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A versão caricatural de Dom João VI que chegou aos nossos dias – a de insaciável
glutão e marido traído da impetuosa Carlota Joaquina – comete uma grande
injustiça: esconde dos desavisados o estrategista sábio e astuto que ele sabia ser.
Na verdade, diferente de ter se mudado às pressas para o Brasil com toda a família
real, fugindo timidamente das tropas de Napoleão Bonaparte, sabe-se hoje o que o
jovem monarca português queria de fato se proteger das guerras que assolavam a
Europa – mas planejava acima de tudo tirar vantagem da proximidade do Brasil com
as colônias espanholas e francesas, como um eventual fator de pressão contra
Napoleão.
Não, leitor: você não clicou na página errada. Este vai ser um curso de Arte da
Escrita, e não de História. Mas D. João VI tem mais a ver com o nosso tema do que
você imagina: afinal, na sua transferência para o Brasil, ele trouxe consigo os
milhares de livros de sua Real Biblioteca – que acabaram ficando por aqui e mais
tarde foram o ponto de partida para a criação de nossa inestimável Biblioteca
Nacional. E olha ele não encaixotou tantos volumes por mero capricho pessoal. Pelo
contrário: o astuto monarca sabia que todos aqueles livros (sobre matemática,
astronomia, filosofia, etc.) abrigavam talvez a maior riqueza da coroa portuguesa na
época – uma amostra expressiva do pensamento humano, traduzido em palavra
escrita.
Escrever é traduzir idéias em palavras. Escrever bem é conseguir traduzir essas idéias nas
palavras mais exatas, verdadeiras e belas possíveis.
Esta me parece a definição mais aproximada – e por certo a mais sintética – para a
chamada Arte da Escrita. Mas ela está longe de ser simplista, porque sem sequer é
simples: afinal, ela estabelece um vínculo entre idéias e palavras, duas das entidades mais
complexas do Universo – sem falar que atributos como exatidão, verdade e beleza
também podem nos levar por caminhos de complexidade sem fim. E isso é apenas o
começo...
De qualquer modo, esta definição traz pelo menos uma novidade: não concentra sua visão
da linguagem na função exclusiva de "informar algo a alguém" – a chamada comunicação.
E este vai ser o nosso diferencial: por achar que a aventura humana constitui muito mais
do que meramente "comunicar-se", nosso curso pretende abordar sobretudo o potencial
criador da escrita, seu compromisso com a expressão da exatidão, da verdade e da
beleza, como postularam tantos grandes filósofos, de Platão a Leibniz.
Tudo isso pode parecer muito complexo, mas não existe maneira melhor de abordar a arte
de escrever do que começar admitindo sua complexidade. Nem poderia ser diferente:
afinal, um dos maiores patrimônios do homem (essa nossa capacidade de pensar e
escrever) é nada menos do que o resultado de um sofisticado processo mental, apoiado
em técnicas e aperfeiçoado na prática permanente.
• Vai poder verificar que, por trás da sensação de inteireza e unidade de um bom
texto, existe sempre um conjunto de elementos bem articulados. Um texto, afinal,
é o encadeamento de parágrafos – e cada um deles, por sua vez, é um conjunto
harmonioso de períodos, que são feitos de frases... e assim por diante.
• Vai constatar também que a unidade do texto resulta da feliz combinação de três
estruturas: a sintaxe, da semântica e da harmonia.
• Vai conhecer os processos básicos da escrita – e que (vamos quebrar logo o
suspense) são apenas quatro: a narração, a descrição, a dissertação e o diálogo.
• E vai entrar, enfim, em contato também com ferramentas básicas, como a voz, o
tom, as figuras de linguagem...
• Tudo isso acompanhado sempre de sugestões de técnicas práticas para escrever
(os inevitáveis "truquezinhos" que podem facilitar a vida do aprendiz) e os
indispensáveis exercícios.
Os elementos essenciais à arte da escrita não são muitos – aliás, Beethoven não precisou
de muito mais do que sete notas e algumas técnicas para compor sua magistral Nona
Sinfonia... Mas também é preciso deixar claro que a boa escrita depende mais do que da
intuição e do gênio humanos (que, sem dúvida existe em cada um de nós): é preciso
exercitar-se sempre. Quem escreve com mais freqüência faz progressos na mesma
proporção: não existem fórmulas mágicas.
Escrever não é tarefa para acomodados ou preguiçosos. Mas quem se dispuser vai
descobrir que a arte da boa escrita pode ser aprendida – e a habilidade técnica pode ser
sempre aperfeiçoada.
Aos poucos, você vai descobrir que D. João VI não trouxe sua Real Biblioteca por mero
acaso. A palavra escrita é mesmo uma das grandes riquezas da Humanidade. E o mais
importante: ela se encontra ao alcance de todos – quer dizer, de todos aqueles que
tenham disciplina, paciência e uma boa dose de humildade para se dedicar ao seu
aprendizado.
Esta vai ser a nossa aventura – e a proposta é que você desfrute dela com proveito e
prazer.
PARA LER & REFLETIR
Um verbo transitivo
Claro que você não quer ser nada disso! Tenho certeza de que você vai
ocupar um lugar de destaque na nossa viagem.
Levantando vôo...
Como um texto também é um corpo (no sentido aristotélico), essas dimensões são
igualmente inseparáveis – sendo que cada uma delas corresponde a um dos três aspectos
que os filósofos consideram indispensáveis a tudo que existe: exatidão (sintaxe), verdade
(semântica) e beleza (harmonia). Quer dizer, a separação que fazemos aqui é apenas
didática.
Vamos lá?
Sintaxe da colocação, como o próprio nome sugere, é aquela que regula a distribuição das
palavras em cada período ou frase. Essa ordem pode ser direta ou indireta.
Direta é, por exemplo, a seqüência formada por Sujeito + Verbo + Predicado (e seus
complementos). Eis um exemplo:
"O mais grave de todos os equívocos do Iluminismo foi o de esconder a nudez da mais
antiga violência contra o indivíduo (a transformação da sociedade) sob o manto
transparente de sua novidade."
"De todos os equívocos do Iluminismo, o mais grave foi o de esconder sob o manto
transparente de sua novidade a nudez da mais antiga violência contra o indivíduo: a
transformação da sociedade."
Já a chamada sintaxe da regência é aquela que governa a estrutura interna de uma frase
ou período, estabelecendo o grau de importância e destaque entre seus termos. É aquela
velha história dos dois processos sintáticos: a coordenação (ou justaposição de termos ou
orações) e a subordinação (ou correlação entre termos ou orações).
Na coordenação, escreve-se por paralelismo; na subordinação, por hierarquia (com uma
oração principal e outras subordinadas a ela). Veja um exemplo de período organizado por
coordenação:
Veja como a oração subordinada causal ("porque estava chovendo") explica e delimita o
sentido da oração principal ("Não fui ao cinema").
Da combinação dos dois tipos, nascem a clareza e a exatidão de cada período e, por
decorrência, a de todo o texto.
Por fim, a sintaxe da concordância é aquela que estabelece que alguns termos da frase ou
período devem se adaptar a (concordar com) os princípios gramaticais de outros, mais
fortes ou determinantes. A concordância pode ser nominal (gênero e número) ou verbal
(número e pessoa). Trocando em miúdos: masculino / feminino, singular / plural, etc. etc.
Tudo isso quer dizer apenas que o praticante da boa escrita deve saber, a cada período ou
parágrafo do texto, como distribuir, hierarquizar e concordar as palavras de acordo com a
norma gramatical. Este é o melhor caminho para garantir a clareza e a exatidão do texto.
Mantido o eixo essencial do texto, nem a complexidade de sua construção sintática nem a
densidade de suas idéias serão empecilhos para sua plena compreensão.
À primeira vista, pode parecer o aspecto mais simples da questão: todo mundo, ao menos
em princípio, julgando-se no "pleno exercício de suas faculdades mentais", imagina que
sabe exatamente o sentido daquilo que lê ou escreve. Infelizmente, nem sempre isso
acontece: a toda hora, esbarramos com tautologias, contradições e erros elementares de
informação.
Veja só algumas "pérolas" (entre várias recolhidas em meu livrinho Não perca a prosa):
"O eixo do livro gira em torno da história..." (nem dá vontade de ler o restante do período:
um eixo, por definição não gira em torno de nada. Muito pelo contrário!)
MAS ESCREVER BEM não se limita a uma estrutura clara e correta (sintaxe) e a um
sentido definido e verdadeiro (semântica). Elegância e beleza também são fundamentais.
Quem cuida dessas qualidades extras é a harmonia – a terceira dimensão do texto.
"Escrever não é uma tarefa fácil" (a frase, exata e verdadeira, perde-se pela repetição
inesperada de sílabas...).
"Ah, o alto heroísmo, com fagulhas ainda nas unhas e o corpo ainda meio úmido.."
(mesmo abstraindo o mau gosto da imagem, tente ler em voz alta: é difícil...)
ATENÇÃO: Não subestime a importância dessas noções estruturais, leitor. Elas constituem
a arquitetura invisível que dá integridade um texto – e tanta falta fez à malfadada prosa
poética de nossos pobres surrealistas!
Pensando melhor, isso parece uma tendência mundial. Para nem ir muito
longe: mesmo o português praticado em Portugal estabelece diferenças
formais entre a fala e a escrita. A diferença é que no Brasil – com nossa
excessiva informalidade – parece haver uma verdadeira guerra
declarada contra a formalização da escrita, e de resto contra as
formalizações e os critérios normativos em geral.
Três textos em um
Para pôr em prática tudo o que você aprendeu na lição de hoje, escreva
um pequeno texto de ficção a partir dos seguintes procedimentos (o
tema é livre):
Difícil? Nem tanto. Trabalhoso, sem dúvida. Mas não se esqueça de que
um dos lemas da arte da boa escrita é: escrever dá trabalho. Se alguém
disser o contrário, desconfie.
Até a próxima!
A vida dele daria um romance!". Quantas vezes já não ouvimos esta frase, usada em
geral para exaltar (ou tornar "mais interessante") a biografia de alguém? O fascínio
que as narrativas exercem sobre as pessoas (e o romance é uma dessas formas)
vem de longa data – e já se tornou lugar comum citar o exemplo da lendária
Sherazade, que ao longo de mais de mil noites conseguiu (com suas mirabolantes
histórias) impedir que o xeique Xariar mandasse matá-la, como era seu cruel
costume noturno. Por sinal, falando em hábitos noturnos, quanta gente já não
atravessou uma noite em claro lendo algum livro, simplesmente porque... não
conseguiu largá-lo?!
O primeiro passo para escrever textos que atraiam e fascinem o leitor – sem deixar de
expressar a verdade com clareza, exatidão e elegância – é aprender a utilizar os
processos de composição, que são apenas quatro: narração, descrição, dissertação e
diálogo. (Acha pouco? Nunca é demais repetir que, com sete apenas notas e um punhado
de compassos, Beethoven compôs suas maravilhosas sinfonias...)
Hoje vamos tratar dos dois processos mais constantes na prosa ficcional: a narração e a
descrição.
Antes, porém, é preciso abrir um breve parêntese teórico (vai ser breve mesmo!), para
você entender efetivamente o que significa tudo isso.
Construir um texto é submeter as palavras (ou, como se verá na próxima aula, as frases,
períodos e parágrafos) às condições de existência incontornáveis do mundo real, onde
acontece a experiência humana. E, no mundo real, tudo está submetido à circunstância de
existir dentro de um espaço determinado, durante um período definido de tempo, com uma
extensão ou quantidade específica. Traduzir idéias em palavras – em suma, escrever – é
também se submeter a esses parâmetros. E as ferramentas adequadas para isso são
justamente os processos de composição.
Eles representam os quatro pilares fundamentais que sustentam quase todo o resto dessa
tecnologia de ponta chamada escrita. E, como bons pilares, só podem existir e atuar em
conjunto orgânico e inseparável. Do contrário, o texto pode acabar ficando "capenga".
Veja o exemplo (por sinal, bastante movimentado), extraído de uma crônica de Rubem
Braga:
"A terra tremeu com força e em vários pontos o mar arremeteu contra ela, avançando
duzentos, trezentos metros, espatifando barcos contra o cais e bramindo com estrondo. O
povo saiu para as praças e passou a noite ao relento; algumas construções desabaram,
mas o único homem que morreu foi de susto." (Terremoto)
Nunca será demais lembrar que, na realidade "impura" dos textos, dificilmente um
processo aparece sozinho, isolado dos demais. A narração pura pode acontecer em alguns
parágrafos específicos, que até funcionam muito bem para ilustrar sua definição. Mas, no
corpo de um texto, quase todos os processos costumam aparecer misturados, em
diferentes graus de combinação.
Veja, por exemplo, o trecho inicial do romance Vidas Secas, de mestre Graciliano Ramos:
"Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes
tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam
pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira
bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros
apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala".
O mais importante a destacar é que essa mistura não constitui um recurso excepcional ou
alguma ousadia de mestres como Graciliano ou Machado: um texto será sempre mais rico
e dinâmico na medida em que sua composição articule dois ou mais dos processos de
composição.
A narração é o principal processo utilizado pela ficção (seja romance, novela ou conto), e
de seu bom uso dependerá o interesse de quem lê. Mas constitui também o elemento-
chave das reportagens jornalísticas e dos relatórios de viagem. (Pois o que é a essência
do jornalismo, se não a reconstituição verbal de fatos ocorridos?)
Segundo uma definição clássica do crítico francês Gérard Genette, a descrição pressupõe
de certa forma a imobilidade (quer dizer, a ausência de movimentos) daquilo que se
descreve, em sua exclusiva existência espacial, fora de qualquer acontecimento e até de
qualquer dimensão temporal. De fato, na descrição predomina a dimensão ontológica do
número – na medida em que ela dá conta da extensão e da quantidade dos seres e
coisas. As palavras (ou classes gramaticais) mais usadas são os substantivos e adjetivos –
além dos verbos, sobretudo os de ligação.
Veja, por exemplo, a descrição de uma casa camponesa que Graciliano Ramos faz em
uma reportagem de seu livro Viventes das Alagoas:
"Baixa, de taipa, cheia de esconderijos, lúgubre. O teto, chato, acaçapado, quase sem
declive, é negro; é negro o chão sem ladrilho, de terra batida, esburacado e sujo; negras
as paredes sem reboco, com o barro que as reveste a rachar-se, deixando ver aqui e ali o
frágil madeiramento que serve de carcaça."
"Catorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os
cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do
tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido,
tinha a boca fina e o queixo largo."
Mas o que dissemos há pouco sobre narração vale também para a descrição: é importante
não levar a definição muito ao pé da letra. Afinal, a descrição dificilmente aparece assim,
em estado puro, dentro de um texto – a não ser em trechos específicos.
Confira mais uma vez como, nos dois exemplos, descrição e narração convivem no
mesmo parágrafo – e, em alguns casos, no mesmo período.
Escrever é, antes de mais nada, uma prática individual. Mas que tal
aproveitar o espírito gregário do Natal e exercitar sua escrita de um
modo menos solitário?
Vamos lá?
Certamente, o Natal só acontece uma vez por ano – mas quem escreve
deve se exercitar constantemente (de preferência, todos os dias). Por
isso, a grande lição que você deve incorporar desta descontraída técnica
coletiva é a humildade de submeter seu texto a pessoas que você
considere capazes de lhe dar boas sugestões e uma ajuda efetiva.
Em 1936, o ainda desconhecido Jorge Luis Borges (então um jovem e esforçado poeta/crítico literário)
publicou num semanário argentino uma resenha sobre o romance Aproximação a Almotásin, de Mir
Bahadur, um escritor e advogado indiano radicado em Londres. Aos leitores da crônica de Borges,
aquilo pareceu apenas uma extravagância crítica: afinal, com tantos bons livros estrangeiros para se
resenhar, para que perder tempo com tamanha bizarrice, que o próprio Borges definia como "uma
mistura de romance policial e poema alegórico islâmico"?
O mais "extravagante" de tudo, no entanto, parece ter escapado na época à maioria dos leitores:
Aproximação a Almotásin, o romance, nunca existiu – e o que parecia um texto crítico (dissertativo) de
Borges era, na verdade, uma de suas primeiras incursões no terreno da ficção, em que mais tarde
ganharia fama e se tornaria um mestre. Misturando os gêneros do ensaio (não-ficção) e da literatura
(ficção), o gênio de Borges dava uma demonstração de que, para o espírito criativo, gêneros e
processos de composição constituem ferramentas de trabalho – jamais obstáculos.
Junto com a narração e a descrição, a dissertação e o diálogo constituem os outros processos de composição
de todo e qualquer tipo de texto. Embora a dos dois primeiros predominem na literatura, é importante saber
utilizar com eficiência todos os quatro processos. Afinal, como vimos da semana passada, eles representam os
quatro pilares fundamentais que sustentam quase todo o resto dessa tecnologia de ponta chamada escrita. E,
como bons pilares, só podem existir e atuar em conjunto orgânico e inseparável.
"A abolição teria sido uma obra de outro alcance moral, se tivesse sido feita do altar, pregada do púlpito,
prosseguida de geração em geração pelo clero e pelos educadores da consciência. Infelizmente, o espírito
revolucionário teve que executar em poucos anos uma tarefa que havia sido desprezada durante um século.
Uma grande reforma social, para ser agradável a Deus, exige que a alma do próprio operário seja purificada em
primeiro lugar. São essas as primícias que Ele disputa e que lhe pertencem." (em Minha Formação)
Como vimos com o exemplo de Borges, a moderna prosa de ficção (mais propensa a quebrar regras e
barreiras) costuma recorrer à dissertação, combinada à narração e/ou à descrição – e, algumas vezes, ao
diálogo.
O longo trecho a seguir, de uma crônica do impagável Nelson Rodrigues, dá um exemplo claro disso:
"Por tudo que sei da vida, dos homens, deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a da releitura. Há uns
poucos livros totais, uns três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e
sempre, com obtusa pertinácia. E, em vez disso, o leitor se desgasta, se esvai em milhares de livros mais áridos
do que três desertos.
Respondi:
– Dostoievski.
– Que mais?
E eu:
– Dostoievski.
O sujeito, aturdido pelos seus 40 mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver
para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare." (em O Óbvio Ululante)
Vejam como, no texto de Nelson Rodrigues, a dissertação, a narração e o diálogo (de que falaremos a seguir)
combinam-se de forma dinâmica e criativa para criar o texto rico e instigante tão típico desse autor.
Mesmo sem ser um processo predominante na ficção (a não ser, por exemplo, nos romances naturalistas do
século 19 ou no realismo socialista do século 20 – mas isso é outra história...), a dissertação está bastante
presente nos autores contemporâneos, como o tcheco Milan Kundera e o já citado Borges. Em geral, costuma
predominar na ensaística filosófica, nos editoriais e artigos jornalísticos, em monografias e teses universitárias,
nas cartas em geral, nas crônicas literárias e esportivas e, enfim, nas petições jurídicas.
Por tudo isso, é bom não menosprezar sua importância e aprender sua mecânica – por mais que suas
ambições, leitor, sejam predominantemente ficcionais.
Transcrição das palavras de uma ou mais pessoas ou personagens (que podemos chamar aqui de falantes), o
diálogo está presente tanto na ficção quanto na reportagem, nas entrevistas de jornais e revistas – enfim, é a
própria conversa reproduzida por escrito, sempre que isso se fizer necessário.
O diálogo direto registra da maneira mais literal possível a fala (real ou ficctícia, conforme a natureza do texto)
de um ou mais falantes, reproduzindo ou criando suas palavras supostamente fiéis. Em geral, o diálogo direto é
representado por sinais gráficos que os diferenciem dos outros parágrafos do texto – predominantemente,
aspas ou travessões.
Veja o exemplo, extraído do trecho inicial do romance A mão e a luva, de Machado de Assis:
– Morrer.
– Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco...
– Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. (...)
O diálogo indireto acontece quando o autor apresenta as palavras do falante (personagem ou pessoa real) de
uma forma resumida, incorporando-as ao corpo do texto.
"Depois, referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu
os tinha."
Finalmente, o monólogo interior apresenta a fala de um personagem como se ela estivesse ocorrendo dentro da
cabeça do falante – que, de certa forma, estaria conversando consigo mesmo.
Veja o exemplo abaixo, para entender melhor (de Clarice Lispector, em Perto do coração selvagem):
"Deus meu, eu vos espero, Deus vinde a mim, Deus brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai
sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio
sobre a parede escura, Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas
(...)."
Certamente, o diálogo encontra sua utilização mais plena e completa nas peças de teatro e nos roteiros para o
cinema. Mas ele é uma presença constante em muitos textos em prosa (ficcionais ou não), em geral combinado
aos outros processos de composição.
Um pecado recente
Além da preocupação com o estilo (cf. aula passada), um outro fantasma atormenta o espírito do
aprendiz da arte da escrita: a busca da originalidade. Muitos iniciantes bem intencionados
costumam sucumbir ao longo dessa busca – como que se se tratasse da principal virtude de um
escritor: ser original.
Para relativizar sua importância (e acalmar muita gente, é claro!), vale a pena observar que essa
obsessão com a originalidade é um "pecado" relativamente recente na história das artes – tendo
sido muito acentuado pelo Romantismo, no início do século 19. Até então, a maioria dos artistas
cuidava pouco de parecer original, talvez por desconfiar que os motivos e assuntos mais profundos
e mais caros à arte não pertencem a ninguém em especial, à maneira de um privilégio.
O escritor mineiro Eduardo Frieiro (infelizmente hoje pouco lido ou lembrado) publicou em 1932, em
seu livro de ensaios A ilusão literária (Editora Itatiaia) uma extensa lista mostrando como os maiores
autores de todos os tempos costumam buscar seus temas na obra de seus colegas de ofício. Eis
alguns saborosos exemplos:
Certamente, esta constatação não diminui em nada o mérito de nenhum desses autores. Mas tem,
em compensação, o "mérito" de dar um bom conselho aos que se iniciam na arte da escrita: não se
preocupem em ser originais, mas em escrever bem –com clareza, verdade e beleza.
Combinado?
Um método bastante simples de organizar um texto (e que costuma render bons resultados entre os
iniciantes da arte da boa escrita) é o chamado processo das perguntas.
Depois de escolher o gênero ou formato por onde começar, procure formular para você mesmo uma
série de perguntas relativas ao assunto que você pretende abordar. As perguntas devem ir das mais
simples às mais complexas, mas sem perder de vista o objetivo inicial – escrever sobre determinado
tema. Pergunte, por exemplo:
• Por que escolheu este assunto, e não outro? (Caso tenha havido uma oportunidade de
escolha.)
• O que você pretende dizer?
• Como você pretende enfocar o assunto escolhido?
• De que informações e recursos (materiais e intelectuais) você dispõe?
• Em meio às informações e opiniões, como você se posiciona a respeito do assunto em
questão?
• Onde pode obter as informações complementares?
• Que grau de aprofundamento você pretende dar ao assunto?
• Qual o tamanho do texto?
• Que voz e que tom escolherá para construir o texto?
De posse das respostas (que precisam ser as mais objetivas e sinceras possíveis), avalie e organize
o material disponível. Anote então frases, fragmentos e palavras. Organize em seguida essa nova
etapa do trabalho. Organização é fundamental.
Procure fazer tudo isso (perguntas, respostas, ordenamento do material) segundo uma ordem
lógica. No fim das contas, você vai ficar surpreso ao verificar que as respostas enfim organizadas já
constituem, de certa maneira, o texto que você pretende escrever. E que, de alguma forma, já
conseguiu. Agora é ir em frente.
Claro que, depois de algum tempo, todo esse processo será assimilado inconscientemente por você,
como uma segunda natureza. Graças à persistência e à dedicação, você terá enfim adquirido esse
hábito chamado boa escrita.
LIÇÃO DE CASA
Escreva pequenos textos (duas páginas, no máximo) a partir das seguintes sugestões:
Muito antes que o atual culto às ciências virasse moda, Francisco de Quevedo (1580-
1645), o genial polígrafo espanhol, cultivou a palavra escrita com o rigor de um
pesquisador de laboratório. Para ele, a linguagem era essencialmente um
"instrumento lógico". Não era à toa que as metáforas e símiles da poesia o
incomodavam tanto: achava-as fáceis, imprecisas – e sobretudo falsas.
Para os cultores da prosa como ele (como nós, aqui desta oficina literária), Quevedo
legou a preciosa observação de que muitas línguas ocidentais – o espanhol e o
português, entre elas – empregam o mesmo verbo contar para ações aparentemente
tão diferentes como enumerar e narrar. "Entre nós", dizia Quevedo, "contam-se
histórias como se contam os dias". Certamente, o esperto espanhol já intuía que
tanto a linguagem quanto a vida transcorrem na esfera do tempo linear e sucessivo
– como já comentamos aqui, por sinal, em aulas anteriores...
Então, aproveitando o começo deste novo ano, que tal começar a aprender um
pouco sobre tudo isso?
Frase é o nome que se dá a qualquer enunciado que disponha de conteúdo suficiente para
formar um sentido completo, por menor e mais simples que seja. Assim, pode-se chamar
de frase desde conjuntos complexos de palavras, como a célebre frase do dr. Samuel
Johnson, famoso dicionarista inglês do século XVIII:
O carteiro chegou.
Ou:
Chove.
Ou ainda:
Fogo!
Muitas vezes, a frase se confunde com o período – que constitui o segundo elemento
mínimo do texto. Isso acontece no caso do período simples, que contêm uma única
oração, limitada pelo ponto. Mas o período também pode ser formado por duas ou mais
orações (integradas por coordenação ou subordinação, como já se viu), sendo então
chamado de período composto.
"Penumbra. Escritório. Homem, com as mãos à cabeça, fuma e pensa na vida. Alto-
falante." (Carlos Drummond de Andrade, em A Bolsa & a Vida)
"E o Santa Rosa estava ali. Seria o mesmo dos meus dias de menino? Sem dúvida que a
vida passara também por ele. Onde estavam Generosa, Galdina, Ricardo? Do meu quarto,
entre os livros que trouxera de fora, no meio daqueles despojos do estudante que se fora,
começava a pensar, a tomar pulso dos fatos. Precisava olhar o Santa Rosa, entrar na
intimidade do meu velho mundo.Ouvia o velho José Paulino tossindo. Já andava mais
curvo, o seu grito de mando não ia tão longe. E havia mais silêncio na casa-grande. Onde
estavam os moleques e os meninos gritando? Onde estavam todo aquele ruído, as
carreiras pelo corredor, as brigas da velha Sinhazinha? A casa era mais vazia, e tudo nela
se amesquinhava para mim. Lembrava-me de uns versos de um poeta qualquer que
voltava como eu à casa paterna: 'Deserta a casa. Entrei chorando.' Não, não era chorando
que eu voltava: era enfadado, cheio de melancolia. E nem as saudades dos tempos outros
me davam coragem para me fixar ali onde fora meu paraíso de antigamente. E não havia
nada mais triste do que um retorno a esses paraísos desfeitos." (José Lins do Rego, em
Bangüê)
Tamanho, como se pode reparar, não é uma simples questão de quantidade – mas de
adequação aos objetivos do texto.
Segundo Aristóteles (o mestre grego que nos legou as definições mais essenciais da arte
da escrita), essa estrutura é a mesma de todos os corpos que ocupam o universo: um
conjunto formado por começo, meio e fim. Para garantir a plena clareza e o entendimento
total deste ponto, nada melhor do que recorrer às definições do próprio filósofo grego, em
sua Poética: começo é aquilo que necessariamente não é antecedido por nada, mas que
pede ou produz, por natureza, um desdobramento; fim, ao contrário, é aquilo que, por
natureza, é antecedido por alguma coisa (da qual decorre), mas que necessariamente não
é seguido por mais nada; meio, por sua vez, é aquilo que necessariamente segue e é
seguido de outras coisas.
Por isso, um texto bem escrito – quer dizer, bem estruturado – não deve começar ou
terminar num ponto qualquer do assunto que aborda. Necessariamente, ele tem que dispor
de começo, meio e fim – ou, numa terminologia mais contemporânea, precisa estar
organizado em termos de introdução, desenvolvimento e conclusão. Para transmitirem a
indispensável impressão de verdade, clareza e elegância, a introdução, o desenvolvimento
e a conclusão de um bom texto devem se expressar através de parágrafos bem definidos
e, sobretudo, logicamente bem encadeados. Mais até: como unidade elementar (ou
subunidade), dentro da unidade maior do texto, também é necessário que o próprio
parágrafo se organize nesses termos.
Um bom texto deve começar por uma introdução bem delineada, desdobrar-se num
desenvolvimento rico em informações e argumentos e desembocar numa conclusão
satisfatória – ou seja, que não frustre as expectativas, deixando uma sensação de
vaguidão ou incompletude. No caso do parágrafo, sua introdução é a própria idéia-núcleo
– e, se ele for o parágrafo introdutório, esta deve corresponder necessariamente à idéia
principal do texto. (Aliás, para saber algumas coisas bem interessantes sobre parágrafos
introdutórios, não deixe de ler a seção "Dois Dedos de Técnica" de hoje.)
Certamente essas dicas valem sobretudo para os textos dissertativos, é claro – cuja
importância, no entanto, não deve ser subestimada no contexto da escrita de ficção. (O
desenvolvimento específico dos textos ficcionais será matéria exclusiva de uma futura
aula, em breve.)
Antes de concluir, uma dica: é bom lembrar que, para a arte da boa escrita, as melhores
estruturas adotadas são sempre aquelas que menos apareçam, tornando-se praticamente
invisíveis à leitura. Por isso, talvez fosse preferível definir estrutura não como esqueleto
(que está apenas oculto, por baixo da carne e da aparência), mas como alma: uma coisa
que existe e se faz presente sem ser vista.
PARA LER & REFLETIR
Por isso, vale a pena aproveitar a própria internet para fazer uma
reflexão sobre a eventual existência de estilos e padrões verbais
específicos para a rede – e até sobre uma possível superação do texto
tradicional por uma nova forma de escrita.
Brincadeiras à parte, o fato é que, para a arte da boa escrita, toda essa
discussão é irrelevante. No fim das contas, apesar da novidade de não
ter um núcleo central gerador e não ser administrada por ninguém, a
internet é apenas – e isso não é pouco, veja bem! – um formidável
conjunto de redes de computadores interligadas, que utilizam a mesma
tecnologia para enviar e receber informações.
"Era uma vez dois caçadores perdidos numa floresta, já sem munição,
quando surgiu um leão. Enquanto um deles começava a correr, o outro
tirou da mochila um par de tênis especial e começou a calçá-lo,
calmamente. O que corria parou, espantado, e alertou: 'Não adianta, o
leão corre mais que você'. Ao que o outro respondeu: 'Não preciso correr
Antonio Fernando Borges 10 / 01 / 2005
O mal-estar que a leitura deste trecho provoca, ainda hoje, não deriva apenas da
dupla agressão praticada – à lógica no primeiro período, e aos repórteres no
segundo. O desconforto decorre também de algumas inadequações estruturais – ou
melhor, do uso inadequado de instrumentos indispensáveis à coesão e harmonia de
um texto. Complicado? Nem um pouco: é que, no primeiro período, Dalí fala de si
mesmo ora na terceira ora na primeira pessoa, enquanto no período seguinte recorre
a uma agressividade desproporcional ao teor meramente rotineiro da pergunta.
Juntos, estes três elementos constroem o que se costuma chamar de ponto de vista – que
não é apenas uma opção estratégica para o melhor rendimento de um texto, mas a
assinatura individual de seu autor.
As vozes (ou pessoas verbais) mais utilizadas na escrita são a primeira e a terceira,
flexionadas no singular ou no plural, de acordo com as preferências ou necessidades de
quem escreve. Em geral, essa escolha é determinada pelo gênero do texto: na ficção
narrativa, por exemplo, é comum o uso da primeira pessoa do singular, que dá à obra uma
dicção mais pessoal e intimista; já nos artigos ensaísticos ou acadêmicos, o chamado
"plural majestático" (nós) costuma ser empregado em nome de uma atitude mais discreta
do método dissertativo; e assim por diante. Como sempre, nada disso representa uma
regra fixa – é apenas um leque de possibilidades.
"Não quero fazer aqui, mais uma vez, o processo já volumoso da técnica, nem mostrar o
conflito entre o homem e a máquina. Pretendo mostrar um aspecto da mentalidade técnica
e tentar um inventário de seus riscos."
Repare como nos dois textos, para além de todas as suas diferenças, predomina uma
mesma dicção subjetiva, marcadamente autoral.
Ao ser flexionada no plural, a voz na primeira pessoa se pretende um pouco mais objetiva
– embora isso possa ser uma impressão enganosa, na medida em que a objetividade não
é uma simples questão numérica. O próprio pronome (nós) não pressupõe
necessariamente a presença de mais de um autor: muitas vezes, expressa no máximo
uma postura acanhada, ou então um convite à inclusão do leitor no assunto em questão.
No trecho a seguir, fica evidente o esforço de sustentação de uma dicção objetiva (o autor,
apesar de único, esconde-se sob uma voz plural):
"Aceitamos todas as instituições conversadoras, pois é dentro delas mesmas que faremos
a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro século, a alma de nossa
gente, através de todas as expressões históricas."
Já a terceira pessoa (singular ou plural) está presente nos textos que se empenham em
transmitir uma dicção prioritariamente objetiva, seja em textos narrativos ou dissertativos,
em ficção ou em não-ficção.
"A família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído, sinhá Vitória
de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra baleia, com o
traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinzas.
Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os ramos das
catingueiras, e o barulho do rio era como um trovão distante."
Claro que a tão decantada objetividade vai depender, para ser plenamente atingida, de
uma série de outros elementos sintáticos, semânticos e harmônicos, capazes de produzir
(quando bem combinados) a impressão de verdade, clareza e elegância própria dos bons
textos objetivos.
Um elemento que pode contribuir para este esforço é o tom do texto – fator determinante
para a atitude que o autor deseja transmitir. Tributário do variado naipe de emoções e
intenções humanas, o tom dependerá sempre dos propósitos e mesmo do humor de quem
escreve (sem nenhuma obrigação, é claro, de ser elegante ou gentil). Veja, abaixo, uma
pequena amostra aleatória e ligeira dessas possibilidades de atitude de um texto ou autor:
Implicações morais à parte, pode-se dizer que o tom de um texto resultará sempre de uma
decisão, assumida ou não, mas que será tanto mais acertada na medida em que estiver
em plena adequação com os objetivos do texto.
"Amigos, eis 80 milhões de brasileiros numa humilhação feroz. Eu diria que a vergonha de
50 foi mais amena, mais cordial. Naquela ocasião, não tínhamos o bicampeonato. Ainda
não se instalara em nosso futebol o mito Pelé. Ah, o brasileiro de 50 era um humilde de
babar na gravata." (Nelson Rodrigues, em À Sombra das Chuteiras Imortais)
Repare como ele difere deste trecho suave (apesar do tema forte) de Carolina Nabuco:
"O Brasil ficou alheio ao cataclismo europeu, esperando, porém, avidamente as notícias
que de lá chegavam. Não vinham, como viriam na Segunda Guerra, a toda hora, graças ao
rádio. Só a imprensa, com seus telegramas, dava-nos as linhas gerais dos combates." (em
Oito Décadas)
Nesse sentido, um texto quase sempre enfático Nelson Rodrigues costuma ser mais
quente (mesmo abordando matéria trivial) do que um ensaio literário do denso mas em
geral elegante e sereno Otto Maria Carpeax, um autor mais frio (ou às vezes morno – sem
as conotações negativas que a palavra teria em outro contexto).
"Amigos, vocês se lembram da vergonha de 50! Foi uma humilhação pior que a de
Canudos. O uruguaio Odbulio ganhou do nosso escrete no grito e no dedo na cara. Não
me venham dizer que o escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe entra em campo
com o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio, é como se fosse a pátria em
calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber botinadas." (em À Sombra das Chuteiras
Imortais)
Repare como o primeiro texto convida a uma participação mais emocionada, enquanto o
outro se limita a sugerir uma reflexão lúcida e ponderada. Diferenças à parte, cada um a
seu modo trata de atingir objetivos específicos, em textos bastante diferenciados.
Tudo (ou pelo menos o essencial) reside certamente nessa adequação às intenções do
autor e aos propósitos de cada situação. Um texto de cunho, digamos, mais político ou
ideológico vai requerer sempre um mínimo de calor (no tom e no vocabulário) para surtir
seu efeito persuasivo. Da mesma forma, um ensaio filosófico ou uma oração pressupõem
uma serenidade de espírito, sem a qual poderão ser supérfluos ou ineficazes.
Outro aspecto importante a ressaltar: em nenhum texto a temperatura, por si só, será
suficiente para compensar falhas e deficiências evidentes – sejam elas decorrentes de
problemas de sintaxe, semântica ou (falta de) harmonia. Nada menos adequado, por
exemplo, do que um ensaio ou artigo em que a veemência vocabular se esforça (em vão)
para substituir a ausência de uma argumentação convincente; e nada mais medíocre do
que um conto ou romance que recorra a emoções baratas e soluções fáceis, procurando a
"empatia imediata" em vez de convidar à elevação e ao sublime, típicos da verdadeira arte.
Mais uma vez, o bom senso e o equilíbrio é que vão constituir o melhor "termômetro".
PARA LER & REFLETIR
"Dissecando" textos
Mas é preciso tomar cuidado para que o treinamento não se torne vazio
ou aleatório. O importante é você estabelecer sempre um objetivo e um
plano de ação:
Mãos à obra!
LIÇÃO DE CASA
Até a próxima!
Conta uma velha parábola que dois monges franciscanos caminhavam por uma
longa estrada, rumo a um mosteiro distante. Ambos cansados, paravam de vez em
quando para um pequeno repouso. Durante estes breves descansos, no entanto,
tinham atitudes bem diferentes: enquanto o mais jovem olhava para a frente, na
direção da estrada, calculando o quanto ainda precisavam caminhar, o mais velho
lançava o olhar insistentemente para trás.
A certa altura, o moço não se conteve: "Por que você olha tanto para trás, irmão?
Deveria estar mais preocupado em saber quanta estrada ainda falta..." E o outro,
maduro e sereno: "Pois acho muito mais importante verificar o quanto já vencemos
do caminho – e constatar que podemos nos orgulhar disso!"
As parábolas mais simples (como esta) guardam as lições essenciais. Nesta nossa
caminhada, rumo à excelência da escrita, é importante também dar uma paradinha e
fazer uma avaliação – um resumo – de toda a matéria e verificar se todos os nexos
estão estabelecidos. Façamos, portanto, uma breve revisão. É uma etapa
importante, antes de seguir em frente.
Cada uma desses princípios, como vimos, corresponde a um dos três aspectos
considerados indispensáveis à escrita: exatidão (sintaxe), verdade (semântica) e beleza
(harmonia). E o primeiro passo para garantir essas qualidades a um texto é aprender a
utilizar os processos de composição, que são quatro: narração, descrição, dissertação e
diálogo.
É dela, especificamente, que trataremos nesta segunda parte da nossa oficina literária.
Na verdade, seria impossível tentar resumir em alguns parágrafos (ou mesmo numa "lição
semanal") tudo o que de importante já se escreveu e já se disse a respeito do assunto – a
começar pelo sempre inteligente Aristóteles, que em sua Poética definia a "fábula" (quer
dizer, a história) como o princípio e a alma da tragédia – que era o formato mais comum da
ficção em sua época.
Para não complicar a questão, podemos tomar como ponto de partida as lições de um
expert no assunto: o romancista inglês E. M. Forster (1879-1970), que se tornou conhecido
por seu romance Passagem para a Índia. Em seu utilíssimo livro Aspectos do romance, de
1952, Foster destaca alguns elementos que, junto com o fator tempo, constituem o
essencial desse gênero narrativo: a história, o enredo, os personagens e o ritmo. Cabe
acrescentar um quinto elemento, que Forster subestimou: o foco narrativo. Saber
combiná-los bem é o segredo da arte da boa ficção.
Como esta é uma lição dedicada a resumos, eis aqui um breve resumo destes pontos, que
abordaremos em maiores detalhes nas próximas lições desta Oficina:
São estes os cinco elementos específicos que vão completar o instrumental geral
indispensável à aventura da ficção. Saber tirar deles o melhor proveito possível: eis um
dos segredos da literatura.
Mas nem todos têm esta visão positiva e otimista. Existem muitos
pensadores que vêem nesta diversidade uma espécie de barreira
intransponível, capaz de "trancafiar" o espírito humano nos limites de
seu idioma. Para esta corrente, chamada de determinismo lingüístico,
o pensamento está sempre limitado às categorias e estruturas permitidas
pela língua.
Graças a Deus!...
DOIS DEDOS DE TÉCNICA
Como toda criança, a pequena filha de um amigo meu adora ouvir histórias antes de
dormir. Geralmente (diz ele), costuma pegar no sono antes do final, obrigando-o a
repetir tudo no dia seguinte, desde o início. Uma noite, em visita a sua casa, pude
testemunhar o pedido da menina, na verdade quase uma ordem: "Pai, monta uma
história!..." Percebi que ele imediatamente a corrigiu (o que devia fazer todas as
noites): "Não é montar, filha: é contar uma história."
Na hora, calei-me – para não ser importuno, nem interferir no seu jeito de educar a
garota. Mas saí de lá satisfeito, ao perceber aquela genial demonstração de
percepção infantil. Intuitivamente, a pequena tinha descoberto o essencial da arte da
ficção: um dos segredos das histórias é justamente o talento de saber montá-las,
antes de as contar. De Sherazade a João Ubaldo Ribeiro, passando por séculos de
grandes autores, há poucas coisas tão sedutoras quanto a narração de uma boa
história.
A história é um dos elementos mais essenciais à arte da ficção, juntamente com o enredo,
os personagens, o ritmo e o foco narrativo. Na verdade, ela é praticamente o elemento
fundamental, razão de ser de um conto, novela ou um romance. Claro que existem
também a Arte, a maestria do escritor, os "valores literários" – mas tudo começa (e no fim
das contas se resume, queira-se ou não) numa história. Boa, de preferência...
Histórias são, de fato, a espinha dorsal da prosa de ficção, desde a mais barata até as
obras-primas da literatura universal. Necessidade atávica, motivação ontológica?
Certamente, a discussão extrapola o alcance desta Oficina – mas o fato é que todos
gostamos de ler (e ouvir) histórias. E a tarefa de "montá-las" e contá-las cabe aos
escritores. Contar bem uma história é, em suma, um aspecto-chave da arte de escrever
ficção.
Uma história, no entanto, precisa ser mais do que isso. A rigor, sua função é narrar uma
seqüência temporal de acontecimentos sob um ângulo específico: o da transformação (ou
permanência) dos valores morais e emocionais, que constituem um aspecto
importantíssimo da aventura humana. Afinal, nossa vida diária também é marcada pelo
sentido do tempo e se orienta por emoções e critérios morais – e é dentro dessa vida real
que nascem e vivem as histórias que os escritores transformam em contos, novelas e
romances.
Às vezes, alguns autores até conseguem abrir mão do elemento "valores", apresentando
narrativas supostamente isentas ou amorais. Mas a fidelidade ao tempo é imperativa e
incontornável. Por isso, em toda história existe sempre um relógio.
É este relógio que vai garantir estrutura narrativa de uma boa história. Não importa que
este relógio às vezes embaralhe os ponteiros e conte uma história fora da ordem
cronológica – como fazem, por exemplo, o americano William Faulkner (1897-1962) em O
som e a fúria e o nosso baianíssimo João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro, dois
casos de livros com idas e vindas na seqüência temporal. Mesmo narrados assim, está
implícito que os acontecimentos se deram na ordem seqüencial inexorável: um fato depois
do outro. Por isso, se uma história é boa, ela deve estar sempre despertando no leitor esta
pergunta simples, fruto da curiosidade humana: e depois?
Mas não basta uma história para garantir interesse e qualidade. Um bom texto ficcional
precisa ter também um enredo – que se diferencia da história num ponto fundamental. E é,
mais uma vez, E. M. Forster quem fornece a definição: segundo ele, o enredo é também
uma narrativa de tipo temporal, mas acrescida de causalidade. O exemplo que o escritor
inglês oferece já se tornou clássico: "O rei morreu e depois a rainha também" – isto é uma
história; "O rei morreu e depois a rainha também morreu, de desgosto" já é um enredo. A
cadeia temporal é mantida, mas a ênfase recai agora sobre a motivação, acrescentando
mistério e emoção à simples seqüência de fatos.
Ou seja: se uma história precisa apenas de tempo para ser contada, o enredo já é uma
estrutura construída que pressupõe também inteligência e memória: são esses dois
elementos que irão sustentar o avanço da narrativa, e garantir o interesse permanente do
leitor. Para insistirmos no exemplo dado por Forster: é preciso que o leitor (e antes dele o
escritor, é claro) tenha sempre em mente a figura do rei e sua morte, para poder
compreender a tristeza que levou a rainha a morrer. O enredo é, nesse sentido, o aspecto
lógico-intelectual de um texto de ficção: determina, em suma, o modo como a história se
articula. Por isso, em lugar do "E depois?", a pergunta que um bom enredo mantém
sempre acesa na mente do leitor é: "Por quê?"
Na verdade, para manterem o interesse do leitor, tanto a história quanto o enredo precisam
ser "montados" a partir de uma estrutura sólida e consistente, baseada na unidade
inseparável formada por começo (ou estabelecimento do enredo), meio (ou "complicação")
e fim (ou desfecho). Eis aqui um exemplo de enredo estruturado (meio fictício, meio atual):
De personagens, foco narrativo e ritmo, iremos tratar nas próximas lições. Da lição desta
semana, o importante é fixar a importância da história e do enredo para a construção de
um conto, novela ou romance. Afinal, queira-se ou não, é em torno desse elemento
matricial que se estrutura e se ergue o edifício de um texto.
PARA LER & REFLETIR
Esta semana, nossa pausa para reflexão abre aspas para o escritor
peruano Mario Vargas Llosa, que num dos ensaios de seu recente livro
La verdad de las mentiras (A verdade das mentiras, 2003) faz uma
interessante observação sobre o papel imprescindível da ficção na vida
de cada leitor.
Muito já se escreveu a respeito da "função da Literatura" ou sobre a
"importância da arte na sociedade", mas poucos conseguiram (como o
escritor peruano) valorizar na medida certa o universo da criação literária
– este universo em que cada um de vocês, iniciantes da arte da escrita,
começa a mergulhar agora.
Bem-vindos, então! Com vocês, a sabedoria de Llosa:
Dizem que na cidade fluminense de Campos dos Goitacases existe uma rua
chamada Coronel Ponciano de Azeredo Furtado. Este seria apenas mais um exemplo
da proverbial vocação brasileira para dar nomes pomposos aos logradouros
públicos – mas as circunstâncias são bem mais curiosas. Na verdade, o coronel
Ponciano não existe, pelo menos não da forma como existimos nós, seres de carne
e osso: ele é o protagonista do romance O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido
de Carvalho, filho daquela cidade. Hoje este livro anda meio esquecido, mas ele teve
muito sucesso e repercussão à época de seu lançamento, na década de 60 – como
demonstra, aliás, a "imortalidade" campista de Ponciano.
Antes de mais nada, um personagem é uma criatura feita de palavras, uma "entidade
verbal" que procura sintetizar e resumir características humanas – mas sempre de uma
forma bem mais específica e concentrada do que costuma acontecer na vida real. Por
isso, mesmo os personagens mais complexos e dissimulados se apresentam com clareza
aos olhos do leitor – ainda que não aos olhos de outros personagens.
Esta é, por sinal, uma necessidade estrutural da ficção: a tipificação bem clara das
criaturas de papel – o que não significa (e já veremos isso, mais adiante) que personagens
devam ser estereótipos. Pelo contrário: na medida do possível, os grandes personagens
da literatura universal devem ser suficientemente densos e originais para atrair a atenção
do leitor, permitindo-lhe a fruição de um misto de prazer e aprendizado. Clareza, no caso,
significa que um personagem não tem uma vida além-texto. Ou seja: um escritor não deve
legar a seus leitores a tarefa de interpretar criaturas ambíguas e deduzir (ou adivinhar) o
caráter de criaturas incompletas. Na vida real, a contradição e a incompletude são
características de muita gente, ao passo que na ficção isso quase sempre é sinal de falha
de construção do personagem .
Para esclarecer melhor este ponto, vejamos o caso famoso de Capitu, a estrela do famoso
romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Trata-se uma personagem forte, definida,
completa: sua capacidade sedutora é apresentada permanentemente por Machado, ao
longo de todo o livro. Confira este trecho, um dos primeiros em que o autor a apresenta –
descritivamente – ainda adolescente:
"Catorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os
cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do
tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido,
tinha a boca fina e o queixo largo."
Veja como os adjetivos, enumerados de maneira direta e sem o apoio de verbos (alta, forte
e cheia), já anunciam a entrada em cena de uma personagem marcante. É sobre esta
base inconfundível (de uma mulher alta, forte e cheia) que a descrição física que se segue
("Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo
largo.") prepara o terreno para sua característica definitiva: a sedução, a cargo dos "olhos
de ressaca" (ressaca do mar, cabe esclarecer, e não a da bebida), e do semblante de
"cigana oblíqua e dissimulada". É com esta mulher de vontade firme e determinada que irá
se confrontar o vacilante Bento Santiago, o Bentinho, narrador do romance – cuja
personalidade fraca faz dele um prisioneiro das vontades da mãe, piedosa senhora que
sonha em vê-lo ordenar-se padre.
Fator decisivo para uma obra de ficção, os personagens não precisam ser apenas bem
construídos: eles devem ser necessariamente diferentes entre si. Ou seja, cada um deve
ter uma necessidade dramática, um ponto de vista e uma atitude bem diferenciados – pois
é sobre esta diferença que vai se desenvolver o conflito do texto. Personagens muito
parecidos só despertam monotonia e falta de interesse.
Todo texto de ficção estabelece, como corolário de seu enredo, uma hierarquia dramática,
que estabelece a importância e a participação de cada personagem na ação. De acordo
com esta hierarquia, um personagem pode ser:
Uma vez mais, nossa seção reflexiva abre aspas para um grande autor.
Nesta semana, o escolhido é o romancista pernambucano Osman Lins
(1924-1978), que se destacou pela construção minuciosa de enredos e
personagens, como nos contos de Nove, Novena e no romance
Avalovara.
De longe ou de perto?
Quem escreve ficção também enfrenta um dilema semelhante: de que distância deve
contar sua história – e, acima de tudo, qual ponto de vista deve escolher?
Subestimado por muitos autores, o foco narrativo é um aspecto decisivo para o bom
resultado de um texto. De "perto" ou de "longe"? – eis uma séria questão.
Além de contar com protagonistas muito bem construídos – como vimos na Lição passada
– o alto nível da prosa de Dom Casmurro deve muito à feliz escolha de seu foco narrativo.
A "ambigüidade" de Capitu, o ciúme doentio de Bentinho, o impasse para o qual o livro
parece apontar – tudo isso resulta do fato de o romance ser narrado do ponto de vista de
Bentinho. É essa narração parcial, deliberadamente tendenciosa e acusatória (cabe
lembrar: o personagem é um advogado!) que torna o texto irresistível. O mesmo enredo,
contado de forma polida e neutra, talvez não tivesse metade do impacto.
A primeira pessoa do singular, por exemplo, dá ao texto uma dicção mais pessoal e
intimista, ao passo que o chamado "plural majestático" (nós) costuma ser empregado nos
artigos ensaísticos ou acadêmicos, em nome de uma atitude mais discreta ou até
panfletária (de cunho coletivista). Em casos mais raros ou excepcionais, recorre-se
também à segunda pessoa – usada, por exemplo, em romances franceses
contemporâneos, como os de Georges Pérec (1936-1982), cujo romance Um Homem que
Dorme trata o personagem principal apenas como "você". Claro que nada disso representa
uma regra fixa: é apenas um leque de possibilidades.
De longe ou de perto? Qual o melhor ângulo para se "observar" (e contar) esta seqüência
de acontecimentos que constitui um texto narrativo – a chamada prosa de ficção? Para o
aprendiz da arte da boa escrita, o mais importante é optar por aquele que melhor se
adéqüe a suas necessidades expressivas – que, no caso da ficção, não deve nunca se
afastar do objetivo principal: contar uma boa história, através de um enredo convincente,
com personagens emocionantes – tudo isso num ritmo atraente. Porque o resultado final
vai depender – e muito – deste outro aspecto imprescindível, mas tantas vezes
subestimado: o ritmo. Sem ele, não há texto (ou mesmo simples escola de samba) que se
sustente.
Lembro-me sempre dessas palavras da sábia parenta, todas as vezes que sinto
"faltar alguma coisa" num texto aparentemente bem escrito. E, quase sempre não dá
outra: o que falta é mesmo... ritmo. Porque não basta seguir a "receita", e caprichar
na história, no enredo, nos personagens e no foco narrativo. Sem ritmo, o texto
desanda.
No terreno da arte da palavra – aquele que nos interessa mais de perto –, o dicionário (o
Aurélio, desta vez) define ritmo como "a disposição ou o desenvolvimento harmonioso, no
espaço e/ou no tempo, de elementos expressivos e estéticos, com alternância de valores
de diferente intensidade". Um pouco mais simples, é claro – mas ainda assim abstrato
demais para quem se sente pronto para arregaçar as mangas e começar a escrever, não é
mesmo?
Na verdade, a coisa não é tão complicada assim. Ritmo, afinal, significa – no fim das
contas – aquele impulso vital presente em todas as esferas da realidade, a partir das
dimensões de espaço e tempo a que tudo está submetido (como vimos, aliás, em uma de
nossas primeiras Lições). Uma coisa imprescindível e evidente, ainda que de definição
complexa – o que faz lembrar a definição de liberdade com que Cecília Meireles (1901-
1964) nos presenteou em seu Romanceiro da Inconfidência: "Não há ninguém que
explique / e ninguém que não entenda!"
Difícil de explicar, mas fácil de entender ou sentir, o ritmo é sem dúvida fator indispensável
em tudo na vida. Dos bolos de aniversário à ficção narrativa.
No outro extremo (em termos de qualidade e de ritmo), encontra-se o caso bem sucedido
de A maçã no escuro, o notável romance de Clarice Lispector (1920-1977): a lentidão de
sua narrativa é indispensável ao processo de expiação de culpas em que o protagonista
Martim se vê mergulhado. Os primeiros parágrafos do livro, por sinal, já sugerem o ritmo
que o livro adota:
"Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se
dorme. O moço como, tranqüilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu.
Até que mais profundamente tarde também a lua desapareceu.
Nada agora diferenciava Martim do lento jardim sem lua: quando um homem dormia tão no
fundo, passava a não ser mais do que aquela árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro."
(Clarice Lispector, em A maçã no escuro)
Estes dois exemplos extremos já conseguem oferecer uma idéia mais palpável de ritmo –
e, sobretudo, dão conta de sua relevância para a plena realização de um texto (conto,
novela ou romance). E vêm lembrar, também, que não existem ritmos melhores do que
outros: trata-se, apenas, de uma questão de adequação. E também de equilíbrio, é claro:
de preferência, o ritmo de um texto não deve ser vertiginoso nem monótono, mas combinar
movimentos crescentes e decrescentes.
Em poucas palavras: um ritmo mal conduzido pode pôr a perder a mais bem-intencionada
das ficções.
A questão do ritmo costuma ser subestimada pela crítica brasileira em suas leituras e
comentários. Uma honrosa exceção foi o modernista Mário de Andrade (1893-1945), que
(não por acaso) além de poeta e ficcionista era musicólogo e pianista formado pelo
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Num artigo do livro O empalhador de
passarinho (1943), justamente chamado "Repetição e música", Mário ressalta a
importância do ritmo como fator constitutivo dos romances de José Lins do Rego (1901-
1957), em particular Riacho Doce e Eurídice:
Mesmo quando não tem papel tão relevante como na obra de José Lins do Rego, não há
dúvida de que o ritmo sempre ajuda a estabelecer a fronteira entre a boa e a má ficção.
Por isso, todo escritor – e o iniciante, em particular – precisa estar sempre apurando seu
"ouvido interior". Sem essa "ferramenta", seu texto pode deixar em quem lê aquela
sensação incômoda de que está "faltando alguma coisa".
Bem... Como esta Lição começou falando em bolo, não custa nada encerrar lembrando
que a literatura trabalha com formas, e não com fôrmas – e, definitivamente, suas técnicas
nada têm a ver com receitas de confeitaria.
PARA LER & REFLETIR
1. Falta de assunto.
2. Prolixidade.
3. Obscuridade e ambigüidade.
4. Inadequação vocabular.
5. Pleonasmos e redundâncias.
6. Falta de ritmo.
7. Deselegância: cacófatos e ecos.
Os dez mandamentos
Esta última parábola, em nossa última Lição, traduz bem o momento em que um
aprendizado parece chegar ao fim: em sua simplicidade evidente, ela vem lembrar
que um aprendizado nunca se encerra. Aprender é tarefa para uma vida inteira. Ou,
trocando em palavras ainda mais simples: agora, é com vocês!
Para estimular a imaginação de vocês e ajudar quem está se inicia neste "trabalho sem
fim", esta Oficina deixa no ar alguns lembretes e recados, como material para reflexão:
Machado de Assis
• Várias histórias, contos.
• Relíquias de casa velha, contos e ensaios.
• Dom Casmurro, romance.
• Memórias póstumas de Brás Cubas, romance.
• Quincas Borba, romance.
• Esaú e Jacó, romance.
• Memorial de Aires, romance.
José de Alencar
• Senhora, romance.
• O guarani, romance.
• Iracema, romance.
• As minas de prata, romance histórico.
Aluísio Azevedo
• Casa de pensão, romance.
• O cortiço, romance.
Graciliano Ramos
• Vidas Secas, romance.
• Angústia, romance.
• São Bernardo, romance.
• Viventes das Alagoas, crônicas.
Érico Veríssimo
• O tempo e o vento ( três volumes), romance.
• O resto é silêncio, romance.
• Noite, romance.
• O Senhor Embaixador, romance.