concepciio do orde- namento. Ela é, portanto, fruto da Era Moderna, da centralizacdo e do mono- Polio da violéncia nas maos do Estado e, conseqiientemente, do dominio sis- temdatico da producao de normas, bem como da onipresenga do legislador em relacéo a todos os comportamentos socialmente possiveis. E preciso, pois, lo- calizar sistematicamente a questao. Uma lacuna, para adotar heuristicamente uma definicao proposta por Engisch (1968:135), é uma incompletude insatisfatéria dentro da totalidade jurfdica. Examinemo-lhe os componentes basicos: “incompletude insatisfaté- ria” e “totalidade juridica”. Com a palavra incompletude, negamos a palavra completude, aquilo que é “completo”, qualidade do que est4 acabado, conclui- do, mais propriamente: acabado de fazer. Completo é, assim, o que est fei- to, plena e cabalmente, isto é, o que nao possufa mas passou a possuir tudo o que The convém, tudo o que Ihe é préprio. Tudo o que lhe é préprio significa ter a plenitude do que compée seu tipo. O completo é, pois, algo distinto, ocorrendo dentro de um limite. Segue-se que a incompletude é um niio aca- bado, 0 que nao foi acabado de ser feito, dentro de um limite (sobre o tema, em outro contexto, ver Ferraz Jtinior, 1973:137). No caso da lacuna, confor- me Engisch, essa incompletude é ainda insatisfatria. Trata-se da negacao de “satisfatério”, isto é, o que é suficientemente feito. Este segundo termo é im- portante. Nem tudo que é incompleto é também insatisfatério. Eco (1968:62), com o termo obra aberta, da-nos um exemplo disso: trata-se de uma obra (de arte) que torna disponiveis a varias integragdes complementares “comple- mentos produtivos concretos”; é a obra artistica que possui uma vitalidade estrutural e que, nao sendo completa, é valida em vista de resultados diver- sos e miiltiplos. Quando dizemos, portanto, que a lacuna é uma incompletu- de insatisfatoria, exprimimos uma falta, uma insuficiéncia que ndo devia ocor- rer, dentro de um limite. O termo limite conduz-nos ao segundo componente da definigdo de Engisch. A “totalidade juridica”, na qual ndo deve, mas pode ocorrer uma in- 220 nrropugao ao ESTUDO Do DIREITO completude, é algo feito, portanto, algo que tem um inicio definido e um fim previsivel, sendo dotado de duradoura permanéncia. A negacdo absoluta e radical dessa possibilidade é bastante rara na literatura juridica. Wieacker (1967:437) aponta uma tinica excecio na obra de Bergbohm (1892, v. 1:371). O principio da auséncia de lacunas foi interpretado, na verdade, pela grande maioria dos juristas positivistas como uma ficcéio de polftica juridica ou, pelo menos, da Ciéncia do Direito (cf. Kelsen, 1960:251). Para uma dis- cussao mais completa da expressao totalidade jurtdica, ver Engisch (1952:108-415). Tendo limites temporais definiveis, ela aponta para limites espaciais, representados pela qualificagao “juridica”. Trata-se, assim, de uma totalidade entre totalidades, portanto, uma totalidade em que se pode sepa- rar © que pertence € o que nao pertence a ela, 0 que esta dentro eo que esta fora, o que pode entrar, o que nado Pode, o que deve, o que nao deve. Vale di- zer, uma totalidade de “partes” e de “regras”. Em outras palavras, um sistema. Segue-se que temos uma lacuna, num sistema de normas qualquer, se ha um estado de coisas dado que nao pode ser regulado pelo sistema, isto é, do qual nao podemos dizer se pertence ou nao ao sistema, ou mesmo se deve ou ndo pertencer a ele. A possibilidade de uma lacuna est4 assim ligada a uma concepgao de sisteria em seu uso tradicional, qual seja, um todo, com- posto de partes, ordenado, limitado e, em principio, capaz de uma completu- de (satisfatoria) que pode ser quebrada Gncompletude) pela intersecco do sistema com qualquer outro com o qual tenha limites. Num sentido aproxi- mado, as observagées de Ulrich Klug (1968:85). Note que nossa discussao do problema niio se prende a uma interpretagéio rigorosa do pensamento de Engisch. Nossa andlise, por outro lado, embora a primeira vista sugira uma concepcao estatica de sistema, nfo olvida os aspectos dindmicos, como vere- mos, em seguida. Sobre a relacdo lacuna-sistema, veja ainda Claus-Wilhelm Canaris (1964:16) e Rupert Schreiber (1966:192). Para a capacidade de per- feicaio do sistema juridico, veja os comentérios de J. Gilissen ao art. 4° do Cé- digo Napoleénico (1968:237) (cf. também Diniz, 1981; para uma anilise global da questo cf. Conte, 1962). A idéia de que lacunas esto ligadas A intersecgao de sistemas pode ser facilmente observada por aquilo que a doutrina Juridica tem classificado como espécies de lacuna. Examinemos algumas delas, sobretudo as que con- quistaram maior influéncia. A primeira delas reporta-se a Zitelmann (1903:27). Falamos aqui em lacunas auténticas e ndo auténticas (echte und unechte). Uma lacuna auténtica ocorre quando a lei nfo permite uma resposta, quando a partir dela uma de- cisdo nao é possivel, quando uma decisiio néo pode ser encontrada. Uma la- cuna nao auténtica, por seu lado, da-se quando um. fato-tipo (Tatbestand) é previsto pela lei, mas a solugdo é considerada como indesejavel. A doutrina costuma aceitar como lacuna propriamente dita apenas a da primeira espécie

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