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RENATA TEIXEIRA JARDIM

ESTERILIZAÇÃO FEMININA:

NA ÓTICA DOS DIREITOS REPRODUTIVOS,


DA ÉTICA E DO CONTROLE DE NATALIDADE
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
TRABALHO DE CONCLUSÃO

ESTERILIZAÇÃO FEMININA:
Na ótica dos direitos reprodutivos,
da ética e do controle de natalidade

RENATA JARDIM
Orientadora: Profª. MARIA CLAUDIA CRESPO BRAUNER

São Leopoldo
2003
Agradecimentos...
À minha cara professora
orientadora que muito me inspirou com
seus ideais,
Aos meus pais pelo carinho e
compreensão,
Às minhas queridas amigas
Patricia Bado e Juçara Roth, pelo apoio
e exemplo de humanidade
E a todos que me
acompanharam nessa jornada.

dedico este trabalho a


todos que tornaram minha
pesquisa excitante ao
discordarem das minhas idéias.
RESUMO

O estudo procura investigar os motivos pelos quais as mulheres


brasileiras utilizam tão freqüentemente o único método irreversível, dentre
outros tantos reversíveis, de planejamento familiar. Para tanto, pesquisou-se
através de livros e estudos sobre o assunto como tal método contraceptivo é
regulado no Brasil. Descobriu-se uma rica soma de direitos, o qual foram
chamados de direitos reprodutivos, que garantem o livre exercício do
Planejamento Familiar entre os casais, o acesso à saúde e a informação, entre
outros. Tais direitos estão normatizados em nossa Constituição Federal e na
Lei 9263/96, que foi promulgada após estudo sobre o uso indiscriminado de
Esterilização em mulheres. Por fim, era necessário aprofundar-se na
preocupação mundial com o crescimento demográfico e justificar o porque da
cultura da esterilização.
SUMÁRIO

RESUMO ............................................................................................................ 4
INTRODUÇÃO.................................................................................................... 6
1 CONTEXTUALIZAÇÃO DOS DIREITOS REPRODUTIVOS........................... 9
1.1 Conceito e evolução histórica ..................................................................... 10
1.2 Diferença entre diretos sexuais e direitos reprodutivos .............................. 15
1.3 Saúde reprodutiva....................................................................................... 19
1.4 A importância do movimento feminista ....................................................... 22
1.5 Direitos reprodutivos como direitos humanos ............................................. 25
1.6 Os direitos reprodutivos na norma brasileira............................................... 31
2 ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA FEMININA ............................................... 35
2.1 Da cirurgia de laqueadura tubária e sua interpretação jurídica................... 36
2.2 Do caráter definitivo .................................................................................... 39
2.3 Legitimidade, consentimento informado e autorização expressa do cônjuge
na esterilização voluntária .............................................................................. 41
2.4 Ilegalidade da cirurgia durante a cesárea ................................................... 44
2.5 Capacidade de decidir sobre a esterilização. Sujeitos absolutamente
incapazes........................................................................................................ 46
2.6 O uso indiscriminado da esterilização em mulheres ................................... 51
3 A ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA COMO CONTROLE DE NATALIDADE54
3.1 A preocupação do estado com o controle da natalidade ............................ 55
3.2 A ética médica no procedimento de esterilização ....................................... 61
3.3 Eficácia da lei – plano de políticas públicas para sua implementação
adequada........................................................................................................ 64
4 CONCLUSÃO................................................................................................ 72
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 75
INTRODUÇÃO

A procura por métodos para evitar gestação indesejada vem desde a

antiguidade. O surgimento, no século XIX, da camisinha e, mais tarde, do DIU

foram avanços importantes na busca do controle da natalidade. Nos dias de

hoje, se dispõe de uma série de métodos, reversíveis ou não, para o exercício

do planejamento familiar. Frente aos diversos métodos reversíveis de

planejamento familiar, está a esterilização voluntária feminina, que é

considerado um método contraceptivo irreversível.

Alvo de muita divergência, a esterilização voluntária feminina foi, e ainda

é, um dos métodos mais utilizados pelas mulheres para o controle de sua

fecundidade nos países latino-americanos. No Brasil, apesar de ter sido

autorizada na rede pública somente com o advento da Lei 9263/96, o

procedimento cirúrgico ainda é um tema controverso.

A ausência do setor público de políticas de saúde na área do

Planejamento Familiar explica, em grande medida, o uso indiscriminado da

cirurgia de laqueadura tubária em brasileiras. Ensejou a ação de clínicas e

serviços privados de controle de natalidade, que agiram livremente durante o


7

período da ditadura militar. Optou-se, portanto, em abordar tal prática,

inserindo-a num contexto social e político, com o objetivo de compreender a

falta de políticas públicas, ou sua ineficácia, nesta área.

Este trabalho busca analisar a esterilização voluntária sob a ótica do que

hoje se denomina direitos reprodutivos. Ou seja, do direito de cada mulher

decidir sobre seu corpo e sobre sua reprodução. Para tanto, contextualizou-se

tais direitos na sua atual concepção, através de sua evolução histórica. Neste

conjunto, comenta-se suas diferenças com relação aos direitos sexuais, bem

como sua interligação com o conceito de saúde reprodutiva e da importância

do movimento feminista para sua evolução em todo o mundo. Após, sua

classificação jurídica internacional, abordou-se como os direitos reprodutivos

são tratados aqui no Brasil.

No segundo momento, explora-se a regulação da esterilização na Lei do

Planejamento Familiar, analisando sua interpretação jurídica e os critérios para

sua utilização. Aponta-se, ainda, o elevado número de mulheres que optaram

por tal método contraceptivo em nosso país, traçando uma crítica do uso

indiscriminado desta prática em mulheres de baixa renda.

E, no terceiro capítulo, procurou-se justificar os motivos pelos quais a

esterilização em mulheres causa tantas críticas. Da análise da preocupação

dos governantes com o controle populacional às políticas públicas

implementadas no país, pretende-se justificar como a cirurgia de laqueadura


8

tubária se popularizou. Agentes diretos deste processo, não poderia deixar de

tratar como tal procedimento é visto, eticamente, na ótica dos médicos.


1 CONTEXTUALIZAÇÃO DOS DIREITOS REPRODUTIVOS

O presente capítulo visa contextualizar os direitos reprodutivos na

história. Para tanto, se faz necessário conceituar ditos direitos, conforme sua

evolução ao longo dos anos. Atento com a extensa bibliografia que trata

direitos reprodutivos juntamente com direitos sexuais, abordam-se suas

diferenças. E, além de ser um tema da esfera jurídica, também percorre a

esfera pública, de saúde pública, com isso, tratou-se, ainda, da saúde

reprodutiva.

Uma vez que os direitos reprodutivos sempre foram pauta do movimento

feminista, não poderia deixar de citar sua importância para a discussão e

amadurecimento destes direitos. Por fim, a visão da norma internacional e

brasileira, no que tange sua classificação, seja como direitos humanos, seja

como norma inserida no rol dos direitos fundamentais, entre outras.


10

1.1 Conceito e evolução histórica

Caminhamos no fio da navalha, o que exige, e merece, nossa


reflexão permanente. A vida reprodutiva é recheada de intimidade, de
escolhas, de paixões; também é feita de violências, de submissão, de
perdas. Anda entre o público e o privado, cultiva a tradição, rende-se
à modernidade, quer atenção do Estado, prega a liberdade. Os
direitos reprodutivos querem ser respeitados e protegidos, não
1
regulados e controlados.

Conceituar direitos reprodutivos não é uma tarefa fácil. Primeiramente,

por ser um tema pouco abordado no universo jurídico, apesar de ser discutido

desde o século passado pelo movimento de mulheres. Na norma brasileira, não

se encontram, sendo assim suprido, através dos Tratados e Convenções

Internacionais2.

Maria Betânia Ávila3 entende que o termo direitos reprodutivos surge a

partir de uma redefinição do pensamento feminista sobre liberdade reprodutiva.

Implica, assim, na ampliação dos direitos das mulheres para além da área de

sua saúde, passando pelos direitos sociais.

Originário dos Estados Unidos e Europa, este termo sofreu modificações

ao ser incorporado internacionalmente pelo movimento feminista,

principalmente após o Tribunal Internacional do Encontro sobre Direitos

1
DORA, Denise Dourado; SILVEIRA, Domingos Dresch de (orgs.). Direitos Humanos, ética e direitos
reprodutivos. Porto Alegre: THEMIS, 1998. p.41.
2
Cabe aqui, fazer um paralelo necessário; os Tratados Internacionais que versam sobre direitos e
garantias fundamentais possuem força normativa constitucional, auto aplicáveis desde sua ratificação pelo
Brasil, por força do artigo 5º, § 1º e 2° da CF, já os Tratados e Convenções tradicionais devem seguir a
sistemática da incorporação legislativa, tendo com natureza norma infraconstitucional, nos termos do
artigo 102, III, b da CF.
3
ÁVILA, Maria Betânia. Feminismo e sujeito político. Proposta, vol.29, 84-85. 2000. op cite em
BORGES, Lenise Santana. Direitos Reprodutivos. In: LIBARDONI, Marlene.(coord.) Curso Nacional de
Advocacia Feminista em Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos. Brasília: Agende, 2002. p.186.
11

Reprodutivos (Amsterdã, 1984) e da Conferência das Nações Unidas da

Década das Mulheres (Nairobi, 1985).4

Para Flávia Piovesan5, direitos reprodutivos correspondem ao conjunto

de direitos básicos relacionados ao livre exercício da sexualidade e reprodução

humana, circulando no universo dos direitos civis e políticos, quando se

referem a liberdade, autonomia, integridade etc. e aos direitos econômicos,

sociais e culturais quando se refere a políticas de Estado. Compreende assim,

o acesso a um serviço de saúde que assegure informação, educação e meios,

tanto para o controle de natalidade, quanto para procriação sem riscos para a

saúde.

Samantha Buglione6, analisando o conceito da Autora supra, conclui que

a partir desta percepção incorpora-se o principio de que, na vida reprodutiva,

existem direitos a serem respeitados, mantidos ou ampliados. Sob esse prisma,

imputa ao Estado responsabilidades, bem como ações diretas na promoção do

acesso a informação, viabilizando ao cidadão suas escolhas no que tange a

reprodução.

Em nosso país, a discussão a cerca dos direitos reprodutivos deu-se na

década de 80, com o processo de redemocratização do Brasil. Exemplo

4
BORGES, Lenise Santana. Direitos Reprodutivos. In: LIBARDONI, Marlene.(coord.) Curso Nacional
de Advocacia Feminista em Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos. Brasília: Agende, 2002. p.186
5
PIOVESAN, Flávia. Temas atuais de direitos humanos. São Paulo: 1998. p.168.
6
BUGLIONE, Samantha. Reprodução, esterilização e justiça: os pressupostos liberais e utilitaristas na
construção do sujeito de direito. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da PUC/RS.
Porto Alegre, 2003. p.12.
12

importante é o Programa de Assistência Integral da Mulher – PAISM, que

incorporou idéias feministas sobre a saúde reprodutiva e sexual.7

Tais direitos surgem a partir de uma nova visão, mais expandia, do

conceito de cidadania. Para conceituar direitos reprodutivos faz-se necessário

estudar a evolução do papel da mulher na sociedade, para depois então chegar

no que a mulher representa para a sociedade atual.

A articulação por um direito à igualdade entre homens e mulheres surgiu

na Revolução Francesa, quando as mulheres buscavam equiparar-se aos

homens, reivindicando o direito de voto e a educação. Não existia, ainda, a

preocupação com as desigualdades naturais.8

Somente nos anos 60 que as mulheres passam a romper com a

pretensa naturalidade da opressão feminina através da nova ordem liberal, que

tinha como base fundamental discutir a desigualdade como componente das

relações sociais baseadas na dominação de sexo que hierarquiza as relações

de gênero como relações de poder.9

7
ÁVILA, Maria Betânia. Direitos reprodutivos. In: LIBARDONI, Marlene.(coord.) Curso Nacional de
Advocacia Feminista em Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos. Brasília: Agende, 2002. p.105.
8
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: Conquistas médicas e o
debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.02.
9
ÁVILA, Maria Betânia. CORRÈA, Sonia. O movimento de Saúde e direitos reprodutivos no Brasil:
revisitando percursos. Galvão, Loren e DIAZ, Juan. Saúde Sexual e Reprodutiva no Brasil: Dilemas e
Desafios. São Paulo: Editora Hucitec. Population Concil, 1999. p.73.
13

A construção da idéia de gênero10 deu-se com o movimento de

mulheres, principalmente na década de 70, quando estas buscaram espaço

para a constituição de uma cidadania feminina.

A utilização da categoria de gênero, segundo Bandeira11, vem a ser o

resultado da construção histórica e cultural que objetiva compreender as

designações e os pressupostos relativos ao sexo biológico como elemento

definidor e naturalizador de características, qualidades e potencialidades de

homens e mulheres, através da história e das diferenças culturais.

Como conseqüência desta nova visão acerca dos direitos das mulheres

surgem, no cenário mundial, discussões acerca de ditos direitos e o

aperfeiçoamento das legislações. Foi na Conferência Mundial de Direitos

Humanos, no Teerã, em 1968, onde surgiu a primeira idéia do que viria a ser,

internacionalmente, os direitos reprodutivos:

Capítulo 16:
Os pais têm o Direito Humano fundamental de determinar livremente
o número de seus filhos e os intervalos entre seus nascimentos.

Tal norma prevê a total liberdade de decisão do casal com relação a sua

reprodução, ou seja, o direito individual de cada um decidir sobre seu próprio

corpo, sem referir-se ao controle ou responsabilidades do Estado e tampouco

aos direitos sociais.

10
Gênero diz respeito a ordenadores sociais, que transcendem corpos, práticas e identidades. É uma
dimensão a partir da qual organiza-se o mundo e a vida. As dinâmicas de gênero estão entrelaçadas pelas
posições de poder, que classificam e normatizam corpos, identidades práticas, instituições, relações
sociais e etc. (BUGLIONE, Samantha. Reprodução, esterilização e justiça: os pressupostos liberais e
14

As Convenções, Tratados e Conferências posteriores ao Teerã, que

abordam sobre o tema deste trabalho serão analisadas, no item 1.5 do

presente trabalho.

A legislação vigente em nosso país traz a questão dos direitos

reprodutivos, em nossa Constituição Federal, no artigo 226, § 7º:

Art. 226.
...
§ 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do
casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

A norma constitucional é regulada pela Lei 9263 de 1996, que versa

sobre o planejamento familiar, lei esta analisada no item 1.6.

Ainda que hoje, no Brasil, o avanço no campo da reprodução seja

notável; na esfera legislativa as ações têm sido tímidas, analisando pelo prisma

da competência legal. Pode-se ilustrar dentre as inúmeras competências do

Congresso Nacional, pode este, além de legislar, agilizar e regulamentar as

normas constitucionais consideradas como não auto-aplicáveis; garantir

alocações de recursos para políticas sociais na votação do orçamento da

União; convocar membros do Poder Executivo para esclarecer assuntos

relevantes; introduzir orientações, inclusive sobre igualdade de gênero, em

utilitaristas na construção do sujeito de direito. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de


Direito da PUC/RS. Porto Alegre, 2003. p.19).
11
BANDEIRA, Lourdes. Relações de Gênero e sexualidade. In GALVÃO, Loren; DIAS, Juan. (orgs.)
Saúde Sexual e Reprodutiva. São Paulo: Hucietc Population Coucil. 1999. p.115.
15

suas subcomissões, especialmente na Comissão de Seguridade Social e

Família, no que tange a projetos de lei relacionados com saúde e direitos

reprodutivos; solicitar informações ao Poder Executivo sobre implementação

dos compromissos internacionais assumidos junto às Nações Unidas, ou ainda,

informes relativos às estratégias e medidas para a implementação de políticas

públicas sugeridas no Plano de Ação de Cairo; apoiar campanhas públicas

entre outros.12

A grande dificuldade na questão dos direitos reprodutivos está na própria

história política do Brasil. Se por um lado é um tema que fortifica a democracia,

por outro se esbarra na concepção autoritária, patriarcal e protecionista do

Estado quando refere à reprodução.

1.2 Diferença entre diretos sexuais e direitos reprodutivos

Os direitos reprodutivos estão intimamente ligados a sexualidade do ser

humano. Englobando, não somente as funções do aparelho genital ou do

processo reprodutivo, mas também no direito de cada cidadão buscar o seu

próprio prazer.13

12
BARSTED, Leila de Andrade Linhares. Sexualidade e Reprodução. In: BILAC, Elisabete Dória e
ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Saúde Sexual e Reprodutiva na América Latina e no Caribe. Temas e
Problemas. São Paulo: Editora 34. 1998. p.149-150.
13
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direitos Sexuais e Reprodutivos. Texto obtido em
culturabrasil.art.Br/rib/dpbboletim1.htm.
16

Ao considerarmos que o sexo entre homens e mulheres não é somente

uma necessidade biológica, reconhecemos o direito de cada cidadão de ter

prazer, manter relações sexuais, sem, necessariamente, o intuito da

reprodução. Sendo assim, podemos claramente separar os direitos

reprodutivos dos direitos sexuais.

A sexualidade, nessa perspectiva, foi um fator determinante para uma

nova redefinição das relações sociais, tendo sua desmistificação no século XX

com Freud. O Autor quebrou com a hegemonia do pensamento da idade média

que tratava a sexualidade apenas sob a ótica moral e religiosa, tornando-a

objeto de produção científica.14

Freud, em seus ensaios, concluiu que: 1 - há uma separação entre

sexualidade e relação sexual genital; 2 - quebra da inocência das crianças,

quando fala do processo de erotização que ocorre desde o nascimento; 3 - a

sua independência frente ao objeto do desejo, ou seja, a singularidade e 4 - ao

admitir a existência da bissexualidade.15

14
BUGLIONE, Samantha. Ações em direitos sexuais e direitos reprodutivos. Relatório realizado pela
Themis: 1999/2001. In: www.themis.com.br.
15
ARRILHA, Margareth. 9º Programa de Estudos em Saúde Reprodutiva e Sexualidade. NEPO – Núcleo
de Estudos de População, 08 a 26 de maio de 2000, UNICAMP/Campinas. Op cite em BUGLIONE,
Samantha. Ações em direitos sexuais e direitos reprodutivos. Relatório realizado pela Themis: 1999/2001.
In: www.themis.com.br.
17

Com Foucault há uma desnaturalização da sexualidade. Quando o Autor

traz a relação entre corpo e poder, passa-se a compreender sexualidade como

uma dimensão cultural da vida dos sujeitos.16

A partir desta percepção, exige-se, além da desnaturalização dos

domínios da sexualidade e reprodução, a desconstrução do paradigma que

biologiza o feminino no social, demarcando seu lugar na esfera do privado e

limitando sua ação na esfera pública. Tal radicalidade, segundo Maria Betânia

Ávila e Sonia Corrêa17, é necessária, pois os conceitos da modernidade

possuem contradições no que se refere ao papel das mulheres na sociedade,

bem como na política. Exemplifica a Autora, ainda, que embora sejam

formalmente consideradas iguais perante a lei, o corpo feminino, que reproduz,

continua sendo um corpo apropriado e subordinado às definições de ordem

privada e pública.

Ensinam que, para romper com a lógica da apropriação, as mulheres

contemporâneas lutaram por sua autonomia, ou seja, por uma existência com

significado próprio. Entre os anos 70 e 90 essa premissa se deu,

principalmente nos campo da sexualidade e reprodução, uma vez que, na vida

cotidiana, era complicado falar em prazer, partilha de responsabilidades entre

os casais e o direito de escolha. Desta forma, as mulheres conseguiram

expandir e aprimorar a noção de seus direitos sexuais e reprodutivos.

16
FOUCAULT, Michel. Historia da Sexualidade e a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1997.
BUGLIONE, Samantha. Ações em direitos sexuais e direitos reprodutivos. Relatório realizado pela
Themis: 1999/2001. In: www.themis.com.br.
18

O marco inicial desses inovadores direitos foi a liberdade de decisão das

mulheres com relação a sua fecundidade e sua vida sexual. No Brasil e mundo,

surgem, então, normas e preceitos legais para a proteção de ditos direitos,

sendo os temas mais debatidos o aborto legal e o acesso a contracepção não

coercitiva.18

O marco para separação da relação sexual com a reprodução foi a pílula

anticoncepcional que proporcionou a mulher o gerenciamento de sua

reprodução.19

Como já mencionado, no item 1.1, o conceito de direitos reprodutivos

implica em obrigações positivas ao Estado, no sentido que imputa

responsabilidades na promoção do acesso a informação e aos meios

necessários para viabilizar as escolhas com relação à reprodução. Em

contrapartida, os direitos sexuais decorrem de obrigações negativas, ou seja, o

Estado não deve regular a sexualidade e as práticas sexuais, tendo o dever de

coibir práticas discriminatórias que restrinjam o direito à livre orientação

sexual.20

17
ÁVILA, Maria Betânia. CORRÊA, Sonia. O movimento de saúde e direitos reprodutivos no Brasil:
revisitando percursos. In: GALVÃO, Loren. DIAZ, Juan (org). Saúde Sexual e Reprodutiva no Brasil:
Dilemas e Desafios. São Paulo: Editora Hucitec, Population Concil, 1999. p.74.
18
ÁVILA, Maria Betânia. CORRÈA, Sonia. O movimento de Saúde e direitos reprodutivos no Brasil:
revisitando percursos. GALVÃO, Loren e DIAZ, Juan (orgs.). Saúde Sexual e Reprodutiva no Brasil:
Dilemas e Desafios. São Paulo: Editora Hucitec. Population Concil, 1999. p.74.
19
BUGLIONE, Samantha. Reprodução e Sexualidade: uma questão de justiça. THEMIS, 2000. p.12.
20
BUGLIONE, Samantha. Reprodução e Sexualidade: uma questão de justiça. THEMIS, 2000. p.13.
19

1.3 Saúde reprodutiva

A reforma sanitária no Brasil culminou por definir a saúde com direito do

cidadão e dever do Estado em provê-la. Surgindo, assim, em 1983, o Programa

de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Tal programa trata a

mulher em sua “integralidade”, ampliando os programas de saúde para as

mulheres não somente no campo materno-infantil, mas a implementação de

serviços de saúde para as mulheres jovens, prevenção de DSTs, serviço de

saúde para mulheres no período da menopausa, prevenção do câncer de

mama e do colo do útero, ou seja, incorporar, efetivamente, a saúde como bem

estar físico, mental psicológico e não mera ausência de doenças.21

O termo saúde reprodutiva surge, no Brasil, em meados dos anos 80,

após a realização do Congresso Internacional de Saúde e Direitos

Reprodutivos (Amsterdã, 1984)22, quando é defendido o direito à saúde e a

autonomia das mulheres e dos casais na definição do número de filhos.

A partir da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento

(DIPD)23, restou definida saúde reprodutiva:

Saúde reprodutiva. A saúde reprodutiva é um estado de completo


bem-estar físico, mental e social, e não de mera ausência de
enfermidade ou doença, em todos os aspectos relacionados ao
sistema reprodutivo e a suas funções e processos.
Conseqüentemente, a saúde reprodutiva implica a capacidade de
desfrutar de sua vida sexual satisfatória e sem riscos, de procriar,

21
BUGLIONE, Samantha. Ações em direitos sexuais e direitos reprodutivos. Relatório realizado pela
Themis: 1999/2001. In: www.themis.com.br.
22
Além do termo saúde reprodutiva, surge conjuntamente em nosso país o termo direitos reprodutivos,
conforme já mencionado no item 1.1.
23
Realizada em 1994 na cidade do Cairo.
20

bem como implica a liberdade para escolher entre fazê-lo ou não, no


período e na freqüência desejada. Nessa última condição, encontram-
se implícitos os direitos do homem e da mulher de serem informados
e de terem acesso a métodos de planejamento familiar seguros,
efetivos, aceitáveis e de custos acessíveis, assim como o direito de
buscarem/usarem métodos de sua escolha para a regulação da
fecundidade que não estejam legalmente proibidos. Está também
implícito o direito de receber serviços apropriados de atenção à saúde
que permitam gravidez e parto sem riscos e ofereçam aos casais as
melhores oportunidades de terem filhos sadios. Define-se com
atenção a saúde reprodutiva o conjunto de métodos, técnicas e
serviços que contribuam para a saúde e bem-estar reprodutivos
mediante s prevenção e solução dos problemas de saúde reprodutiva.
Inclui também a saúde sexual, cujo objetivo é a melhoria da vida e
das relações pessoais, e não somente o aconselhamento e a atenção
24
referentes à reprodução e as doenças sexualmente transmissíveis.

Portanto, a saúde reprodutiva implica, ainda, na capacidade de desfrutar

de uma vida sexual satisfatória, podendo o indivíduo decidir com quem e com

que freqüência deseja se reproduzir.

Após a Conferência de Cairo, os homens passam a ser incluídos nas

questões de direitos reprodutivos. Passo esse de extrema relevância, visto que,

pela nova concepção, saúde reprodutiva não se preocupa apenas com o corpo

feminino durante momentos particulares, tais como gravidez, o parto e a

lactação.25

Chase e Perpétuo afirmam que saúde reprodutiva possui três pilares

fundamentais que diferenciam do conceito dos controlistas26 no que tange ao

planejamento familiar. Primeiro, a liberdade de escolha reprodutiva, definida

24
ALVES, J.A.L. Conferência de Cairo sobre população e Desenvolvimento e o Paradigma de
Hungtington. In. Revista Brasileira de Estudos de População, vol. 12, nº 1-2. 1995.
25
SANTOS, Tais de Freitas. Saúde Reprodutiva. PUC Minas Virtual, 2003.
26
Os chamados controlistas adotam uma posição neomalthusina, que defende o controle populacional
como política a ser implantada pelo Estado. Orientam-se, ainda, por uma lógica socioeconômica e política
de caráter restritivo e conservador no que diz respeito ao direito individual de decidir sobre a fecundidade.
(BARSTED, Leila de Andrade Linhares. Sexualidade e reprodução: Estado e sociedade. In: BILAC,
Elisabete Dória e ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Saúde Sexual e Reprodutiva na América Latina e no
Caribe. Temas e Problemas. São Paulo: Editora 34. 1998. p.154).
21

com a capacidade dos indivíduos em escolher o número de filhos que desejam,

bem como o momento de tê-los. Segundo, a importância do contexto sócio-

econômico e cultural no qual a escolha reprodutiva é feita, especialmente como

esse contexto aplica-se à capacidade de todos os homens e mulheres –

independente de raça, classe social, etnia ou preferência sexual – de exercer

com segurança sua liberdade reprodutiva através do acesso a informação

essencial à saúde reprodutiva. E, por fim, o direito de homens e mulheres de

todas as idades exercerem e gozarem sua sexualidade com segurança.27

Para a Organização Mundial de Saúde e outras, saúde reprodutiva

consiste:

a) que as pessoas tenham a habilidade de reproduzir-se assim com


de regular sua fertilidade com o maior conhecimento possível das
conseqüências pessoais e sócias de suas decisões, e com acesso
aos meios para implementá-las;
b) que as mulheres possam ter acesso à maternidade segura;
c) que a gravidez seja bem-sucedida quanto ao bem-estar e á
sobrevivência materna e da criança. Além disso, que os casais sejam
capazes de manter relações sexuais sem medo de gravidez
28
indesejada e de contrair doenças.

Enfim, é de responsabilidade do Estado prover a saúde reprodutiva à

população. E, sua omissão traz grandes problemas sociais, como o uso

incorreto ou indiscriminado de métodos anticonceptivos, como a esterilização

feminina, tema central deste estudo.

27
CHASE, J. e PERPÉTUO, I. H. Um marco de Referência para o Ciclo de Seminário sobre Saúde
reprodutiva. Texto não publicado, de circulação interna. Op cite em SANTOS, Tais de Freitas. Saúde
Reprodutiva. PUC Minas Virtual, 2003.
28
Tabela de definições. GALVÃO, Loren. Saúde sexual e reprodutiva, saúde da mulher e saúde
materna: a evolução dos conceitos no mundo e no Brasil. In: GALVÃO, Loren e DIAZ, Juan. Saúde
Sexual e Reprodutiva no Brasil. Dilemas e desafios. HUCITEC: São Paulo, 1999. p.170.
22

1.4 A importância do movimento feminista

A leis normatizam o cotidiano da sociedade, portanto, devem estar em

consonância com os ideais éticos dos grupos sociais. As mulheres nos dias

atuais possuem um universo de direitos conquistados através de suas lutas

políticas e sociais. Construir uma idéia de sujeitas de direitos iguais aos

homens, não foi de uma hora para outra.

A função social da mulher hoje não consiste apenas em procriar e

cuidar, administrar a casa e zelar por seu marido e filhos, e sim de ter seu

espaço na construção da sociedade moderna.

Para chegar a este status necessitaram buscar através de uma

organização política e social seus direitos. Surge então, o movimento feminista,

com várias ramificações de ideais, porém todas com o mesmo objetivo,

tornarem-se independentes.

Na cidade de Porto Alegre, como em várias outras, há o Conselho

Municipal dos Direitos da Mulher, criado pela Lei 347/95. Lá, encontra-se um

universo de mulheres organizadas na busca de seus direitos individuais e

coletivos. Conselho este composto de 40 entidades (governamentais e não

governamentais), acrescenta a sociedade de Porto Alegre um local para

discussão e proposição de políticas públicas para as mulheres. Promove

seminários que tem como objetivo o empoderamento de informações,

capacitações e reivindicações junto a Prefeitura da capital gaúcha.


23

Porém, não só nos Conselhos que as mulheres juntam-se para

reivindicar e discutir seus direitos, mas em todas as esferas da sociedade.

A preocupação das feministas com os temas de reprodução remonta ao

século XIX. A palavra de ordem na década de 70 era “nosso corpo nosso

pertence”29, que traduz o novo conceito de saúde para as mulheres. Tais

reivindicações propiciaram o surgimento de grupos informais, instituições e

mais diversas iniciativas voltadas para esta questão, como por exemplo, a

legalização do aborto e o uso indiscriminado da esterilização em mulheres.

No início da década de 80, o movimento de mulheres, juntamente com

outros atores políticos, interveio no debate nacional sobre planejamento

familiar, guiado pela certeza de que a democracia seria a solução para que a

sociedade brasileira modernizasse, gerando maior igualdade social e política.

Naquele momento, rompe-se com a polarização entre o natalismo tradicional e

o neomalthusianismo crescente que caracterizou o debate nacional entre 1970

e 1980. As feministas sinalizavam a revisão das concepções acerca do público

29
A idéia de reapropriação do próprio corpo contida na afirmação nosso corpo nos pertence se ancora
no reconhecimento de que o corpo de cada uma/um é o lugar primeiro da existência humana, lugar
partindo do qual ganham sentido as experiências individuais no cotidiano e nos processos coletivos da
história. A afirmação vincula-se tanto às dimensões matérias com as simbólicas da existência, diz
respeito à existência corporal (biológica) e à existência social e política, mas também ao “ser no
mundo” como pessoa. Contempla tanto aos aspectos associados à individualização das mulheres,
quanto suas relações na vida coletiva. A existência ganha sentido na relação com o outro, mas para isso
é necessária uma apropriação de si para ter uma existência própria e, a partir daí, ganhar e dar sentido
em relação com o outro. (ÁVILA, Maria Betânia. CORRÈA, Sonia. O movimento de Saúde e direitos
reprodutivos no Brasil: revisitando percursos. In: Galvão, Loren e DIAZ, Juan. Saúde Sexual e
Reprodutiva no Brasil: Dilemas e Desafios. São Paulo: Editora Hucitec. Population Concil, 1999, p.73).
24

e do privado na cultura política brasileira pregando a autonomia entre

sociedade civil, sociedade política e Estado.30

Impulsionado pela pressão feminista, o Estado cria o Programa Nacional

de Assistência Integral a Saúde Da Mulher (PAISM), que introduziu a política

de gênero no Brasil. O movimento organizado sustentou, assim, o princípio de

que as decisões da esfera reprodutiva devem orientar-se pelo livre-arbítrio dos

indivíduos, em especial das mulheres, uma vez que a reprodução biológica

viabiliza-se pelo corpo feminino. Portanto, a assistência à anticoncepção

deveria compor uma política integral de saúde reprodutiva. Criticavam, ainda,

os programas de planejamento familiar implementados no país pelas

chamadas “entidades privadas”, exigindo do Estado a superação de sua

omissão no terreno de políticas públicas relativas à regulação da fecundidade.

Resultado dessas reivindicações foi à formulação do PAISM, que buscava

reverter muitas distorções identificadas no campo da saúde reprodutiva,

particularmente no que se refere à oferta de anticoncepção.31

Como qualquer outro movimento social, as feministas construíram

espaços de articulação crítica. Visando romper com a opressão de sua

30
CORREA, Sonia. PAISM: uma história sem fim. In: Revista Brasileira de Estudos de População. Vol.
10 n. ½. ABEP: 1993. p.3.
31
CORREA, Sonia. PAISM: uma história sem fim. In: Revista Brasileira de Estudos de População. Vol.
10 n. ½. ABEP: 1993. p.4.
25

sexualidade e reprodução, instigaram a discussão à cerca das políticas

controlistas e ao gerenciamento da sexualidade, que as afetam diretamente.32

1.5 Direitos reprodutivos como direitos humanos

A proteção internacional dos direitos humanos das mulheres teve início

em 191933, com as primeiras normas internacionais de proteção à maternidade,

proibição do trabalho insalubre e perigoso. Normas estas, de caráter protetivo

somente, influenciaram todas as legislações do mundo, inclusive a CLT34

brasileira.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ratificada pelo

Brasil no mesmo ano, trouxe a igualdade e a autonomia, independente de

sexo, e o princípio da não discriminação, que avança na idéia de proteção para

a participação igualitária Mas é, em 1968, na I Conferência Mundial de Direitos

Humanos, realizada no Teerã, que define como direito humano a liberdade de

decidir sobre a vida reprodutiva.35

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada na

Conferência Interamericana sobre Direitos Humanos na Costa Rica em 1969,

32
BUGLIONE, Samantha. Ações em direitos sexuais e direitos reprodutivos. Relatório realizado pela
Themis: 1999/2001. In: www.themis.com.br.
33
Ano da fundação da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
34
Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei 5452 de 1º de maio de 1943.
26

regulariza o direito a vida e à integridade pessoal com direito fundamental de

todos36:

Artigo 4º Direito à vida


Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito
deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da
concepção. Ninguém pode ser privado da sua vida arbitrariamente.

Artigo 5º Direito à integridade física


Toda a pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física,
psíquica e moral.

Tais normas têm seu papel essencial ao servirem de base interpretativa

para outras normas internacionais, devendo-se pensar em direitos reprodutivos

conjuntamente com o direito fundamental a vida e da integralidade pessoal.

Para Samantha Buglione, além disso, os direitos reprodutivos centram-se no

pressuposto da não discriminação, sendo assim, quando o art. 4º refere-se

“proteção à vida desde a concepção”, a leitura da expressão deve ser feita de

acordo com o conjunto de fatores que envolvem as condições econômicas,

sociais, civis, políticas e históricas, sob pena de que elementos morais,

presentes no sistema jurídico provoquem discriminações.37

A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação

Contra a Mulher, aprovada pela Assembléia-Geral da ONU no ano de 1979 e

aprovada pelo Brasil no mesmo ano, inova em seu texto, ao dizer que os

Estados têm o dever de adotar medidas para se opor à discriminação e

35
DORA, Denise Dourado. Os Direitos Humanos das mulheres. In: DORA, Denise Dourado;
SILVEIRA, Domingos Dresch de (orgs.). Direitos Humanos, ética e direitos reprodutivos. Porto Alegre:
THEMIS, 1998. p.33-39.
36
BUGLIONE, Samantha. Ações em direitos sexuais e direitos reprodutivos. Relatório realizado pela
THEMIS, 1999/2001. In: www.themis.com.br.
27

eliminá-la. Tal entendimento é englobado pelos demais instrumentos

internacionais posteriores:38

Artigo 1º
Para fins da presente Convenção, a expressão discriminação contra a
mulher significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no
sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o
reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independente de seu
estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos
direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos políticos,
econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Somente em 1993, com a Conferência de Direitos Humanos em Viena39,

ratificada pelo Brasil no mesmo ano, que é dito explicitamente que os direitos

das mulheres são direitos humanos.40

A Declaração e o Programa de Ação, resultantes desta Conferência,

reafirmaram os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas, de 1945, e

na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Esses documentos

manifestam a preocupação com as diversas formas de violência e

discriminação contra a mulher. Declaram, ainda, que os direitos humanos das

mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e

indivisível dos direitos humanos universais.41

37
BUGLIONE, Samantha. Ações em direitos sexuais e direitos reprodutivos. Relatório realizado pela
Themis: 1999/2001. In: www.themis.com.br.
38
DORA, Denise Dourado. Os Direitos Humanos das mulheres. In: DORA, Denise Dourado;
SILVEIRA, Domingos Dresch de (orgs.). Direitos Humanos, ética e direitos reprodutivos. Porto Alegre:
THEMIS, 1998. p.33.
39
A Conferência de Viena, como a do Cairo, 1994 e a de Beijin, 1995, não são Convenções
Internacionais, mas Programas de Ação, não sendo fonte legislativa, mas costumeira.
40
DORA, Denise Dourado. Os Direitos Humanos das mulheres. In: DORA, Denise Dourado;
SILVEIRA, Domingos Dresch de (orgs.). Direitos Humanos, ética e direitos reprodutivos. Porto Alegre:
THEMIS, 1998. p.34.
41
BARSTED, Leila Linhares e HERMANN, Jacqueline. As mulheres e os direitos humanos: os direitos
das mulheres são direitos humanos. Editora CEPIA. Rio de Janeiro:1999. p.45.
28

A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento

(CIPD), realizada na cidade do Cairo em 1994, centrou em um enfoque mais

abrangente de políticas sociais visando os direitos humanos e a igualdade de

gênero, que extrapolam os aspectos específicos do controle da natalidade,

planejamento familiar e saúde materno-infantil, preocupando-se com os temas

como saúde, direitos sexuais e reprodutivos.42

Nesta Conferência visou-se promover a eqüidade e a igualdade dos

sexos e os direitos da mulher, eliminando todo o tipo de violência contra a

mulher, garantindo que ela controle sua própria fecundidade, além de afirmar

que as mulheres têm o direito individual e a responsabilidade social de decidir

sobre o exercício de sua maternidade, assim como o direito à informação e

acesso aos serviços para exercer tais direitos e responsabilidades. Enquanto

que o homem tem a responsabilidade pessoal e social, a partir de seu

comportamento sexual e fertilidade, pelos efeitos dessas decisões na saúde e

bem estar de suas companheiras e filhas.43

A IV Conferência Mundial da Mulher, realizada pelas Nações Unidas em

Beijin, em 1995, aprovou uma Declaração e uma Plataforma de Ação, com o

objetivo de promover a igualdade, desenvolvimento e paz para todas as

42
Contudo a liberdade de expressão sexual e orientação sexual jamais receberam reconhecimento como
um direito humano, nem na Conferência do Cairo, nem em qualquer outra. (BUGLIONE, Samantha.
Ações em direitos sexuais e direitos reprodutivos. Relatório realizado pela Themis: 1999/2001. In:
www.themis.com.br).
43
PITANGY, Jacqueline e HERINGER, Rosana. Diretos Humanos no Mercosul. Caderno Fórum Civil.
Ano 3. nº 4. Rio de Janeiro: 2001.
29

mulheres. Sendo que, o Brasil assinou, sem reservas, ambas.44 No item 7.3,

tratou dos direitos reprodutivos, nos seguintes termos:

os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos, já


reconhecidos em leis nacionais, nos documentos internacionais sobre
direitos humanos e em outros documentos pertinentes das Nações
Unidas aprovados por consenso. Esses direitos baseiam-se no
reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos a
decidir livre e responsavelmente o número de filhos e o intervalo entre
eles, a dispor da informação e dos meios para tal e o direito de
alcançar o nível mais avançado de saúde sexual e reprodutiva. Inclui
também o direito a tomar decisões referentes à reprodução sem
sofrer discriminação, coação nem violência, conforme estabelecido
nos documentos de direitos humanos. No exercício desse direito, os
casais e indivíduos devem levar em consideração as necessidades de
seus filhos já nascidos e futuros e suas obrigações com a
comunidade. A promoção do exercício responsável desses direitos de
todos deve ser a base primordial das políticas e programas estatais e
comunitárias no âmbito da saúde reprodutiva incluindo o
planejamento familiar.

Para Denise Dora Dourado os direitos reprodutivos podem ser para os

direitos humanos um novo paradigma, que rompa com a hierarquia das

gerações de direitos humanos, retomando com a idéia da integralidade.

Desafiam, ainda, o princípio da universalidade dos direitos humanos, uma vez

que, não existe a possibilidade de criarmos um padrão a cerca de com os seres

humanos devem reproduzir-se, quantos filhos devem ter e nem mesmo de que

forma devem comportar-se na sua vida reprodutiva.45

No sistema nacional, os tratados ao serem ratificados comprometem

legalmente o governo, uma vez que passam a fazer parte do ordenamento

jurídico existente, podendo ser utilizados em resoluções proferidas em

sentenças ou como orientação para políticas públicas do Estado. Exercem

44
BARSTED, Leila Linhares e HERMANN, Jacqueline. As mulheres e os direitos humanos: os direitos
das mulheres são direitos humanos. Editora CEPIA. Rio de Janeiro: 1999.
30

duplo grau de ação no Estado, tornando, assim, de extrema importância na

construção e efetivação dos direitos humanos.46

Porém, o status dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no

Brasil não é pacífico. A doutrina orienta no sentido de dá-los status

constitucional, através da interpretação do art. 5º, § 2 em harmonia com o § 1º

desse mesmo art., c/c art. 1º, III e art. 4º, II; todos da Carta Magna. Porém o

Supremo Tribunal Federal jamais decidiu neste sentido, dando aos tratados

Internacionais de Direitos Humanos status de lei federal.47

Na opinião de Flávia Piovesan48, pode-se dizer que nosso país não só

assinou todos os documentos relativos ao reconhecimento e às proteções aos

direitos humanos das mulheres, como apresenta um quadro legislativo

bastante avançado no que se refere a igualdade de direitos entre homens e

mulheres. No entanto, muito ainda tem que ser feito no campo do legislativo.

Uma das dificuldades apontadas pela Autora é compatibilizar ações na

área dos direitos humanos com modelos de desenvolvimento econômico e

político excludentes e, portanto, incompatíveis com esses mesmos direitos.

Porém, os Tratados e Convenções Internacionais e as Declarações oriundas

das Nações Unidas gera uma espécie de “cultura” jurídica que fortalece os

45
DORA, Denise Dourado. Os Direitos Humanos das mulheres. In: DORA, Denise Dourado;
SILVEIRA, Domingos Dresch de (orgs.). Direitos Humanos, ética e direitos reprodutivos. Porto Alegre:
THEMIS, 1998. p.34.
46
BUGLIONE, Samantha. Reprodução e Sexualidade: uma questão de justiça. THEMIS, 2000. p.23.
47
BUGLIONE, Samantha. Reprodução e Sexualidade: uma questão de justiça. THEMIS, 2000. p.23-24.
48
BARSTED, Leila Linhares e HERMANN, Jacqueline. As mulheres e os direitos humanos: os direitos
das mulheres são direitos humanos. Editora CEPIA. Rio de Janeiro:1999. p.41.
31

movimentos sociais nacionais organizados em torno da luta pela equidade na

lei e na vida.

1.6 Os direitos reprodutivos na norma brasileira

Após definir os direitos reprodutivos na esfera internacional, resta

apresentar como tais direitos são incorporados e conceituá-los na legislação do

nosso país. Salienta Flávia Piovesan que o texto constitucional deve ser

interpretado de forma coesa, devendo ser entendido no conjunto das normas e,

principalmente, dos princípios informadores do próprio texto constitucional. Tal

entendimento deve-se ao fato de que os princípios devem ser fonte inspiradora

e de referência para a leitura dos dispositivos da Constituição Federal, vez que

estão no topo da relação hierárquica das normas.49

Nesta linha, a Constituição Federal deve ser analisada sob a ótica dos

princípios constitucionais da cidadania (art. 1º, II da CF), da dignidade da

pessoa humana (art. 1º, III da CF), da promoção do bem estar de todos, sem

preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade e qualquer outra forma de

discriminação (art. 3º, IV c/c art. 5º, I50 da CF), todos estes essenciais na

discussão sobre direitos reprodutivos.

49
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. 2ª ed. São Paulo: Max
Limonad, 1997.
50
Como direito e garantia fundamental, o texto constitucional neste artigo, derroga todo e qualquer tipo
de discriminação quanto à mulher existente na ordem infraconstitucional. (BUGLIONE, Samantha.
Reprodução e Sexualidade: uma questão de justiça. THEMIS, 2000. p.25).
32

Os direitos sociais representam o instrumento de efetivação do direito

individual, sendo assim de vital importância na garantia dos direitos

reprodutivos. O art. 6º da Constituição traz com direitos sociais a saúde, a

educação, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à

maternidade e a infância e a assistência aos desamparados. O art. 7º do

mesmo diploma legal define com direitos dos trabalhadores rurais e urbanos,

além de outros que visem à melhoria da condição social dos mesmos, a licença

a gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e

vinte dias; a licença-paternidade51 e proíbe a diferença salarial de exercício de

funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado

civil. E ainda art. 10, II, “b” do ato das Disposições Transitórias veda a dispensa

arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da

gravidez até cinco meses após o parto.

No que tange à saúde reprodutiva e o planejamento familiar é no Título

VIII, “Da ordem Social”, que a Constituição Federal consagrou a saúde com

direito de todos e dever do Estado garanti-la, mediante políticas sociais e

econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem

como acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,

proteção e recuperação (artigo 196 da CF).

Traçando um paralelo com os direitos reprodutivos internacionais,

principalmente no conceito de saúde definidos pela Organização Mundial de

Saúde e pela Conferência do Cairo, que afirma que a saúde não se restringe a

51
Conforme art. 10, §1º, até que a lei venha a disciplinar, o tempo da licença paternidade é de cinco dias.
33

ausência de doenças, antes abarca um bem-estar físico, mental e social;

podemos alargar os preceitos do artigo 196 da nossa Constituição Federal. Ou

seja, ao incorporar o conceito de ser um bem-estar físico, mental e social, a

proteção a saúde não se restringe ao universo prescritivo, mas pressupõem a

prevenção, o acesso à informação e o respeito à diversidade, respeitando os

princípios da dignidade da pessoa humana, a igualdade e a não

discriminação.52

Importante destacar ainda a Constituição Federal, no art. 201, II,

determina que os planos de previdência social, mediante contribuição

atenderão a proteção à maternidade, especialmente à gestante. E, por fim, o

art. 203, I diz que a assistência social será prestada a quem dela necessitar,

independente de contribuição a seguridade social, tendo como um dos

objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à

velhice.

Para atender aos princípios dos direitos reprodutivos, os modelos de

família e casamento citados pela Constituição Federal53 devem ser entendidos

como exemplificativos.54 Sendo assim, deve ter proteção especial todo o tipo

de relacionamento afetivo entre os indivíduos com fim de terem uma vivência

compartilhada.

52
BUGLIONE, Samantha. Reprodução, esterilização e justiça: os pressupostos liberais e utilitaristas na
construção do sujeito de direito. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da
PUC/RS. Porto Alegre, 2003. p.27.
53
Segundo dispõem o artigo 226, §3º e §4º, é reconhecida a união estável entre homem e mulher ou
comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes com entidade familiar.
54
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. 2ª ed. São Paulo: Max
Limonad, 1997.
34

Conforme já mencionado, contempla a Constituição Federal, em seu

artigo 226, §7º, o direito ao planejamento familiar, fundado nos princípios da

dignidade humana e da paternidade responsável. Tal dispositivo constitucional

contempla a liberdade de decisão do casal no que tange sua reprodução, bem

como obriga o Estado a proporcionar recursos tanto de informação

(educacionais) como científicos para o exercício desse planejamento. Veda,

ainda, qualquer forma coercitiva de planejamento familiar. Porém, somente no

ano de 1996 que o Estado regulou tal dispositivo legal, através da Lei 9.263 de

12 de janeiro de 1996.

A Lei do Planejamento familiar definiu, em seu artigo 2º, o que vem a

ser a expressão planejamento familiar:

Art. 2º. Para fins desta lei, entende-se planejamento familiar como o
conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos
iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher,
pelo homem, ou pelo casal.

De forma clara, o legislador delimitou tal direito, seguindo o

entendimento mundial, conforme já analisado através dos estudos dos Tratado

e Convenções Internacionais.

Porém, é no artigo 10 da referida Lei que o legislador disciplinou a

esterilização voluntária, método contraceptivo irreversível e de larga utilização

entre as mulheres brasileiras. E, por ser este método o mais radical e

controverso que a seguir será tecido maiores comentários acerca do mesmo.


35

2 ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA FEMININA

Esterilização voluntária feminina55 insere-se no rol dos diversos métodos

de controle de fecundidade normatizados para o exercício do planejamento

familiar. Em dezenove de agosto de 1997, após ter sido retirado os vetos aos

artigos 10, 11, 15 e parágrafo único do artigo 14 da Lei nº. 9.263 de 1996, a

esterilização voluntária feminina e masculina foi regulamentada, dentro de um

escopo maior sobre a legislação do planejamento familiar.

Por ser um ato cirúrgico e de difícil reversão, foi regulado pela legislação

brasileira, de tal forma que restringiu sua utilização somente para casos

previstos em lei. Será analisado neste capítulo, sua interpretação jurídica em

face da Lei do Planejamento familiar que foi promulgada buscando legalizar tal

55
Conforme prevê o artigo 10, §3º da Lei do Planejamento Familiar, a esterilização cirúrgica como
método contraceptivo é permitida somente através da laqueadura tubária nas mulheres, vasectomia nos
homens ou de outro método cientificamente aceito, vedado a histerectomia e ooforectomia.
36

ato cirúrgico há muito tempo elegido por muitas mulheres como forma de evitar

nova gravidez.

2.1 Da cirurgia de laqueadura tubária e sua interpretação jurídica

Esterilização feminina compreende em um ato cirúrgico, conhecido como

laqueadura tubária, feita com anestesia geral, que interrompe a passagem das

trompas para o útero evitando o encontro do espermatozóide com o óvulo.

Uma vez interrompido esse canal, evita-se a fecundação do óvulo e a gravidez.

É eficaz em 99% dos casos.56

A Tecnologia da esterilização surge no início do século XIX, porém foi

popularizada na década de 60. Analisando a regulação da esterilização,

Samantha Buglione57 afirma, possuirmos duas opções:

Uma é de pensar a esterilização como uma tecnologia médica que diz


respeito apenas ao desejo individual, como uma cirurgia plástica, por
exemplo; e a outra é pensar a esterilização dentro do universo das
práticas reprodutivas, o que implica ter em mente as relações
familiares.

Porém, alerta a Autora, que as várias facções que pensam em

reprodução, família e métodos contraceptivos giram em torno de três

concepções:

56
Notícia do Correio Brasiliense, 10/09/2003. In: http://www.correioweb.com.br.
57
BUGLIONE, Samantha. Reprodução, esterilização e justiça: os pressupostos liberais e utilitaristas na
construção do sujeito de direito. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da
PUC/RS. Porto Alegre, 2003. p.22.
37

A primeira refere-se ao reconhecimento da reprodução como sendo


algo de competência estrita da autonomia e da vontade individual, e,
por conseqüência dos direitos individuais; a segunda defende ser a
reprodução uma questão de interesse público, ou seja, devendo (e
podendo) ser determinada não pelos indivíduos, mas pelo Estado; e,
por fim, a terceira, que reconhecendo a complexidade do tema, parte
do pressuposto de que a autonomia é um critério fundante das
questões reprodutivas, porém, estas questões não se esgotam nela,
devendo-se, ainda, pensar a autonomia de forma contextualizada,
sendo necessário problematizar a concepção moderna de autonomia
igualmente com as conseqüências das práticas reprodutivas.

Tais concepções, não de maneira cronológica, podem ser observadas

ao longo da história, já previamente analisada, e refletem como a esterilização

foi regulada em nosso país e no resto do mundo.

Antes de 1996, a esterilização era enquadrada como crime no Brasil,

como lesão corporal com perda da função (artigo 129, §, III do Código Penal)

ou como exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo (art. 132 do Código

Penal). A esterilização voluntária era, portanto, interpretada como ofensa

criminal, uma vez que resultava, como o entendimento majoritário, em perda ou

incapacidade da função reprodutiva e sua prática carrega consigo uma

penalidade de um a oito anos de reclusão.58

O método contraceptivo de esterilização foi regulado na rede pública

através da Portaria nº. 144 de 20 de novembro de 1997. E, em 11 de fevereiro

de 1999, a Portaria 048 de revogou a Portaria nº. 144, para trazer inovações a

respeito do procedimento de esterilização voluntária. A maior modificação

apresentada nesta Portaria foi a proibição da realização da laqueadura tubária

durante o período do parto ou aborto e até 42 dias depois destes, exceto em

58
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: Conquistas médicas e
o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.29.
38

casos de cesarianas sucessivas anteriores59 e casos onde a exposição a outro

ato cirúrgico representasse risco de vida para a mulher. Assim, são criados

mais quatro novos códigos de procedimentos cirúrgicos pagos pelo SUS para

realização de “Cesariana com Laqueadura Tubária em Pacientes com

Cesarianas Sucessivas Anteriores”, sem muitos esclarecimentos sobre as

diferenças entre eles, aparentemente para grupos de risco distintos: 1) risco de

vida; 2) risco de vida com atendimento recém-nascido na sala de parto; 3) risco

de vida em hospitais amigos da criança e 4) em gestante de alto risco.60

O método cirúrgico foi autorizado no sistema público nacional somente

com o advento da Lei do Planejamento Familiar. Porém, dita prática tem sido

largamente utilizada há muito tempo pelo setor privado de saúde. Elza Berquó

e Suzana Cavenagui61 afirmam que é notório e de amplo conhecimento que

várias cirurgias eram de fato regularmente realizadas durante partos por

cesarianas e, fora do parto, registradas como outros procedimentos médicos

nos serviços de saúde do Estado. Cita, ainda, diversos autores que coadunam

com a mesma idéia.

Concluem que, por tais procedimentos, a esterilização tornou o método

mais utilizado dentre todos disponíveis para anticoncepção. Refere-se aos

59
Nenhuma das Portarias de regulamentação da lei especifica o número de cesarianas sucessivas a partir
da qual a esterilização feminina seria permitida no momento do parto, mas é de comum conhecimento que
três cesarianas sucessivas é usada como parâmetro, ou seja, duas cesarianas sucessivas anteriores
viabilizam a realização da laqueadura durante um terceiro parto por cesariana.
60
BERQUÓ, Elza e CAVENAGUI, Suzana. Direitos Reprodutivos de Mulheres e Homens Face à Nova
Legislação sobre Esterilização Voluntária. In: XIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais da
ABEP - Ouro Preto 2002: 2002.
39

dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 1996, na qual a

esterilização feminina consistia de 52,0% de todos os métodos contraceptivos

utilizados, seguida em segundo lugar e com considerável distância, pela pílula,

usada por 27,0% da população feminina. A esterilização masculina, por outro

lado, é menos comumente praticada (2,4%) do que métodos tradicionais como

a abstinência periódica (4,0%) e o coito interrompido (4,0%), dados retirados da

Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) de 1997.

Apesar das várias opiniões acerca do tema, hoje, a esterilização

voluntária feminina é um direito normatizados entre uma das opções de

controle de fecundidade para todas as mulheres e dever do Estado em oferecê-

la, gratuitamente, nos serviços de saúde pública, bem como da devida

orientação sobre os demais métodos, visando o melhor planejamento familiar.

2.2 Do caráter definitivo

O procedimento cirúrgico de esterilização feminina é concebido como

método irreversível, já que a porcentagem de chances de uma nova cirurgia

traga, novamente à mulher, sua capacidade de reprodução, é muito pequena.

Explica Hitomi Miura62, secretária-geral da Sociedade de Ginecologia e

61
BERQUÓ, Elza e CAVENAGUI, Suzana. Direitos Reprodutivos de Mulheres e Homens Face à Nova
Legislação sobre Esterilização Voluntária. In: XIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais da
ABEP - Ouro Preto 2002: 2002.
62
CORREIO BRASILIENSE, em 10/09/2003. O drama de quem quer voltar a ter um filho. In:
http://www.unb.br.
40

Obstetrícia de Brasília, que o procedimento de reversão da laqueadura63 nem

sempre é eficaz, pois o funcionamento das trompas pode ficar prejudicado.

Especialista em fertilidade, Hitomi atende muitas mulheres com desejo

de reverter a ligadura das trompas. Segundo ela, a vontade é comum entre as

pacientes separadas que voltam a se casar e querem ter filhos com o novo

companheiro. Em princípio, a reversão é mais indicada que a fertilização in

vitro, cujas chances de sucesso variam de 25 a 40% por aplicação. Na opinião

da médica, o ideal seria que as mulheres não tivessem feito a laqueadura.

Para Antônio Carlos Rodrigues64, professor de ginecologia da

Universidade de Brasília (UnB), a esterilização só deveria ser feita por

mulheres com propensão à gravidez de alto risco; aquelas com possibilidade

de ter uma gestação normal deveriam optar sempre por contraceptivos

reversíveis.

Estudo conduzido pelo professor, em sua Tese de Doutorado pelo

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília, indica

que aproximadamente 40% das brasileiras já se submeteram à laqueadura e

que o índice de arrependimento por terem realizado o procedimento (jovens

63
O procedimento de reversão da laqueadura consiste em religar as trompas, costurando-as por dentro e
por fora. Como um dos principais papéis das trompas é levar o óvulo fecundado até o útero, ficando
interrompido por muito tempo, o canal perde a capacidade de empurrar o futuro bebê em direção às
paredes uterinas. Por isso, as chances de engravidar das mulheres que revertem a laqueadura é de no
máximo 60%.
64
CORREIO BRASILIENSE, em 10/09/2003. O drama de quem quer voltar a ter um filho. In:
http://www.unb.br.
41

com menos de 25 anos) é muito alto: entre 65 e 70%65. O trabalho mostra que

a falta de informação sobre opções de métodos anticoncepcionais (como DIU,

pílula ou utilização de preservativos), entre as mulheres, é grande e que não

existe orientação e oferecimento do serviço de planejamento familiar.

Para tanto, a esterilização voluntária deve ser uma decisão muito bem

pensada. Os Autores que alertam para tal procedimento, baseiam-se no

argumento que o percentual de arrependimento é grande e as chances dessa

mulher arrependida voltar a ter capacidade de gerar é mínima.

2.3 Legitimidade, consentimento informado e autorização expressa


do cônjuge na esterilização voluntária

Somente é permitida a esterilização voluntária em homens e mulheres

com capacidade civil plena e maiores de 25 (vinte e cinco) anos de idade ou

pelo menos, com dois filhos vivos (artigo 10, I da Lei 9263/1996).

Pesquisa realizada pela Comissão de Cidadania e Reprodução66, em

1999, apontou que, na opinião dos médicos, a idade mínima prevista na Lei

65
Os dados foram coletados com base em uma pesquisa da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) realizada em 1998, considerando, também, recentes entrevistas com 100 mulheres que
procuraram espontaneamente o serviço de reprodução humana do Hospital Universitário de Brasília
(HUB) para tentar reverter a laqueadura e engravidar.
66
Visando registrar o impacto das mudanças legais, a Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR)
desenvolveu em 1999 uma pesquisa junto a 23 serviços de esterilização, em um universo de 37 hospitais e
ambulatórios públicos que realizam o procedimento na Região Metropolitana de São Paulo. Os resultados
revelaram que, apesar de existirem serviços de excelente qualidade técnica, prevalece uma distância entre
a lei e os serviços efetivamente oferecidos. Os obstáculos vão desde a falta de insumos adequados até
42

não é adequada. O principal argumento invocado para contra-indicar a cirurgia

em jovens adultos é o risco de arrependimento por se tratar de método

irreversível.67

Rosane Mattar, Secretária Geral da Sociedade de Obstetrícia e

Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP) acredita que outros fatores

relevantes deveriam ser considerados, além da idade: tempo de união do

casal, número de filhos, antecedentes obstétricos, malformações, histórico de

risco cirúrgico, antecedentes clínicos (hipertensão, diabetes etc.) e outros, ou

seja, através de uma avaliação integral que considere todos esses fatores,

estabelecendo posteriormente uma pontuação de critérios, como já assim

procedem os serviços de planejamentos familiar.68

No mesmo inciso que dispõem quem pode esterilizar-se (regra geral: art.

10, I, primeira parte da Lei 9263/1996), é estabelecido o prazo mínimo de 60

(sessenta) dias entre a manifestação de vontade e o ato cirúrgico, período no

qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da

fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando

desencorajar a esterilização precoce (art. 10, I, segunda parte da Lei

9263/1996).

clientelismo eleitoral, passando, em muitos casos, por uma arraigada cultura de resistência à esterilização,
entre médicos e outros profissionais de saúde.
67
LUIZ, Olinda C. e CITELI, Maria Teresa. Esterilização Cirúrgica: lei que fica no papel. Jornal da
Rede Feminista de Saúde - nº. 20 - Maio 2000.
68
BOYACIYAN, Krikor. Considerações a respeito da nova Lei da Laqueadura.. In:
http://www.sogesp.com.br.
43

A Lei permite, ainda, a laqueadura tubária a qualquer mulher com risco

de vida ou de sua saúde ou do futuro concepto. Sendo condição expressa

relatório escrito de testemunho, assinado por dois médicos (art. 10, II da Lei do

Planejamento Familiar).

Deve esta mulher ser informada do risco da cirurgia, efeitos colaterais,

dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes,

além de documento escrito e firmado, registrando a expressa manifestação de

vontade de quem deseja submeter-se à esterilização (art. 10, II, §1º da Lei do

Planejamento Familiar). Não sendo considerada a manifestação de vontade se

expressa durante a ocorrência de alterações na capacidade de discernimento

por influência do álcool, drogas, estado emocional alterado ou incapacidade

mental temporária ou permanente (art. 10, §3º da Lei do Planejamento

Familiar).

Referida Lei, apesar de proibir expressamente a esterilização durante os

períodos de parto ou aborto, a aceita nos casos de comprovada necessidade

como, por exemplo, por cesarianas sucessivas anteriores (art. 10, II, §2º da Lei

do Planejamento Familiar).

O artigo 10, § 5º, determina o consentimento expresso de ambos os

cônjuges para que seja realizada a esterilização voluntária em pessoas

casadas. Tal obrigatoriedade é baseada nos princípios do matrimônio, que

responsabiliza ambos os cônjuges na decisão acerca do planejamento familiar

(art. 226, §7º da CF e art. 1565, §2º do CC), uma vez que assumem
44

mutuamente, pelo casamento, a condição de consortes, companheiros,

responsáveis pelos encargos da família (art. 1565, caput do CC) e devem

exercer conjuntamente a direção da sociedade conjugal (art. 1567 do CC).

2.4 Ilegalidade da cirurgia durante a cesárea

É vedada a esterilização cirúrgica em mulheres durante o período de

parto ou aborto, exceto em caso de risco de vida para a mulher, conforme

artigo 10, § 2º da Lei 9263/1996 e Portaria SAS/MS nº 048 (11/02/1999), que

regulamenta a esterilização nos serviços públicos de saúde.

Na época da aprovação das normas para a esterilização, as taxas de

parto cesáreo constituíam um sério problema de saúde pública, justificando a

medida. De acordo com a PNDS de 1996, mais de 50% de todas as

esterilizações ocorreram durante um nascimento por cesariana. Nas regiões

mais desenvolvidas do país estas estimativas chegam a 70%, indicando um

abuso deste procedimento como meio de esterilização.69

Pondera a respeito do tema Ana Maria Costa, integrante do Núcleo de

Saúde e Sexualidade e coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública

da Universidade de Brasília, que, no Brasil contemporâneo a taxa de

mortalidade materna, ou seja, óbitos de mulheres em decorrência da gravidez,


45

do parto ou do puerpério, transita em torno de 150/100.000 nascidos vivos.

Esta taxa é 25 vezes maior que a do Canadá, exemplifica. Conclui, assim, que

o uso abusivo da cesariana, além de interferir nesta mortandade feminina, está

diretamente relacionado ao desregramento das altas incidências de

esterilizações entre as mulheres.70

Atualmente essas taxas ainda se mantêm altas, mas tudo indica que

estarão decrescendo, em virtude de campanhas pelo parto normal e à nova

política de remuneração do Ministério da Saúde com relação aos partos

cesáreos. Com isso, os serviços de saúde tendem a ser mais cautelosos ao

optarem pela cesariana.71

A Pesquisa realizada pela Comissão de Cidadania e Reprodução, em

1999, apontou para um aumento da demanda por cirurgia de esterilização após

a publicação da lei do Planejamento Familiar o que, segundo alguns

entrevistados, estaria prejudicando o acesso das mulheres com indicação

clínica (risco à saúde) à cirurgia. A proibição da realização da cirurgia no

puerpério para as mulheres que optaram pela esterilização na vigência da

gravidez, com o intuito de dissociá-la do parto cesáreo, obriga a uma nova

internação após os 42 dias do parto, requerendo nova disponibilidade de vaga

69
BERQUÓ, Elza e CAVENAGUI, Suzana. Direitos Reprodutivos de Mulheres e Homens Face à Nova
Legislação sobre Esterilização Voluntária. In: XIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais da
ABEP - Ouro Preto 2002: 2002.
70
COSTA, Ana Maria. Planejamento Familiar no Brasil. In: http://www.cfm.org.br.
71
LUIZ, Olinda C. e CITELI, Maria Teresa. Esterilização Cirúrgica: lei que fica no papel. Jornal da
Rede Feminista de Saúde - nº 20 - Maio 2000.
46

e acarreta alta nos custos. Para Olinda e Maria Teresa72, a minimização desse

problema poderia ser obtida com pequena alteração nas normas, como permitir

a realização da laqueadura tubária no pós-parto imediato, pois esta é mais fácil

do ponto de vista técnico, desde que os demais critérios sejam mantidos

(manifestação da vontade 60 dias antes da cirurgia, idade e número de filhos,

aconselhamento etc.).

Dito isto, resta analisar as exceções da Lei, no que se refere à

legitimidade para requerer a esterilização, que são os absolutamente

incapazes.

2.5 Capacidade de decidir sobre a esterilização. Sujeitos


absolutamente incapazes

Não é permitido no Brasil o uso da esterilização voluntária em sujeitos

absolutamente incapazes sem autorização judicial. Assim, o artigo 10, §4º da

Lei 9263/2003 dá a autoridade judiciária o poder para decidir sobre a fertilidade

dos sujeitos absolutamente incapazes73.

A Lei omite-se com relação aos sujeitos relativamente incapazes,

deixando-os a mercê das regras e critérios gerais da esterilização. Infelizmente

72
LUIZ, Olinda C. e CITELI, Maria Teresa. Esterilização Cirúrgica: lei que fica no papel. Jornal da
Rede Feminista de Saúde - nº 20 - Maio 2000.
73
Conforme artigo 3º do CC, são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil
os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade mental, não tiverem necessário discernimento para
a prática desses atos; e os que mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
47

não se vislumbrou, em toda bibliografia consultada, algum caso de esterilização

de sujeitos relativamente incapazes.

Sobre esterilização em menor incapaz, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de

Justiça do Paraná autorizou, por unanimidade, a cirurgia de laqueadura em

uma menor de idade deficiente mental74. No caso em tela, a mãe da

adolescente incapaz ingressou em juízo requerendo autorização para a cirurgia

de esterilização logo após abuso sexual e posterior gravidez da menor (na

época do pedido a menor tinha 16 anos). Alega a genitora não possuir

condições de manter a filha sob vigilância total.

O pedido de laqueadura foi negado em primeira instância. O Ministério

Público de 1º grau ofereceu parecer desfavorável ao pedido, concluindo que

no requerimento não havia clareza da necessidade de cirurgia para

esterilização. Ponderou a vedação legal para a prática da aludida intervenção

em período gestacional avançado, com no caso da Requerente. Entendo, por

fim, não poder ser acolhido o pedido, ainda porque a curatelada é “pessoa

muito jovem e primípara”. O juiz monocrático considerou que a requerente não

poderia ter um provimento jurisdicional favorável, invocando apenas a Lei nº.

9.263/96 e apresentando um simples atestado médico, sem maiores

esclarecimentos. Atesta em sua decisão que a Autora não provou a

necessidade e possibilidade do pedido, vez que nem ao menos juntou aos

autos laudo médico especializado e detalhado acerca do cabimento ou não da

laqueadura. Fundamenta ainda sua decisão, no artigo 10, § 6º da Lei nº.


48

9.263/96, o qual dispõe sobre a esterilização cirúrgica em pessoas

absolutamente incapazes e depende ainda de regulamentação.

A decisão foi revertida no TJ paranaense. A Procuradoria Geral de

Justiça entendeu que as alegações da apelante careciam de solidez, não

demonstrando em nenhum momento risco à vida ou a saúde de interdita, bem

como ao futuro concepto, Considerando que não havia amparo legal, moral ou

científico para a pretensão, Ministério Público opinou pelo improvimento do

recurso. Para o relator do Recurso de Apelação, o Poder Judiciário não pode

omitir-se em autorizar a cirurgia porque a finalidade do Estado é “promover a

felicidade do cidadão”. Na análise do mérito, o Relator cita a Apelação nº.

596.210.153 do Tribunal de Justiça do RS, na qual um dos julgadores, que teve

seu voto vencido, assim entendeu :

De primeiro, gostaria de referir que não vejo na pretensão veiculada -


pedido de realização de cirurgia esterilizadora de um incapaz -
indevida interferência do Estado na vida das pessoas. Alias, essa é a
finalidade da estruturação social: resolver os problemas que se
abatem sobre o cidadão, soluções estas que devem ser dadas pelo
Poder Judiciário.
De outra parte, não enxergo no pedido violação a qualquer dos
direitos individuais, tão fartamente elencados na Carta Constitucional.
A intervenção cirúrgica - singela, diga-se de passagem - é
amplamente usada como método contraceptivo. Alias, o art. 226.§ 7°,
da Constituição Federal assegura liberdade de decisão com relação
ao planejamento familiar. Se violação a direito constitucional há é na
possibilidade de uma pessoa, incapaz de assumir maternidade, gerar
um filho, pois o art. 227 garante à criança o direito à vida, à saúde, e
à convivência familiar. A incapacidade da interdita de criar um filho é
evidenciada pelo fato de a anterior gravidez e o conseqüente
nascimento de uma criança, ter levado à destituição do mátrio poder e
entrega da criança à adoção. Mais não precisa se ter como
evidenciada a necessidade de se impedir nova gravidez, atendendo
aos interesses da curatelada o pedido de seu curador para que ela
seja submetida à referida intervenção.

74
AC nº 122.818-8 TJ/PR. In: www.mppr.gov.br.
49

No mesmo julgado do Tribunal do Paraná, um dos julgadores ressaltou,

ainda, a necessidade de uma punição aos “elementos que praticam este tipo

de abuso”. Segundo o Desembargador, existe uma legislação deficitária neste

setor. Para ele, a lei poderia prever a esterilização dos culpados pela prática do

crime.75

A Apelação Cível nº. 596.210.153, citada no acórdão já comentado,

indeferiu o pedido de esterilização da requerente. Argumenta o Relator que o

pedido pleiteado pelo curador de mulher portadora de doença mental,

incapacitada para os atos da vida civil e sem vontade para consentir, poderá

abrir um precedente “perigoso e terrível” caso seja deferido; pois, com o

avanço da ciência, poderá mais tarde curar a psicose da qual é portadora a

interdita e, se submetida à laqueadura tubária, perderá a possibilidade de

procriar, já que não há garantia da reversibilidade da cirurgia esterilizatória. Diz

ainda, o Relator, que existe outros métodos para controlar a concepção, visto

que, o curador quer liberar a incapaz para o sexo.76

Os casos expostos acima são alguns dos poucos julgados com relação à

esterilização de incapazes. Samantha Buglione77, em sua dissertação de

mestrado, analisa algumas decisões que tratam deste tema e conclui que as

decisões são contraditórias em suas argumentações. Para a Autora, o julgador,

ao decidir, pode valer-se de pressupostos utilitaristas - que se preocupam com

75
Revista Consultor Jurídico de 28 de novembro de 2002.
76
AC nº 596.210.153. TJ/RS. In: www.tj.rs.gov.br.
77
BUGLIONE, Samantha. Reprodução, esterilização e justiça: os pressupostos liberais e utilitaristas na
construção do sujeito de direito.Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da PUC/RS.
Porto Alegre, 2003. p.59.
50

o bem comum - ou de pressupostos liberais - que defendem a qualquer custo a

liberdade individual.

A Autora cita o exemplo das políticas de sobre a fecundidade da China e

Índia. Enquanto que no Estado de Kerla, na Índia, o governo investiu em saúde

e educação, usando a cidadania com meio para promover responsabilidade; a

China usou “a política do filho único”, ou seja, o Estado exercendo o poder de

controle sobre o indivíduo como meio de construção de uma sociedade mais

equilibrada, com condições para o exercício geral da liberdade e práticas mais

responsáveis. O resultado: Em 1979, no início das políticas, Kerla tinha o índice

de fecundidade de 3, enquanto que a China 2,8. Em 1991, o índice ficou abaixo

de 1,8 em Kerla, e a China na média de 2.78

A realidade brasileira, revelada através de Pesquisas, as quais serão

analisadas a seguir, demonstram um emprego muito maior de pressupostos

utilitaristas na questão da esterilização voluntária feminina. Exemplo disto é a

averiguação do uso indiscriminado de cirurgias de laqueadura tubária,

principalmente nas mulheres de baixa renda.

78
Sobre o estudo, ver SEM, Amarty. Fertility and Coercion. The Univrsity of Chicago Law rewie,
Chicago, vol. 63, n. 03, 1996. apub em BUGLIONE, Samantha. Reprodução, esterilização e justiça: os
pressupostos liberais e utilitaristas na construção do sujeito de direito. Dissertação de Mestrado
apresentada à Faculdade de Direito da PUC/RS. Porto Alegre, 2003. p.59.
51

2.6 O uso indiscriminado da esterilização em mulheres

O alto índice de mulheres esterilizadas no Brasil levantou uma série de

indagações no final da década de 80 em nosso país. O primeiro documento

oficial brasileiro sobre a prática da esterilização no país data de 1993, quando

se apresentou ao Congresso Nacional o relatório nº 2 da Comissão

Parlamentar Mista de Inquérito, criado através do requerimento 796/91,

popularmente conhecido como “CPI da Esterilização”.79

A CPMI documentou os riscos para a saúde das mulheres face aos

abusos da prática esterilizatória feminina, conduzida de forma indiscriminada e

clandestina. Tal situação se traduziu em um projeto de lei aprovado no

Congresso Nacional em 1996 (Lei nº. 9.263 - 12/01/96), que além de

regulamentar o exercício do direito reprodutivo - dentro de uma visão de

atendimento integral à saúde, proibindo a utilização de ações políticas para

qualquer tipo de controle demográfico, regulamentou a esterilização no País.80

O artigo que trata da regulamentação da esterilização foi vetado pelo

Executivo no dia 15/01/96. O Presidente da República Fernando Henrique

Cardoso baseou sua decisão em um parecer jurídico que considera a

esterilização uma "clara mutilação". A imprensa veiculou, na época, que o

Presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que havia cometido um erro ao

79
BUGLIONE, Samantha. Reprodução, esterilização e justiça: os pressupostos liberais e utilitaristas na
construção do sujeito de direito. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da
PUC/RS. Porto Alegre, 2003. p.12.
52

vetar esse artigo e requereu ao Congresso que derrubasse seu veto, o que só

ocorreu em 14/08/97. A partir da publicação no Diário Oficial da União, em

27/11/97, a rede pública de saúde assumiu a responsabilidade de preparar os

Hospitais Públicos para o cumprimento da Lei de Planejamento Familiar. Para

tanto, os hospitais devem, a partir da nova legislação aprovada, se

aparelharem com equipes multidisciplinares para aconselhar e desencorajar a

esterilização precoce.81

A Lei do Planejamento Familiar tinha como objetivo acabar com os altos

índices de esterilização no Brasil denunciados pelas pesquisas. As mais

recentes sobre o assunto datam de 1986 e 199682, quando foi traçado o perfil

da população brasileira. No que se refere aos métodos anticoncepcionais, no

ano de 1986, a proporção de mulheres casadas que utilizavam algum método

para evitar a gravidez era 64,5%, sendo que 42,2% utilizaram a esterilização

com forma anticonceptiva. E, dentre mulheres entre 15-44 anos de idade, 66,2

utilizavam algum método, e 26,8 destas optaram pela esterilização. No ano de

1996, a porcentagem de mulheres entre 15-44 anos esterilizadas chega na

marca 38,5, de um total de 77,9 que utilizavam algum método anticonceptivo.83

80
SILVA, Susana Maria Veleda da. Inovações nas políticas populacionais: o planejamento familiar no
Brasil. Scripta Nova.. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, nº
69 (25) 1 de agosto de 2000.
81
SILVA, Susana Maria Veleda da. Inovações nas políticas populacionais: o planejamento familiar no
Brasil. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, nº
69 (25) 1 de agosto de 2000.
82
Pesquisa Nacional sobre Saúde Materno Infantil e Planejamento Familiar de 1986 e Pesquisa Nacional
de Demografia e Saúde de 1996.
83
JARDIM, Maria de Lourdes Teixeira. Fecundidade no Rio Grande do Sul (palestra proferida no
Seminário “O novo perfil demográfico da população do Rio Grande do Sul no séc. XXI”. Porto Alegre,
2002).
53

A vedação do uso das ações de regulação de fecundidade para qualquer

tipo de controle demográfico está prevista no Parágrafo único do artigo 2º da

Lei 9.263/96. E, dentro de um contexto de direitos reprodutivos, a esterilização

feminina não pode ser utilizada desta forma. Todas as pesquisas mencionadas

e o histórico político internacional e brasileiro apresentado até aqui apontam

para tal fato. Cabe, agora, expor os motivos de tamanha preocupação do

Estado com o crescimento populacional e estudar a eficácia das políticas

públicas no controle ao excessivo uso da cirurgia esterilizatória em mulheres.


54

3 A ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA COMO CONTROLE DE


NATALIDADE

Após extensa análise da Lei do Planejamento Familiar, apresentados

alguns dos motivos pelos quais o Brasil preocupou-se, principalmente em

regular a prática de esterilização feminina, passa-se a estudar por que a

esterilização foi, e ainda é utilizada com controle demográfico. Através da

análise das Conferências sobre População, verifica-se a preocupação com o

crescimento populacional do mundo, principalmente no que se refere ao

desenvolvimento econômico mundial. Destas Conferências, todos os países

signatários se comprometeram em instituir políticas públicas em seus Estados

visando o desenvolvimento de todos.

Não poderíamos deixar de lado a ética médica no procedimento de

esterilização, visto que são eles que estão na ponta do processo de aplicação

das leis, quando são procurados pelas pacientes que precisam de orientação a

respeito do planejamento familiar.


55

Por fim, o plano de políticas públicas. De que forma o Estado brasileiro

buscou seu desenvolvimento político, social e econômico? Que estratégias

foram utilizadas para a eficácia da Lei do Planejamento Familiar? Pretende-se

responder tais indagações neste momento.

3.1 A preocupação do estado com o controle da natalidade

O tema populacional sempre foi vinculado às questões do Estado, da

ordem pública, e muitas políticas públicas foram estruturadas envolvendo a

capacidade reprodutiva da mulher, por exemplo, as leis de liberação do aborto,

editadas na Rússia, logo após a revolução bolchevique. Explicita ou

implicitamente os países e as agências internacionais adotaram medidas que

causaram impactos demográficos pautados pela pergunta: Quem define: o

indivíduo, a família ou a sociedade84?

Analisando a história internacional, na década de 30, com o pós-guerra,

diferentemente do Brasil85, retomam-se as idéias do Reverendo Thomas Robert

Malthus (1766-1837), que alertava dos perigos da superpopulação, derivada do

crescimento populacional desproporcional com a produção de bens e

alimentos.

84
DORA, Denise Dourado. Os Direitos Humanos das Mulheres. DORA, Denise Dourado; SILVEIRA,
Domingos Dresch de (orgs.). Direitos Humanos, ética e direitos reprodutivos. Porto Alegre: THEMIS,
1998. p.37.
85
Onde houve uma tendência pró-natalista, influenciado em parte pelo governo Getúlio Vargas.
56

Tal tese levou a associação da pobreza com o número de pessoas,

desconsiderando a concentração de renda. Ainda, relacionando unicamente a

pobreza com natalidade, responsabiliza exclusivamente o indivíduo por sua

situação de miséria ou de riqueza. E, uma vez que, culturalmente, a

capacidade reprodutiva restringe-se as mulheres, tornam-se elas, sob este

conceito, responsáveis por sua situação econômica.

Malthus escreveu, em 1798, o “Ensaio sobre o princípio de população e

seus efeitos sobre o aperfeiçoamento futuro da sociedade, com observações

sobre as especulações de Mr. Godwin, Mr. Condorcet e outros autores” em que

apresentava uma visão pessimista do futuro da humanidade. No texto, afirma

que a fome, a guerra e as epidemias são “freios positivos” para limitar o

crescimento incontrolável da população. As teorias malthusianas eram uma

crítica ao pensamento do Marquês de Condorcet (1743-1794), que em 1794,

havia publicado o livro “Esboço de um quadro histórico dos progressos do

espírito humano”, no qual apresentava uma visão positiva do desenvolvimento

econômico, cultural e demográfico da humanidade.86

Nos anos de 1950 e 1960, quando do maior crescimento populacional da

história da humanidade, alimentados pelo medo da explosão populacional,

surge o neomalthusianismo que, ao contrário de Malthus, propunham o

controle demográfico através de métodos contraceptivos. Sem os preconceitos

religiosos, recomendavam a utilização de métodos contraceptivos modernos

86
Alves, José Eustáquio Diniz .A Polêmica Malthus versus Condorcet reavaliada à luz da transição
demográfica. Rio de Janeiro : Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2002. 56p. - (Textos para
discussão. Escola Nacional de Ciências Estatísticas, ISSN 1677-7093 ; n.4).
57

dentro e fora do casamento, da esterilização e, em certos casos, até do

aborto.87

Pela lógica neomalthusiana, era necessário o estabelecimento de metas

demográficas e políticas populacionais restritivas, legitimando o Estado a

gerenciar o planejamento familiar. Sendo assim, em 1952, foi criado por

Margaret Sanger, o International Planned Parenthood Federation (IPPF), que

tinha como objetivo o controle demográfico, principalmente dos países

pobres.88

A Conferência Mundial de População, em Roma, no ano de 1954,

debateu a cerca do papel da população no desenvolvimento, com

posicionamentos diversos quanto à eventual barreira ao desenvolvimento

provocada pelo crescimento populacional. A posição dos palestrantes variava

em volta da tricotomia: controlistas, natalistas ou população com elemento

neutro para o desenvolvimento.89

87
Alves, José Eustáquio Diniz .A Polêmica Malthus versus Condorcet reavaliada à luz da transição
demográfica. Rio de Janeiro : Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2002. 56p. (Textos para
discussão. Escola Nacional de Ciências Estatísticas, ISSN 1677-7093 ; n.4).
88
No Brasil, na década de 60, o IPPF financiou entidades e outras instituições para realizarem o controle
da natalidade, provocando um impacto profundo na organização das famílias, no perfil populacional da
sociedade e na saúde das mulheres brasileiras. (BUGLIONE, Samantha. Ações em direitos sexuais e
direitos reprodutivos. Relatório realizado pela Themis: 1999/2001. In: www.themis.com.br ).
89
BERQUÓ, Elza. O Brasil e as Recomendações do Plano de Ação do Cairo. In: BILAC, Elisabete Dória
e ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Saúde Sexual e Reprodutiva na América Latina e no Caribe. Temas e
Problemas. São Paulo: Editora 34. 1998. p.24.
58

Na Conferência de Belgrado, no ano de 1965, esteve presente, além do

debate da populacional, a questão do planejamento familiar como a pílula e

DIU, esterilização masculina e o aborto legalizado, quando aceitos pela

sociedade.

Foi registrado o direito de integração da mulher no processo de

desenvolvimento, mediante igual acesso à educação e participação na vida

social, econômica, e política na Conferência de Bucareste, no ano de 1974. A

participação masculina surgiu como ponto indispensável ao sucesso do

planejamento familiar. Ainda, reconheceu o direito do casal e indivíduos de

decidir livre e responsavelmente o número de filhos, o seu espaçamento e de

ter educação, informação e meios para que possa concretizar tal direito.90

Na cidade do México, em 1984, quando da Conferência Mundial sobre

População, o planejamento familiar voluntário (respeitados os direitos

individuais, crenças religiosas e valores culturais) surge como solução para

erradicação da pobreza instalada nos países subdesenvolvidos. Taís de Freitas

Santos lembra, oportunamente, que pela primeira vez aparece claramente

certa instrumentalização da mulher visando o planejamento familiar. Afirma,

ainda, que melhorar o status da mulher e elevar seu papel é meta relevante em

si mesma, mas também por trazer influência significativa na vida familiar e no

seu tamanho de forma positiva.91

90
SANTOS, Tais de Freitas. Saúde Reprodutiva. PUC Minas Virtual, 2003
91
SANTOS, Tais de Freitas. Saúde Reprodutiva. PUC Minas Virtual, 2003.
59

A Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada

no Cairo em 1994, superou as visões anteriores ao articular população com

desenvolvimento. Beneficiada com a Conferência de Viena (1993), o

documento do Cairo reafirma a aplicação dos direitos humanos universais a

todos os aspectos populacionais. Reflete também, o novo conceito de

planejamento familiar, com a consagração dos direitos reprodutivos e traz a

regulação da fecundidade para o plano dos direitos individuais.92

Como já mencionado, a história política ensina que os Estados têm tido

preocupações demográficas voltadas para as mulheres, muitas vezes

utilizando o pretexto de programas de saúde, quando na verdade são

programas de controle de natalidade. A análise de tais políticas foi realizada ao

longo do texto e, com maior destaque, no último item deste capítulo.

Todavia, demógrafos apontam para o recente fenômeno de brusca

queda da fecundidade no Brasil. Em 1980, o Censo Demográfico diagnosticava

a queda generalizada da fecundidade em todas as regiões do país, inclusive a

rural93. Em 1984, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)

apontava para uma queda de 19,0% na taxa de fecundidade total em relação a

92
BERQUÓ, Elza. O Brasil e as recomendações do Plano de Ação do Cairo. In: BILAC, Elisabete Dória
e ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Saúde Sexual e Reprodutiva na América Latina e no Caribe. Temas e
Problemas. São Paulo: Editora 34. 1998. p.26.
93
MARTINE, G. O mito da explosão demográfica. Ciência Hoje, 9 (51), 1989. op. cite em HITA, Maria
Gabriela e SILVA, Maria das Graças da. Esterilização Feminina no nordeste brasileiro: uma decisão
voluntária? In: BILAC, Elisabete Dória e ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Saúde Sexual e Reprodutiva
na América Latina e no Caribe. Temas e Problemas. São Paulo: Editora 34. 1998. p.291.
60

1980. E de 6,2 filhos por mulher, entre 1950-55, a taxa despencou para 4,5 em

1980, para 3,5 em 1984 e 2,5 em 1991.94

Apontam os estudos que a queda da fecundidade está associada com a

mudança de comportamento reprodutivo a partir da década de 60, quando da

introdução dos anticoncepcionais, das pressões do movimento feminista e a

divulgação da prática da esterilização (a partir da década de 80, mais

intensamente).95

Pelo menos, até agora, as teorias do Reverendo Malthus, não se

concretizaram. Os índices de fecundidade decaíram, porém, cresceu a

desigualdade social e a pobreza mundial. Vários autores comentam tal fato e,

segundo Maria Betânia Ávila96, no Brasil, "a queda acentuada da taxa de

fecundidade, elemento fundamental para a configuração da transição

demográfica aqui realizada, foi acompanhada de violento aumento de miséria

social que contradiz profundamente as teses neo-malthusianas" e a própria

teoria da modernização.

94
BERQUÓ, E. O crescimento da População da América Latina e mudanças na Fecundidade. In:
AZEREDO, S. & STOLCKE, V. (coord.) Direitos Reprodutivos. São Paulo, Fundação Carlos
Chagas/PRODIR, 1991 e BERQUÓ, E. Brasil, um caso exemplar: anticoncepção e parto cirúrgico à
espera de uma ação exemplar. Campinas, 1993 (Trabalho apresentado no Seminário Situação da Mulher
e Desenvolvimento, organizado pelo Ministério das Relações Exteriores e NEPO/UNICAMP). op cite em
HITA, Maria Gabriela e SILVA, Maria das Graças da. Esterilização Feminina no nordeste brasileiro:
uma decisão voluntária? In: BILAC, Elisabete Dória e ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Saúde Sexual e
Reprodutiva na América Latina e no Caribe. Temas e Problemas. São Paulo: Editora 34. 1998.
95
BERQUÓ, E. Brasil, um caso exemplar: anticoncepção e parto cirúrgico à espera de uma ação
exemplar. Campinas, 1993 (Trabalho apresentado no Seminário Situação da Mulher e Desenvolvimento,
organizado pelo Ministério das Relações Exteriores e NEPO/UNICAMP). op. cite em HITA, Maria
Gabriela e SILVA, Maria das Graças da. Esterilização Feminina no nordeste brasileiro: uma decisão
voluntária? In: BILAC, Elisabete Dória e ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Saúde Sexual e Reprodutiva
na América Latina e no Caribe. Temas e Problemas. São Paulo: Editora 34. 1998.
96
ÁVILA, M. B. Modernidade e cidadania reprodutiva. Estudos Feministas, Vol. 1, nº 2. Rio de Janeiro:
CIEC/ECO/UFRJ,1993. op cite em SILVA, Susana Maria Veleda da. Inovações nas políticas
populacionais: o planejamento familiar no Brasil. In: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias
Sociales Scripta Nova. Universidad de Barcelona. nº 69 (25) 1 de agosto de 2000.
61

3.2 A ética médica no procedimento de esterilização

A anticoncepção, do ponto de vista ético, possui várias dimensões. Do

ponto de vista individual, reconhece-se o princípio bioético da autonomia que

valoriza o sujeito e sua livre vontade. Para tanto, cada indivíduo tem o atributo

de optar, em se tratando de sua prole, pelo que julga ser o melhor para si,

quanto ao número e o espaçamento de seus filhos. Tal prerrogativa é

reconhecida pela bioética, que busca propiciar, meios para construir a sua

dignidade e uma boa vida97. Sendo assim, em nossa sociedade moderna,

imperioso o desenvolvimento de atitudes que comandem a fecundidade pelo

ser humano, individualmente, para que possa atingir de forma plena suas

funções sexuais e reprodutivas98.

Concomitantemente com o princípio da autonomia, está a necessidade

de informação. Pois, quanto maior o grau de conhecimento/informação o

indivíduo tem acerca da natureza, dos seus objetos de vida e dos recursos

disponíveis, no caso os anticoncepcionais, tanto mais livre e coerente será sua

decisão. Com relação à anticoncepção, é uma questão de boa ética a

promoção de informações minuciosas pelo médico ao paciente sobre os

recursos e métodos disponíveis. Sendo eticamente fundamental que o paciente

97
... A “boa vida” refere-se concomitantemente ao hedeonismo, doutrina fundada no prazer como fonte
da felicidade, presente em todas as épocas e em todas as latitudes, e à beatitude, que norteava as antigas
éticas, de Platão e São Tomás de Aquino. A beatitude pode ser entendida não apenas como uma condição
de santidade, o conceito exclusivamente religioso, mas, acima de tudo, como a realização plena da
condição humana e seus predicados. (Anticoncepção e ética. Protocolos-Anticoncepção. In:
http://www.sogesp.com.br.)
98
Tal entendimento se deve ao fato que, para o ser humano o sexo tem fins maiores do que,
simplesmente, meio de reprodução, ou de manutenção da espécie. Quanto mais evoluída a sociedade,
mais nítida se torna a dissociação entre sexo e reprodução. (Anticoncepção e ética. Protocolos-
Anticoncepção. In: http://www.sogesp.com.br.)
62

faça a opção pelo recurso ou método auxiliado pelo médico, que terá como

obrigação, além de prestar informação, exercer sua ciência, examinando o

paciente de modo eficiente a fim de descartar eventuais diagnósticos de

condições que imponham limites clínicos ao uso de certos meios.

Tem aplicação direta na discussão das condutas éticas em planejamento

familiar, também, o princípio do utilitarismo ou da beneficência, que indicam

que ações e política moralmente corretas são aquelas que resultam em maior

benefício para cada individuo e para o maior número de pessoas numa

sociedade.99

Do ponto de vista familiar, o planejamento familiar permite com que a

mulher deixe de ser apenas esposa e mãe e possa ter vida própria, capaz de

ter profissão e exercitá-la, gerando uma redução da subordinação da mulher

em relação ao homem, que prevaleceu por muito tempo. Os filhos deixam de

ser produto da vontade divina e passam a ser fruto da vontade dos pais,

reformulando as relações de responsabilidades.100

O Código de Ética Médica (através da Resolução nº. 1154, de 1984)

proibia a esterilização voluntária até 1988, no entanto, casos excepcionais

eram considerados quando existia indicação médica precisa, atestada por dois

médicos ouvidos em conferência. Em 1988 o Código de Médica Ética revoga a

decisão anterior e explicitamente exige que os médicos sigam as leis

99
FAÚNDES, Anibal e HARDY, Ellen. Ética Médica e Planejamento Familiar no Brasil. In:
http://www.cfm.org.br.
100
Anticoncepção e ética. Protocolos-Anticoncepção. In: http://www.sogesp.com.br
63

específicas, afirmando: “é vedado ao médico… descumprir legislação

específica nos casos de transplantes de órgãos ou tecidos, esterilização,

fecundação artificial e abortamento” (Artigo 43).101

Pesquisas demonstram que inúmeros médicos sugerem a necessidade

de realizar a esterilização em mulheres pobres. Em seus argumentos,

associam a pobreza com o analfabetismo e a exagerada quantidade de filhos.

Porém, na análise do perfil das usuárias desses serviços de saúde, constatou-

se que o percentual de mulheres analfabetas é de 3% a 4%. E, com esses

percentuais de analfabetismo, não se justificaria a enorme redução do tamanho

das famílias no Brasil.102

Na realidade, apesar da mudança no perfil das mulheres e de seus

direitos, a ideologia do controle de natalidade ainda está enraizada na

mentalidade do discurso médico, em que, “toda mulher pobre é analfabeta e

cheia de filhos”. Segundo Maria Betânia Ávila103, desconstruir essa mentalidade

é possível a partir de um trabalho com os profissionais da saúde, no qual insira-

se noções de cidadania e direitos articulando-os com a questão da saúde.

Pode-se citar como exemplo, os trabalhos desenvolvidos pela ONG Agende –

Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento, em seu Projeto Nacional de

101
BERQUÓ, Elza e CAVENAGUI, Suzana. Direitos Reprodutivos de Mulheres e Homens Face à Nova
Legislação sobre Esterilização Voluntária.In: XIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais da
ABEP - Ouro Preto 2002: 2002.
102
ÁVILA, Maria Betânia. Direitos Reprodutivos. In: LIBARDONI, Marlene. (coord.) Curso Nacional
de Advocacia Feminista em Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos. Brasília: Agende, 2002.
103
ÁVILA, Maria Betânia. Direitos Reprodutivos. In: LIBARDONI, Marlene. (coord.) Curso Nacional
de Advocacia Feminista em Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos. Brasília: Agende, 2002.
64

Advocacy em Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos, que visa fortalecer as

mulheres para o exercício da advocacia na defesa de direitos.

3.3 Eficácia da lei – plano de políticas públicas para sua


implementação adequada

É possível fazer sexo sem engravidar e ter filhos. É possível fazer


sexo seguro. É possível planejar a família da gente, não porque o
governo manda castrar homem ou mulher, mas porque há um
processo de educação em que as pessoas aprendem a determinar
quando e quantos filhos querem colocar no mundo. (Presidente Luiz
104
Inácio da Silva)

Inúmeros autores comentam os motivos pelos quais houve tamanha

queda na taxa de fecundidade em nosso país tão rapidamente

(aproximadamente em 10 anos, a taxa de fecundidade decresceu 30%). Além

do crescimento do uso de métodos contraceptivos, já denunciado

anteriormente, pode-se citar ainda o modelo de desenvolvimento social

implementado no país, as altas taxas de concentração de renda, o processo de

proletarização105, a queda no padrão de vida, o aumento do custo dos gêneros

alimentícios, a crescente urbanização e industrialização no País, o ingresso

maciço da mulher no mercado de trabalho, o aumento no nível de escolaridade

feminina e as transformações nas formas de organização da produção. Todos

104
CORREIO DO POVO, em 13/03/2003. Lula defende planejamento familiar, primeira página.
105
O processo de proletarização teria destruído o sistema anterior que estimularia o padrão de alta
fecundidade, pois na medida em que a produção doméstica é eliminada e que aumenta o custo de
subsistência da força de trabalho, o processo de assalariamento parece atuar como desestimulador de
famílias grandes. (SILVA, Susana Maria Veleda da. Inovações nas políticas populacionais: o
planejamento familiar no Brasil. In: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales Scripta Nova.
Universidad de Barcelona. nº 69 (25) 1 de agosto de 2000).
65

estes fatores estruturais tornaram a manutenção de famílias grandes uma

tarefa árdua.106

Para Faria107 estas teorias privilegiam uma abordagem estrutural em

detrimento da ação das pessoas, defendendo, assim, uma nova leitura para o

fenômeno da queda da fecundidade. Analisa o papel das ações

governamentais na incidência do fenômeno no país. Mesmo não sendo a

intenção do governo, o processo de mudança institucional associado às

políticas públicas de crédito ao consumidor, de telecomunicações, de

previdência social e de atenção à saúde foram estratégias para a aceleração

da mudança sócio-cultural, e foram decisivas para o declínio da fecundidade

no Brasil.

O governo brasileiro da década de 80, não possuía preocupações com

o crescimento populacional, já que na época tinha-se como positivo tal

crescimento para o desenvolvimento econômico, para a segurança nacional,

para o povoamento dos vastos espaços vazios do território nacional e o

crescimento das oportunidades de emprego superava o crescimento

demográfico.108 Porém, a burguesia brasileira, setores médicos e alguns

setores do governo militar, aliavam-se às tendências internacionais de

106
SILVA, Susana Maria Veleda da. Inovações nas políticas populacionais: o planejamento familiar no
Brasil. In: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales Scripta Nova. Universidad de Barcelona.
nº.69 (25) 1 de agosto de 2000.
107
FARIA, V. Políticas de governo e regulação da fecundidade: conseqüências não antecipadas e efeitos
perversos. Ciências Sociais Hoje. São Paulo: Vértice/ANPOCS, 1989. op cite em SILVA, Susana Maria
Veleda da. Inovações nas políticas populacionais: o planejamento familiar no Brasil. In: Revista
Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales Scripta Nova. Universidad de Barcelona. nº.69 (25) 1 de
agosto de 2000.
108
BERQUÓ, Elza. Sobre a política de planejamento familiar. Revista Brasileira de Estudos de
População. v.4, n.1, jan./jun. 1987. Edição Especial: ABEP 10 ANOS. p.99.
66

contenção populacional. A relação entre pobreza e natalidade recebia, através

destes grupos, grande visibilidade na sociedade brasileira.109

Inspirada na idéia que a melhor distribuição de renda associada com o

acompanhamento do crescimento populacional são fatores determinantes para

regulação do controle demográfico, a delegação brasileira, na Conferência de

Bucareste110, defendeu a soberania nacional e comprometeu-se em instituir

políticas para redução da mortalidade, promoção do crescimento harmônico

dos setores urbano e rural. Reconhecendo a competência do núcleo familiar

em decidir sobre sua fecundidade, enfatizou a não interferência estatal nesta

esfera. Comprometeu-se, ainda, em proporcionar a toda a população

informação e meios necessários pra o exercício do controle de natalidade.111

Apesar do comprometimento assumido em Bucareste, o governo não

investiu em políticas públicas que proporcionassem à população informações e

meios para a regulação da fecundidade. Pelo contrário, ao ser divulgado o

segundo Plano Nacional de Desenvolvimento do governo Geisel, no qual

revelava o desejo pela desaceleração do crescimento populacional, estimulou-

se, em todo o país, o trabalho das entidades privadas de controle de

natalidade. Elza Berquó112 cita como exemplos, a Sociedade Civil do bem-Estar

109
ÁVILA, M. B. Modernidade e cidadania reprodutiva. Estudos Feministas, Vol.1, nº.2. Rio de Janeiro:
CIEC/ECO/UFRJ,1993. op cite em SILVA, Susana Maria Veleda da. Inovações nas políticas
populacionais: o planejamento familiar no Brasil. In: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias
Sociales Scripta Nova. Universidad de Barcelona. nº.69 (25) 1 de agosto de 2000.
110
Sobre a Conferência de Bucareste, ver item 3.1.
111
BERQUÓ, Elza. Sobre a política de planejamento familiar. Revista brasileira e estudos de população.
v.4, n.1, jan./jun. 1987. Edição Especial: ABEP 10 ANOS. p.100.
112
BERQUÓ, Elza. Sobre a política de planejamento familiar. Revista brasileira e estudos de população.
v.4, n.1, jan./jun. 1987. Edição Especial: ABEP 10 ANOS. p.100.
67

Familiar (BEMFAM), fundada em 1965, e o Centro de Assistência Integrada à

Mulher e à Criança (CEPAIM), de 1975, que receberam recursos financeiros

em larga escala vindos do exterior para atuarem junto à população de baixa

renda, incentivando-as a redução do número de filhos.113

Com a crise econômica instalada no país no final da década de 70, o

governo brasileiro foi levado a repensar sua posição em relação ao

crescimento populacional. Influenciado pela aproximação da Conferência do

México, o Presidente da época, João Batista Figueiredo dá novos rumos à

política populacional do país. Em seu discurso ao Congresso Nacional, em 1º

de março de 1983, diz que:

No elenco dos fatos maiores que, em nosso tempo, abalam a


humanidade, estão as mudanças resultantes do crescimento
populacional. A explosão demográfica ocorre sobretudo nos países
menos desenvolvidos, onde se comprimem cerca de dois terços da
população mundial. No Brasil, nos últimos 40 anos, o aumento
demográfico ultrapassou 50 milhões de habitantes.
(...)
Esse crescimento humano, em termos explosivos, devora, como se
tem observado, o crescimento econômico. Agente da instabilidade,
acarreta desequilíbrios sociais, econômicos, culturais e políticos, que
reclamam profunda meditação. Cuida-se de tema que merece detido
exame da sociedade e de seus órgãos. O amplo debate da questão,
sobretudo por parte do Congresso Nacional, contribuirá para que se
114
fixem, de modo objetivo, diretrizes fundamentais a tal respeito.

A partir dessa nova ótica, o Ministério da Saúde implementa três

programas federais, que tinham como fim a promoção da saúde sexual e

reprodutiva: o Programa de Assistência Integral a Saúde da Mulher (PAISM), o

113
Surgem, nesta mesma data, denúncias de abuso dos contraceptivos hormonais orais, sem devida
prescrição médica.
114
BERQUÓ, Elza. Sobre a política de planejamento familiar Revista Brasileira de Estudos de
População. v.4, n.1, jan./jun. 1987. Edição Especial: ABEP 10 ANOS. p.100.
68

Programa Nacional de Prevenção das Doenças Sexualmente Transmissíveis e

o Programa de Saúde do Adolescente (Prosad).

O PAISM foi criado em 1983 com o intuito de expandir os serviços de

saúde pública às mulheres além do ciclo gravídico-puerperal. As diretrizes

gerais do Programa previam a capacitação do sistema de saúde para atender

as necessidades da população feminina, enfatizando as ações dirigidas ao

controle das patologias mais prevalentes nesse grupo; estabeleciam também a

exigência de uma nova postura de trabalho da equipe de saúde em face do

conceito de integralidade do atendimento; pressupunham uma prática

educativa permeando todas as atividades a serem desenvolvidas, de forma que

as mulheres pudessem apropriar-se das informações necessárias para um

melhor controle sobre sua saúde. No que se refere ao planejamento familiar,

situou as ações de regulação de fecundidade com complementares das ações

de saúde materno-infantil, além de desvincular as atividades de planejamento

familiar com qualquer caráter coercitivo para as famílias que venham a utilizá-

las.115

A idéia do programa federal de atenção integral à mulher foi pioneira,

vez que trouxe a concepção de saúde reprodutiva nos moldes da adotada pela

Organização Mundial de Saúde em 1988, que foi ampliada e consolidada pela

Conferência de Cairo e de Beijing. Representando, assim, um avanço ao

115
Ministério da Saúde, 1984. Assistência Integral à Saúde da Mulher: Bases de Ação Programática.
Brasília: Centro de Documentação, Ministério da Saúde.op cite em OSIS, Maria José Martins Duarte.
Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil. Cad Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14
(Supl. 1) 25-32, 1998. In: http://www.scielo.br.
69

reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres, antes mesmo da

expressão ganhar cunho internacional. Em que pese à implementação efetiva

do programa, esta infelizmente não ocorreu. A falta de interesse político, além

do caos do sistema público de saúde, foram fatores que contribuíram para a

inoperância do PAISM.116

O Prosad, concebido em 1988, como um programa multidisciplinar e

integrado, teve um desempenho muito desigual, devido a fragmentação de

ações e a falta de recursos financeiros. Já o Programa Nacional de Prevenção

das Doenças Sexualmente Transmissíveis, de 1986, foi renomeado em 1988

(quando já se evidenciava a pandemia no país) com Programa Nacional de

DST-Aids (Pnaids), vindo a receber financiamento pelo Banco Mundial,

somente em 1992.117

Com o objetivo de coordenar as atividades de população e

desenvolvimento, o governo brasileiro cria, através do Decreto 1.607 de 1995,

a Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD). A Comissão

foi instituída com a finalidade de formular políticas públicas e implementar

ações integradas visando o desenvolvimento, bem como fiscalizar tais políticas

e ações.118

116
OSIS, Maria José Martins Duarte. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil.
Cad Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14 (Supl. 1) 25-32, 1998. In: http://www.scielo.br.
117
Comissão Nacional de População e Desenvolvimento. Cairo + 5. O caso Brasileiro. Brasília, 1999.
p.80.
118
BERQUÓ, Elza. O Brasil e as recomendações do Plano de Ação do Cairo. In: BILAC, Elisabete
Dória e ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Saúde Sexual e Reprodutiva na América Latina e no Caribe.
Temas e Problemas. São Paulo: Editora 34. 1998. p.29-30.
70

O grande desafio após a criação do CNPD era a integração sistemática

entre os três programas federais (Paism, Pnaids, e Prosad), e a incorporação

das prioridades em saúde sexual e reprodutiva à nova lógica de gestão e

assistência do SUS.119 Atualmente a CNPD é um órgão colegiado vinculado ao

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão do governo federal (artigo 2º,

III, d, anexo I, do Decreto 4638 de 21 de março de 2003).

A atual administração do governo federal criou a Secretaria Especial de

Políticas para as Mulheres que hoje coordena o Conselho Nacional dos Direitos

da Mulher. Em que pese às políticas públicas sobre planejamento familiar, foi

constituído um grupo de trabalho, dentro da Secretaria, para discutir a saúde

sexual, reprodutiva e a paternidade responsável. Em entrevista, a Ministra

Emília Fernandes comenta que

... o tema tem de ser discutido porque se deve esclarecer


definitivamente o sentido do planejamento, pois quando se fala em
planejamento não é uma forma de cerceamento do poder de decisão
das pessoas. Pelo contrário, é a garantia do direito do planejamento
da saúde reprodutiva e sexual, a decisão e o direito de se ter mais ou
menos filhos e de se ter acesso aos serviços quando se quer menos
120
ou mais filhos também.

Além da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o governo

conta com Programas voltados para a saúde, através do Ministério da Saúde,

119
Comissão Nacional de População e Desenvolvimento. Cairo + 5. O caso Brasileiro. Brasília, 1999.
p.82.
120
LISBOA, Carla. País precisa cumprir as leis em favor da mulher. Brasília, 13.07.2003. In:
www.gevarahome.org.
71

bem como de políticas relativas a população e ao desenvolvimento, através do

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.121

Espera-se, que o atual governo atinja seus objetivos anunciados pela

Ministra Emília Fernandes e pelo próprio Presidente da República e consiga

implementar, de forma eficaz, todas as prerrogativas da Lei do Planejamento

Familiar.

121
In: www.mj.gov.br
4 CONCLUSÃO

Atualmente a esterilização voluntária feminina é um direito constitucional

brasileiro, regulado pela Lei do Planejamento Familiar. Internacionalmente, é

tido como um direito humano de todos os cidadãos que buscam seu

planejamento familiar. Inserida no rol dos direitos reprodutivos, possui todas as

garantias legais para uma efetiva escolha consciente, dentre os demais

métodos contraceptivos. Nesta concepção, é de competência do Estado a

promoção de meios que possibilitem o exercício do planejamento familiar. Para

tanto foi criada a inovadora Lei do Planejamento Familiar que acompanhou

todo o atual entendimento sobre direitos reprodutivos.

Porém, não basta promulgar uma Lei para que seja garantido o respeito

os direitos nela protegidos. É preciso criar mecanismos que a tornem eficaz.

Neste prisma, as políticas públicas são essenciais. Seja no âmbito da saúde

pública, seja na esfera educacional. O que se necessita é dar a todos o que

lhes é assegurado em lei; a assistência integral a sua saúde e a informação

das formas de exercício de seu planejamento familiar. Ou seja, capacitar todo o

indivíduo para exercer sua cidadania.


73

Na realidade, existe no Brasil uma cultura da esterilização, em que se

acredita que a ligadura tubária é a melhor opção, se não a única, para o

controle populacional das camadas de menor potencial econômico, calcados

em teorias que acreditam que somente o controle populacional levaria o país

ao desenvolvimento econômico. Em contrapartida, se é possível fundamentar

práticas que utilizem as pessoas como meio, é possível pensar procedimentos,

seja na política, seja no direito, capazes de preservarem o princípio

constitucional e de direitos humanos da dignidade da pessoa.

Alisando a esterilização na ótica dos direitos reprodutivos, do Código de

Ética Médica e da não utilização desta prática como controle demográfico

conclui-se que, se todo o cidadão tivesse acesso à informação adequada,

tivesse uma educação para decidir sobre seu planejamento familiar, não

precisaria possuir uma lei que restringisse a esterilização voluntária.

O Brasil, infelizmente, está longe deste conceito. A cultura da

esterilização somente poderá ser disseminada através de políticas públicas que

garantam os direitos já consolidados em lei e incidam em toda a população

brasileira, principalmente nos agentes de saúde.

Na base do exercício dos direitos reprodutivos está o consentimento

devidamente informado, que deve ser protegido e respeitado quando tratarmos

de esterilização voluntária feminina. Como a própria nomenclatura insinua,

deve-se deixar que a mulher decida pelo seu corpo e defina quando quiser por

fim a sua capacidade reprodutiva. Devendo ser assegurada sua saúde pela
74

devida orientação médica, a qual indicará a esterilização quando outros

métodos reversíveis não são indicados, ou põe em risco a vida da mulher.


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