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Fernando Pessoa

Ortnimo

Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que tua Porque nem sorte se chama. Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes s o que sentes. s feliz porque s assim, Todo o nada que s teu. Eu vejo-me e estou em mim, Conheo-me e no sou eu.

No sei ser triste a valer Nem ser alegre deveras. Acreditem: no sei ser. Sero as almas sinceras Assim tambm sem saber? Ah, ante a fico da alma E a mentira da emoo, Com que prazer me d calma Ver uma flor sem razo Florir sem ter corao! Mas enfim no h diferena. Se a flor flore sem querer, Sem querer a gente pensa. O que nela florescer Em ns ter conscincia. Depois, a ns como a ela, Quando o Fado a faz passar, Surgem as patas dos deuses E a ambos nos vm calcar.

St bem, enquanto no vm Vamos florir ou pensar.

Tudo que fao ou medito Fica sempre na metade. Querendo, quero o infinito. Fazendo, nada verdade. Que nojo de mim me fica Ao olhar para o que fao! Minha alma lcida e rica, E eu sou um mar de sargao Um mar onde biam lentos Fragmentos de um mar de alm Vontades ou pensamentos? No o sei e sei-o bem.

No sei quantas almas tenho, Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem achei. De tanto ser, s tenho alma. Quem tem alma no tem calma. Quem v s o que v, Quem sente no quem , Atento ao que eu sou e vejo, Torno-me eles e no eu. Cada meu sonho ou desejo do que nasce e no meu. Sou minha prpria paisagem, Assisto minha prpria passagem No sei sentir-me onde estou. Por isso, alheio, vou lendo Como pginas meu ser. O que segue no prevendo, O que passou a esquecer. Noto margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: Fui eu? Deus sabe porque o escreveu.

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