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DIREITO E LINGUAGEM

Lincoln Antônio de Castro


Professor da Universidade Estácio de Sá e da Universidade Federal
Fluminense. Mestre em Direito. Promotor de Justiça, aposentado. Advogado.

Em preciosa obra de Marilena Chauí(Convite à Filosofia7ª edição, Editora


Ática, São Paulo, 1996), buscamos inspiração para abordar o tema direito e
linguagem, com a preocupação de apenas destacar a visão de um operador do
direito quanto à função da linguagem na área profissional.

I - LINGUAGEM

Focalizamos, em primeiro lugar, a importância da linguagem. Para


Aristóteles, o homem é um animal político (social e cívico), pois somente ele é
dotado de linguagem. Animais têm voz, exprimindo dor e prazer. Só homem
possui palavra, exprimindo e possuindo, em comum com outros homens,
valores que viabilizam vida social e política. Para Platão a linguagem é um
pharmakon : remédio, veneno e cosmético.

Na Bíblia Sagrada, a palavra tem força criadora, pois no princípio era o verbo;
com a palavra tudo foi feito ("Faça-se a luz..... e a luz foi feita"). Sobre a Torre
de Babel, ficamos sabendo que Deus lançou a confusão entre os homens,
fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas
diferentes, que impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos
os desentendimentos e guerras.

Linguagem é "instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento,


seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o
instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base mais
profunda da sociedade humana"(obra citada).

Linguagem nasceu da necessidade de expressão e comunicação. "Linguagem


é forma propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e
com os outros, da vida social e política, do pensamento e das artes"(obra
citada).

Mitos (em grego mythos) significa narrativa sobre origem dos deuses, do
mundo, dos homens, das técnicas e da vida do grupo social ou da
comunidade. Mythos também significa linguagem, no sentido de que os
homens, mediante palavras, conseguem organizar a realidade e interpretá-la.

Examinando o Direito Romano, sabemos que, na sua origem, o direito não era
um código de normas legais. Direito era um ato solene no qual o juiz
pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito solucionavam a
lide. Direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e
reconhecidas pelas partes conflitantes em juízo. Era um juramento pronunciado
pelo juiz e acatado pelas partes.

Modernamente, ainda encontramos presente a idéia de que, numa


comunidade, dar sua palavra representa dar sua vida, sua consciência, sua
honra, assumindo assim compromisso que só poderá ser desfeito com a morte
ou com anuência da outra parte.

Quanto à dimensão da Linguagem, os gregos conheciam duas palavras para


se referirem à palavra e à linguagem: mythos e logos.

Logos, para os gregos, é síntese de três conceitos: fala (palavra), pensamento


(idéia) e realidade (ser).

Logos é a palavra racional identificadora do conhecimento do real. É discurso


(ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração)
e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e necessários entre os
seres). (Vide obra citada).

Conceituando linguagem, destacamos que "linguagem é um sistema de


sinais com função indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa".
"Linguagem é sistema de signos ou sinais usados para indicar as coisas, para
a comunicação entre as pessoas e para a expressão de idéias, valores e
sentimentos."(Vide obra citada).

Quanto às características da linguagem, nos conceitos acima podemos


extrair as seguintes afirmações:

a)- linguagem é sistema - um todo estruturado com princípios próprios;

b)- linguagem é sistema de signos ou sinais – signos são objetos que indicam
outros objetos, designam outros objetos ou representam outros objetos;

c)- linguagem indica coisas - palavras têm função de apontar coisas que elas
significam – função indicativa ou denotativa;

d)- linguagem tem uma função comunicativa – mediante palavras


estabelecemos relações com os outros seres humanos;

e)- linguagem exprime pensamentos, sentimentos e valores – função


conotativa, ou de conhecimento e expressão.

Revela-se importante distingüir linguagem simbólica e linguagem conceitual.

A linguagem simbólica assim se caracteriza: opera por analogias e por


metáforas; realiza-se como imaginação; é inerente aos mitos, à religião, à
poesia, ao romance, ao teatro; fascina e seduz, por ser fortemente emotiva e
afetiva; oferece imagens ou sínteses imediatas; oferece palavras polissêmicas,
ou seja, carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes, tanto
sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos opostos e contrários; faz
a criação de um outro mundo, análogo ao nosso, porém mais belo ou terrível
do que o real; destaca a memória e imaginação, focalizando um futuro ou
passado possíveis.

A linguagem conceitual tem as seguintes características: é inerente à


filosofia e às ciências; procura dar às palavras sentido direto e não figurado,
evitando analogia (semelhança entre palavras e sons) e metáfora (uso de
palavras para substituir outras, criando sentido poético para expressão do
sentido); evita uso de palavras carregadas de múltiplos sentidos, procurando
fazer com que cada palavra tenha sentido próprio e que seu sentido vincule-se
ao contexto no qual a palavra é empregada; procura convencer e persuadir por
meio de argumentos, raciocínios e provas; busca definir o mundo real,
decifrando-o e superando as aparências; busca focalizar o presente, a
atualidade.

II – DISCURSO JUDICIAL

Adota-se na esfera jurídica a linguagem conceitual. Na verdade, é a própria


estrutura do discurso judicial que determina o uso da linguagem conceitual.

No âmbito do processo de conhecimento, verificamos que o autor formula uma


tese e o réu apresenta a antítese, cabendo ao órgão judicial formular a
síntese.

A tese consubstancia-se na demanda: ato jurídico processual, mediante o qual


o autor manifesta sua vontade no sentido de obter uma tutela jurisdicional
visando a um bem da vida que possa satisfazer suas necessidades. Pela
demanda, dá-se início ao exercício do direito de ação. A petição inicial é o
instrumento da demanda.

A demanda ostenta, como elementos identificadores, as partes, o pedido e a


causa de pedir. Uma demanda é idêntica à outra quando tem as mesmas
partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido (CPC - art. 301, § 2º).

Conforme art. 282 do Código de Processo Civil: a)- partes são o autor e o réu,
ou seja, os sujeitos do processo distintos do órgão judicial (inciso I) ; b)- causa
de pedir consiste no fato e nos fundamentos jurídicos do pedido, isto é, traduz
as alegações fáticas e jurídicas que embasam ou justificam o pedido do autor;
c)- e o pedido tem, como objeto imediato, a invocação da tutela jurisdicional e,
como objeto mediato, o bem da vida que se pretende obter.

O autor indicará, no ato da demanda, as provas com que pretende demonstrar


a verdade dos fatos alegados.

A antítese consubstancia-se na contestação: ato jurídico processual,


mediante o qual o réu manifesta sua vontade no sentido de resistir à pretensão
do autor veiculada mediante a demanda.

Na contestação o réu deve alegar toda a matéria de defesa, expondo as razões


de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as
provas que pretende produzir (CPC - art. 300). Além disso, mediante
contestação cabe ao réu manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados
pelo autor, sob pena de se presumirem verdadeiros os fatos não impugnados
(CPC - art. 302).

Depreende-se assim que os elementos da contestação são as partes, a


impugnação do pedido, e as razões de fato e de direito que fundamentam a
impugnação. E o réu fará indicação das provas necessárias para demonstrar a
veracidade dos fatos narrados como razões de impugnação.

Na contestação, portanto, encontramos os seguintes elementos: a)- partes,


que são o réu em face do autor; b)- razões da impugnação, que são as
alegações precisas e completas, sob os prismas fáticos e jurídicos, que
fundamentam a impugnação do réu quanto ao pedido do autor; c)-
impugnação, que se traduz na manifestação de vontade do réu no sentido de
obter tutela jurisdicional quanto a considerar improcedente o pedido formulado
pelo autor.

Consideram-se provas todos os meios legais ou moralmente legítimos, que são


hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se fundam a demanda e a
contestação (CPC - art.332). E todos têm o dever de colaborar com o Poder
Judiciário para o descobrimento da verdade (CPC - art. 339).

Mostramos que logos é a palavra racional do conhecimento do real. Logos é


discurso, isto é, argumentos e prova da sua veracidade.

Constatamos assim que os atos processuais (demanda e contestação) são


discursos que se contrapõem como tese e antítese, respectivamente. Os atos
das partes consistem em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade,
visando à produção dos efeitos de constituir, modificar ou extinguir direitos
processuais (CPC - art. 158). Consubstanciam postulações das partes,
fundamentadas em alegações ou argumentos que exigem prova da sua
veracidade.

Quanto à síntese, cabe ao órgão judicial, mediante provimentos (despacho,


decisão interlocutória ou sentença), promover o desenvolvimento regular e a
conclusão do processo, visando à prestação da tutela jurisdicional. Decisão
interlocutória é ato pelo qual o juiz resolve questão incidente, durante o curso
do processo. Sentença é o ato pelo qual o órgão judicial extingue o processo,
decidindo ou não o mérito da causa. Uma das formas de extinguir o processo,
mediante julgamento do mérito, consiste em o juiz prolatar sentença para
acolher ou rejeitar o pedido do autor.

Sabe-se que a jurisdição visa à aplicação da norma jurídica ao caso concreto,


solucionando uma lide, ou seja, um conflito de interesses qualificado por uma
pretensão resistida. O exercício da função jurisdicional visa à formulação de
norma jurídica concreta que deve reger determinado caso; ou ainda, visa à
atuação prática dessa norma concreta.
A jurisdição tem como escopo a aplicação do Direito, agindo o órgão judicial em
substituição das partes conflitantes.

À luz da doutrina de Moacyr Amaral dos Santos, a sentença se apresenta como


um silogismo:

"Diz-se, assim, que a sentença, na sua formação, se apresenta como um


silogismo, do qual a premissa maior é a regra de direito e a menor a situação
de fato, permitindo extrair, como conclusão, a aplicação da regra legal à
situação de fato" ( in Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. 3º,
Editora Saraiva, 1995).

A sentença tem os seguintes elementos essenciais: I- relatório, que conterá os


nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o
registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II- a
motivação, ou seja, os fundamentos em que o juiz analisará as questões de
fato e de direito; III- a conclusão ou dispositivo, em que o juiz resolve as
questões que as partes lhe submeteram.

Ressalte-se que a Constituição Federal prevê que todos os julgamentos dos


órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade (art. 93, inciso IX).

Consoante Código de Processo Civil, o juiz não pode se eximir de despachar


ou sentenciar, alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide,
cabe ao juiz aplicar as normas legais. Se não houver normas legais regendo a
matéria, o juiz valer-se-á da analogia, ou dos costumes ou dos princípios gerais
de direito.

Considerando o princípio da correlação ou congruência, o juiz deverá preservar


a correlação entre o pedido contido na demanda e o dispositivo da sentença;
pois lhe cabe decidir a lide nos limites em que foi proposta (CPC -arts. 128, 459
e 460).

O juiz apreciará livremente as provas, tendo em conta os fatos e as


circunstâncias contidas nos autos processuais. Exige-se que o juiz indique, na
motivação ou fundamentação da sentença, os motivos que lhe formaram o
convencimento (CPC - art. 131). Trata-se aqui do princípio da persuasão
racional do juiz.

Logos é pensamento, isto é, raciocínio e demonstração. Permite-se ao juiz


formar livremente sua convicção. O juiz desenvolve raciocínio, formando
sua convicção íntima. As provas têm o mesmo grau de eficácia. Nenhuma
prova, por si só, é mais importante do que qualquer outra. Ocorre que não
basta raciocínio do juiz, cabendo-lhe completar o pensamento mediante
demonstração da exatidão da sua convicção.

Realidade significa os nexos e ligações universais e necessários entre os


seres. Cumpre ao juiz, ao proferir uma sentença, enfrentar a questão da
realidade. Isto significa então que a questão posta em juízo há de ser
considerada em função dos nexos e ligações universais e necessários entre os
seres. Tal aspecto ensejará a solução da lide com justiça.

André Comte-Sponville diz que:

"A justiça é aquilo sem o que os valores deixariam de ser valores (não seriam
mais que interesses ou móbeis), ou não valeriam nada" (in Pequeno Tratado
das Grandes Virtudes, Martins Fontes, São Paulo – 1998). A justiça se
considera em dois prismas: como conformidade ao direito, e como igualdade
ou proporção. Para se cogitar da justiça, há de se considerar a vida em
sociedade. A justiça é humana; juridicamente, não há justiça sem leis.
Moralmente, não há justiça sem cultura.
Se para salvar a humanidade fosse preciso condenar um inocente, ou torturar
uma criança, teríamos de resignar a fazê-lo? Não, responderiam os
pensadores. "Se a justiça fosse apenas um contrato de utilidade, como queria
por exemplo Epicuro, apenas uma otimização do bem-estar coletivo, como
queriam Bentham ou Mill, poderia ser justo, para a felicidade de quase todos,
sacrificar alguns, sem seu acordo e ainda que fossem perfeitamente inocentes
e indefesos. Ora, é o que a justiça proíbe, ou deve proibir" (obra citada).

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