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número 138 terceira série 1º semestre de 1998

REVISTA DE
HISTÓRIA

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


2

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch
Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


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REVISTA DE HISTÓRIA
Número 138 (Terceira Série) – 1º semestre de 1998 – ISSN 0034-8309

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Humanitas Publicações FFLCH/USP – setembro/1998
número 138 terceira série 1º semestre de 1998
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REVISTA DE
HISTÓRIA

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


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SUMÁRIO

ARTIGOS
Francisco Murari Pires 09 A Retórica do Método (Tucídides I.22 e II.35)
Maria Luiza Corassin 17 Caridade Compulsória: formas de pressão popular na sociedade
romana tardo-antiga
Paulina Numhauser Bar-Magen 27 El comercio de la coca y las mujeres indias en Potosi del S. XVI
André Figueiredo Rodrigues 45 Por correrem os tempos nublados: um estudo sobre o clero e a
Conjuração Mineira
José Carlos Reis 63 Capistrano de Abreu (1907). O surgimento de um povo novo: o
povo brasileiro
José Maria de Oliveira Silva 83 Manoel Bomfim e a ideologia do imperialismo na América Latina
Rodrigo Patto Sá Motta 93 O mito da conspiração judaico-comunista
Álvaro L. R. S. Carlini 107 Martin Braunwieser na viagem da missão de pesquisas
folclóricas (1938): diário e cartas

ENSAIO BIBLIOGRÁFICO
Roy Hora 119 Hobsbawm y el Siglo XX. A propósito de Age of Extremes

RESENHAS
Fábio Pestana Ramos 133 DEL PRIORE, Mary Lucy Murray (org.). História das Mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto/Unesp, 1997.
Oscar Zimmermann 139 FALBEL, Nachman. Manasche: Sua Vida e Seu Tempo. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1996.
6

Sérgio da Mata 143 HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de Canudos Uma revisão


histórica. Petrópolis: Vozes, 1997.
Modesto Florenzano 147 JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A Historiografia como
ciência da política. Rio de Janeiro, Access Editora, 1997.
José Carlos Sebe Bom Meihy 153 REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 1996.
Zilda Márcia Iokoi 159 SABIA, Debra. Contradicion and conflict: The Popular Church
in Nicarágua. Tuscaloosa and London, The University of Alabama
Press, 1997.
Robert M. Levine 163 SANTOS, Andrea Paula dos. Ponto de Vida: Cidadania de
Mulheres Faveladas. São Paulo, Loyola, 1996.
Thomas Wisiak 165 SILVA, Rogério Forastieri. Colônia e nativismo - a história como
"biografia da nação". São Paulo, Hucitec, 1997.
André Roberto Machado 169 SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do Indistinto - Estado e
Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808). São Paulo:
Hucitec, 1996.

INFORMAÇÕES SOBRE ARQUIVOS


Mary Lucy Del Priore 175 Memória e História de Mulheres: uma biblioteca feminista
Ana Negrão do Espírito Santo e 181 Arquivo Palma Muniz: um novo espaço para a pesquisa
José Maia Bezerra Neto

185 Normas de Publicação


Francisco Murari Pires / Revista de História 138 (1998), 9-16 7

ARTIGOS
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

A RETÓRICA DO MÉTODO (TUCÍDIDES I.22 E II.35)

Francisco Murari Pires


Depto. de História, FFLCH da USP

RESUMO: Propõe-se, no presente artigo, entender o “silenciamento metodológico” tucidideano constatado ao longo de
sua narrativa reconstituidora dos acontecimentos da Guerra do Peloponeso face à proclamação de princípios firmada em
seu Proêmio (I.22), como recurso de argumentação retórica a projetar a fama da excelência historiográfica de seu autor.
Para tanto faz-se uma aproximação analítica desse Proêmio com o similar Proêmio do célebre Discuros Fúnebre de
Péricles em honra dos guerreiros mortos no primeiro ano de guerra (II.35).

ABSTRACT: Through a comparative analysis of the so called “methodological” chapter (I.22) of the Proem of the
thucydidean History with the Proem of the famous Funeral Oration of Pericles (II.35) in honour of the athenians dead in
the first year of the war, this article envisages to understand the purposes of that chapter rather as a rhetorical device that
projects the excellence of the historiographical art of his author than as a positive proposition of “methodological” rules
of facts´ reconstitution.

PALAVRAS-CHAVE: Tucídides, Historiografia, Metodologia, Retórica, Péricles

KEYWORDS: Thucydides, Historiography, Metodology, Rhetoric, Pericles

Ao encerrar, no Proêmio de sua obra histórica, cance um tanto intrigante. Como já o fizera logo antes,
aquelas declarações de principios narrativos que nós no tocante à reconstituição dos discursos pronuncia-
modernos entendemos tradicionalmente por “meto-
dológicas”1 , Tucídides tece uma reflexão final de al-
questão da utilidade), arqueológico (a questão do início) e
etiológico (a questão da causa) -, que as histórias herodotena e
1
A abordagem mais sistemática dos princípios da narrativa – tucidideana ambivalentemente herdam da epopéia homérica, tan-
onomasiológico (a questão do sujeito), axiológico (a questão da to os desdobrando quanto deslocando em sua obras, encontra-se
grandeza), metodológico (a questão da verdade), teleológico (a em MURARI PIRES (1995, p.6-20).
10 Francisco Murari Pires / Revista de História 138 (1998), 9-16

dos durante a guerra, também para as ações pratica- mentos antagônicos, respeitam a enfoques inerente-
das o historiador firmou a autópsia2 como princípio mente conflitantes de constatação informativa dos
de derivação, e pois fundamentação, informativa de acontecimentos presenciados.
sua história. Ora, mas justamente o fato da presença aos E, todavia, assim advertidos, nós leitores, de tais
acontecimentos assim imposta como condição informa- aporias e impasses, constatamos – um tanto perple-
tiva de seu relato implicou um impasse para a devida xos, algo decepcionados, ou por vezes mesmo incré-
reconstituição dos mesmos pelo historiador, pois: dulos senão desconfiados4 – que pouco, se quantifi-
cado pelo total da obra, dessa dialética dos informes
os que estiveram presentes a cada um dos acontecimentos factuais comparece expressamente inscrito na narra-
não diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim tiva tucidideana dos eventos bélicos, não mais que
conforme fosse ou a sua inclinação por um dos lados, ou a sua
uma dezena de passagens.
memória. (A Guerra dos Peloponésios e Atenienses, I.22.3)
Assim, por duas vezes Tucídides adverte a existên-
O historiador acusa aqui, como aporia informati- cia de relatos conflitantes dos acontecimentos então
va básica para a sua narração dos acontecimentos narrados.
bélicos, o dilema posto pela diversidade discordante Há o registro (Ibid., II.5) da dicotomia de versões
de relatos entretanto concernentes a uma unicidade – dos tebanos, de um lado, e dos platenses, de outro
factual: sobre os mesmos fatos, distintos observado- – quanto aos termos que uns e outros alegavam ter
res dão informes divergentes3 . acertado entre si para a soltura dos guerreiros aprisio-
O impasse maior assim detetado é propriamente nados pelos últimos – entretanto por eles no fim mas-
inerente às determinações da situação mesma de pre- sacrados –, com aqueles acusando a transgressão do
sença cognitiva à ocorrência dos acontecimentos. juramento comprometido pelos platenses, contra es-
Pois, as pessoas que presenciaram os acontecimen- tes negando terminantemente que tivessem prometi-
tos, os presenciaram porque participavam de suas do libertá-los de imediato e mesmo que o tivessem
ações. E eram partícipes porque engajados por algum formalmente prestado.
dos lados diversamente envolvidos nas disputas do Há o apontamento (Ibid., VIII.87) da dificuldade
conflito beligerante. Então, ao ensejo determinante de conhecer-se o verdadeiro motivo do deslocamen-
dessa sua participação, viram os fatos (pre)dispostos to de Tissafernes a Aspendo face aos comprometi-
por suas inclinações pessoais e, assim, consoante à mentos bélicos de sua aliança com os lacedemônios:
ótica contaminada de seu engajamento. De modo que supostamente lá ele reuniria a frota fenícia para uti-
sua percepção dos fatos, e seu condizente relato, com- lizá-la compondo o esforço de guerra espartano, pro-
promete-se por essa parcialidade de seu olhar, não pósito, todavia, assim não consumado naquela oca-
apenas e tanto porque se tratem de subjetividades sião! Por um lado, conheciam-se as razões declarati-
diversas, mas, sobretudo, porque, devido a engaja- vas atribuídas ao próprio Tissafernes, mas, de outro,
denunciava-se a falsidade das mesmas segundo algu-
mas versões que especulavam diversamente seus re-
2
ais intuitos.
Para a problemática da autópsia como princípio de fundamen-
tação informativa da historiografia grega, vejam-se o artigo de
Nenci e, mais recentemente, a obra de Schepens, ambos citados
4
na bibliografia. Confiram-se: WESTLAKE, 1977, p.34; WOODMAN, 1988,
3
Veja-se PARRY, 1988, p.103. p.16; HORNBLOWER, 1987, p.22; COGAN, 1981, p.xii-xiii.
Francisco Murari Pires / Revista de História 138 (1998), 9-16 11

Mais algumas outras vezes Tucídides declara não prisioneiro em Siracusa, o historiador podendo ape-
poder precisar a plena reconstituição do acontecimen- nas afirmar que não fora inferior a sete mil.
to narrado, ou porque provido apenas por dados sus- E há a constatação tucidideana (Ibid, III.87) do des-
peitos ou mesmo porque deles carente. conhecimento do número de atenienses – que não
Há a admissão (Ibid, V.68) do desconhecimento hoplitas ou cavaleiros – abatidos pelo recrudescimento
dos montantes numéricos exatos dos contingentes que do surto de peste na cidade no terceiro ano da guerra.
se enfrentaram na batalha de Mantinéia, falha infor- Diversamente de Heródoto5 , a narrativa historio-
mativa aqui devida a que, por um lado, os próprios gráfica tucidideana não faz aflorar a dialética de suas
lacedemônios ocultavam os seus, justamente porque fontes informativas, e tampouco revela os procedi-
antes obnubilavam os segredos de suas realidades mentos de sua metodologia crítica porque derivou a
institucionais; já, de outro, ocorria o inverso, por da- reconstituição dos fatos consagrados na redação de
dos fornecidos suspeitos, com a gabolice dos homens sua história.6 “Na narração propriamente dita”, ob-
exagerando as coisas que lhes diziam respeito. Con- serva Butti de Lima (1996, p. 96), “o historiador,
seqüentemente, Tucídides (Ibid V.74) aponta ainda enquanto historiador, está ausente”, e nela deparamos
a dificuldade de verdadeiramente precisar o número antes “a apresentação direta dos fatos”. O discurso
de espartanos mortos naquele combate, atendo-se, narrativo tucidideano é predominantemente, senão
pois, ao montante de baixas de que então se falava. avassaladoramente, composto por impressões de ape-
Há a censura crítica tucidideana (Ibid, III.113) que nas resultados factuais, quaisquer que sejam as iden-
recusou informar o número de ambraciotas mortos na tificações dos informantes e quaisquer que sejam as
campanha de Anfilóquia, assim afastando de sua obra operações analíticas de uma sua suposta crítica ave-
tais suspeitas de relato inverídico, pois era totalmen- riguadora de veracidade.7
te inacreditável o montante que lhe fora apresenta-
do, se avaliado contra a população total da cidade. 5
“...ao passo que Heródoto associa freqüentemente o leitor a suas
Há a alegação tucidideana (Ibid, VII.44) da difi- investigações, lhe desvenda as origens e lhe dá a conhecer suas
culdade de discernir as vicissitudes do assalto desas- próprias reflexões e arrazoados, Tucídides limita-se manifestamen-
troso cometido pelos atenienses contra as fortificações te a descrever de uma vez por todas seu método histórico-crítico,
siracusanas das Epípolas, nem as tropas agressoras e a expor, para o restante, o resultado de suas pesquisas”
(SCHEPENS, 1980, p.96).
nem as defensoras podendo relatá-las com clareza jus- 6
Razão porque, mais recentemente, as projeções da crítica moderna
tamente porque turvada sua visão pelas trevas notur-
de reconhecimento de sua identidade historiográfica nos historiado-
nas do combate. res antigos andaram saudando a “melhor cientificidade metodológica”
Há a confissão tucidideana (Ibid, VI.60) da igno- herodotena, em prejuízo da mais afamada tucidideana, veleidade esta
rância generalizada quanto aos verdadeiros culpados de ajuizamento, entretanto, não imune a certos percalços, pois, nem
da mutilação dos Hermas de Atenas às vésperas da sempre “os princípios que levaram Heródoto a indicar suas fontes
expedição siracusana, pois, pelo processo mesmo que correspondem certamente àqueles que hoje se definem como cientí-
ajuizara o caso não se pudera ter certeza de que as ficos” (BUTTI de LIMA, 1996, p.102).
7
“A fórmula sucinta do diz-se que (légetai) basta para transpor a
revelações então obtidas pelas denúncias de um dos
narração do nível dos fatos ao da história” (BUTTI de LIMA,
próprios acusados fossem verídicas ou, pelo contrá-
1996. p.96). “Mas, quando a história se torna pesquisa da verda-
rio, falsas. de, o narrador não tem outra coisa a fazer que retrirar-se ... Ele é
Há a observação tucidideana (Ibid, VII.87) da di- este narrador ausente, que deixa falar os fatos: objetivo”
ficuldade de precisar o total de atenienses que caiu (HARTOG, 1982, p.26).
12 Francisco Murari Pires / Revista de História 138 (1998), 9-16

Perpassa, assim, pela obra um certo silêncio tempos passados.12 E podemos ainda especular ope-
metodológico operado por um ocultamento do his- rações detalhadas de verdadeiras checagens informa-
toriador8, o qual, antes do que integrar a dialética de sua tivas dos relatos, ponto por ponto, testando-os atra-
heurística, a oblitera, e antes do que expor quais sejam as vés das mais variadas ordens de realidades engloba-
determinadas regras e preceitos de sua crítica, dá esta das pelo conhecimento tucididiano.13
apenas por pressuposta e realizada. Pois, tudo o que Nos fluxos e refluxos desses estudos, mais ou
Tucídides revela nesse sentido reduz-se à mínima decla- menos diversamente tendo por pano de fundo as vicis-
ração programática de seu dito capítulo “metodológico”: situdes das projeções modernas de identificação da
na reconstitução dos acontecimentos o historiador alme- obra discursiva tucidideana bipolarizada pela contra-
jou sempre alcançar a precisão, acribia9 . posição de categorias “ciência” versus “arte”14 , deli-
Diante de uma tal idiossincrasia de silêncio meto- neia-se, mais recentemente, uma certa tendência
dológico, podemos – nós, crítica moderna –, envidar a interpretativa que envida ressaltar no “silêncio
(re)descoberta dessa metodologia tucidideana não bem metodológico” tucidideano respeitante à reconsti-
revelada, e entretanto consumada por sua obra his- tuição dos acontecimentos bélicos a eficácia de uma
toriográfica, assim melhor identificando por quais re- retórica da objetividade.15
gras e preceitos, ou que demais critérios, de crítica de Todavia, Tucídides mesmo, em seu texto, revela
veracidade Tucídides analiticamente operou o ajuiza- apenas e tão somente, não as soluções por ele preci-
mento dos relatos informativos então coletados de puamente alcançadas, mas antes as dificuldades por
modo a superar os impasses que, para tanto, haviam ele “metodologicamente” advertidas. Como as supe-
sido pelo historiador expressamente denunciados.10 rou, por quais eventuais procedimentos e operações
Podemos ainda imaginar o historiador Tucídides analíticas, Tucídides não diz. Aqui, mais do que tudo,
a zelosa e persistentemente colher mesmo os relatos imperam os silêncios do estilo elíptico tucidideano.
divergentes, de ambos os lados, para confrontá-los Não haveria, então, ainda lugar para interrogar-
visando a alcançar sua veracidade factual unitária.11 mos também justamente outras razões desse silêncio,
Podemos ainda projetar que também para a reconsti- e inquirir por algum seu sentido na trama mesma do
tuição dos acontecimentos do tempo presente da discurso “metodológico” tucidideano? Pois, tal silên-
Guerra do Peloponeso, Tucídides fez valer os mes- cio e elisão não é tanto algo a ser estranhado, pelo
mos preceitos de crítica factual já antes por ele mesmo contrário, eles condizem mesmo com a intriga tecida
reclamados para o exame das tradições antigas, dos

12
Confiram-se: CONNOR, 1984, p.27-28; PLANT, 1988, p.202;
8
ORWIN (1994, p. 5) lembra, em epígrafe à sua obra, o elogio LORAUX, 1984, p.148 e 152; EDMUNDS, 1975, p.156; BUTTI
que Rousseau dirige a Tucídides no Emílio: Longe de interpor-se de LIMA, 1996 p.116 e p.127-170 (especialmente, p.148-151).
13
entre os acontecimentos e seus leitores, ele se oculta. O leitor Confiram-se: CONNOR, 1984, p.27-28; COGAN, 1981, p.xii-xiii.
14
não mais acredita que lê; ele acredita que vê. Vejam-se os apontamentos gerais dados por CONNOR, 1984,
9
Para a questão do entendimento da concepção tucidideana de acribia p.4-6, mais DOVER, 1983, e também por ORWIN, 1994, p.7-8.
15
como precisão veja-se, por último, CRANE, 1996, p.50-65. Vejam-se, por exemplo: HARTOG, 1982, p.26; LORAUX,
10
Nesse sentido veja-se, por último e sempre apuradamente equi- 1984; WOODMAN, 1988, p.23; CRANE, 1996, p.27-29; BUTTI
librado em suas apreciações críticas, o estudo de BUTTI de LIMA de LIMA, 1996, p.97-98 e 126. Tendência, entretanto, que susci-
– L’Inchiesta e la Prova, 1996. ta já algumas advertências críticas: BUTTI de LIMA, 1996, p.116s
11
Confira-se PROCTOR, 1980, p. 16. e 126-128; DESIDERI, 1996, p.973-974.
Francisco Murari Pires / Revista de História 138 (1998), 9-16 13

pela própria arquitetura retórica de formulação de pen- Ora, mas uma análoga intriga retórica tramada
samento dessa sua reflexão metodológica, toda ela pela obra narrativa tucidideana encontra-se também
comandada por uma ordenação de natureza quiástica, no Proêmio do célebre Discurso Fúnebre atribuído a
plena de figuras de antíteses e de reversões assertivas.16 Péricles.18 Nesse seu pronunciamento de abertura, o
Pois, inicialmente, quando tratava da reconsti- discurso marca, em relação à própria prática institu-
tuição dos discursos, Tucídides principiou suas cional da Oração Fúnebre em honra dos guerreiros que
considerações declarando quais eram as dificuldades, tombaram pela cidade, uma reivindicação de origina-
justamente postas por um reclamo de acribia, dificul- lidade crítica19 . Assim, ele começa contestando e, pois,
dades estas de tal monta que inviabilizaram o proce- por princípio divergindo, frontalmente do que se de-
dimento narrativo de simples reprodução dos relatos clara ser a praxe de iniciar a Oração Fúnebre tecendo
recolhidos junto aos informantes. Então, postas tais louvores ao legislador que instituiu tal prática:
dificuldades, o historiador contornou esse primeiro
impasse firmando que ele mesmo, nominalmente, A maioria dos oradores que me precedeu neste lugar louva
apreenderia, por seu parecer, a realidade dos discur- aquele que introduziu esta alocução no cerimonial de costume,
considerando como belo que, no momento de seu enterro, as víti-
sos, fundando-a a partir da gnóme efetivada por cada
mas da guerra sejam assim celebradas. De meu lado, estimaria
um e pautando-se pela acribia possível de aproxima-
suficiente que, para homens cujo valor traduziu-se em atos, fos-
ção do que fora realmente dito. Depois, passando sem prestadas homenagens igualmente por atos, como vedes que
agora à questão da reconstituição das ações, ou seja, se faz hoje nas medidas oficiais aqui tomadas para seu sepulta-
dessa categoria de acontecimentos contrapositiva aos mento. Os méritos de todo um grupo não dependeriam de um
discursos, Tucídides reverteu os procedimentos ad único indivíduo, cujo talento maior ou menor lhes coloca em causa
otados. Agora, ao revés do que fez para os discursos, o crédito. Pois que é difícil adotar um tom justo, num assunto em
dispensou seu ato nominal de emissão de um parecer que a simples apreciação da verdade encontra penosamente ba-
ses seguras: bem informado e bem disposto, o ouvinte pode mui-
pessoal enquanto sujeito da narrativa, preferindo, ao
to bem julgar a exposição inferior ao que ele deseja ou sabe; mal
invés, acolher os relatos dos informantes, justamen-
informado, pode, por inveja, estimá-lo exagerado, quando aquilo
te dispensados no caso dos discursos. E, assim bem que ele ouve ultrapassa suas próprias capacidades; pois não se
os acolhendo, lembrou novamente, como para os dis- tolera ilimitadamente elogios pronunciados a respeito de um ter-
cursos, que também sobre eles imperava o reclamo ceiro, cada um o fazendo na medida em que se acredita capaz de
da acribia. Daí, terminou por declarar quais eram realizar, ele mesmo, os feitos que ouve relatar; além disto, com a
então as dificuldades.17 Em síntese, para os discur- inveja, nasce a incredulidade.20
sos aludiu às dificuldades para apresentar as soluções;
já para as ações, aludiu às soluções para bem realçar, O discurso inaugura-se, pois, contestando por
pelo contrário, as dificuldades. princípio a praxe que, pelo louvor que ela presta ao

16 18
Entre outros, vejam-se os estudos de HAMMOMD, 1952; Entre outros, vejam-se os comentários de GAISER, 1975, p.24-
ELLIS, 1991; WOODMAN, 1988; ALMEIDA PRADO, 1972; e 27; PARRY, 1981, p.160 e, especialmente, de LORAUX, 1981,
MURARI PIRES, 1995. p.232-241.
17 19
Já Woodman chamou a atenção para este ponto: “Observe-se Já destacado por ORWIN, 1994, p.16.
20
que a ênfase é totalmente colocada sobre a dificuldade do proces- II.35.1-2. A partir da tradução francesa de JACQUELINE de
so antes do que sobre os resultados alcançados” (1988, p. 16). ROMILLY, 1962, p.26.
14 Francisco Murari Pires / Revista de História 138 (1998), 9-16

instituidor da oração fúnebre, aceita inquestionada- sado de errar por falta quer, pelo contrário, por ex-
mente a propriedade da mesma. Ele, pelo contrário, cesso laudatório.21
assinala sua singularidade denunciando-a duplamen- E, assim, a apresentação do Discurso Fúnebre
te. Antes de mais nada, a instituição é não só desne- pericleano principia totalmente desqualificando a
cessária quanto equivocada. Desnecessária, porque prática mesma de modalidade discursiva em que ele,
bastam os próprios atos constituintes do cerimonial entretanto, se integra. E de forma aparentemente ra-
de sepultamento para manifestar o reconhecimento do dical, pois que denuncia qual é a sua inconsistência
valor das ações e feitos dos guerreiros mortos. E equi- intrínseca: a apreciação que descortina suas possibili-
vocada porque, ao colocar esse reconhecimento do dades alternativas a projeta antes como impossível!
valor guerreiro consumado em atos na dependência E, todavia, o Discurso Fúnebre de Péricles a desacre-
do talento retórico do orador que os celebra, corre-se dita, e, entretanto, paradoxalmente, logo a seguir,
o risco de, paradoxalmente, não se reconhecer tal antes a enceta e cumpre, efetivando-a enquanto tal.
valor, mas sim colocá-lo sob suspeição. Daí um seu preciso sentido e finalidade retórica em-
E, mais ainda, a instituição é totalmente inadequa- butido por este seu procedimento convencional de
da por si mesma, dada a aporia insolúvel própria do captatio benevolentiae22 : se ele realiza o, todavia,
empreendimento que ela, todavia, se propõe, pois que impossível enquanto proposição discursiva, algo que
a arte da fala, a techné discursiva, não comporta ha- não há fórmula retórica que viabilize, tanto melhor
bilidade suficiente para superá-la: qual o tom justo a se pode apreciar a excelência e o mérito singularmente
ser empregue enquanto elogio, de forma que este elo- excepcional do orador que, assim mesmo e todavia, o
gio seja apreciado como a adequada manifestação realizou! E, para realizar essa modalidade discursiva
discursiva de reconhecimento daquele valor consu- de elogio, não há qualquer solução determinada, im-
mado em feitos? Como encontrar a medida de elogio peram apenas as impossibilidades postas pelas dificul-
que responde com justeza pelo valor dos feitos cum- dades, pelas aporias claramente afirmadas.
pridos? Ora, descortina-se um horizonte de possibili- Ora, mas ocorre, com esta projeção tucidideana
dades alternativas para o orador que são antes impos- da excelência retórica pericleana consagrada por esse
sibilidades, pois que o coloca num impasse, dado que seu suposto desempenho ao iniciar-se a Guerra do
ele fica inelutavelmente condenado a desagradar seus Peloponeso, algo similar ao que se passa, no texto da
ouvintes: ou se acusa a insuficiência do elogio, quan-
do este desgosta aqueles que, justamente conhecedo-
res dos feitos guerreiros realizados, dispõem-se e
esperam que o discurso não inferiorize seu valor; ou, 21
Considere-se, paralelamente, a similar intriga retórica figura-
pelo contrário, se acusa o exagero do elogio, quando da pelo discurso de Otanes, no célebre Debate Persa herodoteano
este desgosta aqueles que, exatamente por desconhe- (III.80), ao denunciar a irracionalidade da inveja, e inconseqüên-
cerem os feitos, medem a plausibilidade destes segun- cia das calúnias, da figura do tirano nas relações com seus súdi-
do e por sua própria (in)capacidade de realizá-los. De tos, o qual nas cortesias moderadas que estes lhe dirigem acusa
falta de adulação, mas nas adulações exageradas, vil bajulamento.
modo que, neste caso, por inveja, estimam exagera- 22
Vejam-se as obras citadas logo acima de Gaiser e de Loraux;
da a apreciação que refere feitos que os ultrapassam,
por outro lado, considerem-se as justas advertências ponderadas
astuciosamente escamoteando na verdade os seus li- por HORNBLOWER, (1987, p.101s), acerca do alcance dos
mites pessoais. E o resultado, então, é que sempre o ajuizamentos que apontam para as relações entre a obra discursiva
orador será desacreditado por seu público, quer acu- tucidideana e a sistematização teorizante da arte retórica.
Francisco Murari Pires / Revista de História 138 (1998), 9-16 15

Odisséia, com os elogios firmadores da excelência no como indeterminável. A finalidade retórica é apenas
domínio das artes do canto e narração das gestas he- firmar as dificuldades, e não anunciar suas soluções.
róicas – quer aquele com que Odisseu distingue Assim, tanto mais se aprecia a capacidade historio-
Demódoco, quer o outro em que é Alcino que antes gráfica de quem, entretanto, transpõe, não regras
assim honra o herói mesmo23 : os ecos de ambos alcan- metodológicas descobertas, mas sim, pela obra nar-
çam e ressoam sua projeção valorativa na figura do rativa de fato consumada, os impasses então declara-
sujeito poético que os memorizou, tradicionalmente dos, pois, das dificuldades e aporias, a Guerra dos
representado pelo nome de Homero. Igualmente, o Peloponésios e Atenienses não revela mais os traços,
modo discursivo porque o historiador reconhece, e a não ser por algumas ínfimas alusões esparsas.
consagra na memória histórica, a perícia retórica de Examinada então esta problemática no âmbito da
Péricles, proclama, pela sutil inteligência de um mes- convencionalmente intitulada seção metodológica da
mo belo silênciamento de si mesmo, antes a sua pró- obra tucididiana, dada sua intrínseca conformação
pria, pessoal, arte retórica, deste sujeito historiante da retórica ordenadora, a questão dos procedimentos
guerra cujo nome chancela o texto desde sua abertu- analíticos de objetivação dos relatos na reconstituição
ra: Tucídides de Atenas! das ações praticadas na guerra, não tenha, nem seja para
E, não poderíamos ainda reconhecer homólogos ter, solução, quer apenas não declarada, quer nem
procedimentos de arrazoado retórico nesse outro mesmo determinada, ou, quem sabe, sequer almejada.
Proêmio discursivo da obra tucidideana, o qual inse-
re no seu bojo a apreciação da suposta questão meto- Então, a suposta problemática dos vazios do “silên-
dológica de reconstituição dos acontecimentos béli- cio metodológico” tucidideano, considerado no âmbito
cos? Aqui também Tucídides aponta incontestáveis mais precípuo de sua formulação no Proêmio (capítu-
dificuldades de realização, porém não tendo por fi- lo 22 do livro I), não poderia ser também apreciada pela
nalidade fundamentar uma argumentação de sua de- solução que Aristóteles deu ao equívoco enigma da re-
sistência e renúncia, pois que ele obra justamente o alidade histórica da Atlântida? Pois, pondera o filósofo,
contrário, consumando, a seguir, a realização narra- ocorre com a Atlântida o mesmo que com o muro de
tiva que, paradoxalmente, as supera. E as supera jus- defesa edificado pelos gregos em Tróia: o poeta que o
tamente aparentando apenas pressupor uma solução construiu foi também quem igualmente o destruiu, fa-
determinada, mesmo porque solução assim sugerida zendo-o desaparecer para sempre da história.

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Endereço do Autor: Depto. de História, FFLCH/USP • Av. Prof. Lineu Prestes 338 • Cidade Universitária • São Paulo • SP • Brasil • CEP
05508-900 • FAX (011) 818-3150
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

CARIDADE COMPULSÓRIA: FORMAS DE PRESSÃO


POPULAR NA SOCIEDADE ROMANA TARDO-ANTIGA

Maria Luiza Corassin


Depto. de História

RESUMO: Este artigo analisa duas cartas de Santo Agostinho sobre um tumulto em Hipona; nosso objetivo é estudar a
violência urbana em uma cidade no período tardio de Roma, envolvendo as relações entre a aristocracia e a multidão.

ABSTRACT: This article analyses two letters of St. Augustine on a riot at Hippo; our purpose is to study the urban violence
in a late Roman city, envolving the relations between the aristocracy and the mob.

PALAVRAS-CHAVE: Roma, Antiguidade Tardia, Sto. Agostinho, revolta urbana.

KEYWORDS: Rome, Late Antiquity, St. Augustine, urban rebellion.

As diferenças entre a cidade pagã e a comunida- cívica. 1 Andrea Giardina, em seu artigo Carità
de cristã receberam análises baseadas em parâmetros eversiva: le donazioni di Melania la Giovane e gli
variados. Paul Veyne ressaltou, no referente a ever- equilibri della società tardoromana, embora aceite
getismo e caridade, que o evérgeta doa por diferentes esta distinção como válida em suas linhas fundamen-
razões: para marcar a sua distinção social, por patrio- tais, pondera a necessidade de acrescentar a este es-
tismo, por senso cívico; o seu gesto dirige-se a este quema simétrico, de uma polaridade nítida, “uma
mundo real. O doador cristão põe em prática a sua ca-
ridade para adquirir mérito diante de Deus; a sua ge-
nerosidade se dirige a um outro mundo. O evérgeta 1
Andrea Giardina comenta VEYNE, P. Le pain et le cirque.
dirige-se ao povo considerado como o conjunto dos Sociologie historique d’un pluralisme politique. (Paris, Seuil,
cidadãos, o alvo do doador cristão são os “pobres”, 1976, p. 44 seg.) e BROWN (1982, p. 131). Cf. GIARDINA, 1988,
entendidos como uma categoria social e moral, não p. 127, inclusive nota n. 1.
18 Maria Luiza Corassin / Revista de História 138 (1998), 17-25

certa cautela” em se tratando da época do Império versa da natureza da comunidade urbana, mediante for-
romano tardio (GIARDINA, 1988, p. 127). Usando mas muito diferentes de cerimônias e sobretudo medi-
como documentação a biografia de Santa Melânia, ele ante formas muito diversas de distribuição de doações.
procurou analisar as interações entre um certo tipo de Brown considera as práticas caritativas associadas às
doação cristã aristocrática e o equilíbrio da sociedade devoções cristãs não apenas como um ato de piedade
tardo-antiga. Desejando demonstrar que o comporta- realizado privadamente, nem como uma forma de as-
mento extremado daqueles que desejavam se liberar sistência econômica, mas sim como um catalizador sim-
de bens materiais representava um fenômeno que bólico importante por ser a nova definição da comuni-
qualifica de “subversivo”, tanto dentro da sociedade dade urbana cristã. Gradualmente desenvolveu-se uma
em geral quanto da comunidade cristã, Giardina ter- nova relação, expressa pela distribuição de esmolas à
mina por colocar em relevo a surpreendente reação plebs Dei, em locais muito diferentes dos anteriores
dos escravos pertencentes a Melânia e a seu marido. existentes, ou seja, nas basílicas cristãs.
Recusando a liberdade, os escravos preferiram perma- Dada a natureza explosiva da vida urbana tardo-
necer no interior do oikos em que estavam radicados. romana foram comuns as revoltas, linchamentos e
Freqüentemente aos escravos eram entregues, tal incêndios, não apenas em Roma, mas também em
como aos coloni, terras para serem cultivadas de for- outras cidades do Império. Desde há muito tempo
ma autônoma, em exploração de caráter familiar; no haviam se desenvolvido estratégias de controle, parti-
entanto, achavam-se menos expostos (por motivos hu- lhadas pelas classes superiores da cidade no seu con-
manitários e econômicos) ao risco de venda e afasta- junto. A relação entre a aristocracia residente e a plebs
mento. Na Antiguidade tardia, a escravidão, em luga- assumia uma feição intensamente pessoal; segundo
res e em circunstâncias específicas, podia se tornar Brown, as relações entre os membros pagãos e cris-
uma condição privilegiada em comparação com a li- tãos da aristocracia romana devem ser consideradas
berdade, para indivíduos desprotegidos, a quem po- neste contexto. Vivendo em uma cidade em constante
dia faltar a proteção de um patronus poderoso sobressalto, “os senadores de Roma por todo o século
(GIRADINA, 1988, p. 142). IV e V eram em primeiro lugar uma classe de governo
A atenção despertada pelas figuras de Melânia e e só secundariamente pagãos e cristãos”. As famílias
de seus familiares próximos nos conduziram a uma nobres, pagãs ou cristãs, sentiam-se compartilhando
investigação em torno do comportamento de outro um mesmo ethos, em grande parte determinado por
grupo social do mundo tardo-antigo: a comunidade uma interpretação comum de seu papel na cidade. As
cristã de Hipona. diferenças de fé desapareciam em uma mesma lingua-
Peter Brown, em uma conferência intitulada sig- gem de status social (BROWN, 1982, p. 127-28).
nificativamente “Dalla plebs Romana alla plebs Dei” Para Brown, não se pode falar de uma continuida-
(BROWN, 1982), analisou a profunda mudança ocor- de direta entre a munificência tradicional e a esmola
rida na comunidade romana, entendendo por comuni- cristã. Tratava-se mais de uma “convergência” em
dade urbana romana a Urbs, formada pelo senado e grande parte inesperada, de dois sistemas paralelos
populus Romanus. No decorrer dos séculos IV e V, no estrito sentido geométrico” (BROWN, 1982,
esta comunidade que outrora se congregava nas cele- p.131). A munificência tradicional envolvia somas
brações rituais e nas distribuições evergéticas, presen- imensas, acumuladas em um longo período e gastas
ciou a transferência dos loci de reunião para outros em momentos solenes por um só doador de cada vez,
pontos, nos quais se expressava uma concepção di- como sinal de que se pertencia a um grupo privilegia-
Maria Luiza Corassin / Revista de História 138 (1998), 17-25 19

do dos senhores da cidade; no segundo caso, as es- prática bem conhecida de revoltas ou ameaças de re-
molas cristãs consistiam num sistema de doações volta, uma prática que apresenta por si características
quase sem estrutura; somas pequenas ou médias eram estruturais (THOMPSON, 1982, p. 321-23). A “libe-
oferecidas, a qualquer momento, por fiéis de todos os ralidade” e a “caridade” podem ser consideradas
níveis sociais, sem distinção de sexo ou de fortuna, como atos calculados de complacência de classe em
não como ostentação de riqueza, mas ao menos teori- períodos de miséria e como calculadas extorsões (sob
camente, por uma necessidade espiritual. No primeiro a ameaça de tumulto) por parte da multidão. Aquilo
caso, os beneficiários formavam uma categoria es- que é visto, sob a ótica das classes superiores, como
pecífica que podia incluir ricos ou humildes, mas que um “ato de dar”, é visto de baixo como um “ato de
em sua maioria eram cidadãos válidos e ocupados. No obter” (THOMPSON, 1982, p. 361-62). As oportuni-
caso cristão, os beneficiários das esmolas eram esco- dades eram aproveitadas quando se apresentava a
lhidos por se constituírem os membros mais vulnerá- ocasião, sem considerar muito as eventuais conseqü-
veis e inúteis da comunidade, os marginalizados, os ências; a multidão impunha seu poder em momentos
doentes, os estrangeiros, símbolos da pobreza. O mo- de revolta, constrangendo membros da nobreza a fa-
delo “cívico” de sociedade, cuja unidade era a cida- zer concessões.
de antiga, definida em termos de “cidadãos” e “não- Uma compreensão mais profunda da sociedade
cidadãos”, com uma hierarquia entre os cidadãos, em exige considerar o contexto em que atua a nobreza,
termos de relações entre a população, de uma parte, de um lado, e a “multidão”, de outro. A partir das pro-
e seus magistrados, de outra, foi substituído por um posições de Thompson, poderíamos investigar as rela-
modelo “econômico” mais amplo, no qual toda a so- ções entre a plebe e a classe dirigente, procurando in-
ciedade, urbana ou rural, era considerada por inter- dividuar características e objetivos de revoltas envol-
médio da divisão entre ricos e pobres, expressando- vendo a participação de multidão no mundo romano?
se a relação entre eles pelo gesto religioso da esmola É notória a apreensão existente no mundo urbano,
(BROWN, 1982, p. 131-32). dentro da sociedade romana, em relação ao perigo re-
O senso comum desenvolveu algumas obviedades presentado pela multidão incontrolada. Durante o
costumeiramente repetidas: “em todas as sociedades Império, o comportamento da aristocracia residente em
tradicionais conhecidas, a doação teve uma função Roma continuou seguindo o padrão estabelecido há
central na manutenção da posição”; “as doações são longo tempo para a munificência. Desenvolveram-se
símbolos de prestígio, implicando uma subordinação relações complexas entre os magistrados e a plebe ur-
de quem recebe, o qual se submete a uma obrigação: bana, que acabaram por se tornar tradicionais. A aris-
por isto a doação serve como meio de controle social”. tocracia incorporou ao seu comportamento a idéia de
Edward P. Thompson em Società patrizia, cultura responsabilidade em proporcionar espetáculos à ple-
plebea (THOMPSON, 1982), vai mais além destas be ou de prestar auxílio em determinadas ocasiões. Por
constatações comumente não contestadas. Ele consi- sua vez, a plebe também soube desenvolver formas de
dera possível individuar, sob o ângulo de quem ocu- extorquir o que desejava: são bem conhecidas as ma-
pa a posição inferior, “de baixo”, características diver- nifestações públicas, sobretudo em locais de espetá-
sas e mais determinantes que estas. “Doações de culos, como forma de pressionar as autoridades.
maior importância – a caridade e o subsídio de ali- No episódio que será examinado, ocorrido em
mentos em tempos de penúria – são impostos de modo 411, verifica-se a transferência para o ambiente cris-
direto sobre os ricos pelos pobres por meio de uma tão destas formas tradicionais de manifestação popu-
20 Maria Luiza Corassin / Revista de História 138 (1998), 17-25

lar. Neste caso, em lugar de existir uma nítida sepa- anos, filho de um ex-Prefeito de Roma. O relato do
ração entre os dois sistemas representados pela carida- biógrafo de Melânia nos informa sobre os fatos que
de cristã e o evergetismo pagão, encontramos uma se seguiram. Após alguns anos de matrimônio, decidi-
plebe tumultuante exigindo que um aristocrata rico dos a se devotarem à uma vida de castidade, Piniano
assuma o papel de patrono da comunidade cristã. O e a esposa passaram a viver como “irmão” e “irmã”.
local mudou: não ocorre no fórum, teatro ou circo, Determinados a “renunciar ao mundo”, os jovens
locais tradicionais de reunião cívica, mas na igreja. foram obrigados a enfrentar uma tempestade de pro-
A autoridade presente não é mais o magistrado do testos provocada pela resolução de se liberarem da
Estado, mas um bispo cristão. No entanto, as relações riqueza e dos bens dos seus antepassados. Os novos
face a face da cidade antiga persistem: o bispo Agosti- ascetas instalam-se inicialmente no subúrbio de
nho atua como negociador cauteloso, cuidando para Roma, em sua villa da Via Ápia, adotando um com-
encontrar o limite entre a concessão e a recusa firme, portamento considerado um desafio e uma ameaça à
para evitar uma explosão exasperada do povo. sua própria classe, pela forma radical de dilapidar seus
Dependendo do autor, a história de personagens bens. A oposição brotou de todos os lados: da famí-
como Melânia e Piniano pode mostrar apenas o doa- lia e até mesmo dos próprios escravos alarmados pela
dor em termos de sua motivação explícita, da cons- possibilidade de dissolução do patrimônio. Este com-
trução de uma imagem de santidade e sua justificação portamento tem justificadamente chamado a atenção
ideológica. Um relato de tipo hagiográfico seria cen- de historiadores e merecido análise.
tralizado no comportamento caritativo cristão, asso- A liquidação total levou vários anos, dada a enti-
ciado ao modelo de vida espiritual de Santa Melânia. dade do montante dos bens, o que tornava algumas
O episódio adquire maior significação se analisa- propriedades invendáveis pela dificuldade de encon-
do sob o ângulo das relações plebe/aristocracia, uti- trar compradores suficientemente ricos e pela disse-
lizando as considerações de Giardina, Brown e minação das mesmas, desde a Britânia até a África.
Thompson para orientar a interpretação daquilo que Melânia, dedicada a uma vida de caridade sob todas
tem sido visto apenas como um incidente secundário as formas, buscando uma vida cristã perfeita de ora-
na vida de santidade do casal. ção e mortificação, foi se liberando de suas riquezas,
Por intermédio de sua biografia2 , sabemos que começando pelas propriedades mais expostas aos
Melânia, considerada a maior herdeira do mundo bárbaros, à medida que estes ameaçavam mais e mais
romano em sua época, desejava dedicar-se inteira- Roma. Em 410, quando a cidade foi finalmente to-
mente a Deus, consagrando-se à virgindade. Mas, mada por Alarico, Melânia deixou a Europa com o
dona de um patrimônio que se pretendia transmitir marido Piniano e a mãe, Albina, desembarcando na
intacto, seus pais a casaram com a idade de quatorze África. Os viajantes fixaram-se em Tagaste, junto ao
anos com um primo, Valério Piniano, de dezessete bispo Alípio, amigo de Agostinho. Segundo a biogra-
fia (VITA MEL, 20), chegando à África o casal ven-
deu logo os bens que possuíam na Numídia, na
2
Mauritânia e na própria província da África, utilizan-
Utilizamos a Vie de Sainte Mélanie, com texto grego e tradução de
do o dinheiro para auxiliar os pobres e resgatar prisi-
D. Gorce (Sources Chrétiennes, 90). No texto será citada como VITA
MELANIAE. A introdução de Gorce contém os dados referentes à
oneiros: “Gastando assim, sem contenção, eles se
familia de Melânia, a Jovem e de Piniano. Sobre o casamento e a alegravam no Senhor”. Decididos a vender todos seus
decisão de abandonar as suas riquezas, ver especialmente p. 36 seg. bens, foram, no entanto, aconselhados pelos própri-
Maria Luiza Corassin / Revista de História 138 (1998), 17-25 21

os bispos da África, Agostinho, Alípio e Aurélio de prazo o laicato perderia a voz que parece ter possuído
Cartago a dar uma sede e um rendimento aos monas- nos tempos iniciais. Mas, em algumas áreas e em certa
térios, em lugar de vender o patrimônio e doar dinhei- medida, os membros leigos da Igreja eram por vezes
ro que seria dissipado em pouco tempo. capazes de impor sua vontade. Na segunda metade do
Tagaste, a cidade do bispo Alípio, era pequena e século IV homens excepcionais como Ambrósio, em
muito pobre. O casal a escolheu para se instalar, prin- Milão, e o próprio Agostinho, nesta mesma igreja de
cipalmente pela presença do bispo, do qual Melânia Hipona, foram eleitos bispos por uma irresistível pres-
tornou-se amiga. É bem conhecida a importância as- são popular. Teoricamente a participação da comuni-
sumida pelas mulheres da aristocracia romana que se dade leiga era um elemento essencial na eleição epis-
tornaram o principal apoio da Igreja pelas suas rela- copal. Mas não existia um mecanismo adequado para
ções com os bispos e suas doações. Melânia e sua mãe a manifestação popular, a qual só podia se expressar
Albina passaram a ser personagens de destaque na na forma de aclamações tumultuosas (STE. CROIX,
comunidade. “Ela dotou a igreja deste santo homem 1954, p.35-36).
com rendimentos e doações, jóias de ouro e prata, Pressionado pela multidão, Piniano foi obrigado a
assim como tecidos preciosos, enquanto esta igreja jurar que se estabeleceria em Hipona e caso resolves-
era anteriormente muito pobre, de tal forma que o se se ordenar padre, ele só o faria nesta igreja. É pos-
santo (Alípio) se tornou objeto de inveja para o res- sível reconstituir as linhas gerais do acontecido por
tante dos bispos desta província” (VITA MEL, 21). intermédio de duas cartas de Agostinho, datadas de 411
A biografia se detém aqui; talvez o biógrafo julgou d.C., dirigidas uma a Alípio (EPIST. CXXV) e outra a
desnecessário registrar um episódio que dizia respeito Albina (EPIST. CXXVI). Nestas duas cartas Agosti-
basicamente ao marido. Para entender esta vaga alu- nho procura se justificar perante o amigo Alípio e di-
são e para conhecer o estranho incidente que envol- ante de Albina. Nelas o bispo assume a defesa do seu
veu Piniano em Hipona precisamos recorrer a outro povo de Hipona: “o comportamento da multidão foi
documento, a saber, a correspondência de Agostinho. ditado não pela cobiça pelo dinheiro de Piniano, mas
No momento em que Melânia e Piniano assistiam pelo desejo de reter junto a si este santo homem.”
à missa em Hipona, o povo ali presente exigiu aos Na resposta enviada a Alípio (EPIST. CXXV) ele
gritos que Piniano fosse ordenado presbítero, o que discute longamente uma questão que este lhe colo-
o ligaria (e a sua fortuna) a esta cidade. Este não era cara em uma carta não conservada. Nesta epístola
um procedimento totalmente inusitado; havia outros encontramos não a descrição do acontecido, desne-
precedentes. Na Igreja cristã primitiva ocasionalmen- cessária, pois Alípio estivera presente, mas uma es-
te a massa leiga podia exercer influência decisiva na pécie de discussão teórica centrada na proposição:
eleição de um bispo de sua escolha. Cipriano, bispo “Eu ou o povo de Hipona consideramos que alguém
de Cartago no século III, várias vezes usou a expres- está obrigado a cumprir um juramento extorquido pela
são suffragium plebis ou populi ou omnium em rela- violência?”3 A resposta de Agostinho é positiva – é
ção à eleição de bispos. É verdade que tanto na esfera obrigação de Piniano cumprir sua promessa; conclui
secular quanto na eclesiástica as decisões oriundas das
bases (tanto quanto existiam) tendiam a ser substituí-
das por decisões emanadas de cima; gradualmente a 3
Em EPIST. CXXVI, 11, Agostinho reproduz a questão que
massa de leigos iria sendo excluída da participação Alípio lhe colocara; Scripsit mihi Sanctitas tua: Si aut ego aut
efetiva na escolha de seus líderes na Igreja. A longo Hipponenses hoc censent, ut jurejurando violenter extorto satisfiat.
22 Maria Luiza Corassin / Revista de História 138 (1998), 17-25

que “é errado ser infiel ao juramento”, apesar das cidade, não me admiro que aqueles que procuram
condições em que ele foi feito. obtê-la lutem com todas as forças para conseguir o
Nessa carta CXXV afirma ainda que, apesar de que desejam; aquele que obtém tal cargo, está seguro
não estar sendo diretamente acusado, Albina o consi- de enriquecer com os oferecimentos das matronas, de
dera culpado de tentar reter “um servo de Deus entre andar de carruagem pelas ruas respeitavelmente ves-
nós por amor ao dinheiro”4 ; repele as suspeitas que tido, superando no fasto dos banquetes a suntuosida-
recaem sobre o populus Hipponensis ter agido movi- de da mesa imperial” (AMM. MARC., XXVII, III, 14).
do pela cupiditas. Sente-se mais atingido pelo fato de É necessário reconhecer que em seguida Amiano diz que
Albina nutrir suspeitas semelhantes sobre ele: De te o bispo de Roma deveria “imitar a vida exemplar de
quippe imperitum vulgus hoc sensit; de nobis, lumina alguns bispos de província” pela sobriedade e tempe-
Ecclesiae (EPIST. CXXV, 2). Fica evidente a distin- rança que estes demonstravam. Note-se que já na obra
ção que Agostinho estabelece entre a “multidão igno- do pagão Amiano são perceptíveis os elementos que
rante” que formou uma má opinião sobre Alípio e a reaparecem na carta de Agostinho em 411: a impor-
“luz da Igreja”, Albina, que julga o mesmo sobre ele. tância das oblationes matronarum e a riqueza da Igre-
Note-se que o dicionário registra para lumen tanto o ja e de seus bispos.
sentido de “luz” como o de “apoio, arrimo, auxílio”. Na carta dirigida a Albina, Agostinho rememora
Defende-se usando argumentos pouco convincen- a ocorrência: em tumulto, o povo pedia a ordenação
tes: seria tolice acreditar que o povo cobiçasse a ri- de Piniano; havendo prometido a este não ordená-lo
queza do marido de Melânia; esta acusação apenas contra a sua vontade, ameaçou deixar de ser bispo da
refletiria o ódio contra o clero, especialmente contra cidade, caso fosse forçado a romper esta promessa.
os bispos que eram suspeitos de usar e aproveitar os Também não permitiria que fosse ordenado em sua
bens da Igreja como se fossem os proprietários5 . Igreja por algum outro. Afirmou ainda que, caso
Sabemos que desde o século IV em diante a ri- Piniano fosse ordenado contra a própria vontade, este
queza da Igreja crescera e logo os bispos das sedes partiria de Hipona imediatamente após receber a or-
mais importantes tornaram-se os administradores de denação. Como o clamor da multidão persistisse, Agos-
grandes propriedades, dispondo de somas imensas. tinho pensou em se retirar, mas temia que ela se tor-
No início do século V os rendimentos de um bispo nasse mais exasperada e cometesse alguma violência
como o de Ravena eram maiores que os de um go- contra o bispo Alípio de Tagaste também ali presente.
vernador provincial (STE. CROIX, 1954, p. 46). Para Piniano propôs então consentir em fixar residên-
o século IV temos o testemunho de Amiano Marce- cia em Hipona caso ninguém o obrigasse a aceitar a
lino, ao relatar a acirrada disputa em torno da sede condição clerical. Agostinho consultou Alípio sobre
episcopal de Roma: “Considerando o esplendor da isto, o qual se recusou a opinar. Dirigiu-se então nova-
mente à multidão barulhenta para negociar. “Após
conversar a meia-voz entre eles, pediram que a esta
promessa e ao juramento, fosse acrescentada outra
4
Quando enim nos credimur cupiditate pecuniae, non dilectione
cláusula, a de que se ele alguma vez consentisse em
justitiae servos Dei velle retinere...(Epist. CXXV, 1).
5
aceitar ser clérigo, só o faria na igreja de Hipona”.
Verum omnis haec invidia non nisi in clericos aestuat,
maximeque in episcopos, quorum videtur praeminere dominatus,
O aspecto a destacar nestas cartas é a presença da
qui uti fruique rebus Ecclesiae tanquam possessores et domini “multidão” no relato de Agostinho. Nesta época de
existimantur. (Epist. CXXV, 2). extrema turbulência na vida urbana, há outros regis-
Maria Luiza Corassin / Revista de História 138 (1998), 17-25 23

tros de revoltas nas quais magistrados chegam a per- Portanto, o medo da violência e do poder do povo
der a vida. Amiano Marcelino relata vários casos enfurecido era bastante fundado. O argumento de
ocorridos em Roma no século IV, envolvendo prefei- Agostinho de que não houvera perigo real quando o
tos urbanos. Símaco, exponente da aristocracia, teve juramento foi feito é pouco convincente. Ele, no en-
incendiada sua belíssima casa no Trastevere; a ira dos tanto, procura em sua carta minimizar o perigo que
cidadãos foi despertada quando um plebeu inventou que Piniano correra: “o persistente clamor do povo e ape-
o teria ouvido dizer que preferia apagar a cal no seu nas isto” o forçara ao juramento. Fala da composição
próprio vinho, do que vendê-lo pelo preço previsto. da multidão: “ alguns homens atrevidos, misturados
(AMM. MARC. XXVII, III, 4) Lampádio, que se tor- com a multidão formada por homens de bem, pode-
nou prefeito de Roma em 365, enfrentou vários tu- riam pelo desejo de pilhagem irromper em atos crimi-
multos durante sua administração. O mais grave ocor- nosos de violência, caso encontrassem pretexto para
reu quando a plebs infima, reunida em grande número, desordens e para justa indignação”. Procurando de-
teria ateado fogo com tochas e projéteis incendiários monstrar a obrigação de Piniano honrar sua promessa
em sua casa, perto das termas de Constantino, se os ao povo de Hipona, afirma que quando o juramento
vizinhos e os domésticos que acorreram em auxílio foi feito não havia certeza de que o medo da violên-
não a tivessem dispersado jogando pedras e telhas. cia se transformasse em agressão mais concreta6 .
Aterrorizado pela primeira vez com a agitação cres- Já na carta endereçada a Albina ele inicia: “nada
cente (crebrescentes seditionis), ele se retirou para es- foi feito pelo povo de Hipona contra nosso santo ir-
perar que o tumulto se aplacasse. Amiano informa o mão, seu genro Piniano, que pudesse despertar nele
motivo: o prefeito quando queria construir novos o medo da morte, embora ele tenha sido acometido
edifícios ou restaurar os antigos, se necessitasse de por este temor”. Em seguida expressa sua preocupa-
ferro, chumbo, bronze e outros materiais, mandava ção com “os malvados que com freqüência se juntam
os funcionários buscarem o material, levando sem numa multidão em secreta conspiração”, podendo
pagar; isto acabou despertando a ira dos pobres, que “irromper em atrevimento violento, se encontrassem
reclamavam dos freqüentes prejuízos sofridos (AMM. ocasião para iniciar uma revolta”7 . Segundo Agosti-
MARC. XXVII, III, 8-10). A outra agitação urbana nho nada disto ocorrera; apenas o bispo Alípio foi agre-
registrada por Amiano ocorreu durante a luta entre os dido verbalmente: “o povo fez clamorosamente
partidários de Dâmaso e Ursino que disputavam a sede expobrações muito indignas contra ele”. Repele a acu-
episcopal de Roma, durando até 368. Segundo este sação de que o povo agiu motivado por razões indig-
autor, o tumulto resultou até em ferimentos e morte de
adeptos de ambos. O prefeito da Urbe, Vivêncio, inca-
paz de controlar a situação, foi obrigado a se retirar para 6
Nunc vero cum tantummodo populi perseverantissimus clamor,
uma propriedade suburbana. Sabe-se que na basílica ad nullum nefas hominem cogeret, sed ad id quod si fieret, licite
de Sicinino, atual S. Maria Maggiore, onde os cristãos fieret; cunque metueretur quidem ne aliqui perditi, qui multitudini
se reuniam, foram encontrados cento e trinta e sete etiam bonorum plerumque miscentur, occasione seditionis et quasi
justae indignationis inventa, in aliquam vim sceleratam rapinarum
cadáveres (AMM. MARC. XXVII, III,14).
cupiditate prorumperent, sed tamen illud quod metuebatur esset
A própria biografia de Melânia informa que,
incertum (EPIST. CXXV, 3).
pouco antes dela deixar Roma, o prefeito da cidade 7
Nam et nos metuebamus ne ab aliquibus perditis, qui saepe multitudini
fora massacrado pelo povo sublevado contra ele num occulta conspiratione miscentur, in violentam prorumperetur audaciam,
distúrbio provocado pela falta de pão (VITA MEL., 19). occasione seditionis inventa... (EPIST. CXXVI, 1).
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nas, mas reconhece que na multidão podiam estar mis- esmolas e doações às comunidades. O comportamen-
turados alguns indigentes ou mendigos que ajudaram to, tanto dos aristocratas -incluindo-se aqui Agosti-
a aumentar o clamor popular, agindo com esperança nho, com sua mentalidade permeada de valores da
de algum auxílio para suas necessidades vindo da res- cultura romana, embora cristão-, quanto do populus,
peitável riqueza de Piniano; na opinião dele, isto não é calcado numa relação quase contratual pré-existente.
pode ser considerado como vergonhosa cobiça8 . Culturalmente já existia uma expectativa de direito da
Descreve a negociação que se seguiu até termi- plebe receber da nobreza o atendimento às suas reivin-
nar pelo acordo de que Piniano não seria ordenado, dicações. Agostinho usa termos técnicos ao discutir se
mas fixaria residência em Hipona. Fica evidente que Piniano está obrigado ou não a cumprir a promessa que
a pressão da massa reunida na igreja era considerá- lhe foi extorquida, recorrendo mesmo a exemplos da
vel: “a multidão reunida defronte a escadaria persis- época da República romana. Piniano não será culpado
tia na mesma determinação, com terrível clamor e de perjúrio, nem será assim considerado pelos habitan-
gritos”; “todo o tempo foram feitas recriminações in- tes de Hipona, a não ser que não corresponda à expec-
dignas contra meu irmão Alípio; neste momento temí- tativa deles9 . É perjuro quem ilude a expectativa da-
amos consequências mais sérias”. queles para quem jurou (EPIST. CXXV, 4).
Agostinho acaba admitindo a ameaça que sofreu Persiste o comportamento contraditório dos aris-
ao enfrentar a multidão. Afirma que permaneceu fiel a tocratas romanos: um sentimento de responsabilida-
sua promessa “mesmo face a tal perigo. Verdade é que de para com a plebe urbana, misturado com um certo
mais tarde se verificou ser sem fundamento tal receio, desprezo aliado a um temor latente pela violência que
mas o medo era compartilhado por todos nós igualmen- podia irromper na multidão incontrolada.
te”. Temia que o povo se tornasse exasperado pelo O vocabulário empregado reflete esta atitude, re-
desapontamento e menos contido pelo sentimento de metendo a alguns termos tradicionais das instituições
reverência. Temia sobretudo por Alípio; não podia se romanas: a “plebs” de Tagaste, o “populus” de Hipona.
retirar da igreja, “deixando-o sob o poder do povo en- A conotação pejorativa aparece claramente em outros:
furecido (furenti populo)” (EPIST. CXXVI, 2). “relicta turba”, “multitudo”, “perditi”, e nos qualifica-
Agostinho funcionou como mediador na negocia- tivos “imperitum vulgus”, “furenti populo”, “populus
ção, conseguindo que a multidão fizesse silêncio para tumultuante”; o episódio é considerado relacionado com
ouvir a proposta de Piniano. Quando esta foi aceita, “conspirationes” e “seditiones”. Conceitos novos apa-
foi formalizado um documento assinado por Piniano recem dentro do novo espaço cristão, com referências a
e outros bispos presentes. “populo christiano”, “honestos fideles”, menção à po-
No século V, ao lado das tradicionais relações breza cristã (christiana paupertas), à “indigentia” e pre-
entre os magistrados e a plebe urbana, encontramos ocupação com os fracos/vulneráveis (infirmus).
desenvolvidas novas relações referentes a “ricos” e Ao longo do tempo, a convivência dentro do mes-
“pobres” dentro da conduta cristã de distribuição de mo espaço urbano desenvolvera padrões culturais de
comportamento, existindo por parte da plebe uma ex-

8
Nam etsi fuerint illi multitudini permixti inopes vel mendici,
qui simul clamabant, et de vestra venerabili redundantia
9
indigentiae suae supplementum sperabant; nec ista, ut arbitror, Ac per hoc perjurus nec erit, nec ab eis putabitur, nisi eorum
cupiditas turpis est (EPIST. CXXVI, 7). exspectationem deceperit.
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pectativa de receber da nobreza o atendimento às sua diversos, tornam-se ainda mais complexas pela contri-
reivindicações. No período romano tardio, estas rela- buição cristã, com o “povo de Deus” utilizando o se-
ções, que colocavam face a face grupos sociais tão cular aprendizado anterior enquanto plebe romana.

Bibliografia
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Endereço do Autor: Departamento de História • FFLCH/USP • Av. Professor Lineu Prestes,338 • CEP 05508-900 • São Paulo • Brasil
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REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

EL COMERCIO DE LA COCA Y LAS MUJERES


INDIAS EN POTOSI DEL S. XVI1

Paulina Numhauser Bar-Magen


Depto. de História –FFLCH/USP

RESUMO: O estudo dos documentos notariais de Potosí no século XVI, comprovam a presença de mulheres indígenas
independentes que monopolizaram o rendoso comércio varejista da coca. Estes testemunhos provam como estas mulheres
tiveram a capacidade de acumular bens e de investí-los. Nos perguntamos se este fenômeno que assombrou os contempo-
râneos foi um produto das exigências vitais do sistema minerador ou a permanência de uma estrutura pré-hispana ampa-
rada pelos privilégios particulares do lugar?

PALAVRAS-CHAVE: Mulher Índia, coca, Potosí s. XVI.

ABSTRACT: The study of the notarial documents of Potosí at the XVI's century, reveals the presence of independent
indian women who monopolized the profitable retail trade of coca. These documents demonstrate how these women had
the capacity of acumulating goods as well as the possibility of investing them. We ask whether this phenomenon that
astonished the contemporaries was a consequence of the vital requeriments of the mining site or was due to the pre-hispanic
social structure sheltered by the particular privileges of the place?

KEYWORDS: Indian women, coca, Potosí s. XVI.

La estrecha relación existente entre el proceso de Asiento que se levantó a las faldas del Cerro Rico,
producción minera y el que se ocupa de aprovisionar descubierto el año 1545, ubicado a más de 4.000
el poblado que alberga a sus trabajadores, debe ser metros de altura, en un sitio originalmente despo-
contemplada al estudiar la minería en general y el caso blado, de difícil acceso, árido e inhóspito, en el cual
de Potosí en particular. toda provision debio ser llevada por “acarreto”.

1
Artículo expuesto en el marco del 49 Congreso de Americanistas Estas dos cosas son las minas y el trajín, sin minas no es de
de Quito, (ICA), bajo el nombre “Formas familiares matriarcales ningún provecho aquel Reyno porque no hay cosa en que se pueda
en Potosí del s. XVI?” sacar para contratar en otro, antes es falto de muchas cosas para
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la conservacion de la vida humana que se traen de otros Reynos y tes a incrementar el número de la población indígena
si no se puede sacar sin gente y esta gente no se puede sustentar de la villa, consiguió reactivar la minería del asiento,
sin comer y vestir y no se puede proveer esto sin trajín por estar la cual logró alcanzar niveles de producción nunca
los asientos de minas en tierra frigidísima que todo se lleva de
antes registrados por la historia mundial.
acarreto y este trajín tampoco se puede hazer sin gente... (B.N.M.
Por otro lado, las decisiones administrativas que
mss.3040, f.10 s.f. ).
adoptó y que afectaron a la población del lugar, son
Una intensa actividad comercial al minorista o al de gran interés para la comprensión de su obra política
detalle se desenvolvió en sus mercados, la cual fue y nos permiten observar los tramos más finos de la
dejada mayoritariamente en las manos de las mujeres política real en Indias.
indias residentes en el lugar.Esta función las trans- Toledo arrivó a Potosí el año 1573, como parte de
formó en un factor esencial en su funcionamiento, su Visita General del Reyno, el fuerte asombro que le
dándoles la oportunidad a las mas hábiles, de acumu- provocó el lugar, esta registrado por los relatos de mayor
lar fortunas de variada importancia y a la vez adqui- colorido de su correspondencia con el Monarca.
rir independencia y seguridad personal.
...en este asiento se an permitido a los yndios y a los españoles
Noticias referentes a su acción en las calles y
que ellas salgan a las plazas y mercados a vender todas las cossas
mercados de Potosí se pueden encontrar con profusi-
de los de aquí y los de las otras provincias ymbian a este asiento y
ón en la documentación notarial conservada en los el corregidor que a querido reformar esto le a opuesto que destruie
diferentes archivos regionales. a este asiento, ningun gobernador que lo viese y tocase con las
Testamentos, asientos de trabajo, contratos de manos se atreveria a poner remedio con las falsas informaciones
compraventa y juicios, dan testimonio de este acerto e que desta tierra se da (B.N.M., mss. 3040 f.91v.).
introducen un importante elemento a examinar, en re-
lación al discurso construido en torno a la participación Sus consejeros habían preparado al virrey para el
indígena dentro del sistema productivo minero per- encuentro con las calles del asiento, sin embargo ello
mitiendonos al mismo tiempo, observar con cierta nitidéz, no evitó la explosión de profundo asombro que le em-
el proceso de imposición del cotidiano en este discurso. bargó a medida que se internaba por las callejuelas
El virrey don Francisco de Toledo (1569-1580), por enrevesadas del lugar, y se ponía en contacto con su
medio de la implementación de una serie de reformas heterogénea población indígena.
administrativas, sociales y economicas, jugó un papel
Del asiento de que aqui no se puede dar enteramente razón
importante en el proceso de sacar a la Villa de la crisis
del a vuestra magestad que aunque aya mas de tres meses que yo
de producción en que se había sumergido a partir del
llegué y lo e visto todo por mi persona y puesto visitadores parti-
año 1566, en que el metal baja de calidad, y las vetas culares para cada cossa como tengo dicho en la carta de govierno
se han ahondado hasta el extremo de convertir la todavia avre menester mas tiempo para entenderlo...(Levillier
explotación en sumamente riesgosa y poco lucrativa. Gobernantes del Peru 1924 t.V carta del virrey Toledo al Rey
Introduciendo el proceso de fundición del metal Potosí 20 de marzo de 1573).
por amalgamación con azogue, y la construcción de
un complejo sistema hidráulico a través de represas Este funcionario juzgó que cualquier reforma a
artificiales de agua, las famosas lagunas de Potosi, – adoptar debía incluir un incremento importante del
destinadas a proveer de agua a los Ingenios de mo- número de habitantes, las medidas que tomó para ello
lienda construidos en las márgenes de la Rivera –; a abarcaron el reconocimiento de la costumbre del lu-
lo cual debemos sumar otra serie de medidas tendien- gar, desenvuelta desde el comienzo de explotación del
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Cerro, incluyendo tanto al intento por mantener a los in- comprando y vendiendo dos veces por semana, y que
dígenas como factor líder en el sistema productivo, donde no hubieren se hagan; en el artículo XIII, se
(discusión sobre la venta de metal robado por los prohibe que los caciques o curacas cobren tributos a
indios)2, de fundición, (mantenimiento de las guayras)3 y las indias casadas y en el XXVI se exige a los Corre-
de las medidas de protección del trabajo de las indias gidores de Indios que vigilen que los naturales no
del lugar. mueran ab intestato (Levillier Gobernantes del Perú,
El año 1575, en viaje de regreso a Lima, dando t.VIII, 1924, p.304-382).
por terminada la Visita General, el virrey legisló un Podemos sostener que Potosí fue construido como
conjunto de disposiciones que formaron las Ordenan- un lugar privilegiado por la Corona, la cual basó su
zas para los Indios de Las Charcas, que incluyeron política de concesión de mercedes especiales a los
varios artículos que demuestran que para esa época asientos mineros en la experiencia acumulada a tra-
había terminado de estudiar la realidad de la región, vés de largos siglos de gobierno, en que el principio
convenciéndose de la importancia del papel de la de reivindicación de la potestad sobre los yacimientos
mujer india como parte del sistema productivo del minerales del subsuelo de sus territorios, fue un factor
Reyno en general. indiscutido por las monarquías europeas. En Castilla
De acuerdo al artículo V, se prohíbe que las niñas y León esto comienza a ser codificado a partir del
indias sean separadas de sus madres para ir a escuchar siglo XIII (COLECCION LEGISLATIVA de MI-
catecismo, porque su principal obligación es ayudar NAS, 1889) (BORRAR, p. 266).
a sus madres en las labores cotidianas, en el artículo Esta condición especial de la villa ya la observó
XXXII, se da orden que en los pueblos donde exis- el historiador J.Lockhart, (1982, p.266); según el cual
tieren antiguos mercados los indígenas continúen a pesar de haber sido Potosí un factor altamente im-
portante en el proceso desorganizador de la población
indígena, jugó un papel casi nulo como elemento de
2
Esta discusión surgió temprano, a medida que la riqueza del me- aculturación, hecho que se tradujo en que la numero-
tal se iba agotando y los dueños de minas que en un comienzo le sa y abigarrada masa de pobladores indígenas del
restaron importancia comienzan a vigilar los montos de sus lugar mantuvo sus costumbres -religión y lengua – a
ganancias. El momento más álgido se produjo cuando el padre pesar de el estrecho contacto con los europeos. Las
jesuita Francisco Baena comienza a predicar, – azuzado por sus
expresiones de sorpresa que registró Toledo en su cor-
feligreses –, contra el robo de metales y la venta de ellos en el
respondencia reflejan sin dudas el fuerte choque cul-
mercado por los indios. El virrey Toledo reaccionó enérgicamente
contra estos embates desterrando a Baena y obligando al jefe de la
tural del español con una urbe de características pre-
orden Jesuita, en ese momento el padre y cronista, Joseph de Acos- dominantemente indígenas a la cual termina llaman-
ta, a desautorizar a su subordinado declarando que los indios tenían do, como lo hicieron antes y despues de él muchos
derecho a vender libremente el metal. otros españoles, la Babilonia de Indias.
3
Las guayras u hornillos de orígen indígena pre-hispano, fueron Respondiendo a las leyes de la oferta y la deman-
la solución al problema de la fundición del metal en el asiento, da los mercados potosinos se repletaron de productos
hasta la introducción del proceso de amalgamación por azogue.
de consumo exigidos por los naturales, poseedores de
En ese momento Toledo las conserva y esta politica sustentada
sobre las bases de la costumbre del lugar, fue uno de los pilares
que posibilitaron que el orden de explotación que estudiamos si-
4
guiera funcionando aún después de haber sido implantados los Hasta la crisis de producción de mediados de la década del 60',
Ingenios de azogue. diversos testimonios documentales coinciden en presenta r la
30 Paulina Numhauser Bar-Magen / Revista de História 138 (1998), 27-43

un enorme poder adquisitivo, adquirido como resul- sociales, dejaron rastros definidos en la documentación
tado del sistema de explotación adoptado desde el notarial del período, incluso sobre su vida privada.
comienzo de la mineración en el Cerro Rico4. Por otro lado, no obstante que la documentacion
Artículos de primera necesidad arribaron incesan- notarial, da la sensación de confiabilidad, debe ser
temente al lugar, incluyendo desde los Andes del analizada con sumo cuidado, pues tanto ayer como
Cuzco, la preciada yerba coca, la cual fue comercia- hoy, existieron individuos prontos a prestar testimo-
da al minorista con grandes márgenes de ganancia por nios falsos a un notario, y tanto entonces como ahora,
las mujeres indias, que desde los inicios del asiento muchos cayeron en sus redes. Un historiador debe de
comienzan a ser señaladas en la documentación no- la misma manera aproximarse con espíritu crítico y
tarial como las indias de la calle de la coca o las recelo a toda la documentación con que trabaja.
indias coqueras. De manera que si bien los testamentos de indias,
La mujer india como elemento social integrado al que por un lado nos presentan datos de sumo interés
medio urbano ha sido poco estudiado, sobre todo referentes a los bienes acumulados durante la vida
durante el período temprano de la colonización. En- productiva de estas mujeres y sobre sus relaciones de
tre las excepciones se cuentan los estudios sobre tes- trabajo y medio que las rodeaba, pueden esconder al
tamentos de finales del siglo XVI en Quito, de Frank mismo tiempo, graves distorciones que los convierten
Salomon (1988, p.325-341), y para el mismo perío- en un testimonio mucho menos seguro en lo referen-
do en Arequipa por Elinor C.Burkett (1978, p.118 ). te a los restantes datos que contienen.Cada testamento
Sin embargo estos trabajos o por la escacéz del e incluso documento de compraventa o de otro tipo,
material documental con que contaron, o por haber puede esconder entre sus líneas un intrincado drama
tratado el tema de acuerdo a la selección arbitraria de personal, frente al cual debemos estar alertas.
un solo tipo de documentos, testamentos en el caso El año 1588, el monarca ordenó al Conde del
de Salomon, no lograron abarcar de manera integral Villar, (Fernando de Torres y Portugal, 1584-1588),
a estas mujeres. su virrey en el Peru, que en vista que se ha enterado
Esto no es lo que acontece con las indias de la ca- de las graves irregularidades que suelen acontecer es-
lle de la coca de la Villa Imperial, las cuales por la im- tando un indio rico enfermo y
portancia y complejidad de su accion económica, que
las puso en contacto con una pluralidad de factores ...le va a confesar un religioso o clérigo a cuyo cargo esta su
doctrina, y procura y da orden como haga testamento y que en el
dexe a él o a la Iglesia toda o la mayor parte de su hazienda,
aunque tengan herederos forzosos, y que con los Indios ladinos
versión de acuerdo a la cual la riqueza del metal y la facilidad de sacristanes, que tienen en las dichas Yglesias, que por la mayor
extraerlo hizo que los dueños de las minas abandonaran su parte son criados suyos embian a hazer prevenciones con los di-
explotación en manos de sus yanaconas o indios varas, quienes chos enfermos, y aquellos se persuaden en ello, y que cuando la
ponían los materiales de expotación, entregando la cacilla o yema, justicia lo viene a entender ya el difunto esta enterrado, y el cura
la parte más rica del metal extraído, al dueño de la mina, restándole o la Yglesia apoderados de la hazienda, y por este camino quedan
al indio el metal sobrante. Esta version referente a la forma de muchos pobres defraudados de las herencias que les pertenecen...
explotación del mineral en el período temprano de Potosí, se puede (ENCINAS, v. II, 1945, p.166-167).
consultar en la B.N.M.el mss.3040, la cual es ratificada por el
cronista Luis Capoche (1959, p.108-11). Sin embargo estas
interpretaciónes deben de ser cotejadas con documentos alterna- En realidad, a oidos del Rey y su Consejo de
tivos y que presenten la version contraria, ver, A.G.I. Justicia 677. Indias hacía tiempo que estaban llegando quejas so-
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bre este grave abuso, el que por lo demás, fue muy dicha casa le doy porque rueguen todos por my anyma...agregando
difícil de erradicar. además que mientras esta montañera no se encuentre sus albaceas,
De manera que algunos años después, el Cabildo un clérigo llamado Lima y un español de nombre Benyto Peñalosa,
deberán ser los encargados de repartir el arriendo de acuerdo a su
de los Veinticuatro de Potosí, se ocupó también del
parecer, en rogativas por su alma y en limosnas por el rescate de
tema, y en las Instrucciones que despacha a su procu-
los cautivos (C.M.P.,1588, e.n.13).
rador en la Corte, Luis Dávalos de Avila, le solicita
que se queje porque Si bien este testamento concuerda con las denun-
cias referentes a dolo, nos presenta otro problema que
...los curas de las parroquias de la dicha villa quando algun debe de ser tomado en consideración al estudiar este
indio muere le consumen todos los bienes que dexan, unos por-
tipo de testimonios, la ausencia de herederos o la di-
que ellos mesmos les hazen los testamentos e se dexan en ellos
ficultad para encontrarlos pudo haber sido también
por herederos y otros a titulo de que se les deve dar el entierro y
de las andas e cruz alta desde la casa del muerto a la Yglesia
una consecuencia del carácter de inmigrantes de la
quitando a sus hijos e padres la legítima que se les debe de derecho población que se estableció en el asiento.
natural...(A.N.B. ACTAS DEL CABILDO DE POTOSI, t.8, f.10). Este problema preocupó al virrey el cual determinó
que en caso que alguien no poseyera susesores directos
Entre las escrituras notariales, se encuentran debía de ser heredado por sus ascendientes próximos,
varios documentos que corroboran estas preocupacio- lo que regía en todos los territorios bajo dominio de la
nes de las autoridades. Corona castellana, desde que se promulgaron las Leyes de
El mismo año 1588, en que el Monarca despacha Toro, (MARTÍNEZ ALCUBILLAS, 1885, p.719-128), el
el decreto anteriormente citado, Francisca Chimpo año 1505, y que rigieron por derecho de prelacía en todo
Ocllo, palla o india noble, natural del Cuzco, cuyo el reino en lo que se refiere a materia de derecho civil. Sin
estatus de india casada y velada segun la orden de la embargo, Toledo atribuyéndose la prerrogativa de ex-
Santa Madre Iglesia, es poco común entre las mujeres plicar este Código de acuerdo a las necesidades de
comerciantes de Potosi, dictó su testamento. Indias, ordenó que
Su marido la abandonó hace catorce años aproxi-
madamente, yéndose a vivir a la ciudad de Tarixa, ...a falta de hijos no excedan las mandas que hicieren a otras
desde donde a veces a acudido a verme y hablarme, personas, y por su ánima, de la mitad de los bienes que dejare,
los bienes acumulados por este matrimonio y que han porque la otra mitad la hayen libre los herederos por ser forzo-
sido ganados por ambos a dos y por ende deberán ser sos...(LEVILLIER, t.VIII, 1924, p.326).

repartidos equitativamente al momento de disolución


del vínculo, preocupan a Francisca por que las Evidentemente los testamentos carentes de here-
casas,...que al presente bibo que las he ganado y edi- deros son una minoría, que ya Frank Salomon (1988,
ficado con mi sudor y trabajo queden de la parte de p.328), calculó en un 43% para Quito a finales del
los dichos bienes myos...y a pesar de que con ella vive siglo XVI, aunque la posibilidad de llegar a estable-
María india, al parecer una criada, y a quien le deja de cer cualquier tipo de cálculo estadístico a través de
herencia 30 pesos corrientes y un luto, cómo de acuerdo estos testimonios, resulta muy peligroso, aun más si
al documento parece que no tiene heredero alguno a aceptamos la posibilidad de engaño denunciados por
quien dejar sus propiedades, decide destinarlas para las autoridades de entonces y por las vivas sospechas
que surgen al estudiar su contenido.
...meter a monja a una española o montañera pobre y
necesitada la qual sea la que le pareciere a mys albaceas la qual
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Los distintos problemas referentes al empleo de escri- La adquisición de propiedades fue un acto de gran
turas notariales por la historiografía ha sido tratada en detalle importancia para estas mujeres no solamente como
por Adelaine Daumard y Fraçoit Furet (1959, p.676-693). una forma de inversión, de una cantidad relativamente
No podemos descartar, sin embargo, la posibilidad importante de capital, sino por su significado cultu-
de desenvolver una pesquisa que permita acercarnos ral que pudo estar relacionado con la tendencia que
a las vidas privadas de estas mujeres indias, reconstru- se observa en algunos de estos testimonios de trans-
yendo en lo posible su entorno familiar y social, en misión del bien por vía materna.
base a las secciones más confiables de esta documen- En una fecha cercana a la del contrato anteriormente
tación, las que incluyen en los testamentos un citado, otra mujer llamada Catalina Palla, oriunda del
recuento pormenorizado de los debes y haberes que Cuzco, dictó su última voluntad, por intermedio del
lograron acumular durante su vida de trabajo, sus mestizo, Juan de la Peña, quien sirvió de lengua, junto a
acciones ante la justicia de la villa y el numero abun- su lecho de enferma se encontraban además sus dos hijas,
dante de contratos de compraventa efectuados entre Francisca niña de catorce años, y María de Balencia hija
indios, que nos permiten comprobar que el objeto de de una unión previa con Pedro de Balencia de la ciudad
mayor interés en que invirtieron sus ahorros fue en de Arequipa, también estubo presente su amo5 , térmi-
la compra de bienes raíces del lugar. no con que se refiere a su conviviente y padre de su hija
El instante de celebración del contrato de compra- menor, Gregorio de la Peña.
venta debía de realizarse ante un notario, exigiéndose Catalina que se dedica a la venta de coca y pan, a
también la presencia del Justicia Mayor, del Corre- logrado reunir un capital de trabajo que le permite
gidor de Indios o del Alcalde Mayor de Potosi, mantener a sus hijas, la participación en estas ganan-
debiendo además comparecer, de acuerdo a las Leyes cias de Gregorio no queda clara, sin embargo la rela-
de Toro, el marido en caso de existir tal, dando su ción entre los miembros de este grupo familiar, pare-
consentimiento a la acción de su mujer. ce haber estado fuertemente determinada por el peso
En la Casa de Moneda de Potosí, se conservan de la presencia de este último, el cual es nombrado
variados tipos de contratos de compraventa efectua- albacea, imponiéndo sus valores e intereses por so-
dos entre indios en general y en particular entre las bre los de Catalina, tensión que se observa claramente
mismas mujeres coqueras. en el documento.
El 12 de enero de 1572, comparecieron ante el
escribano público Martín de Barrientos y de don Declaro que Gregorio de la Peña mi amo me hizo donación y
Diego de Gamarra Alcalde Ordinario, Catalina natu- a mis hijas destas casas y corrales que al presente moro para que
durante los dias de mi vida y de las de mis hijas viviese en ellas,
ral ynga, junto a su marido, Hernando Santón, natural
e las tubiere e gozase como de cosa mia propia, digo y declaro
chachapoyas, la cual declara que

5
de buena voluntad vende y da cuenta a Elvira Mañy, india, pre- La relación existente entre un amo y su criada o criado, que
sente una casa que tiene en esta villa detrás de las carnicerías que tiene connotaciones que lo relacionan al vínculo de yanaconaje,
lindan con las casas de esta parte y por la otra con las casas de fue comúnente empleada en este período, abarcando toda la gama
Ysabel, india, criada de Antonio de Vargas, la qual dicha casa ay de relacionamientos entre un europeo y un indio no mitayo, rela-
tres bohíos y cercas con pertenencias entradas y salidas, perte- cionado a él temporalmente sobre la base de un asiento de trabajo
nencias usos derechos y costumbres y servidumbres... por la asalariado e incluso a relaciones entre indios, sobre lo cual se
cuantía de 200 pesos de plata corriente (C.M.P., 1572, e.n.4, f.22). conservan numerosos documentos.
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que las dichas casas y corrales de que ansi me tiene hechas la La tendencia hacia el mantenimiento de una socie-
dicha donación de ques de los dias de mi vida son del dicho dad indígena bi-líneal en que la sucesión se establece
Gregorio de la Pena y de las dichas mis hijas y de Juan de la Peña por línea materna o paterna separadamente, de acuerdo
hijo del dicho Gregorio de la Peña y en esto me remito a la dicha
a un posible orden pre-hispano y que pareciera notarse
donación...De esta manera las casas terminan convirtiendose
en algunos de estos testimonios, resulta no obstante
también en propiedad de este último, y la hija de Pedro de Balencia
que según su madre es propietaria como su hermana del bien raíz, difusa y posiblemente fue asimilada por la estructura
se decide que si el dicho su padre la quisiere llevar se la de el paternalista del documento testamentario a través del
Gregorio de la Peña. cual estudiamos el fenómeno.
Los testamentos incluyeron entre las listas porme-
Nombra como sus herederos universales a Juan y a norizadas de los bienes de estas mujeres, su vestuario
su hija Francisca poniendo fuera a su hija María a quien y joyas, datos que nos permite reconstruir la forma
le deja tan sólo la suma de cincuenta pesos de plata como estas ricas comerciantes se engalanaban cotidi-
corriente como dote, y con esto la aparte de todos mis anamente, siendo posible comprobar que sus prendas
bienes y herencia (C.M.P., 1572, e.n.6 f. 51 y ss.). continuaron siendo las tradicionales, y que a medida
El acto jurídico de donar6, fue muy empleado en que su riqueza se incrementaba, ellas se preocuparon
Potosi, en las relaciones de yanaconaje entre las cri- por hacerlo patente en su apariencia personal.
adas de los comerciantes de coca y sus amos los Francisca Carna, poderosa mujer coquera al
cuales como una forma de agradecimiento y recom- mayorista, entre sus alhajas cuenta con cinco pares
pensa, les donaron bienes raíces. Las donatio propter de topos con sus cadenas de plata.
nupcias, que son las que corresponden en este caso Algunos han pretendido que el cuidado de estas
fueron equivalentes a las dotes, pues no volvían al mujeres por su vestuario tuvo importancia ritual y que
esposo o donador en caso de sobrevivir éste a la el traspaso de estos artículos a sus hijas, comprueba
mujer, sino que fueron reputados como bienes la tesis de una sociedad matriarcal, sin embargo, en
traspasables a los herederos directos de la mujer. Por la misma medida en que estas mujeres transmitieron
lo cual resulta evidente que por sobre la ley y la últi- su vestuario a sus herederas por razones obvias, los
ma voluntad de Catalina se imponen los intereses de padres de los niños naturales nacidos de las uniones
su amo, hecho que particulariza este caso, pues con ellas, al dictar sus testamentos tambien donaron
generalmente fueron las mujeres las que sobrevivie- a sus hijos varones el suyo, evidentemente no pode-
ron a sus compañeros. mos desconocer el alto valor económico que tuvieron
estos artículos de primera necesidad.
De acuerdo a Elinor C. Burkett, la cual pesquisó
la documentación de notarios del primer período de
6
Donación propter nuptias o ante nuptias, en su orígen fueron la ciudad de Arequipa, la cantidad de estos testimo-
donaciones hechas a la mujer en vísperas de su casamiento por su nios originados por mujeres indias es muchísimo
futuro marido o por un tercero, la intención de ésto fue evidentemente mayor que los registros sobrevivientes de varones,
el establecimiento de la igualdad entre los cónyugues, ésta costumbre
según opina esta historiadora, esto fue originado por
alcanza su máximo desenvolvimiénto en la época tardía del Derecho
el papel diferente que la naciente sociedad colonial
Romano, ver, PETIT, 1972, p.568-569. En las Leyes de Toro se acuerda
que en el caso de las donaciones débese atener a la Ley del Fuero, que
les dio a cada uno de los sexos, siendo la mujer la que
permitía solamente en caso de tener alguien heredero legítimo hacer pudo con mayor facilidad penetrar en la vida domesti-
donación de hasta la quinta parte de sus bienes. ca europea como en otras ocupaciones, ayudada por
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el hecho que inspiró un mayor nivel de confianza que La mujer india no solamente trabajó junto al varón
su compañero, menos dócil. sino que poseyendo en el caso de las vendedoras de
Lo que se pretende sustentar detrás de esta obser- la coca, una mayor posibilidad de ser retribuidas con
vación es la tesis que la mujer indígena se ladinizó en salarios más altos que sus compañeros, fue ella la que
un grado superior a los varones, hecho fácil de compro- mantuvo a sus hijos y en muchos casos al padre de
bar, según Burkett, por el nivel superior de su partici- ellos tanto si fue español o indígena.
pación en la documentación de notarios, y que en la vida La conclusión a que podemos llegar como resul-
urbana diaria se tradujo, en una separación radical en- tado de las acciones de estas vendedoras registrados
tre los sexos llevando ambos grupos vidas sociales y en e stos documentos es que lograron conquistar en
productivas separadas (BURKETT, 1978, p.118). base a su actividad comercial una marcada indepen-
Evidentemente esto no aconteció en Potosí don- dencia personal.
de su numerosa población indígena se integró en un El importante espacio económico-social que se les
esfuerzo mancomunado en el proceso de explotación abrió a estas mujeres, estubo sustentado por los con-
minera y de supervivencia. ceptos económicos escolásticos del período. La acti-
En la misma medida que las mujeres indias vidad comercial a que se dedicaban era llevada ade-
subieron cada miércoles alimentos al Cerro para los lante entre indios, siendo el comercio entre iguales
mineros, varones indios participaron del proceso de liberado de engaño o fraude. La coca fue un producto
aprovisionamiento y en oficios imprescindibles para comprado por los naturales y vendido por ellos, a tra-
el funcionamiento de la villa. Las actividades domés- vés de un comercio justo
ticas también ocuparon a indios de acuerdo a los datos
....por no ser de perjuizio, ni poderse aver contra los yndios
que aporta la documentación notarial, pudiendose ob- que son los que las compran porque no puede aver engaño de
servar que precisamente fueron los varones los que parte del bendedor no de parte del comprador por ser cosa savida
experimentaron un proceso de ladinización más inten- y entendida dellos...(A.N.B., 1595, e.p.1).
so, siendo ellos los que ejercieron el oficio de lenguas
o intérpretes, mimetizándose en la documentación por De manera que ellas pudieron ejercer sus funcio-
razón de su vestuario, nombres, lenguaje y las formas nes sin la necesidad de pasar por un proceso de
europeas de comportamiento que adoptaron. asimilación al medio europeo, movimentándose en su
En la ciudad de La Plata, el año 1569, Luis de Aldana, actividad comercial casi esclusivamente en un ambi-
ente cultural indígena, siendo su calidad de indias pre-
indio, sastre (ladino vestido en ávito de español), morador de ésta
cisamente el factor que les permitio ejercer su trabajo.
ciudad...declaró que,...devo e me obligo a dar y pagar realmente en
Fueron varios los niveles de actividad que estas mu-
efecto a Magdalena, yndia natural canari ques presente...ciento y
treynta e siete pesos de plata corriente a cuatro pesos el marco, los
jeres desempeñaron en relación al comercio de la coca.
que a vos debo e son por razon que por me hazer buena obra me En primer lugar se ubicaron las criadas de los
prestastes otros tantos pesos de plata..., dejando como garantía su comerciantes mayorístas o de los factores de estos co-
casa,...porque seais mas segura desta deuda como cosa que tan bien merciantes, las cuales en base a una relación de
devida, vos ypoteco por especial obligación e ypoteca, noviciando yanaconaje vendían la coca de sus amos en el mer-
ni denegando la general a la paga y seguridad desta deuda vos cado o calle de la coca o en la tienda convenida, ésta
empeño e ypoteco, no viciando ni derogando la general a la paga y
fue la manera como en los inicios de la explotación
seguridad desta deuda vos enpeño e ypoteco un solar con dos bohíos
minera del Cerro, se comenzó la venta de coca en el
de paja que tengo en esta ciudad quees en las que al presente vivo
(A.N.B. e.p. BRAVO f. 1058 y ss.),
Gato o tianguéz del lugar.
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Posteriormente estos acuerdos comerciales comen- Vázquez, hasta tanto se cobren todas las deudas de yndios e yndias
zaron a formalizarse ante notarios por asientos de porque las conoce y sabe quien son... (A.N.B. BRAVO, 1569 Esc.
trabajo, los cuales fueron celebrados por un espacio de Pú. 4 f. 1412v. y ss.).

tiempo limitado, un año por lo general, con el salario y Como el éxito de las ventas dependieron de la
el resto de las retribuciones cuidadosamente detalladas. capacidad de la mujer vendedora, observamos que los
Finalmente se ubicaron las mujeres que comerci- salarios fueron sujetos a negociación y condicionados
aron de manera independiente, las cuales por lo ge- en gran medida por la experiencia y habilidad de la
neral iniciaron su carrera como criadas de comerci- mujer coquera que celebraba el asiento.
antes europeos mayoristas o de otras mujeres indias El caso de Leonor Sucama, india natural del
y que gracias a su habilidad lograron elevarse en esta pueblo de Caracara, que el 9 de enero de 1571, com-
actividad al nivel de minoristas independientes y pareció ante el escribano y el Alcalde Mayor de la
algunas incluso al carácter de mayoristas, las cuales villa, acompañada de su marido, con el objeto de de-
a su vez, se rodearon de criadas indias aprendices que clarar que ella
rapidamente pasaban de este nivel al de pequeñas
comerciantes de cantidades menores de coca, reco- estaba concertada con Diego Hernández morador desta villa
para le servir por un año en vender coca en esta villa por razón
menzando de esta manera el ciclo.
que le ha de dar por el dicho año cincuenta pesos de plata corriente
Se puede observar de acuerdo a este análisis que
e tres fanegas de maíz e un vestido de avasca...
los niveles económicos en que ellas se movimentaron
fueron muy variables, estubieron las que compraron
pequeñas cantidades de yerba para subir al Cerro y Además de los beneficios obligatorios que acom-
trocarla por trozos de mineral rico para guayras, y pañaban estos contratos, o sea, curarla en caso de
existieron las que adquirían dos o tres cestos al fiado enfermedad, catequisarla etc. (C.M.P. MARTIN de
para venderlo a su vez de la misma manera, y también BARRIENTOS, Esc.Pú. 4, f.23v. y ss. 1572), se repiten
las que compraron partidas de decenas de cestos, para en la documentación y comprueban los altos niveles
comerciarlas desde sus propias tiendas. salariales que podía llegar a recibir una de estas mujeres.
Como criadas de un español mayorista estas mu- Los precios de los alimentos en el asiento fluctua-
jeres pudieron transformarse en la base del negocio ron de acuerdo a la oferta y la demanda, de manera por
de su amo, hasta el extremo de convertirse en impres- lo general descontrolada, a pesar de los esfuerzos de
cindibles. Esta dependencia fue a veces muy marcada, los cabildantes, manteniéndose por lo general altos,
el caso de Sebastián Rodriguez natural de la ciudad calcúlase que un minero mitayo gastaba solamente en
de Orense que agregó un codicilo a su testamento el alimentarse un 75% de su salario7, información que ha
año 1569 otorgándole a Angelina su criada, que esta
en mi casa, además del dinero que ya le había legado
7
en el documento anterior, otros cien pesos de plata P. Bakewell, op.cit., p.113. Esta estimación está calculada en
corriente para su hija Ysabel, base de un informe despachado al rey Felipe III, por Felipe Godoy
el año 1608, de acuerdo al cual por un período de trabajo de 26
mestiza..., y que se den a Salvador su hijo, [de Angelina], la ropa semanas, retribuido en base a 2,5 pesos por semana, un indio
que yo tubiere a tiempo que falleciere de mi bestir y que asimismo mitayo recibía 65 pesos de salario, de lo cual tenía que extraer 16
se le de un caballo de los que yo tubiere... pesos por la tasa de medio año, a lo cual debía agregarse 26 pesos
sin embargo, la condición para recibir todos estos bienes es que por las velas que gastaba en su trabajo, las cuales debían de ser
Angelina y sus hijos acompañen a la mujer de Sebastián, Ynés proveídas por el indio minero, además de otros gastos mínimos.
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servido para llegar a la conclusión, que fue imposible ocasionados por la complejidad de acciones económi-
que con el salario recibido por un indio, del cual debía cas y sociales en que estas mujeres comerciantes se
de extraerse la tasa y otros gastos fijos, se pudiera vieron envueltas.
mantener él y su familia. Este fue el orígen de la Hemos observado cómo los documentos nos las
suposición de que en Potosí la población indígena muestran acudiendo a la justicia en su propio nombre
deambulaba paupérrima y hambrienta por sus calles. o como criadas de..., comprando grandes partidas de
Para una mujer excenta del pago de la tasa, y con coca, por si mismas o por intermedio de sus propios
un amplio acceso a variadas fuentes de trabajo la ob- criados, en casos de haber llegado a convertirse en co-
tención de alimentos podía ser menos dificultosa, por merciantes mayoristas, celebrando múltiples asientos
ejemplo, Ysabel Guayco, yndia natural chumvivilcas, y toda una serie movimientos para los cuales debieron
con el consentimiento de su marido se presenta ante de poseer completa libertad de acción.
el escribano del asiento y el Alcalde Ordinario, el dia Casos como por el cual Luysa criada de Contreras,
4 de noviembre de 1572, declarando que se compro- comparece ante el juez de la villa, exigiendo que
mete a encargarse de una tienda de venta de maíz, por detengan a Myguel Moreno, por haberle sacado una
lo cual su dueño se obliga a pagarle un sueldo de yndia que le debía ciertos cestos de coca, a cuya cau-
dieciseis pesos de plata corriente al año además de sa el juez procede a encarcelar a Moreno, debiendose
dos vestidos de avasca y doze cargas de maiz, que en presentar el carpintero Francisco Ramírez como fia-
cada un mes una carga y en cada una semana un dor del culpado, para garantizar que si despues de dos
tomín de plata para comprar carne (C.M.P.,1572, esc. meses la india no volvía a pagar lo adeudado él se haria
not.4 f.29 y ss.). cargo del pago de los cestos de coca adeudados,
Sin embargo, el comercio de la coca al minorista, debieron de surgir con cierta frecuencia (C.M.P., 1572,
se desenvolvió mayoritariamente, en base a acuerdos e. n. 4, f. 29 y ss.).
de palabra, en que la confianza mutua fue la que Si nos detenemos ante los documentos testamen-
predominó sin que surgiere la necesidad de solicitar tarios de las mujeres indias con que contamos, queda
a un factor externo que los hiciere respetar. Los re- claro que en la gran mayoría de los casos ellas no
cursos al escribano con lo cuales aquí tratamos fueron llegaron a casarse con los padres europeos de sus
hijos. La interrogante que surge aqui es si esto no fue
más que el reflejo de un tipo de relacionamiento de
mancebaje, peyorativo para estas mujeres y que com-
prueba la tesis que sostiene que las indias fueron es-
A ésto deben sumarse 150 pesos que es su cálculo por alimentación poliadas y violentadas sistemáticamente por sus con-
durante este lapso de tiempo, lo que lleva a éste historiador a quistadores, o por lo contrario, fue una opción
calcular en 200, 10 pesos los gastos mínimos que se veía obligado adoptada con el propósito de facilitar la actividad co-
a realizar un indio mitayo para su propia manutención durante mercial de estas mujeres indias, evitando caer de esta
este período de trabajo, cantidad imposible de cubrir con el salario manera en las redes que la institucionalización pater-
recibido.
nalista española del período les tenía tendidas.
Sin embargo, estos datos deben ser tratados con extremo cuida-
En la medida en que los testimonios notariales son
do, pues los precios en el asiento variaban de acuerdo al estado
momentáneo de aprovisionamiento del lugar, lo que convierte este
la formalización legal de acciones de orden civil, en
informe como otros múltiples que aportan datos sobre precios en esa misma medida no podemos pretender que estos
Potosí en testimonios de un valor muy relativo. documentos transgredan estas formas, por lo tanto,
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es posible sostener que en caso de que alguna de es- Por esto la importancia en la testamentaria de las
tas mujeres hubiera estado casada, gran parte de su fórmulas por las cuales se adaptan los hechos a los
actividad comercial en el asiento, sobre todo en caso requisitos legales, evidentemente la realidad debio de
de un desenvolvimiento económico superior, hubiera haber estado bastante alejada de este cuadro, pues los
sido imposible. antecedentes conocidos para la población española
De acuerdo al articulo LV de las Leyes de Toro, demuestra el enorme número de casos de abandono
se determina que, de esposas en sus tierras de orígen, y en la misma
medida podemos sostener que la opción por la pro-
...la mujer durante su matrimonio sin licencia de su marido como creación de hijos naturales estubo muy difundida
no pueda hacer contracto alguno, asimismo no se pueda apartar entre los españoles que se establecieron en Indias, los
ni desistir de ningun contracto que a ella toque, ni dar por quito a
quales en sus propios testamentos colocan junto a sus
nadie del, ni pueda hacer quasi contracto, ni estar en juicio
hijos naturales mestizos los abandonados en Europa.
haciendo, ni defendiendo sin la dicha licencia de su marido:y si
estuviere por si, o por su procurador, mandamos que no vala lo De ahí que en la mayoría de los casos el que tomó
que hiciere (MARTÍNEZ ALCUBILLAS, 1885, p.725). la iniciativa para el dictado de un testamento debió
de ser el mismo hijo heredero, interesado por dejar
Por lo que una mujer no casada gozó de un grado esclarecido su estatus legal, o también con el objeto
muy superior de independencia de accion legal al de de utilizar éste como arma en la lucha con sus medio
aquella que lo estaba, lo que en la realidad cotidiana hermanos por la herencia materna, ya hemos compro-
de Potosí, se tradujo en uniones íntimas de corta du- bado cómo no faltaron los vivos prestos a aprovechar-
ración, en que los hijos que fueron su resultado y que se de algún feligres moribundo.
quedaron a cargo de la madre, rara vez fueron El caso de Ana Coricoca, natural de Pacaretambo,
hermanos de padre, lo que de la misma manera resulta esclarecedor al respecto, ella tuvo tres hijos
aconteció en los casos en que fue el padre el que se varones, dos producto de su unión con Juan Gutierrez
hizo cargo de la crianza de sus hijos naturales. Bernal, llamados Juan y Diego, habiendo el último
De manera que posiblemente la causa principal fallecido en edad temprana, y otro hijo con Pedro
porque fueron dictados estos testamentos fue la ur- Guiral de Oviedo a quien se le llamó con su mismo
gencia por dejar asentado el estatus de hijos naturales nombre, el cual se encontraba en la ciudad de Cuzco
de sus vástagos, evitando así que siendo declarados al momento en que dictó su testamento.
ilegítimos o bastardos quedara impugnado su derecho Ana les ha dado cantidad de pesos y ha gastado
a heredar los bienes maternos o paternos, tanto ab en ellos en las cosas que le han pedido
testamento o ex testamento en caso de existir algun
otro tipo de heredero legítimo. ...y a sido mi voluntad por mi quenta e hallado que no he agra-
De acuerdo al mismo Código en la ley XI, se vado a ninguno en las dádivas que con ellos he hecho e porque en
ningún tiempo entre ellos aya diferencias sino toda hermandad,
establece que
amor y voluntad y el uno no pida ny diga al otro que fue agraviado.

porque no se pueda dudar quales son hijos naturales, ordenamos


La aparente preocupación que demuestra la ma-
y mandamos que entonce se digan ser los hijos naturales, quando
dre por lo que pueda acontecer esta plenamente jus-
al tiempo que nascieron o fueron concebidos, sus padres podian
casar con sus madres justamente sin dispensación:con tanto que
tificada pues este documento tiene la intención de
el padre lo reconozca por su hijo. (MARTÍNEZ ALCUBILLAS, separar al hijo menor ausente, de la herencia que el
1885, p.722). mayor opina que les dejó su padre a él y a su hermano
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fallecido. Ana describe a Juan como un buen hijo, Un caso parecido, en que los sentimientos de cariño
pues se ha preocupado de cuidarla en sus enferme- surgen como el vínculo que unió a los miembros del
dades, alimentándome en su casa...a Pedro le da su grupo familiar, lo podemos observar en el caso de la rica
bendición y le ordena que no venga contra estas Francisca Carna india, natural de Pilco, jurisdicción de
clausulas...(C.M.P., 1587, esc.not. 12 f.1023 y ss.). la ciudad de Guánuco, ella tuvo dos hijas naturales,
El desenlace de este drama no lo conocemos, pero llamadas Ysabel Vázquez y Pacheco cuyo padre fue Juan
posiblemente estemos frente al antecedente de alguna Vázquez y Pacheco, y que al momento de dictar el testa-
de las corrientes escaramuzas armadas de la tumul- mento estaba casada con Alvaro Hidalgo, y Francisca
tuosa historia de Potosí. Bermúdez cuyo padre había sido Cristobal Bermúdez,
Intentando penetrar en la vida íntima de estas fa- casada a su vez con Francisco Pareja.
milias, podemos comprobar que en forma mayoritaria En su testamento hace un recuento de los múltiples
la crianza de los niños giró en torno a la madre, siendo actos de cuidado y preocupación que ha tenido con
ella la cabeza del hogar, sin embargo, casos inversos, ambas hijas, a las cuales les ha dado numerosos regalos
en que el padre fue el que aglutinó a su alrededor a sus durante su vida. Declara cómo cuando Francisca
hijos engendrados en distintas mujeres, también exis- regresaba desde la ciudad del Cuzco junto a su marido,
ten. En ambos casos la preocupación por el bienestar a instalarse permanentemente en Potosí, mandó a su otro
y el futuro de estos niños resulta evidente. yerno con una barra de plata a recibirlos al camino, por-
Lo podemos comprobar en el caso de Alonso que se la dí para ayuda de las costas que hizieron en
Hernández Perales, rico y poderoso potosino, – deja venir al pais...(C.M.P., 1588, esc. not. 13 f.121 y ss.).
una herencia líquida de aproximadamente 83.111 pe- Francisca es la mujer mas rica entre los testamen-
sos de plata ensayada –, crecida fortuna para un rico tos que hemos estudiado, su comercio había traspasa-
comerciante y dueño de minas en el asiento, incluso do los niveles del detalle para convertirse en una mujer
durante el período de bonanza y prosperidad vivido que comerciaba coca a niveles mayoristas desde una
en las últimas décadas del siglo XVI. tienda en la que al momento de dictar el documento
En su testamento declaró tener cinco hijos natura- tenía almacenados 100 cestos de coca para la venta.
les... que los tube con mujeres solteras con las quales Su fortuna comprendió varias propiedades y la
pudiera contraer matrimonio sin dispensación..., sus posesión de barras de plata y otros bienes de alto valor,
edades comprendían entre los veinticinco años y los los cuales procedió a repartir entre sus dos hijas mes-
diez años de Sebastiana la menor. Deja claro que ...a tizas, a las cuales sin embargo, no nombra herederas
todos los quales a cada uno dellos reconozco por ser de la tienda de coca de que fue propietaria.
mis hijos naturales. Procediendo despues a repartir Sus hijas siendo mestizas, estubieron excluidas de
sus bienes equitativamente sin distincion de sexo. este comercio?, la respuesta a esta interrogante es afir-
El afecto y cuidado por sus hijos lo hace patente mativa, la actividad comercial detallista de la coca de-
en este documento, preocupándose incluso por el bió de excluir a los mestizos, de la misma manera que
futuro de María niña, hermana de madre de su hija estos fueron periódicamente excluídos del Gato o
menor Sebastiana, a quien le deja doscientos Tianguéz de Potosí.
ducados, para que sea yndoctrinada en la doctrina Mujer de orígen modesto, ella no fue cuzqueña ni
y pulicía de la dicha nuestra fee catolica (CM.P., agregó el adjetivo de palla a su nombre, hace suponer
1589, esc. not. 15 f. 527 y ss.). que en la misma medida en que el grado de ladinización
no fue de importancia para aumentar el nivel de desen-
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volvimiento económico que una mujer podía aspirar a blacional, que alcanzó niveles numéricos pocas veces
alcanzar en Potosí, tampoco su orígen étnico jugó un antes observado incluso por los mismos colonos
papel significativo, lo que nos permite hacer una serie europeos, permitió que estos contactos se intensifi-
de observaciones referentes a la re-organización que vi- caran todavía más.
vió la población natural asentada a las faldas del Cerro Sin embargo la posibilidad de establecer que tan-
Rico, y el tipo de familia que constituyeron. to para los indígenas como para los españoles, la gi-
Primeramente podemos constatar que la actividad gantesca urbe se había convertido en una gran
comercial que desplegaron las mujeres coqueras las confusion humana, o en una Babilonia, esta fuera de
puso en contacto con un gran número de personas de nuestro alcance cognitivo, pues la documentación con
las más variadas procedencias, el testamento de que contamos, demuestra que las uniones multi-étni-
Magdalena Corvayache, por ejemplo, demuestra cas fueron una reacción espontánea de la población
cómo la actividad cotidiana que una comerciante pe- indígena frente a las formas de vida urbana, lo que
queña pero ya independiente desenvolvía el año 1572, comprueba un grado avanzado de capacidad de
le permitió relacionarse con indias residentes en las adaptación a las nuevas condicionantes, y que las ex-
distintas parroquias de la villa, con su proveedor de presiones de sorpresa negativas registradas por las
coca y con un minero vendedor de objetos artesanales fuentes hispanas provienen de españoles que consi-
de plata (C.M.P., 1572, esc. not. 4 f.22 y ss.). deraron que debían de ordenar las formas extravagan-
Los casamientos o uniones mixtas que se observan tes de vida urbana que tenían ante sus ojos de acuerdo
entre europeos e indígenas, se produjeron igualmente a un modelo europeo9.
entre los mismos naturales, los cuales se unieron sin Hemos comprobado asimismo cómo la relación
observar restricciones en relación al origen étnico de con el español no fue el factor que les abrió a estas
cada cual. mujeres las puertas al éxito comercial, un europeo
Los contratos y asientos de trabajo demuestran tuvo pocas probabilidades de influir en el funciona-
que en la mayoría de los matrimonios los miembros miento interno del comercio minorista de la coca, el
de la pareja fueron provenientes de ayllus o étnias dis- cual debía de desenvolverse exclusivamente entre
tintas. Un fenómeno similar fue constatado en Quito indios para ser justo, al contrario, fueron estas mujeres
durante este período por F. Salomon, quien llama la encargadas de las tiendas de sus amos o empleadores,
atención sobre el hecho que esta ciudad, se había con- las cuales podían garantizar el éxito o el fracaso de
vertido desde el punto de vista de la población indí-
gena en un colluvies gentium8, o un sitio donde los
matrimonios entre indígenas no observaron las limi-
taciones culturales prehispanas, produciendose una
9
enorme confusión cultural y racial. En la Villa Impe- Las constantes expresiones de asombro que registran las fuentes
rial, el caso fue mucho mas radical que en Quito o en de orígen hispano referentes a Potosí, se tradujeron en una variedad
otra cualquier urbe colonial, pues la concentración po- de proyectos destinados a ordenar a la población que habitaba la
villa de acuerdo a esquemas que permitieran darle una apariencia
física que obedeciera a exigencias urbanas europeas. Estos proyectos
nunca tuvieron éxito, uno de estos tuvo relación con las Parroquias
de la villa, las cuales debían de albergar a sus feligreses de acuerdo
8
colluvies gentium=confusión o barullo de gente, op.cit, al pueblo y a sus ayllus de orígen y que sin embargo nunca lograron
F.Salomón 1988 p.339 a cumplir éste propósito, ver, B.N.M. mss. 3040 f. 167 y ss.
40 Paulina Numhauser Bar-Magen / Revista de História 138 (1998), 27-43

sus negocios. Este hecho permite sostener que cuando ...cosa extraña, y creo que ninguna feria del mundo se
las relaciones de yanaconaje o de trabajo entre ygulo[sic] al trato de este mercado, relatando cómo,...muchos
europeos y mujeres indias se transformaron en rela- españoles enriquecieron en este asiento de Potosi con solamente
tener dos o tres indias que les contrataran en este tianguéz..(CIEZA
ciones personales, hasta el grado de la constitución
de LEÓN, 1986, p.293).
de un núcleo familiar, debieron de estar basadas en
sentimientos de orden afectivo. Entre los vaivenes económicos que se experimen-
El número de hijos que cada una de estas mujeres taron durante este período no faltaron grupos de indi-
indias tuvo durante su vida fértil, fueron por lo gene- viduos interesados en transformar el régimen de produc-
ral dos a tres formando familias pequeñas, en las ción del asiento y que embargados por fuertes prejuicios
cuales pudo estar presente el padre sin ser esto una atacaron el sistema y también a las mujeres indias como
regla, agregadas al hogar habitaron las criadas parte integral de él, pintándolas con tintes marcadamente
indigenas o las chinas, que las circundaron a medida negativos. Estos ataques se sucedieron sobre todo en la
que la mujer elevaba su nivel de riqueza. década del 80’ cuando se desenvuelve la discusión so-
La independencia económica que poseyó la mujer bre el orígen del metal comerciado por los indios en el
india en Potosí debió de influir enormemente en la tianguéz, y que ya el virrey Toledo había hecho esfuerzos
forma como se desenvolvió su hogar. enérgicos por acallar.
La lengua en que se comunicaron los miembros De manera que el texto anteriormente citado de
de estos hogares fue la indígena o lengua de la tierra, Cieza de León, se transforma en manos de estos cor-
aymará, quechua o puquina, en Potosí el español fue responsales en la siguiente descripción sombría, que
una lengua poco empleada, de acuerdo a los docu- el licenciado Cepeda despacha al virrey Conde del
mentos notariales los lenguas estuvieron presentes en Villar, (Fernando de Torres y Portugal, 1584-88),
la mayoría de las transacciones comerciales y testa-
mentos de estas indias, siendo los indios varones ...una india vendiendo coca en la plaza o gato que dizen y
urtando al descubierto metales, como todos los yndios lo hazen
quienes aprendieron y adoptaron el español con
da de comer y sustenta a un español y muchas a dos...,
mayor presteza.
Los primeros cronistas que visitaron el asiento
describieron asombrados el mercado de Potosí, y los españoles vagabundos poseedores de los
colocaron a sus mujeres vendedoras como un factor de peores defectos,
gran importancia y que les llamó la atención fuertemente,
...pasando su miserable vida en estos vicios y desventuras y
sin embargo, en la misma medida que surgieron intereses
con falsas esperanzas de porfas o pornefas tener plata se van a mas
que impugnaron desde época temprana la estructura
andar al infierno, como se puede presumir de muchos de ellos en
económica implantada en el lugar, en una proporción si- quien no a bastado la predicación y rigurosas reprehensiones que
milar, el papel e incluso la presencia de estas mujeres fue les han hecho los religiosos de la Compañía de Jesús para apartarles
puesta en tela de juicio y combatida. de su mal vivir en que les a tomado la muerte en manos de las
El año 1549, el cronista Pedro Cieza de León, yndias amigas suyas.. (B.N.M., mss. 3040, f. 69v.).
escribe uno de los primeros informes sobre el parti-
cular, contándonos cómo las más hermosas indias del Por su parte, Diego Rodríguez de Figueroa nos
Cuzco y de todo el reino se hallaban en este asiento... relata en su pequeño diario de la vida de Potosí en
describiendo el enorme mercado, Gato o Tianguéz, los días finales del año 1582, como,
con sorpresa y admiración,
Paulina Numhauser Bar-Magen / Revista de História 138 (1998), 27-43 41

También hay muchos hurtos de los metales y se ofende en este Señor fue servido de me dar y recabandome de la muerte natural,
cerro mucho a Dios nuestro señor porque van muchas yndias a el con a todo hombre viviente e creyendo como creho en la Santa fe
pan, bino, pasas, confites a dar a los mineros porque les den alguna Catolica y en la Sta.Trinidad y en todo aquello que crehe y tiene
carga de metal y lo que es peor es que algunas yndias llevan aya a sus la santa madre yglesia de roma hago y hordeno este mi testamen-
hijas doncellas y las venden a los mineros.(B.N.M., mss.3040, f.112). to en la forma siguiente, primeramente—————
encomiendo mi anyma a mi Senor Jesucristo que la compro
Debió pasar mas de un siglo para que el único cro- y redemyo por su preciosa sangre y ruego a nuestra senora la
nista potosino de nacimiento, a comienzos de 1700, nos virgen Sta.Ma. y a todos los santos de la corte del cielo sean
cuente que las mujeres indias no solo fueron parte inte- rogadores por mi ánima pecadora a mi Senor Jesucristo que me
perdone mys pecados y quiera llevar mi anyma pecadora a mi
gral de la vida ciudadana de la villa, sino como
senor Jesucristo que me perdone mys pecados y quiera llebar my
Bartolomé Arzáns Orzúa y Vela no dudó en escribir, un
anima a su santa gloria.—————
grupo social positivo siempre preocupado del bienestar Ytem; declaro que soy natural del pueblo que se llama paullo
público y presto a ayudar al prójimo. (ARZÁNS de ynga que es en el cuzco, y hija de huypollo mi madre y de gualpa
ORZÚA y VELA, T. II, p. 124, 148-149, 211). coro mi padre.—————-
Por último, si la historiografía actual las excluyó Ytem; mando que mi cuerpo sea sepultado en el monasterio
del sistema productivo del asiento, sin embargo los del señor santo domingo adonde gregorio de la peña mi amo le
archivos regionales nos las imponen, planteándonos pareciere y que los clerigos y frayles que al dicho gregorio de la
peña le pareciere acompañen mi cuerpo con la cruz de la yglesia
la urgencia de un estudio renovado de Potosí, con el
mayor.———————-
objeto de acercarnos en toda su complejidad a los
Ytem; declaro que yo soy cófrade de la cofradía de nuestra
múltiples factores que participaron en su historia. señora del rosario mando que los cofrades hermanos della me
Posiblemente, la urgencia por dar una explicación acompañen mi cuerpo como lo /f. 51v./ de acostumbre y mando
a este malentendido nos vuelva a poner frente a las que les paguen de mys bienes la limosna acostumbrada.———-
palabras con que el virrey Francisco de Toledo y otros Ytem; declaro que las mysas y ofrendas que al dicho gregorio
muchos contemporáneos y entre ellos también el li- de la peña le pereciere que se digan y ofrendan por mi ánima se
cenciado Juan de Matienzo, intentaron describir digan y ofrescan.—————-
Ytem; declaro que no debo cosa alguna que al presente se
Potosí, dándose finalmente “por vencidos” como se
me acuerde.—————-
declara este último en su obra el Gobierno del Peru,
Deudas.
quien termina pidiendo disculpas porque, Ytem; declaro que debe una yndia colla que llama Urcomo
que reside en la doctrina de santo domingo tres pesos y medio de
Finalmente, es una confusion muy grande [Potosi], que hay coca y pan que le bendí.—————
pocos que lo entiendan:solo se entiende que lo mexor es en aquel Ytem; declaro que me debe una yndia que se llama aguallo
asiento no hazer novedad (MATIENZO, 1967, p.133). que reside en la Rancheria que la conocen los de casa.————
——la qual me debe seis pesos de plata corriente de pan que le
Apéndice Documental bendí.——————
Casa de Moneda de Potosi Ytem; declaro que me debe una yndia que se llama tocta que
Escrituras notariales 6 (1572) reside en la doctrina de san francisco doce pesos corrientes de
f.31 pan que le bendí.—————-
En el nombre de la Santísima Trinidad, sepan quantos esta Ytem; declaro que me debe Diego yndio, mi hermano dos
carta de testamento vieren como yo, Catalina palla natural del pesos y medio corrientes.—-
Cuzco, otorgo e conozco que hago y hordeno Éste mi testamento Ytem; declaro que me debe quicana yndia dos pesos y medio
por interpretación de Juan de la Peña, mestizo, y estando como de pan y coca————-
estoy en mi sano juicio y entendimiento natural tal qual Dios mi Bienes.
42 Paulina Numhauser Bar-Magen / Revista de História 138 (1998), 27-43

Ytem; declaro que tengo en mi caja cinquanta pesos de plata dicho gregorio de la peña mi amo al qual doi todo mi poder
corriente.———— complido libre llano bastante segun lo tengo y de derecho mas
Ytem; declaro que tengo tres piezas de ropa de cumbe pueda baler para que entre y tome todos mys bienes judicial y
nuebas.———- extrajudicialmente y/o como bien bisto le fuere y los benda y
Ytem; declaro que tengo quatro pieza de ropa de abasca biejas remate en pública almoneda y en su balor cumpla este my testa-
e nuebas, las quales mando se de y repartan entre mis hijas./f. 52/ mento y lo que mando y ansi complido y pagado dejo y nombro
——————— por /f. 52v./ mis herederos universales en los demas bienes
Ytem; declaro que gregorio de a peña mi amo me hizo remanescientes a la dicha francisca hija del dicho gregorio de a
donación[y a mis hijas] de estas casas y corrales que al presente peña y mía y a juan de la peña hijo del dicho gregorio de la peña
moro para que durante los dias de mi vida [y de las de mis para que ambos a dos juntamente por yguales partes tanto el uno
hijas]viviese en ellas e las tubiese e gozase dellas como de cosa como el otro y al otro como al otro por yguales partes los [hereden]
mia propia./digo y declaro que las dichas casas y corrales de que y a la dicha maria de balencia le mando de mys bienes cincuenta
ansi me tiene hecha la dicha donación después de los días de mi pesos de plata corriente para ayuda de su casamiento y con esto
bida son del dicho gregorio de la peña y de las dichas mis hijas y la parte de todos mys bienes y herencia.—————————-
de juan de la peña hijo del dicho gregorio de la peña y en esto me Ytem; mando a las mandas forzosas medio peso de plata
rremito a la dicha donación la qual se guarde y cumpla como y de corriente a todas ellas y con esto las aparto del derecho que puede
la manera y con las condiciones que el dicho gregorio de la peña tener a mys bienes.———————
mi amo nos la hizo. Ytem; reboco y anulo y doi por ninguno y de nyngun balor
Ytem; declaro que yo ube una hija que se llama maria de otro qualquier testamento o testamentos que haya hecho por es-
balencia en pedro de balencia de arequipa y es su hija del dicho crito o por palabra que quiero que no balga salbo este que al pre-
pedro de balencia la qual obe siendo soltera y el dicho pedro de sente hago y hordeno que quiero que balga por mi codescilio y/o/
balencia soltero, mando que si el dicho su padre la quisiere llebar testamento e por my ultima e perpetua boluntad o como mejor
se la de el gregorio de la peña. lugar a derecho a lugar que fue fecho y otorgada en la villa
Ytem; declaro que yo hube una hija en el dicho gregorio de ymperial de potosi trece dias del mes de setienbre del ano de myll
la peña mi amo que se llama francisca mestiza de hedad de catorce e quinientos y setenta e dos, a nos, siendo presentes por testigos
anos la qual obe siendo muger soltera y el dicho gregorio de la rogados y llamados Juan barba, pedro lopez, diego lópez de jara e
pena soltero y por tal mi hija y del dicho gregorio de la peña myguel de vidauri, e andres marín estantes en esta dicha villa y
declaro ser mía. por que la dicha otorgante no sabia firmar la firmo de su nombre
Ytem; dejo y nombro por mis albaceas y testamentarios al a ruego de la otorgante Juan barba
Antemi Martín de Barrientos

Fuentes Primarias
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4, 6, 12, 13, 15. Hispana, Madrid, 1945.
CAPOCHE, Luis (1585) Relación de la Villa Imperial de Potosí, MATIENZO, Juan de (1567) Gobierno del Perú, Institut D‘etudes
Biblioteca de Autores Españoles, Madrid, 1959. Andines Paris-Lima, 1967.
Paulina Numhauser Bar-Magen / Revista de História 138 (1998), 27-43 43

Bibliografia Secundaria Selecta


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44 Paulina Numhauser Bar-Magen / Revista de História 138 (1998), 27-43
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

POR CORREREM OS TEMPLOS NUBLADOS: UM ESTUDO


SOBRE O CLERO E A CONJURAÇÃO MINEIRA*

André Figueiredo Rodrigues


Graduando Depto. de História-FFLCH/USP

RESUMO: O artigo aborda a posição sócio-econômica do clero e sua atuação no contexto histórico da Conjuração minei-
ra. A partir da documentação tentaremos traçar um perfil desse clero e de alguns de seus membros, mais especificamente,
os envolvidos na Conjuração.

ABSTRACT: This article discusses the clergy’s social and economic positions as well as its role in the historical context
of the Conjuração mineira. Based on a documentary analysis, the profile of the clergy and its members engaged in the
Conjuração is outlined.

PALAVRAS-CHAVE: Clero, Conjuração mineira, Instruções, Eclesiásticos, Devassa, Dízimo.

KEYWORDS: Clergy, Conjuração mineira, Instructions, Ecclesiastics, Devassa, Tithe.

Assistem na Capitania de Minas Gerais muitos


clérigos ociosos e inúteis que se ocupam em ne-
gociações e que escandalizam os povos com as
suas licenciosas vidas e com as perturbações
com que inquietam o sossego público.
João José Teixeira Coelho

*
O artigo faz parte de uma pesquisa intitulada O Clero e a Con- uma referência ao momento conturbado pelo qual passavam os
juração Mineira (1788 – 1792) com o patrocínio da Fundação de membros eclesiásticos processados e julgados pela devassa. Cf.
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Agradeço Inquirição feita ao padre José Maria Fajardo de Assis (ADIM,
a amiga Rita de Cássia Sam pelas sugestões oferecidas. O título é 1976, vol. 1, p. 268).
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A intensa religiosidade católica, o fascínio pelo estrutura administrativa introduzida e a constituição


ouro e o desejo de afirmação e autonomia explicam de um mercado consumidor interno2. Com o clero não
o universo mental do mineiro no século XVIII. A reli- será diferente, na medida em que representou um “es-
giosidade portuguesa era marcada pelo apreço à pom- pelho meio torto” das relações sociais, políticas e eco-
pa1; o ouro tornou-se o sonho de cada habitante da re- nômicas deste mundo com a metrópole.
gião, e acreditou-se que sua posse proporcionaria a A importância do clero como pólo sociopolítico
independência e a liberdade de cada um. Tudo em é enorme na época colonial brasileira, principalmen-
Minas Gerais foi novo, ou seja, decorreu dessa diversi- te em Minas. A religião para o Estado português é um
dade étnica, cultural e econômica. Para a primeira te- norteador de normas éticas e de conduta coletiva, ou
mos a presença marcante de portugueses, africanos e seja, as maneiras de se comportar perante o social, o
brasileiros. A influência cultural foi-nos legada por político e o econômico, lembrando que a unidade reli-
meio da junção transplantada e mesclada de crenças, giosa era pré-condição da unidade política. Devemos
idiomas, costumes, hábitos, preferências e sensibili- advertir ainda que a idéia de legitimação do poder real,
dades de negros, indígenas e portugueses. fundada nas leis divinas, tinha sua inferência na obe-
As relações econômicas giravam principalmente diência dos súditos às leis humanas, emanadas do prín-
em torno da exploração e extração de ouro e pedras cipe ou por ele aplicadas (WEHLING, 1986, p.173-
preciosas (diamante). O que mais nos chama atenção 174; VASCONCELLOS, 1935, p.9-14; HESPANHA
é o fato de que esse processo histórico da capitania & GOUVEIA, s.d., p.287-290). Essas idéias estão
mineira foi singular, não ocorrendo em nenhuma outra fortemente presentes nas Instruções orientadas aos
localidade do império colonial português na Améri- governadores de capitania. E, justamente, para com-
ca. A característica mais importante dessa formação preendermos esses fenômenos históricos que cercam
histórica foi a urbanização ocorrida ao longo do sete- o clero mineiro e, mais especificamente, o clero con-
centos, resultado de uma extensa rede de centros ur- jurado, partimos de uma documentação baseada nos
banos. Adicione-se a isto, a diversificação da econo-
mia através do comércio, artesanato, serviço de au-
xílio, mineração, agricultura e pecuária. Somam-se
a esses dados ainda o contingente populacional, a

51); LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci Del Nero da. Mi-
nas Colonial: Economia e Sociedade. São Paulo, Pioneira; FIPE,
1982; NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Anti-
go Sistema Colonial (1777 – 1808). 6ª ed. São Paulo, Hucitec,
1995; PAIVA, Eduardo França. Escravos e Libertos nas Minas
1
A pompa religiosa foi típica da Igreja da Contra-Reforma e serviu Gerais do Século XVIII: Estratégias de Resistência Através de
ainda de apoio suplementar ao poder monárquico em Portugal. Testamentos. São Paulo, Annablume, 1995; PINTO, Virgílio Noya.
2
A bibliografia a respeito desses assuntos é por demais extensa. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-Português. São Paulo,
Indicamos, portanto, como referências apenas alguns estudos, Companhia Editora Nacional, 1979. (Brasiliana, 371); SOUZA,
entre eles: FIGUEIREDO, Luciano. O Avesso da Memória: o Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a Pobreza Mineira
Cotidiano e Trabalho da Mulher em Minas Gerais no Século XVIII. no Século XVIII. 3ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1990; ZEMELLA,
Rio de Janeiro, José Olympio; Brasília, Edunb, 1993; LIMA Mafalda P. O Abastecimento da Capitania de Minas Gerais no
JÚNIOR, Augusto de. A Capitania de Minas Gerais. São Paulo, Século XVIII. São Paulo, Hucitec; EDUSP, 1990. Além dos indi-
EDUSP; Belo Horizonte, Itatiaia, 1978. (Reconquista do Brasil, cados na referência bibliográfica.
André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61 47

Autos de Devassa da Inconfidência Mineira3, na Ins- a partir das descobertas auríferas, pois de todas as
trução para o Governo da Capitania de Minas Ge- partes
rais por José João Teixeira Coelho, na Instrução para
o Visconde de Barbacena Luiz Antonio Furtado de ... entraram a concorrer novos povoadores movidos pela am-
Mendonça pelo secretário da Marinha e Domínios bição. Os frades de diversas religiões, levados pelo espírito do
interesse, e não do bem das almas, acrescentaram em grande par-
Ultramarinos portugueses Martinho de Mello e Cas-
te o número do povo: eles, como se fossem seculares, se fizeram
tro e os Autos Crimes Contra os Réus Eclesiásticos.
mineiros e se ocuparam em negociações e em adquirir cabedais
As informações existentes sobre o grupo eclesi- por meios ilícitos, sórdidos e impróprios do seu estado (COE-
ástico mineiro setecentista foram-nos transmitidas por LHO, 1994, p.110).
meio de documentos expedidos por instituições e
órgãos representativos do poder reinol4. Entre essas Além disso, a política colonialista portuguesa,
certidões encontra-se a Instrução para o Governo da conforme aparece ressaltada pelo desembargador
Capitania de Minas Gerais. Esse texto é um dos re- Teixeira Coelho, aflui não para a idéia de exclusão,
gistros mais importantes para se entender o estado po- mas sim para a idéia de limitação do contingente sa-
lítico, econômico, social e religioso mineiro. Os re- cerdotal, ou seja, deveria ficar a serviço estatal e ecle-
latos iniciam-se com a descoberta do ouro em 1694 e siástico àqueles clérigos ligados ao seu ministério.
vão até o governo de D. Antônio de Noronha (1775- Assim o autor se refere a temática:
1780). O autor viveu durante onze anos em Vila Rica,
trabalhando como intendente do ouro da Casa de Fun- Como era impossível que na Capitania de Minas deixassem
dição e servindo a quatro governadores. O que nos de residir sacerdotes para a administração dos sacramentos e mais
funções santas de religião, e por isso não podiam ser expulsos
interessa nesse ensaio é o seu oitavo capítulo “Refle-
como o foram os frades (...); que se não consentissem nas Minas
xões sobre o Estado Eclesiástico da Capitania de
clérigos desnecessários, mas só aqueles que fossem precisos para
Minas Gerais”, que perfaz um minucioso estudo so- o serviço das igrejas (COELHO, 1994, p.112).
bre a conduta e a relaxação dos costumes, o compor-
tamento desregrado e como os interesses particula- Devemos ter em mente que estamos em uma área
res sobrepunham-se aos coletivos; tudo isso, gerado com forte presença da religiosidade popular; daí a
idéia de sincronismo entre a cultura popular e a cultu-
ra erudita de tradição católica. Não obstante essas co-
locações, a seleção de candidatos ao sacerdócio era
feita quase sem nenhum critério sobre a conduta moral
3
Autos de Devassa é a documentação oriunda dos trâmites judi- do indivíduo. O autor continua:
ciais ocorridos na capitania de Minas Gerais. Ocorreram três de-
vassas. Duas (Minas Gerais e Rio de Janeiro) concomitantemente Desde a nomeação do bispo de Mariana, Dom Joaquim Borges
em franco conflito de jurisdição, versando o mesmo suposto deli- de Figueiroa, se tem conferido ordem a um grande número de su-
to, qual seja, investigar o crime de lesa-majestade de primeira jeitos, sem necessidade e sem escolha. Tem-se visto alguns que,
cabeça. A última devassa, em nível de Alçada, tinha poderes para havendo aprendido ofícios mecânicos e servido de soldados na Tro-
tudo sanar e lavrar sentença irrecorrível. pa paga, se acham hoje feitos sacerdotes (COELHO, 1994, p.112).
4
O corpo documental constitui-se de cartas de lei, alvarás, decre-
tos, cartas régias, bandos, instruções e avisos. Essa documenta- A ordenação de indivíduos criminosos, segundo
ção nos permite pensar a relação conflitiva existente entre a juris- cartas-régias e instruções, recomendava aos bispos
dição eclesiástica e a civil. que não conferissem ordens eclesiásticas a delinqüen-
48 André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61

tes antes de satisfazer suas penas. Houve muitos clé- O pensamento reinol acreditava que um bom
rigos que se consagraram para fugir à justiça comum. vassalo era ser um bom católico5. A religião estatal
De acordo com Teixeira Coelho, o bispo de Mariana, era católica e os súditos (membros da sociedade),
Inácio Corrêa de Sá, conferiu sacramentos a 84 pre- deviam ser católicos. Essa preocupação não condiz
tendentes e, entre eles, havia um devedor da fazenda com a realidade porque os clérigos mineiros, ao de-
real. O português José Ribeiro Dias, culpado de ter monstrar um comportamento contrário aos estabele-
participado do “levante das Minas” (1720), ordenou- cidos pelo Estado, qual seja o de acompanhar a po-
se padre para não ser preso, o que não o impediu que pulação na sua obrigação de pagar a Sua Majestade
fosse expulso das Gerais em 1733. Outro exemplo: o os direitos que lhes são devidos, não estão pratican-
capitão-mor Antônio Gonçalves, de Aiuruoca, deci- do qualquer irregularidade, na medida em que a so-
diu abrir uma picada (caminho) que ia de Aiuruoca à ciedade e a Igreja a que pertenciam coexistiam com
fazenda Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Em Minas, de- esse procedimento.
corrente dos constantes e vultosos contrabandos de Os sacerdotes seculares6, muitas vezes, com uma
ouro em pó, era proibida a abertura de picadas. Com formação duvidosa e na maioria dos casos resultante
isso, o capitão violou a proibição e para não ser pre- de um trabalho doutrinal disperso e parcelar, ingres-
so pela justiça comum, fez-se consagrar presbítero, savam na carreira eclesiástica com possibilidade para
tomando as “ordens de missa” em 1957 (COELHO, uma diversidade de profissões bem além do exercí-
1994, p. 113; TRINDADE, 1953, p. 56-61; BARBO- cio de funções clericais. Esse ingresso, como explicita
SA, 1979, p. 394; VASCONCELLOS, 1935, p. 22). Ana Mouta Faria, contribuía certamente para auferir
O padre José da Silva e Oliveira Rolim, partici- os escrúpulos de muitos em fazer depender “a sub-
pante da Conjuração, é um exemplo típico de indiví- sistência própria de obrigações e semelhante nature-
duo que se ordenou para fugir da justiça. Em sua in- za, pois que a possibilidade de opção se adequavam
quirição, o delator Silvério dos Reis comentou que a outras inclinações e aspirações”. Entre elas, citam-
se o gerenciamento do patrimônio da Igreja, dos clé-
... o dito padre um dos cabeças do dito temerário insulto (...), rigos, de confrarias e de muitos leigos, administran-
tanto pela sua riqueza e abundância de bens e respeito que con- do o aparelho burocrático das dioceses e de ordens
serva, como por ser temerário e régulo; pois que se ordenou para
religiosas (FARIA, 1987, p.39, 35; HESPANHA &
se evadir às penas do crime que lhe resultou de uma morte que
GOUVEIA, s.d., p.287-292). Por tudo isso, não ha-
fez (ADIM, 1981, v.4, p.46).
via qualquer controle por parte da Igreja. É dentro
Nas “Observações sobre a Inconfidência Mineira deste ambiente que surgem muitos párocos “ociosos
e o Direito da Coroa de Portugal sobre o Brasil” apa- e inúteis que se preocupam em negociações e que
recem demonstrados conflitos de jurisdição, ao pas- escandalizam os povos com suas licenciosas vidas”
so que a (COELHO, 1994, p.12).

... inconstância e a malícia humana têm inventado regras, não


só para desobedecer temerariamente às leis, mas até para obrigar
a devassidão ainda das mais necessárias e fundamentais do Esta-
5
do, sem atender a que a verdadeira felicidade do mesmo Estado “... esquecidos das obrigações de vassalos e de católicos” (ADIM,
consiste na obediência que a elas se deve prestar e oxalá que este 1977, v.9, p. 277).
6
mal só tivera a sua origem na corrupção dos povos (ADIM, 1977, São aqueles que não pertencem a qualquer Ordem Religiosa ou
v.9, p.292). Instituição Monástica.
André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61 49

Acima de tudo, a preocupação do Estado com a arrecadação dos quintos de ouro anuais estava em
esses senhores da fé referem-se à interferência des- retração e a cota dizimal representava uma enorme
tes em assuntos jurídico-econômicos da Coroa. Para fonte de lucro para a Coroa. De acordo com o histo-
compreendermos melhor esse tópico, recorremos à riador Kenneth Maxwell, temos os seguintes valores
Instrução para o Visconde de Barbacena, na qual mos- sobre a cobrança de dízimos e o recolhimento do quin-
tra que os clérigos não estão cumprindo com seus com- to real (em arrobas):
promissos, ou seja, o de conduzir o povo para que atu-
ARROBAS DE
em corretamente, ou melhor, para que direcionem a ANO DíZIMOS
OURO
população ao cumprimento exato de sua obrigação, o 1780 64.968 65
correto pagamento dos impostos. O ministro Martinho 1781 64.968 72
de Mello e Castro comentou que os padres deviam
1782 64.968 65

... ensinar aos povos os preceitos da lei que professam, pre- 1783 64.968 62
gar-lhes o evangelho, administrar-lhes o sacramentos e conduzil-
1784 65.368 58
os com o zelo, desinteresse e regular comportamento de um bom
e exemplar pastor ao gremio da igreja, de quem são filhos; os 1785 65.368 54

parochos de Minas Geraes, porém invertendo esta doutrina, a tem 1786 65.368 49
apropriado em grande parte aos seus reprovados e particulares
1787 65.368 43
interesses: dando occasião a repeditas (sic) e multiplicadas quei-
xas, que desde tempos anteriores até agora tem successivamente 1788 65.368 --
chegado á real presença, de insuportaveis e forçadas contribui- 1789 82.311 --
ções, debaixo do pretexto de direitos parochiaes, benezes (sic), e
pés de altar, com que os mesmos parochos obrigavam e obrigam FONTE: Kenneth Maxwell. A Devassa da Devassa, p.281;
aos seus fregueses a lhes contribuir (CASTRO, 1953, p.118). 287-288.

As Instruções analisadas seguem uma concepção


medieval, na qual o clérigo tem de rezar, o povo tem É interessante notar que os dízimos eram, muitas
de trabalhar para poder pagar aos impostos e os no- vezes, desviados de sua finalidade (construção de
bres, administrar a justiça e a real fazenda. Ao Esta- templos, fornecer paramentos, pagar as côngruas aos
do interessava muito mais o controle político-admi- vigários) para servirem de pagamento de salários aos
nistrativo do que o controle da Igreja. O clero era fre- governadores, aos estabelecimentos militares, judici-
qüentemente atacado pelo governo e teve de apresen-
tar, várias vezes, claros indícios de submissão ao
poder para garantir sua sobrevivência. Verifica-se, por
7
conseguinte, que a Igreja estava mais preocupada com Os dízimos são a décima parte dos ganhos obtidos em qualquer
atividade. Dividem-se em três tipos: reais ou prediais (devido às
o aspecto econômico do que realizar uma compara-
novidades colhidas nas propriedade rurais), mistos (provêm de
ção entre a vida particular do religioso e o seu papel
animais, “caça e aves que se criam e peixes que se pescam”) e
moral na sociedade. pessoais (meramente industriais). Os dois primeiros eram pagos
O rei de Portugal detinha o direito de recolher os ao rei. De acordo com Dom Oscar de Oliveira, em pesquisa feita
tributos devidos pelos súditos da Igreja conhecidos no Vaticano, não encontrou qualquer explicação que autorizasse
como dízimo7. A preocupação com a coleta dos dízi- os reis portugueses a arrecadar os dízimos na América portugue-
mos era evidentemente inquietante, à proporção que sa (OLIVEIRA, 1964, p. 59 – 64).
50 André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61

ais, administrativos e fiscais. Gonzaga deixou-nos Foi instituída no Reino em 8 de setembro de 1632,
preciosos relatos de tais arbitrariedades ocorridas nas no momento em que a Coroa passou a controlar a
cobranças de débitos fiscais. Na sétima carta do poe- cobrança dos dízimos eclesiásticos. Em Minas Gerais
ma satírico Cartas Chilenas, o poeta comenta essa seu aparecimento remonta ao ano de 1718, com a
questão: intenção de diminuir o valor das conhecenças
(CARRATO, 1968, p.55-57; VASCONCELLOS,
A sábia Lei do Reino quer, e manda, 1935, p.17-18).
Que os nossos devedores não se prendam: O ministro planejava reduzir a contribuição a ape-
Responde agora tu, por que motivo
nas 50$000 réis, transferindo a diferença estipulada às
Concede o grande Chefe, que tu prendas
paróquias mais pobres, de outras capitanias (CASTRO,
A quantos miseráveis te deverem?
Por que, meu Silverino? Porque largas, 1953, p.122). O clero mineiro seria muito afetado com
Porque mandas presentes, mais dinheiro. essa reforma e um exemplo típico de clérigo prejudi-
(...) cado seria Carlos Correia de Toledo (MAXWELL,
A Lei do teu Contrato não faculta, 1978, p.146). O que observamos é um jogo conflitante
Que possas aplicar aos teus negócios de interesses, uma vez que a administração metropo-
Os públicos dinheiros. Tu com eles litana visava acolher os protestos, além de procurar
Pagaste aos teus credores grandes somas:
reduzir e até fugir do pagamento das côngruas ecle-
Ordena a sábia Junta, que dês logo
siásticas, evitando, assim, criar novas paróquias.
Dá tua comissão estreita conta:
O Chefe não assina a Portaria, Com a expansão territorial verificada em Minas
Não quer, que se descubra a ladroeira; a partir da segunda metade do século XVIII, surgi-
Porque tu favorece ainda à custa ram povoados que exigiam a assistência espiritual.
Dos Régios interesses, quando finge, Dessa forma, o bispo criava paróquias e as provia de
Que os zela muito mais, que as próprias rendas. vigários encomendados ou não colados, isto é, àque-
(GONZAGA, 1995, p.162-163) les que não tinham direito ao recebimento de côn-
Na Instrução para o Visconde de Barbacena apa- gruas. Estes subordinavam seu sustento através da
rece claramente a questão dos dízimos. O ministro arrecadação de conhecenças9. A criação de bispados
Martinho de Mello e Castro orienta as obrigações dos pelo Império luso, se por um lado apresentou-se como
paroquianos, diminuindo-as8. Essa medida procurou, regionalista, decorrente das diferentes taxações apos-
também, desafogar a fazenda real que, em Minas,
dispendia 200$000 réis anuais a cada clérigo. Esse
valor correspondia ao pagamento de côngruas, que
era uma remuneração paga aos bispos, cônegos, vi-
gários colados (ministros diocesanos, coadjutores) 9
A conhecença era o dízimo pessoal que os fiéis eram obrigados
e missionários que catequizavam índios no sertão. a contribuir para a subsistência de seus pastores. Esse imposto
existia na capitania desde seus primeiros tempos (final do seiscen-
tos). Na definição de Diogo de Vasconcellos, as conhecenças eram
“bilhetes de confissão” ou imposto pascal. Como todos deviam
se confessar na quaresma, os padres as distribuíam. A partir de
8
“... se reduzam estes a umas justas e moderadas prestações dos então, fazendo o recenseamento de seus paroquianos, davam es-
povos, com que o parocho tenham precisamente o necessario para a ses bilhetes aos que comungavam, como se fossem “talões de
sua commoda e decente sustentação” (CASTRO, 1953, p. 121 – 122). recibo” (VASCONCELLOS, 1935, p. 19).
André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61 51

tolatas cobradas ao longo do território português e um nal interagia com a carreira sacerdotal. Muitos padres
maior controle sobre as populações na América, apre- procuravam fugir ao peso do Estado e da própria Igre-
sentou-se, por outro, perfeitamente expansionista, ja, quando havia oportunidade, por um caminho in-
com uma visão nacional. A instituição de áreas sobre dividual, incorporando-se a essas atividades.
o domínio eclesiástico gerava uma ampliação territo- É conhecido o envolvimento de clérigos conjura-
rial, o que para o período colonial significava a trans- dos que se dedicavam a atividades agrícolas, à extra-
gressão de acordos internacionais, como o Tratado de ção aurífera e diamantífera, à usura e ao tráfico de es-
Tordesilhas. A expansão dava-se em direção a novos cravos e diamantes. É justamente no campo econômi-
espaços que se encontravam a oeste do Tratado. Como co-financeiro que reside o problema entre a clerezia
a colonização foi articulada sob o viés econômico e e o Padroado, ou seja, na cobrança do dízimo. Em con-
religioso, podemos pensar que a mesma moldou-se seqüência disso, na época da Conjuração, um dos
com o expansionismo, o que é comprovado a partir planos e objetivos inconfidentes era a transmissão dos
da assinatura posterior de tratados territoriais entre a dízimos aos padres para que pudessem manter pro-
Coroa portuguesa, o Papado e outras nações, princi- fessores, educandários, hospitais e casas de carida-
palmente a Espanha. Como exemplo, temos o Trata- de10. Além disso, as conhecenças não seriam mais
do de Madri (13 de janeiro de 1750) (COELHO, 1994, cobradas aos fiéis e sim repassadas aos padres dire-
p.71-72; FARIA, 1987, p.42; CASTRO, 1953, p.121- tamente pela instituição eclesiástica, detentora desse
122; BARBOSA, 1979, p.408; VASCONCELLOS, imposto compulsório11.
1935, p.19; MAXWELL, 1978, p.126; WEHLING, Ao pensarmos na cobrança dos dízimos paroqui-
1986, p.177). ais praticados por indivíduos de categoria clerical, te-
A questão da cobrança das conhecenças tornou- mos em mente a idéia de separação entre a Igreja e o
se uma das mais conflituosas entre a instituição eclesi- Estado, medida esta que decretaria o fim do regime
ástica e o clero mineiro. No período da Conjuração
(final da década de 80), os conflitos se agudizaram
devido à retração econômica gerada pela diminuição
10
da extração aurífera. “... os dízimos perceberiam os Vigários com condição de sus-
O salário recebido pelos seculares na capitania era tentarem uns tantos mestres, hospitais, e outros estabelecimentos
pios” (ADIM, 1976, v.1, p. 214).
irrisório e mal dava para se sustentarem, muito me- 11
“... os Vigários haviam de cobrar todos os dízimos e ficarem as
nos para manterem um padrão adequado à função do
desobrigas de graça” (ADIM, 1976,v.1, p. 258).
sacerdócio, lembrando que o custo de vida nas Ge- 12
Após a Revolução Francesa de 1789, segundo Dom Oscar, foi-
rais era alto. As possibilidades de ganho em outras fun- se abolindo o pagamento dos dízimos em quase todos os países.
ções e o desestímulo com os baixos salários levavam Por exemplo, na França, em 4 de agosto de 1789; em Portugal,
muitos homens de Deus a partirem para rendimentos pelo decreto de 30 de junho de 1832, o “govêrno extinguiu intei-
secundários e, em alguns casos, primários. ramente os dízimos dentro do Reino, prometendo supri-los com
Desde a década de 60, a mineração deixou de ser as côngruas provenientes do erário público. Foram, de fato,
estabelecidas, mas se pagaram muito magras prestações”; na
a grande ocupação econômica da sociedade, transfe-
Espanha, em 29 de julho de 1837, e nos países latino-americanos
rindo-se para atividades como o comércio, atividades
como a Venezuela (26 de julho de 1862), Nicarágua (2 de novem-
eclesiásticas, jurídicas, militares, de transporte, ad- bro de 1861) e Costa Rica (7 de outubro de 1852) foram sub-
ministrativas e corriqueiras (como negros de ganho). rogados por côngruas do erário público. No Brasil, somente no
O resultado dessa mistura populacional e profissio- Segundo Reinado, o governo, “independentemente de qualquer
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existente entre o Império colonialista luso e a Igreja cava o domínio do indivíduo. Então, controlar a Igreja
Católica – Padroado12. era fundamental para o Estado regular a pessoa (quem
A troca de correspondências entre São Paulo e devia pagar os impostos). Ainda mais, o controle das
Minas Gerais elucida a preocupação com essa cobran- práticas religiosas ia mais longe. Ao lado dos regis-
ça e a vexação sofrida pelos povos. O apoio sacerdo- tros de batismo e casamento, incluíam-se as desobri-
tal é importante, na medida em que se constata a par- gas. Na época da Páscoa, os fiéis estavam sujeitos aos
ticipação de clérigos em praticamente todos os mo- sacramentos da penitência, confissão e depois, de
vimentos de rebelião existentes ao longo dos séculos terem feito fé na transubstanciação eucarística, rece-
XVIII e XIX. Portanto, uma das medidas deveria beriam a comunhão. Em todos os momentos da vida
versar sobre essa realidade. Basílio de Brito Malheiro litúrgica do indivíduo existia o controle, que se fecha-
do Lago conta-nos, em sua carta-denúncia, que ou- va com as visitas pastorais.
viu na Estalagem das Cabeças uma conversa entre o O domínio do poder reinol sobre as pessoas deu-
mulato Crispiniano da Luz Soares e o major do regi- se, por isso, em todas as esferas direcionais do pensa-
mento dos pardos do Tijuco, Raimundo Correia Lobo, mento. Assim, a cultura eclesiástica era geradora de
que alguém de Vila Rica tinha escrito a São Paulo para uma mentalidade de fundo capaz de ser estrutura de
que “lá se levantassem e não pagassem os dízimos” recepção de atitudes e modos de agir e pensar bem
(ADIM, 1976, v.1, p.98-99). A idéia parece bem distintos daqueles que geravam as formas de religião.
estruturada, já que, por exemplo, em São Paulo Com relação à temática clerical exposta até o
(Taubaté), o padre Carlos Correia de Toledo tinha momento, há necessidade de um esclarecimento para
parentes e ligações, como muitos outros conjurados, não cometermos uma injustiça. Os procedimentos
com pessoas de cargos importantes nessa capitania. analisados e citados leva-nos a pensar na existência,
Em uma sociedade de escassa alfabetização, os quase generalizada, de maus padres, o que não é ver-
senhores de Deus detinham todas as funções relacio- dade. Se num primeiro momento, início da coloniza-
nadas ao intelectual. Intérpretes da palavra divina, os ção em território mineiro, tivemos eclesiásticos aven-
sacerdotes eram também filósofos, poetas, historia- tureiros interessados em minerar como se fossem
dores e professores. Não se pode esquecer de que era laicos, ou melhor, esquecendo-se de sua função sa-
por meio desses funcionários públicos que girava a cerdotal, tivemos, por outro, párocos e missionários
vida administrativa colonial e qualquer tentativa de que zelaram pela religião católica, levando conforto
autonomia em relação ao Estado, era duramente re- espiritual onde se fixassem os mineiros. Raimundo
primida. O clero estava presente na vida e na morte Trindade deixou-nos relatos de presbíteros que come-
das pessoas, nos episódios de nascimento, casamen- teram desregramentos mas, também, relaciona um
to e morte. Todos esses registros eram um hábito ro- número avultado de sacerdotes que se distinguiram
tineiro, mas precioso. O domínio do número signifi- pela sua humildade e suas virtudes.
Mencionamos uma série de características e con-
flitos existentes entre a instituição eclesiástica e o
Estado metropolitano com a intenção de demonstrar-
combinação com a S. Sé, foi deixando de cobrar em muitas Pro-
mos que os clérigos processados pela Conjuração não
víncias os dízimos que devia arrecadar”. Contudo, o Estado pa-
gava valores irrisórios como côngruas ao clero. O pagamento de
estiveram alheios aos acontecimentos que se proces-
dízimos só desapareceu do cenário nacional com a proclamação saram a partir da segunda metade do setecentos, já
da República (OLIVEIRA, 1964, p. 31 – 33). que faziam parte dele. O contexto colonial não os fazia
André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61 53

agir diferente. A atuação dos padres conjurados deu- sonagens como Cláudio Manoel da Costa, Alvarenga
se de forma ativa, pois possuíam uma mentalidade re- Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga e, o mais importan-
volucionária, graças ao fato de viverem em colônia. te, a dos réus eclesiásticos, tidos como líderes14 inte-
lectuais do movimento. Portanto, é através dessas per-
Clero Conjurado sonalidades que encontraremos referência ao Ilumi-
nismo. O representante típico das influências france-
Dos cinco eclesiásticos julgados e processados sas na região das Gerais foi o cônego Luís Vieira da
como participantes da Conjuração mineira, apenas um Silva, a quem foi dedicada a obra O Diabo na Livra-
exercia exclusivamente o sacerdócio13. ria do Cônego, de Eduardo Frieiro. A melhor refe-
O clero conjurado contava com capelães, garim- rência bibliográfica, segundo o pesquisador, encon-
peiros, párocos, fazendeiros, contrabandistas, admi- tra-se na relação de livros que lhe foram seqüestra-
nistradores de créditos e um cônego; todos, membros dos pela devassa – sua biblioteca contava com apro-
das famílias mais importantes da capitania. Apesar de ximadamente 800 volumes (270 títulos). O melhor de
seu estado de eclesiásticos, esses homens mantinham sua livraria não está na quantidade, mas sim na qua-
atividades seculares importantes, quais sejam, a de lidade das obras (FRIEIRO, 1981, p.24).
manter assegurada a cobrança dos dízimos. Todos O cônego Vieira era, para seu tempo, “um sábio
eram homens de vasta cultura e de forte poder políti- autêntico” (SALLES, 1982, p.151). Ao lado do padre
co. O engajamento de tais sacerdotes no movimento, Carlos Correia de Toledo, era um dos enciclopedistas
através de seus procedimentos e pensamentos, é o que radicais e entusiasta da revolução americana cujo pen-
procuraremos demonstrar daqui por diante. samento político não era segredo. Segundo Francisco
Compreender o pensamento dos clérigos inconfi- Antônio de Oliveira Lopes, o cônego foi quem trama-
dentes é estudar a influência da Ilustração em terra ra inicialmente a idéia de se formar uma república na
“tupiniquim”. Os princípios filosóficos e políticos capitania por volta de 1780-178115. Em sua inquirição
ilustrados que se difundiram nas Minas setecentistas à devassa, Luís Vieira comentou que a representação
versavam principalmente sobre a razão. Segundo os de uma república partiu de Tiradentes, que a armou
pensadores iluministas, por meio da razão atingimos desde o governo de Luís da Cunha Meneses16.
os conhecimentos necessários para alcançarmos as
leis naturais que regem a sociedade. Essas concep-
ções foram transmitidas por Voltaire, Mably, Locke,
Robertson, Rousseau, Montesquieu, Condillac, cujos 14
Segundo Waldemar de Almeida, a palavra líder era inexistente
trabalhos circulavam entre os letrados. Tem-se, tam- nessa época, sendo incorporada mais tarde do inglês (BARBO-
bém, a propagação de ideais da Encyclopédie. SA, 1979, p. 431).
15
Nas inquirições prestadas à devassa, muitos incon- “... Cônego Luís Vieira, (...) havia oito anos que tinha botado
fidentes afirmaram a grande erudição e “luzes” de per- as suas medidas para reger a mesma república livre e indepen-
dente; o que tudo ouviu ele, Respondente, da boca do mesmo
Vigário” (ADIM, 1978, v.2, p. 65).
16
“... ainda no tempo em que governava esta Capitania o Exmo.
13
Os clérigos processados são José da Silva e Oliveira Rolim, Sr. Luís da Cunha Meneses, ouvira dizer a várias pessoas que
Carlos Correia de Toledo e Melo, José Lopes de Oliveira, Manuel vinham do Rio de Janeiro (...) que um alferes, por alcunha o
Rodrigues da Costa e Luís Vieira da Silva, este o único que exer- Tiradentes, andava na dita cidade convocando gente para um le-
cia restritivamente os sagrados sacramentos. vante” (ADIM, 1978, v.2, p. 146).
54 André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61

Ao longo do processo fica transparente o entusias- governo reinol, exerciam-se atividades subversivas,
mo do cônego pelos acontecimentos ocorridos na Amé- promovendo discussões dos ideais franceses e dos
rica do Norte (leia-se 13 colônias inglesas), sobre os acontecimentos que ocorriam na América inglesa. Dois
quais falava sem prudência. Basílio de Brito Malheiro livros particularmente teriam uma repercussão nesse
do Lago após conversar com o dito clérigo, relatou-nos: processo, o do abade Raynal Histoire Philosophique
et Politique des Établissements et du Commerce des
... este não encobre a paixão que tem de ver o Brasil feito Européens dans les Deux Index e Recueil des Loix
uma república; abonou o Tiradentes de um homem animoso e Constitutives des Colonies Angloises, Confédérées
que, se houvesse muitos como ele, que o Brasil era uma república
sous la Dénomination d’États-Unis de l’Amérique-
florescente; e que um príncipe europeu não podia ter nada com a
Septentrionale. Foram as únicas obras citadas nomi-
América que é um país livre; e que El-Rei de Portugal nada gas-
tou nesta conquista, que os nacionais já a tiraram dos holandeses, nalmente pelos conjurados. As primeiras acusações
fazendo a guerra à sua custa sem El-Rei contribuir com dinheiro sobre a mentalidade de Vieira partem do princípio de
algum para ela; depois disto, os franceses tomaram o Rio de Janei- grande “sabedor e conhecedor” da independência
ro, que os habitadores da cidade lha compraram com o seu di- norte-americana (ADIM, 1978, v.2, p.150).
nheiro; e ultimamente concluiu que esta terra não pode estar mui- Esses textos agrupam os dois grandes elementos
to tempo sujeita a El-Rei de Portugal, porque os nacionais dela conscientizadores do movimento conjurado, quais
querem também fazer corpo da república; e outras coisas seme-
sejam, a questão da contraposição metrópole versus
lhantes que todas se encaminham ao fim da liberdade (ADIM,
colônia e o discurso das leis e direitos de uma nação
1976, v.1, p.102).
livre e independente. Por isso, no trecho citado inici-
As palavras atribuídas ao cônego da Sé de Mariana almente, percebemos influências de Raynal – direito
apresentam-no como uma figura contraditória. Sua à rebelião popular:
vida é a própria expressão da contradição do sistema,
pois nela fica demonstrado os impasses de nossa re- Se os povos são felizes sob a forma de seu governo, eles o
alidade social e política vigentes. conservarão. Se são infelizes, não serão as vossas opiniões nem
as minhas – será a impossibilidade de sofrer mais e por mais tem-
O cônego, juntamente com outros conjurados po que irá determiná-lo a mudá-las, movimento salutar que o
(Gonzaga e Cláudio Manoel, principalmente), reunia- opressor chamará de revolta, ainda que não seja mais que o exer-
se para discutir assuntos diversos ligados a uma di- cício legítimo de um direito inalienável e natural do homem que
mensão crítica da tradição racional, recebida do se oprime, e mesmo do homem que não é oprimido” (RAYNAL,
Iluminismo francês, a fim de expor as arbitrarieda- 1993, p.75).
des e algumas injustiças intrínsecas ao estatuto colo- A autoridade de uma nação sobre uma outra só pode ser fun-
dada sobre a conquista, o consentimento geral, em condições pro-
nial17. Nessas reuniões sobre o pretexto de bajular o
postas e aceitas. A conquista não vincula mais que o roubo. O
consentimento dos ancestrais não pode obrigar os descendentes.
E não há condição que não seja exclusiva do sacrifício da liberda-
17 de. A liberdade não se troca por nada, porque nada tem um preço
As injustiças cometidas nas Gerais estão registradas nas Car-
que lhe seja compatível” (RAYNAL, 1993, p.78).
tas Chilenas. As sátiras às circunstâncias da gestão política de
Minésio, ou melhor, o governador Luís da Cunha Meneses, apa-
recem metaforizados através de atos e práticas de sua administra-
As exposições de Raynal permite-nos questionar
ção como: suborno, ineficiência da justiça, corrupção, usura, pro- a situação em que viviam. Então, rebelar-se é tão-
teção ao contrabando, irregularidade na administração dos con- somente exercer um direito próprio, ainda mais que
tratos e atos de irreligiosidade. Minas Gerais vivia em constante opressão, traspas-
André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61 55

sada pelos atos de Luís da Cunha Meneses e do Vis- Sabe que na feliz aclamação de El-Rei D. João o quarto, sen-
conde de Barbacena. Em uma reunião na casa do te- do uma causa tão justa, e tanto da vontade dos povos, perguntou,
nente-coronel Francisco de Paula Freire Andrade, na segundo a sua lembrança, D. João da Costa, quais eram os gene-
rais, as armas, as alianças, os soldados, que tinham prontos para
qual estavam presentes Tiradentes, Alvarenga Peixoto
se levantarem contra as armas de Castela, e que isto foi bastante
e os padres Toledo e Rolim, esses inconfidentes exa-
para se suspender a ação por oito dias, e talvez se não executasse,
cerbaram as visões do abade como um escritor de se nisso não tivesse o maior perigo; e como poderia pensar que
“grandes vistas; porque prognosticou o levantamen- tivesse feito a sublevação de Minas falta de tudo o necessário”
to da América Setentrional, e que a capitania de Mi- (ADIM, 1982, v.5, p.248).
nas Gerais com o lançamento do tributo da derrama,
estaria agora nas mesmas circunstâncias” (ADIM, O conteúdo implícito dessa narração, feita por
1982, v.5, p.172). Assim, os acontecimentos ocorri- intermédio de uma semelhança entre a Conjuração
dos com os americanos do norte serviriam de exem- mineira e a Restauração portuguesa de 1640, permi-
plo para as possíveis convicções de autonomia que te-nos pensar, como elucida Luiz Carlos Villalta,
ali se pensava. numa comparação entre ambos, colocando-os num
O plano elaborado por Vieira18 necessitava de um mesmo patamar. Por conseguinte, se o movimento
fato capaz de abalar a população. Esse estopim seria pela Restauração portuguesa foi um movimento “jus-
a decretação da derrama19 – “elemento desencadea- to” e da “vontade dos povos”, a conjura, estando equi-
dor” e legitimador do processo (SANTOS, 1966, parada a ela, também o foi. Se para o cônego a In-
p.167). Para ludibriar o inquiridor sobre seu real en- confidência “equipara-se à Restauração, logo era tam-
volvimento, o cônego contradiz a importância de tal bém, (...) uma causa justa, da vontade dos povos,
artifício (derrama), afirmando que a mesma havia sido enfim, uma sedição legítima!!” (VILLALTA, 1995-
perdida20. Além de utilizar tal assunto, expõe uma 1996, p.17).
hipótese sobre as condições que não tornariam Ao propor um movimento legítimo nas Minas, o
executáveis um movimento de libertação em territó- cônego esteve imbuído do filosofismo ilustrado. O mais
rio mineiro. importante é que considera um levante contra o mo-
narca, algo legítimo, da “vontade dos povos”. Ao ne-
gar o princípio legitimador do poder régio, realiza uma
crítica ao absolutismo, tão presente em filósofos como
18
Locke, Rousseau e Voltaire. Como ávido leitor das fi-
“... Vieira (...) tinha feito um papel em que mostrava a seguran-
losofias revolucionárias setecentista, esteve a par das
ça deste país, e o modo por que se devia fazer a rebelião” (ADIM,
1981, v.4, p. 146).
idéias de igualdade social, direito à liberdade e garan-
19
“... no plano estabelecia o dito cônego que se devia esperar tia do uso e desfrute da terra pelos colonos. Mas, aci-
uma ocasião em que o povo estivesse desgostoso; e que depois se ma de tudo, os princípios norteadores de seu filoso-
deviam tomar os quintos e que, agora se tratava de lançar a derra- fismo vieram do abade Raynal.
ma, contou a ele, testemunha, Francisco Antônio de Oliveira Lopes Além de Vieira, o padre Toledo era um grande conhe-
que se tinha justo fazer o rompimento, avisando-se a todos para cedor da filosofia de Raynal. Esse vigário represen-
se ajuntarem com a senha de dizerem – tal dia é o batizado – com
tava um elemento de ligação entre os intelectuais e
cujo aviso juntariam todos” (ADIM, 1981, v.4, 147).
20 os revolucionários mais exacerbados, uma vez que
“... pela Carta Circular a todas as Câmaras, do Ilmo. e Exmo.
Visconde de Barbacena, em que lhes assegurava o não lançar-se
não o eximimos do grupo dos ideólogos responsáveis
sem se dar conta a S. Majestade” (ADIM, 1982, v.5, p. 247). pela confecção dos regimentos jurídicos. Foi, tam-
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bém, um ingressante do grupo ativista, que contava A relação de José Lopes com a Inconfidência
ainda com Tiradentes, Rolim, Alvarenga (outro ele- deve-se ao grau de parentesco com os conjurados José
mento de ligação) e Paula Freire (SANTOS, 1966, Aires Gomes (primo), padre Francisco Vidal de Bar-
p.171; SANTOS, 1927, p.114-116; MAXWELL, bosa Laje (primo) e Francisco Antônio de Oliveira
1978, p. 150-151). Lopes (irmão). Envolveu-se em conversações com os
O vigário Carlos Correia foi o mais radical dos padres Toledo e Manuel Rodrigues, seu irmão, seu
conjurados. Era muito ambicioso e o sacerdócio, uma primo Barbosa Laje e o delator Joaquim Silvério dos
atividade minoritária em sua vida. Era também deve- Reis. Este declarou a erudição do pároco afirmando ser
dor da fazenda real e conjurar-se seria um meio de de “muito conceito e dotado de grandes luzes” (ADIM,
livrar-se das suas dívidas. 1981, v.3, p.428-429). Seus depoimentos foram arra-
Ao lado de Tiradentes, ao nosso entender, foi um sadores para a conjura, revelando detalhes e os pedi-
dos grandes propagadores dos ideais inconfidentes dos de apoio externo (ADIM, 1982, v.5, p.379-383).
espalhando-os pelas estradas, estalagens, fazendas, Manuel Rodrigues morava em uma hospedaria
reuniões em casas de amigos e conversações ao ar li- situada no Caminho Novo, ponto de encontro de vi-
vre. Na arregimentação de pessoal, as pessoas dou- ajantes com destino ao Rio de Janeiro. Em uma de
trinadas por Tiradentes foram condenadas por não suas andanças por aquela localidade, Tiradentes, em
terem delatado o movimento, ao passo que os indiví- setembro de 1788, expôs ao clérigo os planos do mo-
duos aliciados por Toledo tornaram-se delatores como vimento inconfidente (ADIM, 1976, v.1, p.200-201).
Silvério dos Reis (ADIM, 1981, v.4, p.47), Inácio Seu envolvimento deu-se de forma comedida: sentiu-
Pamplona (ADIM, 1976, v.1, p.193), Francisco de se atraído pela idéia, transmitindo-a. O mestre de
Paula Freire Andrade (ADIM, 1976, v.1, p.117) e campo Inácio Correia Pamplona, em sua carta-denún-
Domingos de Abreu Vieira (ADIM, 1976, v.1, p.123). cia, relatou uma dessas tentativas de propagação do
Tiradentes falou ao padre Manuel Rodrigues da Costa ideário conjurado:
que foi condenado por não ter denunciado o movimen-
to. Este, por sua vez, comunicou os acontecimentos a ... havia passado para o Rio um furriel (...); e que, de Vila
um outro clérigo envolvido e processado pela devassa Rica, passara um padre (Manoel Rodrigues), que ia para a Borda
do Campo, que largamente falava no levante e que dormira no
como conhecedor de detalhes e conversações que
Rancho das Lavrinhas do Lourenço, que também este do Rancho
manteve com os conjurados, José Lopes de Oliveira.
assim o publicava (ADIM, 1976, v.1, p.110).
Ao analisamos os círculos de amizades existen-
tes entre os eclesiásticos, deparamo-nos com a for- Esse sacerdote foi muito mais religioso do que
mação de dois grupos distintos. O primeiro, rotula- laico. As passagens de sua vida revelam, ao lado de
mos como “campesinos”, formado por Manuel uma personalidade ativa no desejo de mudanças, “um
Rodrigues da Costa e José Lopes de Oliveira. Propri- lado espiritual nunca desleixado. Parece ter sido de
etários rurais que exerciam os sacramentos em suas mentalidade mais tradicional e de espírito mais dis-
fazendas, comprometeram-se como conhecedores dos ciplinado”. Cumpria suas funções religiosas, quais
detalhes conjurados. O segundo era constituído pelo sejam, as visitas pastorais nas freguesias de Simão
cônego Vieira e os padres Toledo e Rolim, que cha- Pereira e Engenho do Mato, para ministrar a Crisma.
mamos de “citadinos” e exerciam os sagrados sacra- Incitava o povo ao cumprimento de hábitos clericais,
mentos em paróquias localizadas nos centros urba- como zelar pela Igreja. Como deputado na Constituinte
nos de Mariana, São José e São João del-Rei.
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de 1823 fez um “discurso encarecendo a importância da tes. Foi considerado pela devassa mais importante que
fidelidade à religião” (JARDIM, 1989, p. 301-302). Tiradentes, por tratar-se de uma pessoa de grande
Consideramos o padre Toledo como um elemen- influência na comarca – região muito lucrativa para
to de ligação entre os dois grupos (“citadinos” e a Coroa. Dentro do projeto conjurado ficou encarre-
“campesinos”). Como Rodrigues da Costa, Toledo gado de fornecer duzentos homens e ajudar no cus-
(pelo que podemos compreender do seqüestro feito teio da pólvora e da munição necessária ao levante.
às suas obras) possuía uma formação mais adaptada As relações entre o mundo sacro e o profano apa-
à ortodoxia católica. Enquanto Rolim prestava-se recem no estudo das condutas morais de tais sacerdo-
mais ao heterodoxismo, e era o mais rico dos conjura- tes. Como afirmamos inicialmente, não estão em con-
dos, com negócios em Minas, Rio e Bahia21. Foi ex- tradição com a sociedade em que vivem; pelo contrá-
pulso, juntamente com o seu irmão Alberto da Silva rio, o mundo religioso do qual fazem parte coexiste
(SANTOS, 1976, p.185), do Distrito Diamantino acu- com tal comportamento. Isso porque, em muitos ca-
sados de irregularidades no tráfico de escravos e na sos, esses padres estão em íntima comunhão com seus
extração de ouro e diamantes. Tido como contraban- fiéis, sofrendo os mesmos dissabores, as mesmas difi-
dista e traficante, fugiu para a Bahia, onde permane- culdades, resolvendo questões domésticas, tomando
ceu até seu regresso as Gerais, em 1787. parte ativa da vida da população. Talvez aí esteja a
Com a extinção dos contratos individuais para a explicação para os “paroquianos não diminuírem o
extração aurífera e diamantífera na região do Tijuco respeito de lhe tributavam”, apesar de alguns terem
(comarca do Serro Frio), a família Rolim foi uma das famílias (BARBOSA, 1979, p.413).
mais prejudicadas e, a partir de então, passou a de- O cônego marianense Luís Vieira da Silva tinha
senvolver um certo rancor perante a administração uma filha chamada Joaquina Angélica da Silva23. Não
portuguesa na capitania. De acordo com Soter Couto encontramos referência a possíveis filhos do vigário
era “a alma do garimpeiro sofredor” (COUTO, 1963, Carlos Correia de Toledo, somente indicações sobre
p. 326). Logo, apoiava a instauração de uma república sua conduta profana frente as mulheres. No batizado
mais por conveniência pessoal do que por qualquer ou- de dois filhos de Alvarenga Peixoto, realizado em São
tro motivo. Estava insatisfeito com a realidade local e, João del-Rei, após as comemorações, “cada um (in-
com a vitória, a legislação diamantífera tijuquense se- clui-se Toledo) saiu com uma mulher pelo braço pela
ria extinta, possibilitando a qualquer pessoa explorá-la22, rua afora”, como afirma o tenente-coronel José Franco
preconizando assim o livre comércio de ouro e diaman- de Carvalho (ADIM, 1976, v.1, p.266). O padre José
Lopes de Oliveira era casado com sua irmã Ana
Quitéria (ADIM, 1978, v.2, p.469). José da Silva e
Oliveira Rolim relacionava-se com sua sobrinha
21
Márcio Jardim aponta por meio dos Autos a avaliação de apro-
ximadamente 2:300$000 réis em créditos de terceiros e mais de
um a dois contos em bens móveis, totalizando a quantia estimada
em cinco contos de réis, não devendo qualquer soma em dinheiro
23
à Coroa. Esse valor eqüivaleria a uma casa paroquial – cerca de De acordo com Tarqüínio José Barboza de Oliveira, a filha do
1:000$000 réis -, calculado trinta anos mais tarde (JARDIM, 1989, cônego teria nascido por volta de 1765 em Mariana. Casou-se
p. 297) e a 20 escravos com habilidades caseiras, valendo-se da por volta de 1783 com o cirurgião Francisco José de Castro, au-
quantia média de 200$000 réis para cada. sente em Portugal ou Angola. Era assistida em Vila Rica na casa
22
“... os diamantes seriam livres” (ADIM, 1981, v.4, p. 146). de um cunhado (ADIM, 1981, v.3, p. 17; 348).
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putativa Quitéria Rita (filha da Chica da Silva), com sobre os condenados, ficando esquecidos nos conven-
a qual teve cinco filhos (ADIM, 1981, v.5, p.349; tos lisboetas.
MAXWELL, 1978, p.160). O comportamento libidi- O destino dos presbíteros foi mais duro que o dos
noso deste eclesiástico fica demonstrado na inquiri- demais – com exceção de Tiradentes, enforcado em
ção de Joaquim Silvério dos Reis. Segundo ele, o dito 21 de abril de 1792. Em conseqüência de não serem
padre “deflorou uma irmã do Ten. Cel. Simão Pires condenados nem libertados, sofreram, segundo
Sardinha, (...) e, casando-a com um homem branco, Tarqüínio, “pior sorte que os degredados: 4 anos de
quis depois do casamento continuar com ela a mes- prisão em São Julião da Barra e mais 5 ou 6 anos de
ma desordem” (ADIM, 1981, v.4, p.46). Para expli- reclusão em mosteiros continuando neles até 1804,
car a fuga que o padre cometeu ao ser denunciado à embora já livres, quando se lhes permitiu voltar ao
devassa, o advogado José de Oliveira Fagundes re- Brasil” (ADIM, 1977, v.8, p.324).
correu ao depoimento de João Francisco das Chagas. Quanto à clemência, o exercício do perdão esta-
Esse réu afirmou que o clérigo estava “homiziado” va associado à legitimação do poder régio, visto que
por uma “querela de adultério” que havia praticado. a Rainha deveria fazer-se amar e não temer. O segre-
A defesa praticada pelo advogado procurou eximir o do da eficiência do sistema penal estava na “incon-
dito padre da acusação de que não havia “indícios al- seqüência” de “ameaçar e não cumprir”. Melhor ain-
gum no processo a este respeito”. É por demais sus- da, era fazer-se temer, ameaçando, do que se fazer
peita a atitude do bacharel ao recorrer a esse peque- amar, não cumprindo. Para que esse duplo efeito se
no acontecimento dentro do corpo processual da de- produza, António Manoel Hespanha relata que “é pre-
vassa (ADIM, 1982, v.7, p.188). ciso que a ameaça se mantenha e que a sua não con-
Os réus eclesiásticos foram julgados junto aos cretização resulte da apreciação concreta e particular
demais e processados em separado por determinação de cada caso, da benevolência e compaixão suscita-
da carta-régia de 17 de julho de 1790, segundo a qual das ao aplicar a norma geral a uma pessoa particu-
deveriam ser enviados a Lisboa para receberem sen- lar” (HESPANHA, s.d., p.247; 244; 249), como foi o
tença24. Até a data de 20 de abril de 1792, guardou-se caso do alferes Tiradentes. A Rainha apresentou-se
segredo de outra carta-régia (15 de outubro de 1790), como uma mãe a seus filhos (súditos), legitimando
que determinava que os condenados fossem agra- ideológica e simbologicamente seu poder sobre os in-
ciados com a clemência real – comutação das penas divíduos, concedendo-lhes a graça. O jurista Baptista
em degredo –, excluindo-se os clérigos e Tiradentes. Fragoso em Regimen Republicae Christianae (1641)
As penas dos réus sacerdotes seriam proferidas pela relatou que “não é conveniente nem que o príncipe
rainha D. Maria I que enlouquecera. Não existindo a puna sempre, nem que sempre ignore; na verdade, a
sentença condenatória contra tais padres, o regente D. função do rei é punir freqüentemente, mas ignorar
João VI determinou que se fizesse silêncio perpétuo ainda mais; misturar a clemência e a severidade é mais
belo” (HESPANHA, s.d., p.266).
Dos cinco religiosos processados, três foram con-
denados à morte (Toledo, Rolim e José Lopes) e os de-
24
mais a degredo perpétuo (Vieira e Manuel Rodrigues).
“Quanto aos réus eclesiásticos, que sejam remetidos a esta Corte
debaixo de segura prisão, com a sentença contra eles proferida,
Foram impostas aos quatro primeiros uma pena com-
para à vista dela Eu determinar o que melhor me parecer” (ADIM, plementar, o confisco total de seus bens, e, ao último,
1982, v.7, p. 269). o confisco de metade25. Tarqüínio alertou-nos que se a
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carta de clemência fosse aplicada “os três primeiros ve preso, especialmente a de tecidos e a fabricação
sofreriam degredo perpétuo e os dois últimos por dez de vinhos. Isso demonstra que seu encerramento não
anos talvez”. O único beneficiado seria o padre Rolim, foi tão severo assim. Sendo um homem empreende-
já que “ao invés de degredo perpétuo, cumpriu quatro dor, instalou em sua propriedade uma pequena fá-
anos de prisão comum e cinco de reclusão em mostei- brica de tecidos de lã para confeccionar uniformes
ro”. A falta de sentença contra eles, motivado pelo de- militares e estabeleceu plantações de vinhas e oli-
saparecimento dos papéis pelo ministro Martinho de veiras (ADIM, 1981, v.4, p. 236-237; SANTOS,
Melo e Castro, deu origem à “esdrúxula situação de se 1927, p. 542-543).
não poder converter o seqüestro (mera medida acau- Em suma, quando pensamos no clero, devemos ter
teladora) em confisco (pena de perdimento dos bens em mente as diversidades próprias à capitania minei-
em favor da Coroa)”. Como não houve a excomunhão ra, assim como a formação de cada um de seus mem-
desses sacerdotes, por conseguinte os bens eclesiásti- bros. Se por um lado o clero se via preso às determi-
cos tornaram-se intocáveis (ADIM, 1977, v.8, p.324- nações próprias à sua condição – orar, celebrar mis-
325; 1977, v.9, p.334). sas, confessar fiéis etc. –, por outro acabava-se dei-
De todos os personagens envolvidos na Conjura- xando influir pelas ascendências do mundo laico.
ção, o padre Manuel Rodrigues da Costa foi o único Estavam sempre em contato com tropeiros, comerci-
que conseguiu colocar em prática pelo menos um dos antes e intelectuais ilustrados, muitos dos quais
planos inconfidentes: a implantação de manufaturas. reprodutores das idéias francesas e norte-americanas.
Regressando ao Brasil em 1804, fixou-se novamente O envolvimento de senhores da fé na conjura foi
em sua fazenda (ADIM, 1977, v.8, p.376). Preocu- o estopim de um processo desencadeador de mudan-
pado com o engrandecimento da pátria, procurou ças adquiridos com a tomada de consciência de sua
estudar diversas indústrias em Lisboa enquanto este- condição de colonos. Pelo menos para os mais exal-
tados espiritualmente como Tiradentes, padres Rolim
e Toledo, o movimento foi uma tentativa de reorga-
nização das relações existentes entre a oligarquia
mineira e a política colonialista portuguesa na região,
25
“Por tanto condemnão os Reos Carlos Correa de Toledo, Jozé da como Kenneth Maxwell apresenta em sua obra. O
Silva de Oliveira Rolim como Chefes da Conjuração, e o Reo Jozé
clero, como parte direta da relação entre estes dois
Lopes de Oliveira como sabedor e consentidor della a que com
pólos, não poderia ficar de fora. Não devemos obser-
baraço e pregão sejam conduzidos pellas ruas publicas ao lugar da
forca e nella morrão morte natural para sempre e os condemnão
var interesses estritamente laicos, como as Instruções
outro sim nas mais penas estabelecidas por direito nos crimes de bem colocaram ao relatar a vida de clérigos “ociosos
leza Magestade de primeira cabeça infamia e perdimento de todos e inúteis que se ocupam em negociações e que escan-
os seos bens para o Fisco e Camera Real; e ao Reo Luis Vieira da dalizam os povos” (COELHO, 1994, p.12).
Silva condemnão em degredo, por toda a vida para a ilha de S. A insubordinação política ao Império luso levou-
Tomé, e no perdimento de seos bens para o Fisco e Camera Real; e os a ser considerados mentores do motim. Não por-
ao Reo Manoel Rodrigues da Costa condemnão em degredo por
que o queriam, mas porque, acima de tudo, tinham
toda a vida para a Ilha do Principe, e no perdimento de ametade
sido discriminados pelos inquiridores como aconte-
dos seos bens para o Fisco e Camera Real; e se estes dois ultimos
Reos tornarem a entrar neste Estado do Brazil morrerão na forca
ceu com o alferes Tiradentes. Portanto, o início de
morte natural para sempre (...) Rio 18 de Abril de 1792” (ANNO, uma mentalidade revolucionária forjou-se por meio
1952, p. 101). da opressão. As tentativas de separação entre a Igreja
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e o Estado viram-se concretizadas somente com a Re- “De amar, minha Marília, a formosura
pública. Mas, em 1808, as relações entre a metrópole e Não se podem livrar humanos peitos.
a colônia tornaram-se irremediavelmente alteradas com Adoram os Heróis; e os mesmos brutos
Aos grilhões de Cupido estão sujeitos.
a vinda da família Real para a América portuguesa.
Quem, Marília, despreza uma beleza,
Como expressa o poeta na terceira lira da primei-
A luz da razão precisa;
ra parte de Marília de Dirceu, o homem orienta suas E se tem discurso, pisa
ações pela razão. A razão de tais clérigos talvez se A Lei, que lhe ditou a Natureza”.
explique pelo fato de viverem em colônia, como fi- (GONZAGA, s.d., p.16)
zeram os envolvidos na Inconfidência baiana:

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RAYNAL, Guilherme-Thomas François. A Revolução da Améri- bal a D. João (1777-1808). Brasília, FUNCEP, 1986.

Endereço do Autor: Rua Itape, 4 • Jardim Maria Dirce • Guarulhos • São Paulo • CEP 07173-400
62 André Figueiredo Rodrigues / Revista de História 138 (1998), 45-61
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

CAPISTRANO DE ABREU (1907). O SURGIMENTO DE UM


POVO NOVO: O POVO BRASILEIRO

José Carlos Reis


Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO: O artigo discute inicialmente alguns dados biográficos de Capistrano de Abreu que contribuíram para a posi-
ção inovadora que conquistou na historiografia brasileira; examina as suas relações com Varnhagen e o IHGB, a sua
hesitação teórico-metodológica entre o positivismo e o historicismo, o seu novo ponto de vista sobre a história brasileira,
que se denominou de “redescoberta do Brasil”. Resume e analisa a sua obra “Capítulos de História Colonial” procurando
apreender todo o seu alcance metodológico e político e conclui com reflexões sobre a temporalidade histórica do Brasil,
segundo a sua perspectiva renovadora, que enfatiza a ruptura com a tradição lusitana e a opção pelo futuro brasileiro.

ABSTRACT: The article initially discusses some of Capistrano de Abreu’s biographical data that have contributed to the
innovative position he has achieved in the Brazilian historiography. It also examines his relationship with Varnhagen and
the IHGB, his theoretical-methodological hesitation between positivism and historicism, and his new point of view on the
Brazilian history wich was called “rediscovery of Brazil”. It summarizes and analyses his work “Capítulos de História
Colonial” (Chapters of Colonial History), trying to apprehend its methodological and political attainment and concludes
with reflections on the historical temporality of Brazil, according to his innovative perspective, that enphasizes the rupture
of the Lusitanian tradition and the option for a Brazilian future.

PALAVRAS-CHAVE: Historiografia Brasileira, Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial, Temporalidade


Renovadora, “Redescobrimento” do Brasil.

KEYWORDS: Brazilian Historiography, Capistrano de Abreu, “Capítulos de História Colonial” (Chapters of Colonial
History), Innovative Temporality, “Rediscovery” of Brazil.
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Capistrano de Abreu, “Heródoto do Povo Ele era psíquica e fisicamente um autêntico sertane-
Brasileiro” jo, um caboclo matuto, feio, agreste, desagradável:
“um desconfiado tapuia transplantado para o meio
João CAPISTRANO DE ABREU nasceu em civilizado”, alguém disse. Seus biógrafos descrevem
Maranguape, Ceará, em 1853. Nasceu no sítio de a sua imagem de maneira bem desfavorável – “sebo-
Columinjuba, que seu pai herdara de seu avô, que o so”, mal vestido, sem higiene pessoal, uma figura
havia recebido de presente de um reinól perseguido torta, um olho pendido para o lado, uma cor encardida
pelos ódios exacerbados do nativismo local, do qual que o banho só piorava! Para logo desanuviarem a má
ele então protegera. Foi assim que a sua família saiu impressão referindo-se à sua personalidade brilhan-
da pobreza e se tornou proprietária de um pequeno te e envolvente. Ao chegar, ao ser apresentado a al-
pedaço de terra. Ali, Capistrano foi criado com rigi- guém ou ao se apresentar, sua imagem causava des-
dez, severidade e austeridade, em um ambiente mar- gosto; ao sair, seu espírito deixava encantamento. Foi
cado pelo trabalho pesado e contínuo e pelo dogma- assim, por exemplo, em seu primeiro encontro com
tismo católico. Seu pai, depois de herdar a terra, re- José de Alencar, seu conterrâneo que tinha obtido
construiu a casa e se tornou um dos “homens bons”, grande sucesso nacional e a quem ele recorreu para
“homens de consideração”, da região, pois tinha o introduzí-lo na Corte. Capistrano não era vaidoso e
suficiente para sustentar a família e gozar de algum se silenciava sobre si mesmo. Sabe-se que era próxi-
prestígio social. Ele pertencia à Guarda Nacional e à mo e afeiçoado aos escravos e que conhecia muitas
burocracia provincial – tinha a patente de major. No canções africanas (CÂMARA, 1969).
sítio, ele plantava cana, algodão, mandioca, feijão, Sua formação intelectual, considerando a sua ori-
milho. O trabalho era feito por escravos, por agrega- gem modesta e rude, foi outro “milagre”. Ele foi so-
dos e pela própria família. Seu avô e pai eram homens bretudo um autodidata, um leitor apaixonado e
do tipo “amansa-negro”: homens de mão pesada e de desordenado. Foi alfabetizado no próprio sítio e de-
alma dura. Capistrano nasceu, portanto, em uma “casa pois estudou em um colégio pobre de Fortaleza – o
grande”, modesta, mas abastecida. A casa expressa- “Ateneu Cearense”, e no Seminário. Como estudan-
va o espírito místico-escravista dominante: era cheia te, sempre fracassou em seus exames. Talvez ele ti-
de imagens de santos, rosários, relíquias, escapulá- vesse dificuldades psicológicas com a “autoridade”,
rios, terços e orações e um dos seus cômodos era usa- associada ao pai. Seu retorno de Recife, onde passou
do como “sala de disciplina”, a “sala do tronco”, com dois anos preparando-se para entrar na Faculdade de
os instrumentos de suplício para os escravos rebeldes e Direito, com o apoio financeiro de seu pai!, foi mais
que, provavelmente, o rebelde Capistrano também co- ou menos trágico: ele fracassara em Recife! Entre os
nheceu, pois os filhos na sua época eram também “aman- 18 e 20 anos, as perspectivas de Capistrano não eram
sados”! Ali reinava o espírito colonizador e inquisidor as melhores. Ele ficou no sítio, escrevendo em jor-
dos descobridores. O sítio submergia no anonimato da nais de Fortaleza, dando aulas em colégios. Ele pre-
vida sertaneja, cercado por longas distâncias, embora cisava de um emprego e de um salário para viver. Não
Fortaleza não fosse tão longe. Vivia-se ali uma vida iso- era rico e não poderia depender mais do seu pai, sem
lada, rotineira, silenciosa, ritmada pela natureza, pelo tra- trabalhar no sítio (CÂMARA,1969).
balho e pelas rezas (CÂMARA, 1969). Ele decidiu, então, ir para a Corte, migrar para o
Foi neste ambiente bem pouco aristocrático que Rio de Janeiro, armado com uma carta de José de
nasceu e viveu até à juventude, Capistrano de Abreu. Alencar, apresentando-o aos jornais do Rio, e com
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700 mil réis que apurou com a venda de um escravo ria Colonial? Num mundo social marcado profunda-
de sua propriedade, que herdara de seu avô. Em 1875, mente pela bipolarização senhor-escravo, ele não era
este “nordestino feioso” desceu para um mundo des- nem uma coisa e nem outra. Sua família era pequena
conhecido, incerto, “sozinho, sozinho”. Ele chegou proprietária de terra e produzia para o seu próprio
ao Rio com 21 anos. Apesar da sua resistência ao sustento. A maneira como conseguiu essa terra tam-
bacharelismo, chegou com uma boa bagagem intelec- bém é curiosa, casualmente, um “presente de reinól”!
tual: lia francês e inglês, conhecia filosofia, literatu- A produção não era destinada ao mercado internacio-
ra, história e geografia. Assim dizem seus biógrafos nal, mas era feita também com mão de obra escrava
mais exaltados. E exageram: ele lia até sueco e de agregados, que trabalhavam lado a lado com os
(CÂMARA, 1969)! Na Corte, ele precisava de um membros da família proprietária. Era um mundo so-
emprego. Trabalhou na Livraria Garnier, foi profes- cial “brasileiro”, isto é, voltado para dentro, sem vín-
sor no Colégio Aquino, “onde tinha casa e comida”, culos externos diretos. A subsistência era retirada da
escreveu vários artigos em jornais, passou em um con- terra, parca e modesta, à custa de um trabalho contí-
curso para o preenchimento de uma vaga na Biblio- nuo e braçal, quase sem equipamentos. O horizonte
teca Nacional, um emprego público, estável e segu- pessoal de Capistrano era prosseguir esta vida pater-
ro, a âncora que ele precisava para fixar-se na Corte. na e familiar, horizonte que ele recusou, contra o qual
Em 1883, ele fez o famoso concurso para ser profes- se rebelou, mas ao qual tinha pouca coisa ou quase
sor de “Corografia e História do Brasil” do Colégio nada para substituir. Refugiou-se, então, talvez, na
Pedro II. Passou, ocupou a vaga, mas não ficará mui- leitura, evadiu-se, o jovem Capistrano. Criou um
to tempo, pois sairá em 1899. Sua cátedra foi extinta mundo de palavras, frases, citações confusas e em
– “História do Brasil”! – que foi incluída na “Histó- outras línguas (apelando até para o sueco!), buscan-
ria Universal”. Enquanto ensinou, sem carisma, teve do “diferenciar-se” do seu mundo, do seu passado,
alunos e nunca discípulos. Ao sair do Colégio, sen- buscando o reconhecimento intelectual, o prestígio de
tiu-se aliviado: livrara-se de “alunos ignorantes e de- homem de letras, devorador de livros, mas pouco dis-
satentos”. Contudo, a razão da sua saída do Colégio ciplinado para enfrentar exames.
Pedro II permanece ainda mal explicada. Alguma ra- No Rio, quando não tinha mais terra e nem era
zão política? Chacon afirma que Capistrano e O.Lima, mais proprietário de escravos, passado que rejeitara,
acusados de germanofilia quando da Primeira Guerra ele só tinha a sua força física e seus olhos leitores
Mundial, teriam sofrido perseguições (CHACON, como instrumento de trabalho. Ali, ele precisava so-
1993, p.92). Mas, a sua saída do Pedro II foi em 1899, breviver e mostrar o seu valor. Tendo rompido com
bem antes. Qual foi a verdadeira razão? Foi somente aquele passado, ele rompeu também com o futuro
uma simples “reforma do ensino” que dissolvia uma previsível que ele prometia; agora, ele enfrentava um
cadeira de “História do Brasil”!? Capistrano morreu futuro desconhecido, que ele teria de produzir com
em 1927, aos 64 anos (CÂMARA, 1969). os seus próprios recursos. Capistrano preferiu a mu-
Sua biografia interessa muito, quando se conhe- dança e a sua instabilidade à continuidade familiar e
ce o lugar inovador que ele teve na historiografia bra- nordestina. Sua história pessoal se parece com a in-
sileira. A biografia escrita por J.S. Câmara, que utili- terpretação que construiu do Brasil: rebeldia e recu-
zamos até aqui, parece-nos recomendável, apesar de sa do passado, opção por um futuro novo; mas qual?!
um excesso, talvez, de “empatia”, embora compreen- O “Necrológio de Varnhagen”, escrito em 1778, três
sível. Quem é, afinal, o autor de Capítulos de Histó- anos depois da sua chegada ao Rio, talvez tenha sido
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o seu grande trampolim para o futuro que ele queria ente intelectual brasileiro era mais complexo, refletin-
realizar: repercutiu tão intensamente, dizem, que até do também a maior complexidade da vida brasileira,
o insuperável Machado de Assis evitou publicar o seu! que se inquietava após o fim da Guerra do Paraguai.
Capistrano começou então a sentir o gosto da vitória Varnhagen escrevera quando a monarquia se consoli-
e do sucesso, depois de experimentar fracassos suces- dava nos anos 1850; Capistrano construirá a sua in-
sivos no Nordeste. Seu horizonte novo se abria e se terpretação do Brasil quando a Monarquia estava
ensolarava na Corte (CÂMARA, 1969). abalada, em xeque, assim como a escravidão, e se bus-
Ele viverá até 1927 com os seus únicos recursos: cavam novas bases econômicas, sociais, políticas e
postos públicos e a sua escrita concisa, precisa e ino- mentais para o Brasil (WEHLING, 1994).
vadora. Entretanto, a sua obra é pequena e constituída Os intelectuais brasileiros do final do século XIX
de textos curtos. Ele viverá na verdade mais da sua começaram a perceber a distância entre a realidade
renda de funcionário público, bibliotecário e profes- brasileira e o pensamento que eles próprios produzi-
sor, do que dos seus escritos, que ele próprio parecia am. Silvio Romero criticava o ambiente intelectual
não apreciar muito. Quando terminados, ele dizia brasileiro, vazio e banal, e aspirava ter contato com o
sentir por eles “alívio e nojo” (CÂMARA, 1969). verdadeiro Brasil. Há um esforço de todos para en-
Talvez, este seja também o sentimento de um operá- carar de forma nova o passado brasileiro. Eles têm,
rio diante da sua obra terminada: “alívio”, pois deu agora, uma preocupação “cientificista”. Comte,
conta de fazê-la e já podia ir para casa com o salário Buckle, Darwin, Spencer serão as referências intelec-
no bolso; “nojo”, pois a produzira sob pressão, domi- tuais predominantes (ORTIZ, 1985). A preocupação
nado pela necessidade. Como um operário, um cientificista de Capistrano era a de toda uma nova
migrante nordestino, Capistrano é um homem humil- geração. No pós-Guerra do Paraguai, esta geração
de, discreto, tímido, avesso a títulos e glórias e indife- quer reinterpretar a história brasileira privilegiando
rente à audácia e perícia do trabalho que realiza. não mais o Estado Imperial, como Varnhagen, mas o
povo e a sua formação étnica. A formação intelectual
Varnhagen e Capistrano de Capistrano se deu neste ambiente determinista, ci-
entificista, até racista. Discutia-se, então, o positivis-
Quando ele nasceu, em 1853, Varnhagen come- mo, o determinismo climático, o determinismo bio-
çava a publicar a sua História Geral do Brasil. lógico, o spencerismo, o comtismo, o darwinismo, as
Capistrano será o seu leitor mais atento e crítico. Será teorias raciais. Pensava-se que a sociedade poderia ser
em relação a Varnhagen que ele fará a sua grande estudada com a mesma objetividade com que se es-
inovação na interpretação do Brasil. Esta inovação se tudava a natureza, pois também submetida a leis ge-
explica não só em termos da sua origem social, que é rais de desenvolvimento. A história seria como o
totalmente diversa da de Varnhagen, mas também em universo: um mecanismo auto-regulado, submetido
razão da nova época intelectual vivida pelo Brasil nos a leis, passível de um conhecimento objetivo. A ciên-
anos posteriores a 1870. O desfecho da Guerra franco- cia passava de método a visão de mundo, desvalori-
prussiana abalara o prestígio da cultura francesa e os zando as verdades trazidas pela tradição, pela religião,
intelectuais brasileiros se abriram às influências in- pela filosofia. Euclides da Cunha, O. Vianna, Silvio
glesa e alemã: Spencer, Darwin, Buckle, Ranke, Romero, Tobias Barreto, enfim, a geração de
Ratzel. Os franceses ainda influenciavam: Comte, Capistrano de Abreu, discutia darwinismo social,
Taine, Tarde, Renan, G. Le Bon. Pós-1870, o ambi- luta pela vida, seleção das espécies e defendia um co-
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nhecimento anti-metafísico, empírico, histórico tes positivistas. Os analistas de Capistrano arrolados abai-
(CHACON 1977; WEHLING, 1994). xo dizem mais ou menos o mesmo (CAMPOS, 1983).
No entanto, havia posições heterodoxas. Tobias Para R. Benzaquen, ele sempre se interessou teo-
Barreto, por exemplo, opunha-se ao cientificismo pre- ricamente pelos sociólogos franceses, ingleses e ale-
dominante opondo-lhe o historicismo neokantista mães. A perspectiva sociológica influenciou-o e ele
alemão. Quando se trata do homem e da sociedade, lamenta que Varnhagen não a tivesse empregado ao
ele sustentava, há sempre um “resto” que a mecânica não procurar leis na história do Brasil. No “Necroló-
não explica; aliás, este “resto” mecanicamente inex- gio...”, em 1878, e já no Rio de Janeiro, ele reafirmou
plicável é quase tudo quando se trata do homem. O a sua crença na possibilidade de se encontrar leis para
que há, então, é um “todo inexplicável”. Naquele a história do Brasil. Ele esperava um Spencer ou um
ambiente spenceriano, Tobias Barreto já era um cul- Buckle da história do Brasil. A sua obra é um ponto
turalista, um pioneiro historicista. Não há leis para a de referência da recepção da concepção moderna de
história humana. história, com o seu ideal objetivista de verdade, apoiada
O pensamento brasileiro do final do século XIX, em documentos inéditos, testemunhas oculares, auto-
portanto, estava dividido. A “Escola de Recife” manti- res identificados das fontes. Para ele, o distanciamento
nha a distinção entre natureza e cultura, resistia ao ci- do historiador deve se dar quando ele manipula as fon-
entificismo sociológico; este dominou a Escola Poli- tes; em um segundo momento, quando ele as interpre-
técnica do Rio de Janeiro, a Escola de Minas de Ouro ta, o quadro teórico das ciências sociais orientará a
Preto, o Colégio Pedro II, a Escola Normal, O Colé- pesquisa com suas leis e teorias (ARAÚJO, 1988).
gio e Escola Militares, a Escola Naval, as Faculdades P.M. Campos afirma que ele se interessou por tudo
de Medicina e Direito, que formavam os profissionais o que saiu da Europa, em particular pela bibliografia
liberais, políticos, intelectuais, empresários, impreg- alemã. Interessava-se por economia política, história
nados de Comte, Spencer e Darwin. (CHACON, da América e de Portugal, psicologia, que ele conside-
1977; WEHLING, 1994). rava indispensável ao historiador, e geografia. A in-
fluência alemã levou-o ao estudo rigoroso dos docu-
Capistrano: positivista ou rankiano? mentos – Capistrano quer também narrar o que de fato
aconteceu. Ele defende o realismo histórico alemão.
O pensamento de Capistrano revela esta divisão Entretanto, ele esteve embebido em influências diver-
e confusão da discussão intelectual no Brasil no final sas, não somente alemãs. Aquelas características da
do século XIX. Qual era a sua tendência: mais posi- sua obra – estrita observação das fontes e pesquisa
tivista ou mais historicista? P. M. Campos afirma que das relações do homem com o meio geográfico – se
Taine, Buckle e Comte foram importantes na sua for- partiram da Alemanha, já pertenciam a todo o Oci-
mação. Chacon o considera um dos numerosos adep- dente. Sua obra, afirma Campos, não permite uma
tos de Spencer da época. (CHACON, 1977) Entretan- avaliação do grau de influências recebidas. Foram
to, se a “Escola de Recife” era mais historicista, fica publicadas como artigos, esparsamente, e seus livros
um pouco difícil perceber a sua formação positivista não possuem prefácios. Só em sua correspondência
em Recife. Talvez, quando foi para o Rio de Janeiro se pode conhecer as suas leituras. Sua correspondên-
ele tenha tido um maior contato com os autores cia, aliás, é um valioso material para a história das
positivistas ingleses e franceses no Colégio Pedro II idéias no Brasil do final do século XIX e início do
e ali, também, tenha sofrido a doutrinação dos deba- XX. Nelas, Campos não percebeu nem preconceito e
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nem exclusivismo cultural. Capistrano nunca teria cientificista: unidade do real, busca de leis determi-
proposto uma explicação unilateral da história, mas nistas, evolucionismo, cognoscibilidade e objetivida-
sempre percebeu a interdependência das diversas ins- de do conhecimento social, unidade epistemológica
tâncias sociais (CAMPOS, 1983). das ciências sociais (WEHLING, 1994).
Para A. Canabrava, tal como em Varnhagen, a Entretanto, Wehling considera que este interesse
exegese documental, que ocupou muito do seu tem- pelas idéias positivistas se restringiu a uma fase inicial
po, parece inspirar-se em Ranke. Os dois se encon- de sua formação. Depois, com o aprendizado do ale-
tram na preocupação fundamental pelo documento, mão, ele teria passado do positivismo ao realismo
pela busca da autenticidade, pela verdade das fontes, histórico rankiano. Ele optou pela pesquisa documen-
pela esforço de análise objetiva. Entretanto, diferen- tal e pelo método crítico alemão que, aliás, ainda hoje
te de Varnhagen, que não se interessou por teoria, é chamado impropriamente de “positivista”, por causa
Capistrano, que nunca saiu do Brasil, tinha grande da influência da Escola dos Annales (REIS, 1996).
interesse pelas correntes do pensamento europeu no Houve uma reviravolta em seu pensamento, cuja data
campo das ciências sociais. Canabrava afirma ter não é fixável. A influência alemã o retirou do
encontrado em sua correspondência muitas referên- positivismo e o levou à hermenêutica. Mas, não fo-
cias a diversos teóricos europeus: Taine, Buckle, ram leituras teóricas que o retiraram do cientificismo,
Comte, Ratzel, Spencer, Sombart, Ranke. Capistrano como quer J.H.Rodrigues, afirma Wehling. Para este,
lia estudos empíricos e ensaios teóricos em assuntos foi o estudo de documentos, o primado do objeto, que
variados. Interessou-se tanto pela história do clima e converteu Capistrano do cientificismo à ciência. A
da Rússia como pela história do Brasil. Ele foi um rebeldia das fontes ante os esquemas interpretativos
dos pioneiros da geografia humana. Entretanto, con- fez com que ele os restringisse a hipóteses de traba-
clui Canabrava, ele era teoricamente confuso: não do- lho. O real era reconstruído a partir de sugestões cien-
minava vários conceitos que ao seu tempo as ciênci- tíficas que conduziam ao levantamento dos fatos. A
as sociais tinham formulado. Faltou-lhe uma proble- composição e interpretação desses fatos obedecem à
mática consistente, que desse ao seu pensamento uma lógica da situação histórica. Capistrano tinha pouco
diretriz fundamental de interpretação; faltou-lhe, en- interesse por problemas teóricos e metodológicos da
fim, “unidade teórica”. Ele apenas aflorou os gran- história. Na sua fase científica, ele utilizou leituras
des temas das ciências sociais, sem dominá-los européias como sugestões temáticas, como hipóteses
(CANABRAVA, 1971). de trabalho. O seu interesse teórico na fase cientifi-
Para Wehling, a influência cientificista é determi- cista foi sem conseqüências para a pesquisa que rea-
nante na obra de Capistrano entre 1874 e 1880. A sua lizou e repercutiu na fase posterior. Portanto, para
biografia intelectual começa no Ceará, no círculo po- Wehling, a resposta à questão sobre a orientação teó-
sitivista formado por Rocha Lima, Araripe Jr., Tomás rica de Capistrano é clara: ele passou por duas fases:
Pompeu Filho entre outros. O grupo atuava no senti- uma primeira cientificista, franco-inglesa, e outra ci-
do da educação do “proletariado”, na linha comtista. entífica, alemã, rankiana. As suas grandes obras são
Escreviam em francês, faziam conferências na Escola da segunda fase.
Popular que fundaram. Capistrano escrevia artigos e Rodrigues considera que Capistrano fez uma revi-
pronunciava conferências sobre as influências posi- ravolta na historiografia brasileira por sua posição
tivistas de Spencer, Buckle, Comte e Taine. Entre teórica atualizada, seu conhecimento incomum dos
1874 e 1883, enfim, Capistrano rezava a cartilha fatos, seu novo ideal de história do Brasil. Os seus
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artigos de 1879 revelaram a influência positivista, não perando-os, reabrindo o futuro do Brasil (RODRI-
só na investigação como na interpretação dos fatos da GUES, 1963 e 1965).
história do Brasil. Ele era amigo de Teixeira Mendes Odália o vê como exemplar de uma interpretação
e Miguel Lemos, apóstolos comtistas no Rio de Janeiro. do Brasil que privilegia o indígena, por um lado, e,
Mas, o convívio com autores alemães fazem-no ir à por outro, ele é mais um historiador brasileiro que im-
procura das realidades, segundo ideais não positivis- porta teorias européias e se dilacera para atender a
tas. Em suas obras mais importantes ele não deduz e essas teorias que condenavam o Brasil a um triste
generaliza tão facilmente. Rodrigues precede Wehling destino, para que este destino não se realizasse. Por
em sua leitura da “reviravolta” no pensamento de um ato de vontade e de contorcionismo teórico nega-
Capistrano. Sob as influências de Ranke, Niebhur e se o destino pré-fixado pelos cientificistas europeus,
Humboldt, ele passará a dar ênfase aos documentos, que afirmam a impossibilidade de uma nação civili-
à sua crítica e interpretação, sem buscar leis, mas a zada nos trópicos e ainda por cima miscigenada
“compreensão”. Entretanto, apesar da influência ale- (ODÁLIA, 1976). Capistrano, no entanto, será dife-
mã, sobrevive uma certa influência de Spencer. Mas, rente da sua geração. Ele reabrirá o futuro do Brasil,
o positivismo, ele passará a considerá-lo como uma vencerá o pessimismo existente entre os intelectuais
“camisa de força” e a influência alemã será cada vez brasileiros que olhavam o Brasil com as teorias de-
maior: Ranke e Ratzel. Ele recusa os determinismos terministas européias e nele não viam o que elas valo-
geográfico, climático e racial e o evolucionismo. rizavam, mesmo se ele também, em uma primeira
Historicista, ele percebe que a vida em eu mistério fase, impregnou-se com tais teorias e tenha feito tam-
pede um tratamento diferenciado da natureza. Seus bém algum contorcionismo teórico. Finalmente, ele
estudos sobre a história íntima, festejos, família, pro- optou pela teoria também européia que valoriza a sin-
curando a diferença, a individualidade, as significa- gularidade, a historicidade de cada povo e formulou
ções, o afastam do que é típico, regular, constante. A uma nova interpretação do Brasil que enfatizará o
ação humana não se submete a regras e leis gerais tempo histórico especificamente brasileiro.
(RODRIGUES, 1963 e 1965).
Deixando o positivismo, ele passou a se interessar A “Redescoberta do Brasil”
pelo método crítico, que mais uma vez, desde a Escola
dos Annales, é visto inadequadamente como a marca Capistrano será um dos iniciadores da corrente do
da “história positivista” (REIS, 1996). Mesmo se pensamento histórico brasileiro que “redescobrirá o
Spencer é forte, e ele o será até os anos 30, até G. Brasil”, valorizando o seu povo, as suas lutas, os seus
Freyre, a influência alemã é que fundamentará as costumes, a miscigenação, o clima tropical e a natu-
obras mais relevantes de Capistrano. Historicista e reza brasileira. Ele atribuirá a este povo a condição
não positivista, o segundo Capistrano quer captar a de sujeito da sua própria história, que não deveria vir
interioridade dos testemunhos. A história não é só mais nem de cima e nem de fora, mas dele próprio.
fato, é emoção, sentimento e pensamento dos que O futuro do Brasil torna-se tarefa do povo brasileiro
viveram. Mas, se apreciava a metodologia de Ranke, e, para melhor vislumbrá-lo, Capistrano recupera o
ele não seria capaz de se apagar para narrar os fatos passado deste povo em suas lutas e vitórias. Capis-
tal como se passaram. Rodrigues o considera a mais trano foi pioneiro na procura das identidades do povo
lúcida consciência da história do Brasil: ele recriou brasileiro, contra o português e o Estado Imperial e
o passado brasileiro, enfrentando os seus males, su- as elites luso-brasileiras.
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Seu papel na história do Brasil, a significação da tese também parecida com ele, isto é, em cinco volu-
sua obra, os caminhos novos que apontou, os seus mes! Mas, como “síntese”, isto é, como apreensão da
ideais e conceitos e contribuição à história colonial totalidade, como integração da multiplicidade, sua
podem ser avaliados nos Capítulos de História Colo- obra é menos reveladora do que a de Capistrano. Este
nial. Ele não fez uma história exclusivamente político- escreveu uma obra magra, “a grandes traços e largas
administrativa ou biográfica, mas procurou apreender malhas”, contra os “quadros de ferro” de Varnhagen.
a vida humana na multilateralidade de seus aspectos Seu interlocutor era Varnhagen, a quem ele admirava
fundamentais. Sua visão da história não atribui predo- e se opunha. Capistrano escreveu o seu livro em um
minância de um fator sobre outros; ele a vê como um ano. Seus analistas o consideram uma pequena obra-
conjunto complexo de fenômenos humanos. Para ele, prima da historiografia brasileira, por sua linguagem
como historicista, o historiador deve recriar a vida in- simples, por sua compreensão intuitiva da história do
tegralmente, realizar uma compreensão total e cria- Brasil em seus fatos e em seu conjunto, pela docu-
dora do curso histórico. O conceito de “cultura” subs- mentação segura e numerosa, “por seu interesse pelo
titui o de “raça” e neste aspecto ele é precursor de G. povo durante séculos capado e recapado, sangrado e
Freyre, assim como de S.B. de Holanda. Ele valoriza ressangrado”, como afirma Rodrigues. Ele pretendeu
a presença indígena e pensou um Brasil mais mame- ensinar ao povo brasileiro o seu segredo, ensinar-lhe
luco do que mulato, mais sertanejo do que litorâneo. a sua “história pátria”, numa época em que a história
Nos Capítulos de História Colonial, aparecem os nacional era desprezada. A sua cadeira de “História
caminhos que levam ao sertão e o próprio sertão brasi- do Brasil” foi até extinta e ele posto em disponibilida-
leiro. Adentrando pelo Brasil, o colonizador se alte- de! Enquanto a história de Varnhagen era uma con-
rou e se tornou uma personalidade distintamente bra- versa entre eruditos, Capistrano divulgará com simpli-
sileira. Vivendo no interior do Brasil, ilhado e sem cidade o conhecimento da história do Brasil, mais
vínculos contínuos com o litoral, convivendo com os econômico-social do que política, liberta de datas,
indígenas e a natureza brasileira, foi-se constituindo nomes e eventos oficiais.
um “homem novo”, até então inexistente no mundo: O “Capítulos...” é uma história da luta dos brasilei-
a história universal ganhava um novo personagem, o ros pela independência, contra vice-reis e governado-
“brasileiro”. Mas, enfatizando o sertanejo, ele não res que os sufocavam. Capistrano foi um homem de
perde de vista o nacional, a unidade brasileira em suas síntese, uma síntese precedida de longas investiga-
diferenças regionais. Ele não faz ainda uma história ções. Sua síntese toca em todos os pontos mais rele-
econômico-social, mas já trata do homem comum, so- vantes da vida brasileira, é a mais viva e condensada
bretudo nos capítulos finais do seu Capítulos de Histó- história colonial do Brasil. Tendo como personagem
ria Colonial. Seu grande tema foi o da ocupação do ter- central o povo, o indígena ganha um papel importan-
ritório, a sua conquista pelo “novo povo brasileiro”. te na formação do Brasil. Para Capistrano, o que hou-
O seu Capítulos de História Colonial, publicado ve de diverso entre o brasileiro e o europeu, deveu-se
em 1907, é uma “nova história” do Brasil, embora ao clima e ao indígena. O brasileiro é o europeu que
muito parecida com Capistrano fisicamente: modes- sofreu um processo de diferenciação: o clima e a mis-
ta, magra, quase silenciosa. Mas, ao mesmo tempo, cigenação com o índio. Interessa-lhe conhecer o que
extremamante eloqüente. É uma síntese que reúne este povo sente e aspira. Ele faz uma história social e
muitos fatos esparsos, encadeados em uma perspecti- econômica do povo, sua vida, alimentação, tipos étni-
va inovadora. Varnhagen escreveu uma obra de sín- cos, condições geográficas, os caminhos, economi-
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as, povoamentos, modos de viver, as formas psicoló- Habitando este território, há o indígena, que é tam-
gicas, profissões, divertimentos, costumes, crenças, bém descrito em seus hábitos, comportamentos, ati-
diferenças sociais, o comércio, a vida urbana e rural... vidades, técnicas, guerras, vida sexual, trabalho, edu-
Sobretudo, ele identifica este povo, que no período cação, religiosidade, artes, lendas, língua. E também
colonial e mesmo imperial não sabe bem o que é e o com avaliações: ele domestica somente animais de
que faz e deveria fazer. Ele revela o processo de cons- “estimação” e não para o uso na vida cotidiana; pos-
tituição da diferença entre o projeto colonizador e o sui uma agricultura incipiente; dependem do traba-
novo interesse e sentimento que se formara gradual- lho das mulheres, que é considerada inferior ao ho-
mente, o interesse e sentimento “brasileiros”. mem; são nômades; antropófagos; têm os sentidos
Varnhagen fez o elogio da vitória dos portugueses, apurados; cultuam os antepassados; têm uma língua
defendeu os interesses e os sentimentos lusitanos no comum e vivem, infelizmente, dispersos porque o
Brasil e não via com bons olhos a diferença que volta meio dispensa e impede a cooperação. Portanto, a
e meia explodia entre estes valores e poder europeus e natureza e os índios são os temas dos “Antecedentes
os autóctones. Capistrano escreverá uma “outra histó- Indígenas”, o primeiro capítulo da história colonial
ria do Brasil”: anti-portuguesa, anti-reinól, anti-euro- brasileira. Capistrano faz uma descrição geográfica
péia, anti-Estado Imperial, anti-político-administrativa. do Brasil e uma apresentação dos seus primitivos mo-
Ele ecoará as vozes de Antonil e dos rebeldes de todo o radores. Estes são os dados iniciais da história do Bra-
período colonial. “Redescobrindo o Brasil”, Capistrano sil, os que foram encontrados aqui. A estes dois dados,
fará o elogio da “rebelião brasileira”. ele acrescentará outros dois que não eram daqui, mas
vieram parar aqui: o europeu e o africano. A estes dois
A Obra: “Capítulos de História Colonial” ele denominará de “Elementos Exóticos”, os “alieníge-
nas”, que serão os temas do segundo capítulo.
Capítulos de História Colonial começa com dois Nestes dois primeiros capítulos, quando são apre-
capítulos “estáticos”, isto é, capítulos que apenas ofe- sentados os “dados iniciais da história do Brasil” – o
recem os dados da história que ele vai narrar e inter- palco natural e os personagens que atuarão sobre ele,
pretar. No primeiro capítulo, intitulado “Antecedentes indígenas e alienígenas – Capistrano se aproxima de
Indígenas”, Capistrano realiza uma descrição geográ- Varnhagen na sua descrição do primeiro Brasil; e
fica do Brasil, o palco sobre o qual se desenrolará a Varnhagen é até mais informativo, minucioso. Dife-
história que ele narrará a partir do terceiro capítulo. Ele rencia-se de Varnhagen na perspectiva que terá sobre
começa pelos dados iniciais, os mais elementares. Ini- tais dados. Para Capistrano, “alienígenas”, “exóticos”
cialmente, é preciso situar o Brasil: onde fica, limites são os europeus e africanos e não o indígena e a terra
a leste, oeste, norte e sul, as suas dimensões. Ele faz do Brasil. Para vê-los assim, ele se coloca do ponto
considerações sobre o relevo, os acidentes e singula- de vista do indígena e da terra do Brasil, que vêm
ridades geográficas, realizando uma espécie de chegar novos e desconhecidos elementos. Ele olha da
mapeamento do território. Como alguém que olha em praia para o Oceano cheio de caravelas, enquanto
volta identificando onde está e o que possui. Em sua Varnhagen olhava da caravela de Cabral para a praia,
“corografia do Brasil”, aparecem as serras, baías, e via uma terra exótica povoada por alienígenas. No
baixadas, rios, climas, florestas, fauna, com uma ava- segundo capítulo, portanto, ele faz ainda uma “descri-
liação sobre cada serra, cada rio, cada floresta, cada ção estática”, isto é, neles próprios, dos “fatores exóti-
animal... cos” que desembarcaram no Brasil.
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Ele descreve então a situação de Portugal no sé- do português taciturno e sorumbático. Suas danças
culo XVI, a sua transição conciliada da Idade Média lascivas, suas feitiçarias e crenças propagaram-se
à Moderna: o poder da Igreja mais limitado, mas ainda entre os brancos. As mulatas tornaram-se rainhas. Em
influente; as relações entre o Estado português e Igre- relação ao negro, Capistrano é menos “estático” – ele
ja, seus atritos e proteções recíprocas. A sociedade não se refere a eles somente no século XVI, ao esta-
secular emergente luta para limitar os poderes da do em que se encontravam quando vieram. Ele não
sociedade religiosa ainda dominante. Ele descreve a se refere aos negros na África, como aos portugue-
hierarquia social portuguesa do XVI: o Rei, a quem ses em Portugal. Capistrano fala deles, já no segundo
tudo pertencia e que tudo podia; abaixo dele, a nobre- capítulo, indo do século XVI até o século XIX – 1850
za, com seu poder agora limitado pela centralização e a abolição, muito brevemente. Mas o espírito é o
do poder real, e o clero; abaixo, o povo, a grande mesmo, isto é, o de uma “apresentação” do persona-
massa, sem direitos pessoais, sem grande importân- gem negro e do papel que ele terá na história do Brasil.
cia; abaixo ainda, os servos, escravos, que podiam Talvez seja menos “estático” em sua apresentação do
passar à categoria superior, pois as classes não eram negro porque será ao longo da obra muito reticente,
castas. A nobreza, o clero e o povo constituíam as quase silencioso sobre ele. Já na apresentação
“Cortes”, que o Rei absoluto desdenhava e só convo- Capistrano esgotou tudo o que queria dizer sobre o
cava quando precisava aumentar os impostos. A po- negro. Este entrará em sua história em rápidos mo-
pulação portuguesa em 1527 era de mais ou menos mentos, sem qualquer peso histórico. Capistrano vai
122.112 almas. E ele formula a questão que a todos se interessar mais pelas relações entre brancos e ín-
espanta: como esse pessoal exíguo, que nem enchia dios e pelo seu mestiço, o mameluco sertanejo.
Portugal direito, pode povoar o mundo?! Capistrano Finalmente, no terceiro capítulo, intitulado “Os
antecipa-se a G. Freyre e a S.B. de Holanda na ca- Descobridores”, estes elementos anteriormente estáti-
racterização do “caráter português”: fragueiro, abstê- cos se animam: o português chega àquela geografia
mio, imaginação ardente, místico, independente, anti- e encontra aquele índio. Por que os portugueses vie-
disciplinar, não convencional, de fala livre, sem eu- ram parar no Brasil? Esta é a primeira questão posta
femismos, o coração duro. Matava por quase nada e por aquele que quer compreender a história que se
cuidava pessoalmente da defesa da sua propriedade. desenrolou no Brasil. Os portugueses vieram porque:
Suportava melhor a dor física do que a dor moral; o a posição geográfica de Portugal destinava-os à vida
ser fisicamente forte era valorizado. E antecipa tam- marítima; desejavam encontrar o imperador-sacerdote
bém aqueles dois autores dos anos 1930 na resposta Preste-João, para tê-lo como aliado na luta contra os
àquela questão: por serem assim, só este povo pode infiéis; as especiarias orientais davam altos lucros no
ser capaz de se misturar com outras etnias e culturas. mercado europeu. Com estas motivações – geográfi-
O português é o primeiro elemento exótico, o primeiro ca, religiosa, militar e comercial – os portugueses
imigrante, o invasor conquistador e colonizador. atiraram-se sobre a África procurando um caminho
O segundo elemento exótico é o negro. Ao portu- marítimo para as Índias, que os levasse a obterem os
guês estranho ao continente juntou-se o negro, tam- produtos diretamente, evitando as rotas comerciais
bém alienígena. A importação deles começou cedo. controladas pelos inimigos infiéis. As teorias cosmo-
Eram robustos e resistentes e substituíram o índio no gráficas eram limitadas na época. O périplo africano
trabalho rude. Tinham uma índole carinhosa, sobre- era tido como impossível e a via ocidental também.
tudo os domésticos. O negro trouxe alegria ao lado Contra as autoridades e evidências, portugueses e
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espanhóis tentaram a via meridional africana e a via Assim Capistrano descreve a chegada dos portu-
ocidental. Os portugueses chegaram às Índias e ao gueses ao Brasil: à Varnhagen, “fotografou” os fatos
Brasil e os espanhóis à América. Os espanhóis, aliás, mais miúdos, descrevendo-os detalhadamente. Junto
estiveram no Brasil antes dos portugueses, mas sua com eles, outros personagens exóticos e alienígenas
presença aqui foi sem conseqüências. chegaram: franceses, holandeses, ingleses, que amea-
Interessa-nos, portanto, afirma Capistrano, Cabral e çarão a “descoberta portuguesa”. Portugal argumen-
os portugueses, já que o Brasil se tornou lusitano. A tava que a terra era sua por decisão papal. Entretan-
presença espanhola inicial foi irrelevante para a histó- to, a presença dos outros alienígenas representava
ria do Brasil. Ele então descreverá varnhagenianamente uma concorrência séria: eles vendiam os mesmos
a aventura de Cabral: partiu em 1500, com treze produtos e mais baratos na Europa e estimulavam os
caravelas, chegou no dia 21 de abril. Foram dias e índios contra os portugueses. Os tupinambás se alia-
espetáculos extraordinários. Celebraram uma missa, ram aos franceses. Durante décadas não se soube se
hastearam uma cruz. Caminha escreveu a sua famosa o Brasil pertenceria aos portugueses ou aos franceses.
carta. Vieram, depois, novas expedições para explorar As armadas guarda-costas eram caras e ineficientes.
a Ilha de Vera Cruz. Os naturais aparecem sob nova Conversar, dialogar, embaixadas e tratados não adi-
luz: selvagens, rancorosos, antropófagos, material antavam. Só restava uma solução para afastar os ou-
mais de escravatura do que de conversão! Capistrano tros invasores: ocupar a terra. Em 1531, Martim Afon-
põe-se no lugar do português que chega, procura sen- so de Sousa veio fazer duas coisas: povoar e guardar
tir suas expectativas e medos. Mas, ele não permane- o litoral. Fundou a primeira cidade, São Vicente, e
cerá nesse lugar – ele o ocupará às vezes para melhor uma segunda, Piratininga.
compreender a sua ação. Com a exploração do pau- Pressionados, os portugueses tiveram de agir ra-
brasil, a terra passou a se chamar Brasil. Havia ou- pidamente: criaram um sistema monumental de capi-
tros nomes concorrentes: “Terra dos Papagaios”, “Ilha tanias hereditárias, estimularam a emigração para o
de Vera Cruz”, “Terra de Santa Cruz”. O comércio de Brasil. A alta nobreza não aceitou o empreendimen-
pau-brasil levou à fundação de feitorias. O Pacífico to, que ficou com a pequena nobreza. O Rei cedeu
foi “descoberto”, isto é, “visto pela primeira vez pelo parte do seu poder aos donatários. Estes ficaram forta-
europeu”, em 1520. E Colombo chegava finalmente lecidos para enfrentarem o estrangeiro e o sesmeiro.
às Índias. Neste primeiro Brasil, o que havia era o pau A história do Brasil no século XVI se passou em tre-
homônimo, papagaios, escravos e mestiçagem. As chos exíguos de Pernambuco, Bahia, São Paulo, bem
índias queriam a mestiçagem, pois desejavam filhos próximos do litoral. A energia dos donatários continha
da “raça superior”. Só o pai conta, para a descendên- a turbulência dos colonos. Surgiram canaviais e enge-
cia indígena. E os presentes dos brancos, e talvez esta nhos, lavouras de mantimentos, pescava-se fartamente
seja a verdadeira razão do interesse das índias pelos na costa. Entretanto, se o sistema de capitanias here-
brancos, eram irresistíveis: anzóis, pentes, facas, te- ditárias protegia a costa, ocupava e povoava com a
souras, espelhos. Quanto aos portugueses, eles não miscigenação, ele levou alguns donatários à falência.
tinham outra escolha a não ser a índia, pois brancas Além disso, cada capitania era soberana, estrangeira
não havia. Os primeiros colonos do Brasil eram degre- uma em relação à outra. Não havia uma ação coleti-
dados, desertores, náufragos. Uns se tornaram índi- va, mas concorrência. Os crimes cometidos em uma
os, outros os combateram, outros se indianizaram sem capitania não eram punidos em outra. Havia uma
perderem a identidade européia. anarquia intercapitanial, além da anarquia intracapi-
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tanial. O Rei decidiu criar uma Capitania Real e en- outros e expulsavam brancos de outras nacionalida-
viou um representante seu. Estabeleceu-se um gover- des e religiões. Poderia sair uma “nação” daí? Have-
no central para o Brasil, forte o bastante para garantir ria alguma possibilidade de “unificação de interesses
a ordem interna, em 1549. Vieram os primeiros jesuí- e sentimentos” tão diferentes, de mentalidades sepa-
tas, que depois dariam tanto trabalho. A preocupação radas por um abismo, abismo aprofundado progressi-
já no século XVI era com a unidade da colônia, que vamente pela escravidão e pela guerra? Capistrano
o sistema de capitanias ameaçava. O regime de Ca- oferece uma resposta otimista: devagar, ele afirma, ao
pitanias e o Governo Geral significaram o início da longo do século XVII, essa dispersão geral foi ceden-
vitória portuguesa. O Brasil seria português, tudo do lugar a uma possível “união brasileira”.
indicava. Entre 1580 e 1640, o Trono português esteve Para a constituição da unidade do “povo brasilei-
sob o domínio espanhol, por razões dinásticas. Mas, ro”, as guerras holandesas, entre 1624 e 1654, foram
o domínio espanhol não comprometeu a vitória por- decisivas. Depois delas, a história universal possuía
tuguesa no Brasil. Pelo contrário, favoreceu-a. Com um novo personagem, um “povo novo”. Os holande-
o apoio espanhol, os portugueses ocuparam a Ama- ses foram obrigados a invadir o Brasil porque, antes
zônia e expulsaram franceses e holandeses do norte da anexação do Trono português ao espanhol, em
e nordeste do Brasil. 1580, eles eram os distribuidores dos produtos exóti-
Capistrano, então, faz um primeiro balanço do cos portugueses na Europa. Mas, inimigos da Espa-
resultado dessa história, chegando agora ao final do nha, após 1580, eles foram impedidos de realizar este
XVI. Nesta época, o povo era constituído por três comércio. Decidiram, então, vir buscar os produtos
raças vindas de continentes diferentes e seus respecti- diretamente no Brasil e, quem sabe, poderiam encon-
vos mestiços. Eram desafetos. Tanto entre eles quan- trar um jeito de chegar até o Peru por via terrestre,
to entre os mestiços internamente. O negro ladino e isto é, às riquezas espanholas. Os holandeses atuavam
crioulo desprezava o boçal, o índio catequizado, o nu, através de duas Companhias de Comércio: a das Ín-
o reinól, o mazombo. Forças dissolventes, centrífugas, dias Orientais, que explorava o oriente em detrimen-
dominavam a sociedade colonial do século XVI. Só to dos interesses luso-espanhóis, e a das Índias Oci-
havia a percepção da diferença e não da unidade. Esta dentais, fundada, nesta circunstância da União Ibéri-
era garantida à força pelos portugueses que ocupa- ca, em 1621, para explorar a África, Estados Unidos,
vam, povoavam, miscigenavam e expulsavam. Os ín- Antilhas e Brasil. Para obter diretamente os produ-
dios temiam e ao mesmo tempo eram fascinados pe- tos brasileiros, esta Companhia “invadiu” o territó-
los portugueses, pelos seus equipamentos de caça, rio colonial ibérico. Capistrano descreve os avanços
pesca, guerra, vestuário e objetos coloridos e brilhan- e recuos da guerra contra os holandeses à Varnhagen:
tes. Mas, faziam-lhe a guerra. Os negros, dominados, detalhadamente, com o ritmo de um contemporâneo,
oprimidos, escravizados e estrangeiros, viviam sob a de uma testemunha ocular. Entretanto, após 1640,
hostilidade constante do português. Hostilidade, tal- com a separação dos tronos português e espanhol, os
vez, atenuada pela solidão do branco, que o forçava holandeses, já instalados em Pernambuco, permane-
a aproximar-se de índias e negras. Os índios fugiam ceram. Começou, então, o irredentismo brasileiro, que
para a floresta, os negros chegavam algemados e hu- exigiu a unificação das forças até então divergentes.
milhados. Os brancos, armados de espadas e terços, Um forte elemento de união foi a fé católica contra o
humilhavam, ofendiam, estupravam, escravizavam e herege. O catolicismo nativo se exacerbou. O ataque
exterminavam índios, negros e mestiços de uns e aos holandeses se fez em nome de Cristo. Índios,
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negros e mestiços diversos participaram vivamente da pelo território conquistando-o, ocupando-o, povoan-
luta. As vitórias luso-brasileiras se sucederam. Os do-o. O Capítulos de História Colonial pode ser divi-
portugueses que há muito estavam tendo prejuízo no dido em duas partes: até às “Guerras Flamengas”,
oriente, finalmente “optaram pelo Brasil” e enviaram capítulo 8º, Capistrano faz uma história do descobri-
reforços. Os “patriotas”, expressão de Capistrano, mento do Brasil de tipo Varnhageniano; depois delas,
aceitaram os reforços portugueses. (p.118) ele passa a fazer um novo tipo de história do Brasil.
Para ele, a vitória contra os holandeses só foi por- Não só mudou o sujeito da história do Brasil. Com a
tuguesa sob alguns aspectos. Na verdade, entre 1621 mudança do sujeito, mudaram-se os temas, alterou-
e 1654, quando Portugal optava pelo Brasil! e o de- se o objeto e até mesmo a forma da história. Até ali
fendia mais vigorosamente dos ataques estrangeiros, estávamos ainda na velha história político adminis-
começava a perder o controle sobre o Brasil. Um sé- trativa metropolitana do descobrimento do Brasil.
culo e meio depois do seu descobrimento, o Brasil era Aqueles dados apresentados e daquela forma já esta-
“redescoberto” por sua nova população. Surgia o vam em Varnhagen. A primeira parte dos Capítulos
“brasileiro”, depois de 1654. Esta guerra e esta vitória de História Colonial é quase uma síntese de Varnhagen,
serviram para revelá-lo a ele mesmo. Havia um sen- embora o olhar não fosse mais da caravela sobre o
timento patriótico não português, original, novo, “bra- litoral, mas da praia em direção à frota. Esta diferença
sileiro”. Vencia o espírito nacional. Reinóis, mazom- na direção e posição do olhar, presente na primeira
bos, índios, negros, mamelucos, mulatos, curibocas, parte liga esta à segunda, impedindo que entre ambas
mestiços de todos os matizes combateram pela liber- haja uma ruptura. O que não estava em Varnhagen e
dade divina. Sob a pressão externa e apoiada na fé marca a originalidade de Capistrano é a sua percepção
católica, operou-se uma solda superficial, imperfeita, do surgimento do novo povo e a sua adesão ao seu
mas um princípio de solda entre os diversos elemen- sentimento e interesse, ao seu projeto político. Tal
tos étnicos vencedores dos flamengos. Os combaten- percepção foi possível porque desde as primeiras
tes de Pernambuco sentiam-se um povo e um povo páginas do livro, seu olhar já estava em outra posição
vencedor, que já possuía os seus próprios heróis. e direção. As elites saem da história e entra o povo
(p.119) Passado o primeiro momento, os reinóis ten- brasileiro, conquistando o sertão, vivendo longe do
tarão reassumir a sua atitude de superioridade e pro- Rei. O sertanejo é aquele que vive distante do Rei:
teção. Entretanto, data de meados do século XVII a autônomo, soberano, orgulhoso.
irreparável e irreprimível separação entre pernam- No capítulo 9º, intitulado “O Sertão”, Capistrano
bucanos (“brasileiros”) e portugueses. passa a analisar mais do que a descrever, passa a fa-
Portanto, se o século XVI terminara com uma zer um esboço de história econômico-social-geográfi-
tendência à dispersão e à fragmentação, o século XVII ca-cultural da conquista do Brasil, do seu interior,
terminou com uma tendência não só à integração da pelos brasileiros. A ocupação do interior não se deu
população nativa como à formação de uma nação in- somente após a vitória contra os holandeses. Ela já
dependente. A vitória contra os holandeses foi para vinha se dando desde 1530 com a fundação de
os portugueses uma vitória de Pirro: ganharam, mas Piratininga e com as entradas pelo Tietê em direção
começaram a perder tudo. Se os portugueses tinham ao Prata. A vitória contra os holandeses só revelou ni-
conquistado o litoral, os novos brasileiros conquista- tidamente esta nova identidade nacional. Capistrano
rão o sertão. Os portugueses continuaram a viver e a irá procurar perceber a sua formação longínqua, muito
controlar a vida do litoral; os brasileiros adentraram anterior a este episódio histórico litorâneo, mas de-
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cisivo. Esta vitória foi como uma ponta de iceberg, si- de índios. Eles invadirão as missões para prenderem
nalizou a existência de um mundo histórico invisível, os seus índios. Capistrano não aprecia a história que
mas que durava desde o século XVI. Capistrano mer- conta e analisa e se pergunta: compensará tais horro-
gulhou perto desta ponta de iceberg e desceu às bases res a consideração de que graças aos bandeirantes
dessa “massa de gelo”, para descobrir-lhe o início, a pertencem agora ao Brasil as terras por eles devasta-
profundidade, a espessura, a densidade. De 1654, a pon- das? Eles voltavam a Piratininga com índios prisio-
ta, ele descerá até 1530, a base, quando os paulistas neiros amarrados em coleiras uns aos outros. Eram
começaram a entrar pelo interior do Brasil (BOSI, 1992). vendidos como escravos. As mulheres índias eram es-
São Vicente e Piratininga foram um dos pólos de tupradas, conforme o costume. Os jesuítas tentaram de
onde partiram os brasileiros para a conquista do ser- tudo para que eles poupassem os índios. Em vão. Os
tão. Os bandeirantes iam caçar e escravizar índios. Os jesuítas é que foram expulsos. Os bandeirantes eram
paulistas são sobretudo mamelucos e Capistrano vê vistos como “amansadores”, “pacificadores” de índi-
o povo brasileiro mais como um mestiço de índio e os. Circulavam por todo o Brasil levando a guerra ao
branco. O mestiço de negro e branco é litorâneo e povo de suas mães. Entretanto, alguns se fixaram e
pertence ao mundo português. Ele descreve os ataques passaram de devastadores a colonizadores do interior
bandeirantes aos indígenas e jesuítas e a resistência do Brasil, vivendo com o que o sertão lhes oferecia.
de uns e outros. Os bandeirantes foram terríveis em Outro pólo foi o Maranhão, de onde os brasileiros
suas caçadas. A ação bandeirante já é uma ação da entraram pela Amazônia, fazendo a mesma devastação
gente brasileira, não é mais uma história portuguesa. do indígena. Fundaram-se engenhos, plantou-se algo-
As primeiras ações brasileiras se destacaram pela dão e fumo. Na Amazônia, os brasileiros combateram
violência e brutalidade contra os indígenas. O brasi- holandeses, ingleses e franceses. A penetração da Ama-
leiro continuou a ação colonizadora e cristianizadora zônia foi lenta. Era uma região com forte presença de
do português e usando os mesmos métodos. jesuítas, carmelitas e franciscanos. Fundou-se Belém,
D. Ribeiro escreveu recentemente que os bandei- do Pará. Coletavam os produtos florestais: cravo,
rantes ou mamelucos paulistas foram vítimas de duas canela, cacau, salsa. A Amazônia teve uma prosperi-
rejeições básicas. A dos pais, brancos, com quem dade relativa com a cultura do arroz e do algodão e a
queriam se identificar, mas que os viam como impu- introdução de escravos negros. A população crescia
ros filhos da terra, dos quais somente aproveitavam lentamente. O Maranhão era, no entanto, muito lon-
o trabalho; e do gentio materno, que não valorizava a ge do sul do Brasil e foi preciso criar o Estado do
descendência materna. Não podendo identificar-se Maranhão, em 1621. A comunicação com o Brasil sul
nem com brancos e nem com índios, não tendo an- era feita pelo Parnaíba, mas foi preciso também a
cestrais, portanto, o mameluco cairá na “terra de nin- construção de estradas. Portanto, a partir de Piratinin-
guém”, a partir da qual constrói a sua identidade “bra- ga, os brasileiros desceram até o Prata e subiram até
sileira”. Filho de índia, ele se torna um caçador e a Bahia, passando por Minas Gerais, foram ao Mato
escravizador de índios, de sua gente. “Mameluco”, Grosso e Amazônia; a partir do Maranhão, os brasi-
esclarece Ribeiro, era o nome dado ao escravo árabe leiros entraram pela Amazônia e desceram pelo ser-
treinado para exercer o mando islâmico sobre a gen- tão nordestino. A conquista do território se fez à cus-
te de que foram tirados (RIBEIRO, 1995). Filhos de ta da expulsão, exterminação e escravização do indí-
índias, os paulistas agirão contra seus parentes com gena. Os engenhos de açúcar, o fumo e as roças de
rara violência, serão “capitães-do-mato”, “feitores” mantimentos só vingaram próximo de rios navegáveis.
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Capistrano não aprecia este início da história bra- muito católica e, de vez em quando, recebiam padres.
sileira, que lhe parece tão violenta quanto a história Entretanto, viviam entregues a si. O Estado demorou
que os portugueses faziam. Em 1680, ele afirma, a lei a se instalar com juízes, milícia e administração. O
portuguesa proibia que os índios fossem escraviza- mundo da pecuária era também um mundo de violên-
dos, única solução lógica e justa, se houvesse gente cias, com bandos de bandoleiros, onde a vingança era
bastante honesta e enérgica para fazê-la respeitada comum. Era um mundo de liberdade, sem escravos,
(p.141). Diferentemente de Varnhagen e G. Freyre, semi-povoado, vasto, abundante, familiar e violento.
que viam os jesuítas como pseudo-filantrópicos, Além de partir de São Vicente e Piratininga, de
Capistrano se posiciona francamente ao lado deles na São Luís do Maranhão e ocupar o interior da Bahia,
proteção ao indígena contra a guerra, contra o seu Minas, Goiás e o nordeste com o gado, outro pólo de
extermínio e escravidão. ocupação e povoamento do território brasileiro foram
Um terceiro pólo de ocupação do território brasi- as minas. Foi graças ao gado, por um lado, e à caça
leiro foi a agropecuária. A criação de gado começou do indígena, por outro, que as minas foram descober-
em torno de Salvador e ao longo do Rio São Francis- tas. Não se pretendia achar ouro e pedras preciosas,
co. Aos poucos foi se afastando das margens do rio e mas prata, já que esta foi encontrada em Potosi. E o
adentrando pelos mais profundos sertões da Bahia, Brasil deveria até ser mais abundante em prata se o
Pernambuco, Minas Gerais. Há os “sertões de den- “oriente for mais nobre do que o ocidente”, como
tro”, baianos, e os “sertões de fora”, pernambucanos. acreditavam que fosse. O ouro foi encontrado sem ser
Nas vastas regiões interiores dominadas pelo gado, muito procurado. Os paulistas o encontraram, final-
foi também o mameluco que predominou. São regiões mente, no final do XVIII, nas regiões de Minas Gerais
impróprias para o cultivo. O gado prosperou ali, exi- e Mato Grosso: Ouro Preto, Mariana, Rio das Mortes,
gindo pouco capital, pouco pessoal, fornecendo ali- Rio das Velhas, Paracatú e Cuiabá. Os bandeirantes
mentos para as regiões exportadoras. O conflito com tornaram-se, então, mineiros. Pouco a pouco, tudo era
os índios foi menor, pois o fazendeiro não é nômade enviado para as Minas, vindo de todas as partes do
e caçador de índios. Desde que estes cedessem suas Brasil e da Europa. Houve uma corrida às minas.
terras e não comessem do gado, as relações entre eles Com os crescimento das minas, uma parte do ser-
e os brancos se estabilizavam. Com o gado, caminhos tão do Brasil tornou-se português. O Rei voltou a
novos foram abertos levando ao mais fundo Brasil. controlar o Brasil. Os tributos aumentaram, a circu-
Os brasileiros da pecuária viviam com recursos escas- lação da população foi controlada, a exploração do
sos. Eles só comiam carne, leite, frutas e mel. Faziam ouro disciplinada em favor da Coroa. Na Bahia, por
tudo de couro: portas, camas, cordas, alforjes, mochi- estar mais próxima do litoral, a exploração do ouro foi
las, roupas, malas... O vaqueiro recebia uma cria em proibida. As minas serão um sertão não brasileiro, não
cada quatro crias, depois de quatro a cinco anos de mameluco, mas português, dominado pelo branco e pelo
serviço. Podia com o tempo fundar a sua própria fa- negro e o seu mestiço. Neste sertão mineiro, o domínio
zenda. “Vaqueiro”, “homem de fazenda”, “criador” português tornou-se tão severo que os sentimentos pa-
são títulos honoríficos entre eles. A fazenda tornou- trióticos brasileiros se tornaram mais agudos. Os brasi-
se aos poucos um centro familiar, com grandes e con- leiros, em sua expansão pelo “seu território”, já estavam
fortáveis casas. Nos caminhos do gado para a cidade, acostumados e tinham gostado de ficarem distantes do
onde era vendido, populações se estabeleceram, po- Rei. A sua reaproximação foi tão opressiva que desen-
voados surgiam. Esta população distante era também cadeou os movimentos pela independência.
78 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

No final do século XVIII, a solda que une os di- de açúcar, da produção de fumo, das minas e do gado.
versos grupos que compõem a “nação brasileira” se Ele oferecia os primeiros números sobre o Brasil. Ele
consolidou. A consciência patriótica brasileira se foi logo confiscado pela metrópole, pois estaria di-
aprofundou. O Rei e sua lei opressora e repressiva vulgando para os estrangeiros os segredos do Brasil.
serão contestados em diversos pontos do país, exata- Mas, contesta Capistrano, a verdade é outra: o livro
mente aqueles pontos em que já existia uma popula- ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros, mostran-
ção brasileira assentada, com interesses e sentimentos do toda a sua pujança, justificando as suas pretensões.
próprios, anti-lusitanos: Maranhão, Pernambuco, Confiscado, proibido, o segredo do Brasil chegou aos
Bahia, Minas Gerais, São Paulo. Os triunfos contra brasileiros por outras vias: apareceram exaltações às
os estrangeiros, as proezas dos bandeirantes, a abun- riquezas do país, exaltações à nobreza brasileira, às
dância de gado animando os sertões, as minas de ouro suas elites, exaltações do índio como superior aos
e diamantes e outras pedras preciosas, as riquezas portugueses e negros, exaltações da natureza, da fauna
remetidas à metrópole, o crescimento da população, e flora do Brasil. Por toda parte o segredo do Brasil
afirma Capistrano, influíram sobre a psicologia dos era revelado. A diferenciação em relação ao reinól,
colonos. As descobertas auríferas foram a gota antes gradual, inconsciente e tímida, acelera-se, torna-
d’àgua, vieram completar a obra. Os brasileiros não se mais consciente, resoluta e irresistível. A vitória
se sentiam mais inferiores aos nascidos na metrópole, brasileira seria uma questão de tempo.
não eram mais os humildes mazombos do século XVI. No 10º capítulo, Capistrano trata dos limites do
Tal mudança, os filhos da metrópole não reconheci- território brasileiro. Um “povo novo” precisa de um
am. O reinól é visto, então, como um miserável que território bem delimitado. Serão ainda os portugue-
vem se enriquecer aqui. Começaram os conflitos en- ses que discutirão com os espanhóis e franceses e assi-
tre brasileiros e portugueses. A consciência brasileira narão tratados instáveis, que serão sempre rediscuti-
formou-se lentamente durante 3 séculos. No final do dos. Na região do Prata, espanhóis e portugueses tro-
terceiro século, já era sólida o bastante para ser formu- caram e destrocaram territórios segundo vários tra-
lada e expressa e dar legitimidade à ação emancipa- tados. A negociação do território, dos seus limites, foi
cionista. Os brasileiros se sentiam sustentadores da negociada ainda pelos portugueses. Mas, para defen-
Coroa e expoliados por sua opressão. derem tais territórios, os portugueses tinham um ar-
Em Minas, houve o conflito dos Emboabas (1707/9); gumento quase sempre irretorquível: já tem “gente
em Pernambuco, o conflito dos Mascates (1709/10). brasileira” instalada na Amazônia, no sul e centro-
Capistrano descreve estes conflitos como se fosse um oeste, isto é, o território já foi de fato conquistado,
testemunho ocular. O século XVIII é o século do ocupado e povoado por “gente brasileira”. Os limites
conflito aberto entre brasileiros e portugueses. Entre já estavam definidos concretamente e os tratados só
as agitações sociais, apareceu um livro que agitará os reconhecerão o povoamento já realizado. Será den-
brasileiros ainda mais ao oferecer-lhes argumentos e tro destes limites, agora legitimados pelo direito, que
força para continuarem em sua luta independentista. se instalará o povo brasileiro.
Trata-se do livro Cultura e Opulência no Brasil por No 11º capítulo, Capistrano faz um balanço final
suas Drogas e Minas, do jesuíta André João Antonil, e tenta uma definição geral do povo brasileiro, do seu
que o próprio Capistrano descobriu tratar-se do ana- estado no final do século XVIII. Aqui, “Três Séculos
grama de João Antôni/o Andre/oni L (luquense), es- Depois”, é o título do capítulo, Capistrano fará um
tabelecendo a sua autoria. O livro fala dos engenhos levantamento e radiografia da população brasileira:
José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82 79

número, tipos, repartição, caminhos, atividades, alimen- sistente, sua sensualidade animal!, suportando bem
tações, festas, feiras, roupas, personalidades, costumes, o cativeiro!. Os negros, ele afirma, nunca ameaçaram
infra-estrutura urbana, relações sociedade/Estado, nível a ordem de modo sério – trabalhavam cantando, para
da consciência política. Quanto ao número, a popula- aliviar o peso do trabalho, e bandos de carregadores
ção brasileira já era contada em milhões. Ela se con- negros davam animação às ruas. Os mulatos são mais
centrava no litoral e nas margens dos rios que entra- rebeldes – dentre eles saiam os capangas e assassinos.
vam pelo interior. A maioria é mestiça. A mestiçagem Crescendo em número, “descoloriram” e extinguiram
variando de região para região. No interior, predomi- as distinções de raça. Os brancos eram oprimidos pelo
nava o mameluco; no litoral e minas, o mulato. Os convencionalismo; as crianças, cedo, perdiam toda
negros eram maioria no litoral e, apesar das fugas e vivacidade e espontaneidade. Os reinóis tratavam com
quilombos, eram em menor número no sertão. No sul, desdém a terra e os seus moradores; eram grosseiros,
os brancos eram mais numerosos. Capistrano refere- desonestos, prepostos dos ingleses.
se às diferentes atividades regionais, às diferentes O 11º capítulo, portanto, é um balanço quase com-
dietas. Na Amazônia, extraía-se produtos florestais, pleto do Brasil no final do século XVIII. Ele fala ainda
comia-se peixe e se super-explorava a tartaruga, a da arquitetura urbana, dos modos à mesa, do com-
“vaca amazônica”, o “gado do rio”. Na zona pastoril, portamento das mulheres, da vida social (o ritual da
muita carne e escassez de água, que é salobra, ótima “visita”), das ruas e do inexistente saneamento bási-
para o gado. Bebia-se garapa, comia-se milho verde. co (“cuidavam da limpeza urbana o sol, as chuvas e
Havia festas sertanejas. Capistrano descreve o vestuá- os urubus”!), da indústria cerceada pela metrópole etc.
rio doméstico e domingueiro, a vida das mulheres O Brasil não é ainda independente, mas se inquieta a
solteiras e casadas. Nas Minas havia abundância de aspira sê-lo. Ele está prestes a tornar-se independen-
padres, irmandades; havia o gosto pela música, nas te. Entretanto, Capistrano surpreende o leitor no fi-
cidades. As festas religiosas eram numerosas e tea- nal da sua exaltação da vitória brasileira. Depois de
trais, luxuosas. se mostrar entusiasmado com as expressões do sen-
Capistrano compara o caráter dos brasileiros re- timento patriótico entre os brasileiros, termina a sua
gionais. O mineiro, ele o descreve assim: esbelto, síntese cético em relação ao futuro deste novo povo.
magro, peito estreito, pescoço comprido, rosto alon- Para ele, a vida social não existia, pois não havia so-
gado, olhos negros e vivos; não se apegam ao seu país, ciedade. As questões públicas não interessavam. No
inteligentes, sobrevivem em qualquer ambiente, orgu- máximo se sabia se havia guerra ou paz. É duvidoso
lhoso e afável, brando e cavalheiro. O paulista, assim: que tivessem uma consciência nacional e até mesmo
pequena estatura, cabelo louro, face pálida, olhos capitanial. Algum leitor de livros estrangeiros pode-
indígenas; corajoso, ágil, incansável, vingativo, ria falar de independência, porque soube do caso
franco, colérico e gosta do perigo. Sua cor da pele americano e conhecia a pobreza e fraqueza lastimá-
varia dependendo do grau de mestiçagem indígena/ veis de Portugal. Não se procurava, porém, o meio
branco. Ele descreve ainda o baiano, o goiano, o mato- de conseguir tal independência vagamente conheci-
grossense, o gaúcho. Sobre as cidades coloniais, ele da, tão avessa era a índole do povo a questões práticas
se refere às portuárias, as mais importantes: São Luís, e concretas. Divagavam sobre o que se faria depois
Recife, Salvador, Rio de Janeiro. Nestas cidades li- de conquistá-la por um modo qualquer, acontecimen-
torâneas, o mulato predominou. Os negros eram nu- tos imprevistos, como afinal aconteceu. Como em
merosos, com sua alegria nativa, seu otimismo per- todas as revoltas anteriores, não se sabia o que se fa-
80 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

ria com o poder na mão. Enfim, ele conclui, no iní- Capistrano expressará melhor este seu ponto de
cio do século XIX, a população brasileira era consti- vista em um outro texto, Os Caminhos Antigos e o
tuída por eram cinco grupos étnicos, ligados pela Povoamento do Brasil. Ali, ele constata e pergunta:
comunidade ativa da língua e passiva da religião, no princípio do século XIX, o Brasil já estava ligado
moldados pelas condições geográficas de cinco regi- por meio de vias terrestres e fluviais – chegou-se a
ões diferentes, e tendo pelas riquezas materiais grande formar um conjunto, uma nacionalidade? Para ele, o
entusiasmo – eis a que se reduziu a obra de 3 séculos. sistema colonial produzia a divergência interna, o
Final paradoxal! Ao longo do texto tem-se o elo- particularismo. O centro ficava além-mar. Somente
gio da expansão e conquista do território brasileiro depois da Independência é que começou o processo
pelos brasileiros. Apesar de ser difícil distinguir os de unificação, a convergência das partes. Apesar das
interesses e sentimentos dos brasileiros e portugueses mudanças realizadas, este processo se deu natural-
no período colonial, Capistrano esforça-se por defi- mente, em uma evolução gradual, lentamente. Após
nir uma “brasilidade”, apesar da dominação portugue- a Independência, a nação ficou tão cimentada em sua
sa e contra ela. “Brasilidade” que começa com a fun- união que desafiou as crises da Regência e se conso-
dação de São Vicente e Piratininga, que cresceu com lidou ainda mais no Segundo Reinado. A idéia de uma
as bandeiras, com a ocupação da Amazônia, com o nação brasileira realizou-se, finalmente, mas ela este-
gado e as minas. “Brasilidade” que se exaltou duran- ve perto de esvair-se como em um sonho!
te o século XVIII e se expressou através de rebeliões Seu final paradoxal é, no entanto, lúcido: os brasi-
diversas, sangrentas. “Brasilidade” de uma popula- leiros, e pelas razões por ele apontadas, não se sentiam
ção numerosa, mestiça, com os seus modos próprios em condições de assumir o país plenamente, isto é,
de viver e pensar, com as suas atividades econômi- revolucionariamente. Eles viveram os três séculos
cas específicas, adaptadas a regiões diversas. Apare- coloniais na dispersão, em muitos engenhos, minas,
ceu até um livro que formulava precocemente esta fazendas, cada um destes núcleos econômico-sociais-
“brasilidade” e que foi apreendido por esta razão. E, culturais com sua própria lei e seu próprio senhor.
no final, um ar de decepção, de malogro: patriotas Entretanto, esta idéia da “revolução brasileira”, que
incapazes de produzir a sua própria independência! Capistrano concebeu e descreveu no período colonial,
É como se a conclusão que ele apresentara para o quando nascia, será tematizada por todos os historia-
século XVI – um Brasil dominado por forças centrífu- dores posteriores a Capistrano, que se inserem na li-
gas, divergentes – valesse também para o final do nha aberta por ele da “redescoberta do Brasil”. Po-
XVIII. Capistrano talvez esperasse mais desse povo deria ter sido acelerado o tempo histórico do Brasil,
que soube acompanhar ao longo de 3 séculos; que ele pelos brasileiros, no final do século XVIII, produzin-
fosse sujeito de fato da sua autonomia, que ele fosse do uma verdadeira independência econômico-social-
um sujeito historicamente eficaz. O final revela uma mental, além de política? Seu ceticismo revela a com-
expectativa não realizada, um esforço frustrado, a preensão dessa impossibilidade histórica. É um senti-
“revolução brasileira” não passou de um espírito e que mento posterior à exaltação que se frustrou: uma re-
não se encarnou, não deu nascimento a um novo cusa apaixonada, decepcionada, do sonho. E depois,
mundo histórico. Capistrano passa do elogio à vitória uma constatação do que de fato ocorreu, a vinda da
brasileira a um tom crítico em relação ao novo povo Corte para dentro e a consolidação da unidade brasi-
brasileiro que se constituía – ele esperava mais ação, leira em termos “luso-brasileiros”, aceitando-a e legi-
mais vontade e determinação, mais eficácia histórica. timando-a. Era esta a única revolução independentista
José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82 81

possível? Pelo menos esta, felizmente, se realizou e ocupação do interior; o sujeito da história do Brasil
a nação brasileira se concretizou antes de esvair-se não é mais o europeu branco, cristão e súdito do Rei,
em um sonho. Seu sentimento parece ter passado por mas o brasileiro mestiço, ainda cristão, mas sem uma
três fases: 1º) o elogio da rebelião, da luta e da vitó- expressão política clara; não faz uma história da cons-
ria brasileira durante três séculos; 2º) decepção e frus- tituição da identidade brasileira em moldes europeus,
tração com a não concretização do que parecia ma- mas busca as identidades brasileiras no interior, no
duro, a Independência feita pelos patriotas brasilei- sertão e nas rebeliões. Finalmente, o abismo que os
ros; 3º) a aceitação e legitimação da “Independência separa está na concepção do tempo histórico do Bra-
possível”, liderada pelo Estado português, pela Fa- sil. Varnhagen não distinguiu bem os períodos da his-
mília Real Portuguesa, pois, assim, pelo menos, a tória brasileira e se perdeu em inúmeros fatos domi-
unidade territorial e nacional foi preservada. nados pelo sentido maior do elogio da colonização
Capistrano é, enfim, um anti-varnhageniano. Nos portuguesa. Este sentido maior nunca foi seriamente
anos 1900, a história que se faz no Brasil começa a contestado e Varnhagen não percebeu as “mudanças”
diferenciar-se dos “quadros de ferro” do IHGB e de na história do Brasil. Capistrano elaborou a seguinte
Varnhagen. Capistrano ainda não faz uma história periodização da história do Brasil:
plenamente econômico-social-mental, mas não faz
também mais somente uma história político-adminis- 1500-1614 – ocupação do litoral, guerra contra os franceses,
trativa e biográfica. Para A. Canabrava, ele se coloca escravização do indígena;
1614-1700 – o litoral povoado, começa a internalização pe-
entre duas concepções de história: a história como
los rios;
narrativa do empírico, que tem em Varnhagen seu
1700-1750 – dominam as minas;
representante maior, e a história no quadro das ciên- 1750-1808 – consolidação do sistema colonial: municipali-
cias sociais, que se fará no Brasil pós-1930. Capis- dades anuladas, indústria proibida, jesuítas expulsos, tensão en-
trano representaria um elo entre a geração do século tre colonos e reinóis;
XIX/IHGB e a geração do século XX/Universidades 1808-1850 – decomposição do sistema colonial;
(CANABRAVA, 1971). 1850 – período centralizador, imperialista ou industrial: época do
Capistrano se aproxima ainda de Varnhagen nos vapor, a escravidão agoniza, jornalismo vivo. (CAPISTRANO, 1975)

seguintes pontos: faz ainda uma história factual, re-


latando os feitos dos portugueses em sua conquista, Diferente de Varnhagen, Capistrano duvida da
uma história cheia de nomes e datas, de eventos con- tradição, faz uma crítica radical da memória. A ver-
tados em um ritmo quase diário. Isto vale sobretudo dade que procura não consiste na repetição do pas-
para os primeiros capítulos de Capítulos de História sado: a verdade não é o que o passado ensina e obri-
Colonial. Ele dá ênfase à documentação escrita e bem ga. (ARAÚJO, 1988) Seu ponto de vista inovador,
criticada e seu estilo é ainda descritivo e narrativo. ao mesmo tempo constrói um novo passado e des-
Mas, diferencia-se enormemente de Varnhagen: confia do passado estabelecido, oficial. O método
não faz mais uma história oficial, ligada ao Estado; crítico quer corrigir o passado, rever verdades con-
sua história não é só político-administrativa, mas tam- solidadas. E abrir um novo futuro, sustentado por um
bém social e cultural. E a diferença maior: não faz novo passado: o Brasil nação não será oficial, o su-
um elogio da conquista e da colonização portuguesa, jeito da história do Brasil não é o Estado Imperial,
mas da conquista e colonização do Brasil pelo brasi- mas o “povo brasileiro”, em sua diversidade e uni-
leiro mestiço; não relata a conquista do litoral, mas a dade. No passado, Capistrano põe ênfase na vida
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desse povo, por um lado, ativo na ocupação do ter- ção da independência que no passado o Brasil aspi-
ritório, por outro, passivo e ineficaz na produção da rou mas não realizou. O futuro do Brasil será brasi-
verdadeira independência; no futuro, ele espera a leiro, descontinuando o passado português. A ver-
verdadeira Independência... Capistrano é um his- dade histórica se oporá a este passado tradicional
toriador da mudança, da descontinuidade entre o português e servirá à construção do futuro novo,
passado e o futuro do Brasil: o futuro será a realiza- “brasileiro”, à idéia da “revolução brasileira”.

Bibliografia

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REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

MANOEL BOMFIM E A IDEOLOGIA DO


IMPERIALISMO NA AMÉRICA LATINA

José Maria de Oliveira Silva


Departamento de Ciências Sociais – UFS

RESUMO: Este artigo discute divergências entre intelectuais brasileiros sobre a política norte-americana para a América
Latina a partir das críticas de Manoel Bomfim ao imperialismo norte-americano e europeu. Analisa sua concepção sobre
a Doutrina Monroe e a idéia de solidariedade entre os países latino-americanos como fator de resistência.

ABSTRACT: This article examines the divergences among Brazilian intelectuals about American foreign policy for Latin
America considering Manoel Bomfim’s criticism against American and European imperialism. It discusses his conception
of the Monroe Doctrine and of the Latin American countries’ solidarity as a factor of resistance.

PALAVRAS-CHAVE: Imperialismo, Nacionalismo, América Latina, Manoel Bomfim, Doutrina Monroe

KEYWORDS: Imperialism, Nationalism, Latin America, Manoel Bomfim, Monroe Doctrine

Nós outros, argentinos, peruanos, brasileiros,


chilenos – que somos dos chamados latino –
americanos nunca pensamos em América Lati-
na (BOMFIM. O Brasil na América, 1929, p. 11).

Na primeira parte de sua obra sobre a América tas pelos governos, economistas, sociólogos e jorna-
Latina (1905) – “A Europa e a América Latina” – o listas europeus como localidades com muitas riquezas,
escritor sergipano se referia criticamente às represen- um continente extenso, mas que estavam sujeitas à uma
tações ideológicas comuns na imprensa européia so- política de crises violentas, lutas armadas, com um
bre as Repúblicas latino-americanas. Elas eram vis- povo rebelde e ingovernável e estadistas desonestos.
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Apoiando-se numa visão racista e, ao mesmo tem- que nasciam na América continuavam a ser vistos co-
po, ameaçadora, a ideologia imperialista afirmava ser mo inferiores racial e culturalmente.
inconcebível que “milhões de preguiçosos, mestiços No contexto de uma afirmação de uma identidade
degenerados, bulhentos e bárbaros se digam senhores continental, a linguagem americanista de Manoel
de imensos e ricos territórios” enquanto que a Europa Bomfim em muito se assemelhava a de José Martí
‘rica’, ‘sábia’, e ‘civilizada’ se comprimia em peque- contra a opiniões do jornal The Manufaturer que, nes-
nos territórios” (BOMFIM, 1905, p.1-4). se período, retratava os cubanos, estabelecidos na
Manoel Bomfim era natural de Aracaju (1868). América do Norte, como um “povo de vagabundos
Após realizar seus estudos iniciais na sua terra natal, míseros ou pigmeus imorais”, “inúteis verbosos”, in-
ingressa na Faculdade de Medicina da Bahia, transfe- capazes de ação”, “povo efeminado” (MARTI, apud
rindo-se daí para curso semelhante no Rio Janeiro. RETAMAR, 1985, p.52-57).
Participante das lutas políticas de sua época desde estu- O livro do escritor sergipano, publicado em 1905,
dante, colabora no Correio do Povo, dirigido pelo seu A América Latina, ao contestar a visão pessimista e
amigo Alcindo Guanabara. Como intelectual, adota os preconceitos racistas sobre o Povo e a Nação ameri-
postura radical no enfrentamento de questões canden- canos aparecia aos olhos de nacionalistas brasileiros
tes nos inícios da República, sobretudo, com a crítica como “uma resposta ao conceito do estrangeiro so-
ao racismo (e seus desdobramentos, entre os quais, o bre nós” (VICTOR, 1905, p.610-612). Incentivado
imperialismo) e em defesa da educação popular. Ques- pelo ideal do movimento jacobino “A América para
tões que serão retomadas nas suas diversas obras sobre os americanos”, que aparecia como epígrafe do jor-
assuntos educacionais, e, sob viés nacionalista, na nal desse agrupamento político no Rio de Janeiro, o
trilogia publicada nos anos vinte, O Brasil na América, debate sobre o imperialismo dividia as opiniões de re-
O Brasil na História, O Brasil Nação. publicanos, monarquistas, liberais, socialistas, anar-
Para Bomfim, a condenação do povo latino-ame- quistas, que muitas vezes, manifestavam opiniões
ricano tinha uma dupla causa: uma causa intelectual, idênticas sobre a Doutrina Monroe, o Panamericanis-
fruto do desconhecimento da realidade latino-america- mo e os monopólios estrangeiros. Havia um certo
na, de sua história, do seu passado colonial; e uma silêncio, entretanto, segundo Bomfim, entre intelectu-
causa interesseira visando a conquista do território. A ais e políticos nacionalistas com relação às possibili-
imagem das repúblicas latino-americanas se asseme- dades de unidade entre os povos da América Latina.
lhava a do estudante “indisciplinado e relapso”, à quem Segundo Leroy Beaulieu, um dos primeiros a
o mestre escola chamava constantemente atenção: teorizar sobre as noções de colônias de povoamento
e colônias de exploração que serviu de modelo para
Se você me ouvisse, se não fosse um malandro, faria isto e mais várias interpretações sobre os diferentes sistemas
isto e isto (...) mas você não presta para nada (...) . Nunca fará nada! coloniais (NOVAIS, 1977, p.12-13) e defensor do
Nunca saberá Nada! Nunca será nada! (BOMFIM, 1905, p.2-3).
neo-colonialismo francês na África, o perigo para a
América Latina não estava na possibilidade de uma
Embora o primeiro aspecto, a causa intelectual, conquista européia, mas era representado pelo cresci-
não fosse evidente, pois o autor desconhecia a grande mento da imigração e capitais da América do Norte.
curiosidade e as contribuições de naturalistas, viajan- Para enfrentar essa ameaça, os países latino-ameri-
tes e exploradores estrangeiros do século passado, as canos deveriam manter a ordem interna (uma vez que
imagens reafirmavam a ideologia do colonizador: os a instabilidade democrática era freqüente), a paz en-
José Maria de Oliveira Silva / Revista de História 138 (1998), 83-92 85

tre todas as Repúblicas, aprofundando os relaciona- O México deprime, oprime e tem por vezes, invadido a
mentos comerciais e financeiros com a Europa Guatemala, que tem sangrentíssimas guerras com a república do
(LEROY-BEAULIEU, 1902, p.305-306) Salvador, inimiga rancorosa de Nicarágua, feroz, adversária de
Honduras, que não morre de amores pela República de Costa Rica
Por outro lado, o Brasil, durante todo o século
(...). A Colômbia e a Venezuela odeiam-se de morte. O Equador é
XIX, não participara dos vários Congressos sobre a
a vítima, nunca resignada, ora das violências colombianas, ora
unidade da América Latina. Algumas explicações tra- das pretensões do Peru. E o Peru? Já não assaltou a Bolívia, já
dicionais sobre esse isolamento assinalam que era de- não se uniu depois a ela numa guerra injustíssima ao Chile? E o
vido à forma monárquica do regime, às diferenças da Chile, já não invadiu duas vezes a Bolívia e o Peru, não fez um
língua, às ligações da família real com a Áustria, aos horroroso morticínio de bolivianos e peruanos na última guerra,
problemas de limites e à escravidão. Para alguns his- talvez a mais sangrenta deste século? E o Chile, não tem somente
toriadores, fatores geográficos ou étnicos tinham afas- estes inimigos: o seu grande adversário é a República Argentina
(PRADO, 1980, p.18-19).
tado a possibilidade de uma política de unificação do
Continente (NORMANO, s.d., p.148-149). Uma das
tentativas em que se discutiu o processo de unifica- Não era de se estranhar, portanto, que as elites
ção no século passado deu-se por iniciativa de libe- políticas brasileiras e mesmo alguns intelectuais de
rais chilenos, quando foi criado a União Americana, tendências socialistas como Lima Barreto e Euclides
logo após a intervenção francesa no México (25 de da Cunha se sentissem “envergonhados” quando o Brasil
maio de 1862). O objetivo inicial era organizar socie- era comparado no estrangeiro com uma “República dos
dades patriotas nos vários países hispano-americanos, Caudilhos” da América hispânica (SEVCENKO,1985,
divulgar o processo de independência através de cor- p.45). O primeiro, redigindo um rascunho de carta a
respondências, ensaios e outros documentos e lutar Rui Barbosa em 25 de agosto de 1909, afirmava:
pela união desses Estados. Estabelecendo-se por meio Queira, Senhor Conselheiro Rui Barbosa, aceitar
de uma Junta, além do Chile, outras instituições simi- os meus parabéns e o voto ardente que faço pela vitó-
lares surgiram na Bolívia, Peru, México. ria do seu nome nas urnas.
Para o autor da América Latina a política externa É em nome da liberdade, da cultura e da tolerância,
brasileira durante o Império tinha sido anti-america- que um “rôto” como eu, se anima a lhe declarar tão gran-
na e imperialista. Nesse sentido, crítica o imperialis- des sentimentos de suas ambições políticas, que consis-
mo brasileiro com o envolvimento na Guerra contra tem simplesmente em não desejar para o Brasil o
o Paraguai como um “crime” contra o povo america- regímen do Haiti, governado sempre por manipansos de
no (BOMFIM, 1931, p.305, v.1). No entanto, com a farda, cujo culto exige sangue e violência de tôda a or-
emergência de tantas guerras, envolvendo os países dem, Isaías Caminha (BARRETO, 1961, p.194)
do Continente, não era um contra-senso pensar na A solidariedade sul-americana aparecia como um
possibilidade das nações americanas viverem como sonho irrealizável e “perigoso”. Como o Brasil, per-
“irmãs”? O “inimigo” externo parecia a vários inte- guntava o próprio Euclides da Cunha, poderia se ali-
lectuais desses países que estava mais próximo, nas nhar com países mergulhados em conflitos e revoltas,
fronteiras, e não na Europa. Uma visão que Eduar- sem perspectivas de progresso, como era o caso do
do Prado, escrevendo nessa época (1893), explora Paraguai “convalescente”, da Bolívia “dilacerada
quando afirma que a fraternidade americana era uma pelos motins e pelas guerras”, ou ainda com o Uruguai e
“mentira”, em função das “lutas” e dos conflitos com o Peru? (CUNHA, 1975, p.109). A solidariedade
entre estas nações: Continental, à qual Bomfim ingenuamente reconhecia
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como sendo um dos fatores de resistência à qualquer in- progresso e a sua raça para garantir a Doutrina
vasão estrangeira, era anulada não só pelos conflitos bé- Monroe na América do Sul (BANDEIRA, 1978, p.171).
licos entre esses países e pressões das grandes potências, Nos Congressos pan-americanos a imagem da “amea-
mas também por uma visão cultural homogeneizadora ça” aos países do sul era substituída pela linguagem
que expressava sentimentos questionadores sobre a soli- diplomática de Washington, que por meio de tratados e
dariedade entre os latino-americanos. promessas enfatizavam os compromissos da Doutrina
Desde meados do século passado, os movimen- Monroe e o espírito pan-americano de “ideais comuns
tos de unidade americana não obtém sucesso a nível e aspirações comuns” (LIMA, 1971, p.517; 1953).
governamental. A Argentina, que vangloriava-se de Na primeira Conferência Pan-americana, realiza-
possuir cerca da metade dos recursos econômicos da da em Washington sob a presidência de Blaine, o
América do Sul e “sentir-se européia e não america- Chile não quis participar temendo discussão sobre os
na”, aproximava-se cada vez mais dos países europeus incidentes com o Peru. Até 1899, data do primeiro
(sobretudo da França, Espanha, Itália, Alemanha), ao congresso pan-americano, os Estados Unidos já ti-
mesmo tempo em que, incentivada pelos investimen- nham transformado Porto Rico numa colônia, toma-
tos ingleses, não pensava numa política de unidade do posse da região do Caribe, Cuba tinha ficado su-
com os outros países sul-americanos, mas na hegemo- jeita ao direito de intervenção nos seus assuntos. Além
nia sobre o Continente (NORMANO, s.d., p.154). disso, através do Tratado de Hay-Pauncefote os Es-
Alguns escritores argentinos, bastante conhecidos, tados Unidos asseguraram o direito a um canal atra-
como Alejandro E. Bunge e José Ingenieros, defen- vés do istmo, motivando a “revolução local” e a sepa-
diam a liderança de seu país frente à seus dois rivais, ração do Panamá na Colômbia. No outro extremo, os
o Brasil e o Chile, com argumentos de que o clima e americanos expandiam seus interesses para a região
a raça eram empecilhos ao primeiro, e, o pequeno ter- do Oriente. Anexavam as Ilhas do Havaí, as Filipinas,
ritório e os interesses voltados para o Pacífico impedi- enviando ainda tropas para ajudar as legações de Pe-
am a hegemonia chilena no Continente. quim na guerra dos boxers.
Ao publicar as estatísticas sobre o crescimento Para “assegurar a paz no hemisfério ocidental”,
argentino para o ano de 1906, o jornal La Prensa como falava Theodore Roosevelt, os Estados Unidos
destacava argumentos sobre a superioridade nacional. desde a guerra com a Espanha até os anos de 1903/
Contrapondo-se ao maior território do Brasil, afirma- 1904 desenvolveram uma política agressiva quanto a
va que este fator era compensado “...pela terra mais América Latina (PERKINS, 1964; PEREYRA, 1969).
rica dos Pampas, pelo clima argentino mais salubre, Com o conflito Venezuelano, que serve a BOMFIM
por um número maior de imigrantes europeus e um como ponto de partida para o seu questionamento
índice mais rápido de desenvolvimento econômico da sobre a Doutrina Monroe, o governo americano esta-
área do Prata”. Além disso, a Argentina possuía “mais beleceu um Novo Corolário aos princípios de 1823 e
estradas de ferro, mais linhas telegráficas, mais na- tornava pública a política do big-stick. Nela vinha
vios de guerra e mais comércio do que o seu maior expressa uma nova postura com relação aos países
vizinho” (BURNS, 1978, p.390). americanos: as nações que cumpriam com suas obri-
Dois anos antes, sentimentos idênticos tinham gações e compromissos políticos e sociais nada teriam
sido expressos pelo presidente Theodore Roosevelt a temer de uma possível interferência norte-america-
com objetivos de melhorar as relações com a Argentina. na. As que tinham um “mau procedimento”, gover-
Ela era na sua visão a “Nação eleita” devido ao seu nos desonestos, poderiam forçar os Estados Unidos
José Maria de Oliveira Silva / Revista de História 138 (1998), 83-92 87

a intervirem. Com isso, atribuía-se à nação americana pólo, os vales profundos dos Andes, as planuras do amazonas, a
o papel de polícia de todo o hemisfério ocidental vastidão dos pampas e o infinito dos mares. Ele queria que o bico
(LEUCHTENBERG, 1976, p.158; BELLOTO e adunco daquele pássaro apocalíptico rasgasse os inimigos, e que
as garras colossais se apoderassem de todo o continente de
CORRÊA, 1979).
Colombo. Blaine no poder, era uma ameaça para toda a América
Reservando-se o direito de intervenção nos paí-
(PRADO, 1980, p.90-91).
ses latino-americanos, em função de sua “anarquia”
social e política, o Corolário Roosevelt fez crescer os Do ponto de vista econômico, um dos fatores que
temores de uma possível invasão do Continente. impedia a expansão da ideologia pan-americana e a
Quando aplicado pela primeira vez em 1905 na Repú- hegemonia norte-americana na região eram os gran-
blica Dominicana o big stick, obrigou o governo lo- des investimentos britânicos. No período de 1885 a
cal a assinar com os Estados Unidos um protocolo em 1913 cerca de 60% desses investimentos dirigiam-se,
que responsabilizar-se-ia pela coleta dos direitos adu- especialmente, para o Brasil e a Argentina (que teve
aneiros e pagamentos dos credores, mantendo 45% duplicado os seus empréstimos a partir de 1895), de
para as despesas com a administração pública. acordo com a Tabela I.
As várias ações anteriores de desembarque de tro-
pas para a proteção dos interesses norte-americanos na A rivalidade com a Argentina, acabou motivando
Nicarágua (1894, 1896, 1898), no Panamá (1895, 1903), no país uma maior aproximação e aliança com o go-
em Cuba (1898), Colômbia (1902), Honduras (1903), e verno americano. Em 1886 o senador Frye apresenta-
a tomada de Porto Rico (1898), Nicarágua (1900), Cos-
ta Rica (1900), e a imposição da Emenda Platt, permi-
Tabela I
tindo a intervenção armada em Cuba (1902), evidenci-
Investimentos Britânicos na América Latina no perío-
avam ainda mais aqueles temores (SODRÉ, 1987).
do de 1885 a 1913.
De um modo geral, eram poucos os escritores e
políticos brasileiros que criticavam os avanços do Ano América Latina Brasil (milhões Brasil (%) Argentina
(milhões de Libras) de Libras) (%)
imperialismo norte-americano naqueles países. Em
1885 246,6 47,6 19,3 18,6
1894 o governo brasileiro erguia no Rio de Janeiro
um monumento a James Monroe e apreendia o livro 1895 552,5 93,0 16,8 34,6
de Eduardo Prado, A Ilusão Americana. Tais fatos
ampliam a polêmica sobre a Doutrina Monroe. Nacio- 1905 688,3 122,9 17,9 36,8

nalista, contrário às aproximações do governo de


1913 1.177,5 254,8 21,6 40,7
Floriano Peixoto com os Estados Unidos, Eduardo
Prado, numa imagem ímpar sobre o pan-americanis- Tabela construída a partir de Sérgio Silva. Expansão Cafeeira e Origens da Indús-
tria no Brasil. São Paulo, Alfa Omega, 1976, p.36-38.
mo de Blaine (Ministro das Relações Exteriores),
desnudava os interesses daquela ideologia: va no Congresso americano um projeto para a cria-
ção da União Aduaneira Americana, sendo no ano
Ele (Blaine, J.M.) imaginava a águia americana pairando de seguinte proposto pelo presidente Cleveland o
polo a polo, com as asas poderosas expandidas. A águia simbóli-
Zollverein ao Brasil. O interesse americano era pene-
ca ele não via protegendo os fracos com a sua sombra, como acre-
trar o mercado brasileiro, superar a concorrência com
dita a ingenuidade de alguns sul-americanos. Ele queria que ela
dominasse, que o seu olhar perscrutasse as solidões geladas do os ingleses e dominar as relações econômicas e co-
merciais (BANDEIRA, 1978, p.137).
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A partir da instalação da República o novo gover- “imprestáveis”, “ingovernáveis” e não tinham condições
no, contrário ao domínio hegemônico da Inglaterra, de serem soberanos, devendo ser tutelados politicamen-
voltava-se para os Estados Unidos, que já era o maior te. Adequando-se ao papel de salva-guarda do hemisfé-
comprador dos produtos brasileiros desde a década rio ocidental, Theodore Roosevelt, como presidente, ao
de 1870. O pan-americanismo tomava corpo, apesar mesmo tempo que pressionava a Colômbia para obter
das manifestações nacionalistas que pregavam a um acordo sobre a fortificação e administração ameri-
expropriação das companhias estrangeiras, a luta con- cana da zona do canal, referia-se aos colombianos como
tra o capital externo. Rui Barbosa, embora criticado sendo “aquelas criaturas desprezíveis de Bogotá”, “es-
pelos positivistas Miguel de Lemos e Teixeira Mendes, ses corruptos idiotas e homicidas” que mereciam uma
transpõe para a Constituição do país elementos da Cons- “boa lição” (LEUCHTENBERG, 1976, p.150).
tituição americana (a começar pela nova denominação Na sua interpretação era uma e mesma ameaça: o
de Estados Unidos do Brasil). Com a consolidação da imperialismo europeu ou o norte-americano. Na críti-
República, ao vencer os monarquistas e as oligarquias ca à Doutrina Monroe, afirmava:
aliadas ao capital inglês, Floriano Peixoto abre caminho
para maior influência dos Estados Unidos. “Proteção” já é meia conquista, e um povo ou uma nação só
A aproximação e o apoio político dos Estados se pode considerar livre e soberano quando por si mesmo se ga-
rante, e é bastante forte para defender-se e bastante caracterizado
Unidos ao seu governo quando da revolta da Armada
e culto para não se deixar assimilar ou eliminar. As nações da
em 1893, produziram dividendos econômicos. O ca-
América Latina não podem aceitar, contentes ou resignadas a ab-
pital americano foi favorecido nas questões tarifárias sorção progressiva da nossa soberania por parte dos mesmos Es-
e nas concessões importantes que permitiram a ampli- tados Unidos (BOMFIM, 1905, p.342).
ação de suas atividades no país (SINGER, 1975). Pas-
sada a fase dos governos militares, de Deodoro e Muito embora, fossem constantes as críticas nos
Floriano, a ideologia do pan-americanismo retraiu, fa- jornais à criação da Embaixada em Washington
ce aos novos avanços imperialistas na América Cen- (1902), esse fato aproxima, ainda mais, o governo bra-
tral e no Pacífico. sileiro dos Estados Unidos. O novo embaixador Joa-
Em fins de 1902 a Alemanha e a Inglaterra bloque- quim Nabuco, que, no passado, durante a intervenção
iam a Venezuela, obrigando-a ao pagamento das dívi- americana em 1893, fora um crítico feroz daquele
das atrasadas. Esse comportamento dos países euro- país, passa a ser um dos mais ardorosos defensores
peus recebeu protestos do Ministério das Relações da Doutrina Monroe (NOGUEIRA, 1984, p.202). Na
Exteriores do Brasil, do Barão do Rio Branco, que carta em que agradece a Graça Aranha as felicitações
cobrou um posicionamento dos E.U.A. No entanto, pela sua nomeação, escrevia:
a Inglaterra e a Alemanha já haviam consultado se-
Ninguém é mais do que eu partidário de uma política exteri-
cretamente o Departamento de Estado americano or baseada na amizade íntima com os Estados Unidos. A Doutri-
sobre a operação, assegurando que não era sua inten- na de Monroe impõe aos Estados Unidos uma política externa
ção a conquista do território. que se começa a desenhar, e, portanto, a nós todos também a nos-
Para Bomfim, o papel de salva-guarda da sa. Em tais condições a nossa diplomacia deve ser principalmente
Grande República não era de interesse das nações feita em Washington. Uma política assim valeria o maior dos exér-
sul-americanas, pois o governo dos Estados Unidos citos e a maior das marinhas (...). Para mim a Doutrina de Monroe
(...) significa que politicamente nós nos desprendemos da Europa
manifestava idêntica opinião à dos europeus. Os sul-
tão completamente e definitivamente como a lua da terra. Nesse
americanos também eram vistos por aqueles como
sentido é que sou Monroista (NABUCO, 1929, p.408).
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Por outro lado, desde que assume o Ministério das princípios da Doutrina Monroe. Alberto Torres, por
Relações Exteriores, Rio Branco atrai para a sua polí- exemplo, inicialmente, era simpático ao pan-ameri-
tica o apoio de vários intelectuais. Além de Joaquim canismo. Colaborando com o Itamarati, no tempo do
Nabuco, destacado para Washington, essa “elite” inte- Barão do Rio Branco, manifestava-se favorável à
lectual era formada por nomes como Alberto Torres, Doutrina Monroe, por entender que algumas nações
Rui Barbosa, Euclides da Cunha, Graça Aranha, americanas, através dos princípios de 1823, estariam
Arthur Orlando, Araripe Jr., Oliveira Lima, Lúcio a “salvo” das potências européias. Defendia, mesmo
Mendonça, Lauro Muller, entre outros (SEVCENKO, como necessário, a intervenção passageira dos Esta-
1985, p.72). No Ministério (1902 /1912), Rio Bran- dos Unidos para evitar o “anarquismo” nos países
co tinha como política associar-se aos Estados Unidos latino-americanos. Por isso, junto com Rui Barbosa,
“em pé de igualdade” para ter o campo livre para combate a Doutrina Drago. Revendo as suas posições
exercer a hegemonia na América do Sul, e, para con- mais tarde, em vários artigos denuncia o pan-
trabalançar o poderio americano, unia-se ao Chile e americanismo e a Doutrina Monroe, atrelando-os à
a Argentina. Essa política pró-americana de Nabuco política de dominação dos países latino-americanos
e Rio Branco foi decisiva para a intervenção brasileira e de hegemonia imperialista (LIMA SOBRINHO,
no Acre, sem que houvesse o impedimento dos EUA. 1968, p.434-450). O imperialismo, nesse caso, apare-
Na 3ª Conferência pan-americana, realizada no ce criticado nos limites do liberalismo reformista,
Rio de Janeiro em 1906, em apoio àquela política, Rio como um fenômeno que deve ser rejeitado pelos pre-
Branco manifestou o desejo de incorporar uma moção juízos causados ao país: a crescente desnacionaliza-
de repúdio dos delegados contra a propaganda anti- ção da economia e a exploração intensiva das rique-
ianque. Sua proposta, redigida por Nabuco, entretanto zas naturais (MARSON, 1979).
não foi apresentada, por faltar unanimidade entre os No entanto, ao contrário do que afirma J. Norma-
delegados (CALMON, 1943, p.90). no sobre o nacionalismo anti-ianque dos intelectuais
Porém, enquanto Oliveira Lima era mais cauteloso latino-americanos, qualificando-o uma simples “rea-
na adesão ao princípio da Doutrina Monroe, critican- ção psicológica” contra os Estados Unidos, caso de
do os excessos de Joaquim Nabuco, Artur Orlando Rubén Dario, Calderon, Manoel Ugarte e devido a
nesse mesmo ano, concordava com este sobre a acei- uma visão pessimista da América Latina, entre outros,
tação do pan-americanismo: a de Bunge, Ingenieros, Calderon, Bomfim, Monteiro
Lobato, Blanco Fombona, Arguedas, podemos dizer
Pan-americanismo, no bom sentido da palavra (...) não quer que no caso do escritor sergipano há também outras
dizer dominação da América do Norte sobre a América do Sul; razões. Nos seus escritos, não se vincula aos pessi-
traduz idéia muito mais nobre e elevada, qual a de articulação das
mistas, que aceitavam como fato dado a ingovernabi-
três Américas em uma vasta federação ou comunhão internacio-
lidade da América Latina e o seu atraso. Sua ideolo-
nal de interesses políticos, econômicos e morais, com o fim de
garantir à civilização futura seu pleno desenvolvimento, levar a gia de emancipação econômica e libertação da voca-
expansão simultânea da economia e da justiça ao coração do ção agrícola do país, aproximavam-no, algumas ve-
mundo inteiro (CALMON, 1943, p.81-82). zes, das teses dos industriais nacionalistas. Críticos
da produção exclusiva do café para a exportação, os
Não se pode dizer também que havia nesse grupo industrialistas, através do Manifesto da Associação
de intelectuais e burocratas do Ministério das Rela- Industrial (1881), redigido pelo médico e parlamentar
ções Exteriores uma adesão permanente e total aos Antonio Felício dos Santos, denunciavam o livre-
90 José Maria de Oliveira Silva / Revista de História 138 (1998), 83-92

cambismo como responsável pela dependência da na- rica Latina. Há uma consciência latino-americana em
ção aos interesses externos. gestação. A América Latina é percebida como o “que
No eixo dessas reivindicações de uma política de não é Europa”, “anglo-saxão”, “norte-americano”. E,
defesa do sistema protecionista como sendo de “bom esta forma de pensar, originária nos inícios do século
senso” para o governo, apelava-se para a moralização XIX, quando intelectuais latino-americanos se opõem
das classes pobres através do trabalho e para as ima- ao colonialismo, se explicita nesse contexto com a
gens do Brasil como “país novo” e com um grande denúncia do imperialismo ianque (BOSI, 1981, p.5).
futuro. O exemplo era os Estados Unidos da América Por outro lado, a política econômica imperialista já
do Norte (MANIFESTO, 1881). Autores como se fazia presente em amplas extensões da região. O ca-
Alcindo Guanabara (a quem Manoel Bomfim dedi- pitalismo alemão se apoderava das melhores terras pro-
caria em 1923 a obra Pensar e Dizer), Barata Ribei- dutoras da Guatemala e do comércio do café; as com-
ro, Ozório de Almeida, Lauro Muller, exploravam a panhias americanas da produção açucareira de Cuba e
idéia de que a miséria do país era fruto não só de sua o governo de Boston estendia o seu império sobre a pro-
economia essencialmente agrícola, mas também da dução de banana na América Central, em Porto Rico,
drenagem para fora da Nação de todas as suas rique- Haiti, São Domingos (HALPERIN-DONGHI, 1972).
zas. Para eles, as medidas governamentais não podi- Na década de vinte o escritor socialista José Mariá-
am ser prejudiciais à sociedade como um todo, como tegui explicava com maior clareza que a existência do
tinham sido as emissões inflacionárias da década de pan-americanismo era algo exclusivamente diplomático.
noventa. O governo deveria estabelecer, sobretudo, A submissão dos intelectuais e do país aos interesses do
uma tarifa alfandegária protecionista, a abolição de capital ianque deviam-se ao predomínio da moeda, das
impostos interestaduais, a melhoria dos transportes técnicas e das mercadorias norte-americanas. Segundo
e redução dos fretes (LUZ, 1975, p.77). ele: “...a mais incipiente perspicácia descobre facilmente
Havia ainda entre os nacionalistas, uma consciên- no pan-americanismo uma túnica do imperialismo nor-
cia, como a manifestada por José Veríssimo, de que a te-americano. O pan-americanismo não se manifesta
política externa americana e a Doutrina Monroe esta- como ideal natural do Continente. Manifesta-se antes,
vam subordinadas aos interesses das grandes corpo- inequivocadamente como um ideal natural do Império
rações econômicas e financeiras. Não tinham ilusões, Ianque” (BELLOTO e CORRÊA, 1982, p.131).
como afirmava Veríssimo, sobre o que já era uma idéia Por outro lado, a imagem de Bomfim sobre o im-
corrente em parcela da intelectualidade latino-ame- perialismo era original, apesar de suas ambigüidades.
ricana, quanto as reais intenções do pan-america- Identificava-o ao “polvo” (“polvo capital”), que se en-
nismo: “A América para os Americanos... do Norte” riquecia às custas das populações atrasadas. A África
(VERÍSSIMO, apud PEREIRA, 1963, p.82). A frase serve-lhe de exemplo, para mostrar a natureza desse
também é citada em Bomfim, retomando os argumen- imperialismo.
tos do escritor Quezada: “Es...una invención norte
americana que, en 72 años, no ha tenido aplicación Para se garantir, trazem governos, autoridades, leis, fuzis, ca-
prática. La América para los americanos se dice, pero nhões e soldados; o braço, o trabalhador será tirado das populações
naturais; a teoria das raças inferiores justificará todas as opressões e
se agrega flegmáticamente del Norte....Esta és la ge-
cativeiros mais ou menos disfarçados, que nos serão impostos.
nuina interpretación” (BOMFIM, 1905, p.13).
Nas raízes do pensamento desses intelectuais na- E, completava o seu pensamento sobre a opres-
cionalistas está presente uma forma de pensar a Amé- são do trabalhador,
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Senhores do Transvaal, os ingleses reconheceram que era “implacável”, como ocorrera na resistência dos para-
preciso obrigar os cafres a trabalhar para eles ingleses, nas mi- guaios ante “mais da metade da América do Sul”, ou,
nas. como fariam? O cafre não se preocupa de riqueza, e despre- dos “jagunços” no Brasil, que resistiram até à morte
za o salário: impuseram-lhe então, um imposto de captação,
(BOMFIM, 1905, p.345). Retomava, desse modo, ao
pesadíssimo, e o cafre para ter a soma é obrigado a trabalhar,
valorizar romanticamente a resistência e as suas formas,
quando não é condenado (BOMFIM, 1905, p.352).
o velho espírito jacobino dos tempos em que (1886) fora
Assim, no âmbito das relações internacionais, a secretário e redator do jornal jacobino República:
nação dominadora não vinha ocupar outras nações
com um “intuito humanitário” ou com o objetivo de Será uma resistência desorganizada, muitas vezes, mas por
isto mesmo permanente, irredutível, garantida pelas condições
trazer-lhes “o bem, a civilização e a paz” (BOMFIM,
gerais de vida, mais propícia do que eram às dos portugueses e
1905, p.352). Por outro lado, nem mesmo as “clas-
espanhóis, investidos pelas hostes de Bonaparte. A organização
ses dominantes” do país seriam beneficiadas com a econômica é tão rudimentar, e a barbária é tal e o clima tão favo-
agressão imperialista, pois, perderiam seus privilégios. rável, que o viver eternamente em guerrilhas parecerá uma
Essa sua visão, que não dava conta das relações des- delícia (BOMFIM, 1905, p.345, grifos nossos).
sa classe com a burguesia imperialista, enfatizava uma
possível aliança nacional contra o invasor: Na sua análise, ainda que enfatize de maneira
romântica o ideal de solidariedade latino-americana
E esta desigualdade não existirá somente para os desgraça- e a resistência ao imperialismo, não desconhecia, por
dos, que serão reduzidos ao trabalho obrigatório, a reclusão por outro lado, as razões sobre a natureza do atraso do
vagabundagem e desterrado de um ponto para outro do território, Continente. Este não era fruto de nenhum dos fato-
arrancados ao meio e aos costumes que estavam adaptados. Não; res apontados pela ideologia liberal e a imperialista:
ela existirá para todos (BOMFIM, 1905, p.353).
“as revoluções freqüentes”, “a instabilidade dos gover-
Embora critique na sua obra O Brasil Nação nos”, “a irregularidade do câmbio”, “a falta de bra-
(1931) a colaboração de classes e o imperialismo ços” (BOMFIM, 1905, p.19). O atraso latino-ameri-
monopolista, em face à possibilidade de uma invasão cano estava ligado ao seu passado, aos “males” im-
estrangeira admitia que a resistência popular acaba- plantados pelo colonialismo metropolitano e preser-
ria unindo a todos, até mesmo “o mais desabusado vados pela ação conservadora das classes dirigentes.
comunista” (BOMFIM, 1905, p.349) que não aceita- Males, que, no contexto atual, reforçam diversas repre-
va o ideal de pátria. A rebeldia, segundo ele, fazia parte sentações da opinião pública européia e norte-americana
da tradição popular e ainda que a dominação se esten- sobre a América Latina como o continente da “miséria”,
desse além das costas marítimas, a luta seria “feroz”, da “fome” e da “doença” (TOURAINE, 1989, p.20).

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REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

O MITO DA CONSPIRAÇÃO JUDAICO-COMUNISTA

Rodrigo Patto Sá Motta


Depto. de História da UFMG
Doutorando em História–FFLCH/USP

RESUMO: O artigo analisa a construção do mito da conspiração judaico-comunista, encarando-o como ponto de interse-
ção entre os movimentos anti-semita e anti-comunista do século XX. A proposta é relacionar o fenômeno às tensões
provocadas pelo processo de modernização e transformação revolucionária das sociedades contemporâneas.

ABSTRACT: The article analyses the existence of a jewish-communist conspiration myth, faced as an intersection point
between XX century’s anti-semitism and anticommunism movements. The aim is to show the links between the myth and
the processes of modernization and revolutionary transformation affecting contemporary societies.

PALAVRAS-CHAVE: História, Política, Mitologia, Anticomunismo, Anti-semitismo

KEYWORDS: History, Politics, Mythology, Anticommunism, Anti-semitism

Introdução
O objetivo central deste trabalho é analisar um fenômeno também poderia ser interpretado, por
aspecto muito importante, porém pouco explorado outro lado, como uma derivação do anticomunismo,
do anti-semitismo, a questão da relação entre os ideário igualmente produzido pelo pensamento con-
judeus e o comunismo. A associação da militância servador. A posição mais adequada, porém, é enten-
revolucionária e do comunismo à figura do judeu – der o mito da conspiração judaico-comunista como
apresentado como artífice máximo do “perigo ver- um ponto de interseção entre anti-semitismo e
melho” – foi um dos desdobramentos mais curiosos anticomunismo, dois fenômenos profundamente li-
e instigantes da pregação anti-semita, tendo levado gados aos desdobramentos do mundo contemporâ-
ao estabelecimento de um construtor mitológico neo. Ao longo do texto analisaremos a emergência
sobre a existência de uma suposta conspiração dos do mito em questão, tentando mostrar que seu
judeus visando instaurar a ditadura comunista. Tal surgimento está diretamente ligado às tensões
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provocadas pelo advento da modernidade e do pro- em seu bojo a divulgação de ensinamentos morais
cesso de modernização. (ELIADE,1972, p.7-13). Outra definição corrente: o
Neste sentido, é de fundamental importância des- mito como pura mistificação, ilusão, camuflagem. Neste
tacar as mudanças vivenciadas pelo anti-semitismo1 sentido, haveria uma incompatibilidade entre mito e
nos últimos cem anos. No século XIX os círculos realidade. Por fim, a concepção atribuída a Georges
reacionários já denunciavam os judeus como instiga- Sorel, mais sensível à compreensão da força das mito-
dores de perturbações sociais e de revoluções, mas a logias nas sociedades modernas. O mito seria uma cons-
questão comunista não estava colocada de maneira trução dinâmica que incitaria à ação, à liberação da ener-
clara. Foi somente no século XX, notadamente após gia social. O exemplo mais óbvio neste caso seria o mito
a eclosão da Revolução de 1917 e dos movimentos revolucionário (GIRARDET, 1987, p.13).
fascistas, que se caracterizou efetivamente a junção Na verdade, o mito político moderno, categoria na
entre comunismo e judaísmo a nível do discurso con- qual se enquadra o nosso objeto de análise, possui ele-
servador, passando a ser disseminado em larga esca- mentos das três definições citadas. É uma narrativa que
la o mito da conspiração judaico-comunista. elabora uma explicação para a realidade social, contém
No decorrer do trabalho faremos uma abordagem uma série de mistificações e propõe um programa de
aprofundada do referido mito, procurando entender ação. A construção mitológica que vamos analisar pro-
sua gênese e desenvolvimento através da análise do cura explicar as transformações vividas na modernidade
discurso e da iconografia responsáveis por sua cons- como tendo sido provocadas por uma conspiração ju-
tituição. Ao final tentaremos responder a duas ques- daico-comunista, clara operação mistificadora da reali-
tões, fundamentais quando se trata de interpretar as dade, e propõe o combate sem tréguas ao judaísmo e ao
mitologias modernas: “a quem ou a que servia o mito” “judeo-bolchevismo”, visando neutralizar a ação malé-
e “como se explica a sua larga aceitação”? fica dos supostos conspiradores.
O mito da conspiração mundial judaica, na realida-
O mito conspirativo, uma tentativa de teorização de, se insere num quadro mais amplo que o explica e
lhe confere significado. No período contemporâneo tor-
Há, basicamente, três conceituações possíveis naram-se correntes mitologias de conspirações políticas,
para Mito: a mais antiga relaciona o conceito a nar- sendo a versão “judaica” apenas uma entre várias.
rativas fabulosas, normalmente sagradas, relaciona- A Revolução Francesa parece ter sido a parteira
das a um tempo imemorial. A narrativa mitológica dos mitos conspirativos, no seu bojo foram engendra-
seria portadora de uma explicação para a origem do dos os primeiros modelos de uma longa série de
mundo e para a ordem social vigente e também traria conluios: a conspiração da fome e a conspiração dos
aristocratas, por exemplo (LEFEBVRE, 1979).
Contudo, os exemplares mais clássicos da mito-
1
Nos ateremos exclusivamente às manifestações anti-semitas logia conspirativa – e de mais fértil disseminação ao
contemporâneas, que deslocam o tradicional argumento religio- longo dos séculos XIX e XX – são a conspiração ma-
so, substituído por considerações de natureza política e ‘racial’.
çônica, a jesuítica e a judaica. Nos três casos, o enre-
De certo modo é redundante falar-se em anti-semitismo contem-
do é basicamente o mesmo, embora mudem as per-
porâneo, pois esta expressão não existia em períodos anteriores.
Ela foi cunhada exatamente para expressar uma realidade nova, a
sonagens e o cenário: tratar-se-ia de conspirações
emergência de um preconceito contra os judeus motivado por secretas, conduzidas por um grupo reduzido de pes-
questões políticas e raciais. soas misteriosas e assustadoras, inspiradas por maus
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desígnios. Ora aos maçons, ora aos jesuítas, ora aos era uma exclusividade dos grupos privilegiados.
judeus, dependendo da versão, era atribuída a respon- Muitos indivíduos de origem humilde também
sabilidade pela condução dos destinos do homem mo- vivenciaram a modernização como perda, encarando-
derno, encarado como mera vítima frente à atuação de a como culpada pelo empobrecimento e aumento da
formidáveis forças secretas e sinistras. Os conspirado- exploração. O fato é que a sensação de mal-estar, o
res, agindo nas sombras e lançando mão de artifícios medo e a insegurança afetaram a largas camadas so-
camuflados, seriam os verdadeiros culpados pelos di- ciais, notadamente no final do século XIX.
versos males vividos no mundo moderno. Obviamen- Seguindo esta linha de análise, podemos perceber
te, o entendimento acerca do mal poderia variar, de- a permanência de um pensamento maniqueísta arcai-
pendendo do ponto de vista dos grupos sociais “emis- co no interior da sociedade moderna. Disseminou-se
sores” ou “receptores” das mitologias, se é que se pode a compreensão de que a existência de uma realidade
estabelecer tal distinção (GIRARDET, 1987). ruim, má, só poderia ser obra das forças maléficas,
Como interpretar a ocorrência de tais fenômenos na sua eterna luta para a conquista do mundo e para a
e, principalmente, como entender a força de persua- destruição do bem. Neste sentido se inserem os mi-
são de tais mitos, demonstrada pelo poder de atração tos conspirativos: os conspiradores seriam agentes
exercido sobre milhões de seres humanos nos dois maléficos, grupos sinistros cuja ação clandestina es-
últimos séculos? Como analisar a surpreendente rea- taria provocando a destruição das boas tradições, dos
lidade de que tantas pessoas, muitas delas integran- bons valores, da boa sociedade e levando à implanta-
tes do mundo da alta cultura, acreditaram (e alguns ção do “reino do mal”.
ainda acreditam), simploriamente, que os males exis- É interessante observar que nos três modelos clás-
tentes no mundo se deviam à ação maligna de um sicos (maçons, jesuítas e judeus) há uma demonização
punhado de conspiradores? explícita ou implícita das personagens. Nas versões
De maneira geral, podemos afirmar que a recor- mais extremadas, os conspiradores são apresentados
rência dos mitos conspirativos se deve a uma reação como pactuantes com o demônio em pessoa, que esta-
à modernidade e ao processo correlato de “desencan- ria dirigindo a ação de seus delegados na terra.
tamento do mundo”. Para vastos setores sociais, a mo- Podemos citar uma historieta muito divulgada nos
dernização e a modernidade desencadearam transfor- meios anti-semitas, elaborada pela primeira vez em um
mações vivenciadas com angústia e medo. Tais mu- romance de meados do século XIX chamado Biarritz.
danças experimentadas pelo mundo contemporâneo Em determinada passagem há a narrativa de um supos-
– urbanização, industrialização, surgimento e forta- to encontro entre líderes das doze tribos de Israel, re-
lecimento de novos grupos sociais, reformas liberais alizado no cemitério de Praga. Após algum tempo de
e democratizantes, alterações no comportamento, etc. iniciada a reunião, tendo falado os principais líderes
– provocaram tensões muito fortes sobre o tecido judeus, surge (à meia-noite, como não poderia deixar
social, levando muitos segmentos, normalmente iden- de ser), para participar do conluio, emergindo de uma
tificados com o status quo anterior, a encararem-nas tumba, o próprio filho das trevas (COHN, 1983).
como negativas. Longe de sentirem as inovações co- Contudo, mesmo no caso das representa ções me-
mo libertadoras e promissoras, perceberam-nas como nos radicais há referências implícitas à presença das
destrutivas e maléficas: estaria ocorrendo um proces- forças malígnas, freqüentemente através de recursos
so de decadência e degenerescência da civilização simbólicos. Assim, por exemplo, os conspiradores são
(WEBER, 1988). Ressalte-se, a reação negativa não normalmente apresentados trajando roupas negras;
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suas reuniões e ações sempre têm uma ambientação te, pelo fato de sua imagem ter sido associada às prin-
sinistra: na calada da noite, em lugares lúgubres como cipais características da modernidade (MAYER,
criptas e cemitérios, lançando mão da camuflagem e 1990, p.278-282).
do embuste; são também associados a rituais tidos Basicamente, foram utilizadas quatro fontes para
como satânicos pelo imaginário popular, como sacri- a análise da construção discursiva do mito da cons-
fícios de vítimas inocentes, algumas vezes de crianças. piração judaico-comunista: os “Protocolos dos Sábi-
A persistência do pensamento maniqueísta reve- os do Sião”, os textos do líder integralista Gustavo
la a resistência à aceitação de um dos principais des- Barroso, o “Plano Cohen” e o livro “Minha Luta”, de
dobramentos da modernidade, o “desencantamento Adolf Hitler.
do mundo”, quer dizer, a compreensão do mundo É importante uma análise mais detida dos “Pro-
como uma obra essencialmente humana, livre da ação tocolos”, em virtude desta obra ter se constituído num
de forças sobrenaturais. Na verdade, a questão é mais dos principais veículos divulgadores do mito. O tex-
complexa. O que temos aqui é uma espécie de com- to foi publicado originalmente na Rússia, nos primei-
promisso entre a “mentalidade” arcaica e a moderna ros anos do século XX. No entanto, só ganhou noto-
(TAGUIEFF, 1992, p.17-38). Há a permanência do riedade, no interior do Império Czarista, após a ocor-
maniqueísmo, da divisão rígida entre bem e mal, do rência da Revolução de 1905, e, em âmbito mundial,
entendimento das forças malignas como atuantes e na seqüência da I Guerra e da Revolução Bolchevique.
responsáveis pela ocorrência de coisas ruins. Porém, Tal fato se deveu ao conteúdo do texto, supostamen-
o mal é humanizado, é personificado em determina- te profetizador de catástrofes relacionadas a guerras
dos grupos humanos bem concretos e palpáveis, e e revoluções.
como tal poderia e deveria ser combatido. Não há dúvidas atualmente quanto ao fato dos “Pro-
De uma maneira geral, portanto, a elaboração e o tocolos” serem uma falsificação, provavelmente ela-
apelo popular dos mitos conspirativos podem ser en- borada por agentes da polícia secreta czarista, com o
tendidos como decorrência das tensões provocadas intuito de combater as idéias liberais e revolucionári-
pelo advento da modernidade. O mito da conspiração as que grassavam na Rússia naquele momento. A fal-
judaica mundial deve ser interpretado como parte deste sificação foi comprovada na década de 1920 por um
quadro mais amplo, embora provavelmente tenha se repórter do jornal The Times, que descobriu ser a obra
constituído na versão mais influente e, certamente, na uma adaptação de um livro do francês Maurice Joly,
de mais conhecidas e terríveis conseqüências. escrito na década de 1860 (ROSENFELD, 1976).
Vejamos o argumento do livro, para tornar com-
Análise do discurso preensível seu intuito conservador e para perceber sua
inverossimilhança. O texto é apresentado no formato
O anti-semitismo é uma realidade paradoxal. de uma série de conferências ou discursos proferidos
Constituiu-se no bojo da modernidade, mais precisa- por um suposto sábio judeu dirigindo-se a outros ele-
mente, no período contemporâneo, tratando-se, por- mentos de alta estirpe judaica. Os diálogos vão reve-
tanto, de um fenômeno eminentemente moderno. lando, aos poucos, a existência de uma vasta conspi-
Contudo, sua inspiração básica está relacionada ao ração, dirigida por sábios do Sião e voltada para o
temor e às tensões desencadeadas pela emergência do domínio do mundo. O plano judaico vinha sendo sis-
mundo moderno. Como veremos na conclusão do tematicamente colocado em prática havia muitos sé-
texto, o ódio ao judeu é explicado, ao menos em par- culos e aproximava-se agora o momento de sua con-
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clusão, quando a civilização baseada nos valores cris- Em suma, atribuía-se aos judeus a culpa pela des-
tãos seria finalmente destruída e estabelecido o reino truição do mundo tradicional, baseado nos valores do
de Israel. cristianismo e da nobreza. Evidentemente, destaca-se
A revelação contida nos “Protocolos” era espetacu- neste discurso um forte acento conservador, revelado
lar: as grandes mudanças sofridas pelo mundo europeu pela demonstração de um medo profundo em relação
nos últimos séculos, que estavam lentamente destruin- às transformações associadas à modernidade e um forte
do as bases da sociedade tradicional (leia-se cristã), pro- saudosismo em relação ao Ancien Regime.
vocando transformações sociais intensas e o questiona- Mas, qual seria a motivação a impulsionar a obra
mento dos valores estabelecidos, não se constituíam num destrutiva do judaísmo? A explicação se encontraria
processo gratuito. Havia uma “mão oculta”, uma força em seu desejo de dominar o mundo. Os judeus preci-
sinistra condutora de todos aqueles acontecimentos ti- savam destruir as bases da civilização cristã para tor-
dos como nefastos. Na verdade, a destruição do mundo nar possível a implantação de seu reinado, que pas-
tradicional e a conseqüente emergência da modernidade saria pelo domínio completo e pela escravização da
teriam sido planejadas e executadas sub-repticiamente humanidade. A conspiração judaica, na essência, se-
pela conspiração judaica. ria motivada por intenções maléficas, conduzida por
O texto atribuído aos supostos sábios judeus de- forças do mal.
monstrava que a conspiração era responsável, entre Voltemos, brevemente, à discussão empreendida
outras coisas: no item anterior: os mitos conspirativos são inspira-
dos por uma visão maniqueísta da realidade, pela
.pela corrupção das mentes dos jovens através da divulgação crença na existência de forças diabólicas empenha-
do ensino subversivo; das em fazer o mal. A ansiedade causada por proble-
.pela destruição da família e da Igreja;
mas concretos, associada ao medo da mudança e ao
.pelo estímulo à procura por vícios e luxo;
temor em relação ao futuro, torna viável e atraente a
.por criar distrações nocivas voltadas para as massas, princi-
palmente jogos e competições esportivas; idéia de que tal realidade negativa só poderia ser obra
.pelo enfraquecimento dos corpos através da disseminação de espíritos maléficos e, no limite, demoníacos.
de vírus de várias enfermidades; Podemos passar agora à análise do vínculo entre
.por criar o descontentamento universal e o ódio entre as classes; anti-semitismo e anticomunismo, aproximação ope-
.pelo despojamento da aristocracia de suas terras e tradições; rada pelo discurso do mito conspirativo entre a ação
.pela desmoralização das classes superiores e dos religiosos; judaica e a comunista. Nos “Protocolos dos Sábios
.por levar a indústria a esgotar a agricultura;
do Sião” a questão comunista não está colocada de
.pelo estímulo a todas as utopias impraticáveis;
forma sistemática. Acusa-se os judeus de serem os
.por envenenar as relações entre os povos;
.pela concessão do sufrágio com o fim de entregar o poder a responsáveis pelo ódio entre as classes, pelo estímu-
incapazes; lo às utopias e por defenderem o coletivismo, mas,
.pela derrubada da monarquia e instauração de repúblicas em não há menção direta ao comunismo. Devemos levar
vários países; em conta o fato dos “Protocolos” terem sido escritos
.por gerar monopólios, controladores dos meios econômicos; antes da Revolução de 1917, acontecimento efetiva-
.pela destruição da estabilidade financeira; mente responsável por uma maior divulgação mun-
.por criar o caos, enfim (BARROSO, 1989, p.51).
dial dos ideais comunistas.
O contexto produzido pelo impacto da Revolução
bolchevique, associado ao quadro social caótico
98 Rodrigo Patto Sá Motta / Revista de História 138 (1998), 93-105

emergente na Europa do imediato pós-Grande Guer- chada de um ideal aparentemente bem intencionado
ra, forneceu combustível para o estabelecimento de esconderia-se uma sórdida trama judaica, inspirada
uma extraordinária onda anti-semita e anticomunista, por desígnios terríveis. Nas palavras de Hitler:
dando origem ao mito da conspiração judaico-comu-
nista, na verdade uma atualização para o século XX Devemos enxergar no bolchevismo russo a tentativa do juda-
do anti-semitismo oitocentista. ísmo, no século vinte, de apoderar-se do domínio do mundo, jus-
tamente da mesma maneira por que, em outros momentos da his-
Neste sentido, foi no período crítico compreen-
tória, êle procurou, por outros meios, embora intimamente pare-
dido pelas décadas de 1920 e 1930 que teve origem a
cidos, atingir os mesmos objetivos. A sua inspiração tem raízes
campanha anti-semita mais violenta jamais conheci- na sua maneira de ser. (...) o judeu não renuncia espontaneamente
da, a qual estava, obviamente, vinculada à criação e a sua aspiração de uma ditadura mundial (...) Ou êle será repelido
ascensão ao poder dos movimentos nazi-fascistas. por forças exteriores para outro caminho ou o seu desejo de do-
Significativamente, imediatamente após a Grande mínio universal só desaparecerá com a extinção da raça. (HITLER,
Guerra e a Revolução bolchevique apareceram as pri- 1983, p.411)
meiras edições ocidentais dos “Protocolos”, até en-
tão conhecidos apenas na Rússia. A profundidade da Assim, o comunismo seria apenas mais um em-
crise e a complexidade dos problemas enfrentados buste dos judeus – o mais recente, pois no passado
tornava atraente o recurso ao mito conspirativo: al- usaram outros –, na sua eterna luta pelo domínio do
guém, alguma força terrível, deveria ser responsável mundo. Segundo Hitler, o elemento judaico utiliza-
pela situação. Para muitos, a realidade estaria confir- va-se do discurso democrático e popular para conven-
mando a existência do maligno plano dos “sábios do cer as massas e alcançar o poder, mas, conquistado
Sião”: não diziam os “Protocolos” que a trama judaica seu objetivo, lançava fora o disfarce e se transforma-
passava pela disseminação do ódio entre os povos, va “no judeu sanguinário e tiranizador de povos”
pelo fomento às revoluções e pela quebra da estabili- (HITLER, 1983, p.211).
dade financeira e econômica? Há um aspecto muito importante a ser ressaltado: na
Neste contexto, os nazistas destacaram-se como medida em que constrói uma força maléfica terrível, o
os principais disseminadores do anti-semitismo, um discurso maniqueísta evidencia a necessidade da exis-
dos elementos básicos de seu ideário. Lançaram mão tência de forças do bem, cuja ação é indispensável para
de uma tradição presente há muito na cultura euro- anular o mal. Quanto mais terrível este for, maior vigor
péia, mas, atualizaram-na, através da incorporação de devem possuir os “cavaleiros da luz”, mais dura deverá
novos elementos. A introdução da temática comunista ser a atuação dos defensores do bem. Daí tornava-se
foi uma das principais inovações e sua importância perfeitamente justificável a necessidade da constituição
foi muito grande, a ponto de podermos falar na cons- de aparatos políticos repressivos e totalitários, bem como
tituição do mito da conspiração judaico-comunista. o recurso à violência e à guerra, apresentadas como
Os dois “elementos”, judeu e comunista, foram apro- medidas preventivas contra a ameaça “judeo-bolche-
ximados pelo discurso nazista e transformados nos vique”. Passava a ser legítimo o ataque à Rússia (URSS),
grandes vilões, artífices e verdadeiros promotores do país escravizado pelo judaísmo após a revolução, pois
caos e da destruição. tratava-se de destruir o bastião do mal. Escritas em 1923,
A proposta comunista não seria uma utopia posi- as palavras de Hitler podem ser interpretadas como uma
tiva e generosa, voltada para a conquista do bem es- revelação de que seus planos para a Rússia já estavam
tar dos povos e da igualdade social. Por trás da fa- traçados vinte anos antes da guerra:
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É tão impossível à Rússia livrar-se do jugo judaico por suas Na perspectiva barrosiana, então, capitalismo e
próprias forças, como ao judeu manter o contrôle sôbre o vasto
comunismo, no fundo, teriam a mesma origem judai-
império, ainda por muito tempo. Êle não é um elemento
ca. Por um lado, isto seria evidenciado pela referência
organizador, e sim antes um fermento de decomposição. O imen-
so império do oriente está prestes a ruir. O fim do domínio judai-
à presença de judeus à frente de ambos, por exemplo,
co na Rússia será também o fim da Rússia como Estado. Fomos Rothschild e Trotsky3 . Por outro lado, suas caracterís-
escolhidos pelo destino para sermos testemunhas de uma catás- ticas básicas seriam as mesmas, materialismo e
trofe que será a mais formidável confirmação da verdade da teo- internacionalismo4, tidas como essencialmente judai-
ria racial (HITLER, 1983, p.407). cas. Contudo, embora houvesse a tendência a aproxi-
mar capitalismo e comunismo através de sua caracte-
No Brasil dos anos 30 encontramos também, par- rização como etapas de uma mesma conspiração, o
ticularmente entre os integralistas, elementos defen- comunismo era apresentado como pior, mais danoso.
sores de posições anti-semitas extremadas.2 Gustavo No comunismo, a dominação judaica seria estabe-
Barroso, advogado e ex-deputado, membro da lideran- lecida em sua plenitude. Os elementos semitas teriam
ça da AIB e um de seus mais destacados doutrinadores, o poder absoluto, garantido pela instalação da ditadura,
tornou-se o principal divulgador do anti-semitismo no que lhes permitiria completar o trabalho de destruição
Brasil. Grande admirador de Hitler, inspirou-se no pen- dos principais pilares da boa sociedade: família, pátria,
samento do chefe nazista e no texto dos “Protocolos” religião e propriedade individual:
para compor seu próprio arsenal argumentativo contra
os judeus. A versão brasileira dos “Protocolos”, por O comunismo que agitadores estrangeiros, sobretudo judeus,
aliados a brasileiros vendidos ou inconscientes, inimigos da Pátria,
sinal, foi editada e traduzida por Barroso, em 1934.
nos prometem, quer a destruição das pátrias, da propriedade e da
Em sua obra Gustavo Barroso também investiu na
família, a proletarização das massas e a materialização do homem
operação de associar comunismo e judaísmo, apre- em todos os sentidos. Tirando ao indivíduo suas crenças e tradi-
sentando ambos como duas facetas do mal e, portan- ções, sua vida espiritual e sua esperança em Deus, sua família –
to, alvos a serem combatidos vigorosamente. Ele que é sua projeção no Tempo, e sua propriedade – que é sua proje-
encarava o comunismo como a etapa final da conspi- ção no Espaço, arranca-lhe as forças de reação, todos os seus sen-
ração judaica, seu ponto culminante, enquanto o passo
anterior havia sido a implantação do capitalismo,
igualmente obra dos judeus, cuja intenção era sola-
par e destruir a boa sociedade tradicional, baseada em
valores cristãos e espirituais. À medida em que inten- 3
Barroso se referia com mais freqüência aos comunistas judeus:
sificava a exploração sobre as massas trabalhadoras, “Karl Marx era judeu, duma familia rabinica-talmudista de Trèves.
atiçando o ódio entre as classes, o capitalismo pre- Engels era judeu, duma familia rabinica de Barmen. Lenine ca-
parava o advento da sociedade comunista, largamen- sou com uma judia. Os comissarios do povo na Rússia, na maio-
te propagandeada pelos agentes judaicos. ria, judeus. Bela Kun, judeu. Trotsky, judeu”. O integralismo de
norte a sul. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1934, p.41.
Nota-se o esforço para ligar todos os líderes comunistas mais co-
2
Ressalve-se que o tema era polêmico no interior da Ação nhecidos ao judaísmo. Mesmo Lênin, apesar de não ser judeu,
Integralista Brasileira, alguns setores não concordavam em assu- teria se casado com uma judia. Pelo menos nos casos de Engels e
mir o programa anti-semita. Cf. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Krupskaia a suposta ascendência judaica é polêmica.
O Anti-semitismo na Era Vargas (1930-1945). 2a Ed. São Paulo, 4
O programa barrosiano, em contraposição, defendia o espiri-
Brasiliense, 1995. p. 353-354. tualismo e o nacionalismo.
100 Rodrigo Patto Sá Motta / Revista de História 138 (1998), 93-105

timentos, deixa somente a fera humana e prepara-o, assim, para A evidência mais clara de anti-semitismo, obvia-
definitiva escravização ao capitalismo judaico internacional disfar- mente, se encontra no nome do suposto autor do pla-
çado em capitalismo de Estado (BARROSO, 1935a, p.14) no. Cohen é um dos sobrenomes judaicos mais co-
muns e talvez exatamente por isso tenha sido esco-
O “Plano Cohen” é um exemplo eloqüente de lhido. Inicialmente, Mourão Filho assinalou Bela
como foi forte a influência do anti-semitismo no Kuhn como o autor do plano. Era o nome de um co-
Brasil da década de 1930. Tratava-se de um suposto nhecido comunista europeu de origem judaica, líder
plano comunista para a conquista do poder, “desco- da fracassada Revolução húngara de 1919. Rabiscou,
berto” pelo Exército às vésperas do golpe de 1937 e contudo, a primeira versão e optou pela forma Cohen,
utilizado para legitimar a implantação da ditadura somente. Parece evidente que a intenção era vincular
estadonovista, apresentada como necessária para a a atividade dos comunistas a uma conspiração de pro-
defesa contra o perigo comunista. Na verdade, o do- porções internacionais e, ao mesmo tempo, associar
cumento foi redigido pelo então capitão Olímpio sua imagem ao judaísmo internacional.
Mourão Filho, que acumulava as funções de oficial Analisando com cuidado o discurso da conspira-
do Estado-Maior do Exército e chefe do serviço de ção judaico-comunista observamos a existência de uma
informações da AIB.5 série de expressões verbais repetidas com freqüência.
A trama continha ingredientes típicos do imagi- O caráter repetitivo de tais elementos discursivos não
nário anti-semita e anticomunista, bem como da mi- era casual: a repetição se fazia necessária para efeito
tologia conspirativa. O “plano” era uma conspira- de fixação da mensagem no imaginário popular. Como
ção urdida às escondidas por um pequeno grupo, ensinava Hitler, o segredo para a conquista do apoio
mestre na arte da camuflagem6. As ações previstas popular era escolher algumas poucas idéias – diríamos
tinham um caráter sinistro e traiçoeiro: terrorismo imagens –, simples, porém fortes, e divulgá-las exaus-
(explosão de bombas) e incêndios para criar caos e tivamente através da propaganda.
espalhar pânico entre a população, e a realização de Agrupamos as expressões componentes do discurso
seqüestros e assassinatos de personalidades importan- de acordo com a afinidade temática, privilegiando al-
tes, visando desarticular a reação das autoridades. guns elementos de maior destaque no imaginário anti-
semita e anticomunista. As fontes de onde foram reti-
radas algumas das expressões não foram mencionadas,
para evitar um volume excessivo no corpo de notas:
5
Mourão reconheceu, anos mais tarde, a autoria do “Plano
Elementos destrutivos: “O comunismo internacional (...)
Cohen”, embora declarasse não ter sido responsável por sua ma-
destrói as Pátrias, as Famílias e as Religiões, arrancando ao
nipulação política. De acordo com sua versão o trabalho serviria
proletário todos os seus elementos espirituais (...) escravizando-
apenas para treinamento interno dos militantes integralistas, ten-
o depois”(BARROSO, 1935a, p.62); “ruína”; “desordem”; “po-
do sido enviado às altas patentes militares sem seu consentimen-
derosíssimo bando de criminosos”.
to. SILVA, Hélio. A Ameaça Vermelha: o Plano Cohen. Porto Ale-
gre, L&PM, 1980. Decadência, degeneração: “putrefação”; “barbárie comu-
6
Há uma passagem risível: grupos de conspiradores deveriam se nista”; “depravados”; “degradação”; “aviltamento”; “bastardi-
posicionar no topo dos prédios mais altos e, com metralhadoras, zar a raça”; “bacilos”; “vírus”.
atirar sobre as ruas para semear o pânico. O plano previa, Forças do mal: “O comunismo é (...) alguma cousa alem duma
rocambolescamente, que as armas deveriam ser camufladas em doutrina. (...) Essa paixão é a paixão revolucionária, cuja raiz va-
caixas de violino. SILVA, Op. Cit., p.282. mos encontrar no fundo das idades, na rebeldia luciferiana
Rodrigo Patto Sá Motta / Revista de História 138 (1998), 93-105 101

(...)”(BARROSO, 1938, p.11); “produto do inferno”; “organiza- Análise da iconografia


ção diabólica”; “vampiros judeus”.
Ação sub-reptícia: “a quintessência do perigo judaico é a O material iconográfico nos fornece outro rico
camuflagem”; “ação às ocultas”; “formidável maquinação se- filão para analisar o discurso e o imaginário em tela7.
creta”; “infiltração”. Publicações de diversos tipos – livros, panfletos, jor-
As armas dos conspiradores: “calúnias”; “corrupção”; “ve- nais, revistas –, na maioria das vezes produzidas na
neno”; “mentiras”. década de 1930, traziam impressas representações
Objetivos: “Essa revolução mundial produzirá necessaria- gráficas (desenhos, caricaturas, etc.) de inspiração
mente o triunfo do Imperialismo Vermelho, que é o Imperialismo anti-semita.
de Israel (...)”(BARROSO, 1938, p.39); “judeu sanguinário e O judeu era sempre representado com as feições
tiranizador de povos”(HITLER, 1983, p.210); “hegemonia mun-
do estereótipo semita: cabelos e barba negra, assim
dial”; “domínio mundial”; “domínio universal”; “escravização”.
como os olhos, e o famoso nariz adunco. Suas rou-
Materialismo: “O verdadeiro creador do comunismo mar-
pas eram sempre negras, provavelmente para fortale-
xista é o velho materialismo judaico que vêm desde muitos
cer a imagem sinistra que se desejava sugerir. Várias
centenarios solapando os alicerces da civilização cristã”(BARROSO,
1934, p. 39-41); “o bezerro de ouro”; “culto do ouro”. caricaturas apresentam esta figura estereotipada abra-
çando ou agarrando o globo terrestre, representando,
Maniqueísmo: “(...) os tempos são chegados: o Cristo se acha obviamente, o plano judaico de domínio mundial. Em
em face do Anti-Cristo. Temos de escolher. Temos de optar. Roma uma delas o judeu está enterrando as unhas e rasgan-
ou Moscou. O Vaticano ou o Kremlin. Toda indefinição equivale do a superfície do planeta, e das fissuras escorre san-
a compactuar com o inimigo”(BARROSO, 1938, p.35); “A ver- gue... Há um cartaz feito para uma exposição na Ale-
dade inconteste é que o plano dos Protocolos foi ditado pelo Mal
manha nazista que apresenta uma variação deste tema:
e êste, que o combate (o programa integralista), pelo Bem. A sim-
o judeu sinistro está agarrando o território alemão, que
ples leitura comparada convence disso os menos perspicazes. Ao
Brasileiro compete escolher entre os Protocolos e o Integra- conserva debaixo de um dos braços; em uma mão,
lismo”(BARROSO, 1935a, p.133). estendida, há algumas moedas e, na outra, segura um
chicote (CARNEIRO, 1995, p.453). A imagem sim-
Esta é uma pequena amostra dos temas e das ex- boliza a alegada exploração da Alemanha pelos judeus:
pressões mais recorrentes do discurso e do imaginá- através do dinheiro e do chicote, símbolo da escravi-
rio construído pelos divulgadores do mito da conspi- dão, o perverso judeu controlaria a nação alemã.
ração judaico-comunista. Poderiam ser citados mui- Contudo, as imagens mais curiosas são as repre-
tos outros exemplos, mas isto ocuparia um espaço sentações zoomórficas, reproduções que misturam
além do razoável, tendo em vista os objetivos do tra- formas animais com formas humanas, numa alusão
balho. Além do mais, o material selecionado é sufi- implícita às características não-humanas atribuídas
ciente para propiciar uma percepção adequada das
formas discursivas usadas na constituição do mito.
Fica evidenciada com clareza a virulência do ataque
7
aos “judeo-comunistas” e à sua suposta conspiração, Pretendemos seguir a proposta de Panofsky, que destaca a im-
permitindo-nos fazer uma idéia do “ambiente” extre- portância de se interpretar as imagens, e não apenas descrevê-las.
A esta tentativa de incursionar em profundidade no sentido das
mista vivido à época.
representações imagéticas ele chama interpretação iconológica.
Apud KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo, Ática,
1989. p. 65-80.
102 Rodrigo Patto Sá Motta / Revista de História 138 (1998), 93-105

aos judeus. Importante ressaltar que os animais esco- sangue, roubando-a ao seu povo. Não há meios que êle não em-
lhidos partilham características comuns: na tradição pregue para estragar os fundamentos raciais do povo que êle se
popular são tidos como repelentes, asquerosos e/ou propõe vencer. (...) segundo um plano traçado, vai corrompendo
mulheres e mocinhas (...). (HITLER, 1983, p. 210)
assustadores. Os exemplos mais freqüentes são: pol-
vo, aranha, serpente, abutre, morcego e sanguessuga. O perigo judaico, portanto, também estaria liga-
Analisando mais detalhadamente cada uma das do à sedução e esta, por seu turno, guardaria víncu-
figuras animais mencionadas, podemos perceber que los com o demônio (“prazer satânico”) e com o mal.
as características a elas atribuídas remetem a aspec- No imaginário popular, bem como nas representações
tos da imagem do judeu construída pelo discurso anti- bíblicas, a sedução da serpente seria obra das forças
semita: do mal. Neste sentido, a associação da conspiração
Abutre – carniceiro, oportunista, alimenta-se da matéria destruída. judaico-comunista à imagem da serpente levava à
Há um desenho onde aparece um judeu-abutre observando uma cida- mobilização de temores e arquétipos profundamente
de cristã destruída. Ele observa a destruição com prazer e parece estar enraizados na cultura popular.
se preparando para servir-se dos despojos (COHN, 1983). Não seria possível encerrar a discussão sobre a
Polvo – animal cheio de tentáculos, sugerindo onipresença. iconografia anti-semita sem fazer menção à utiliza-
Trata-se da forma usada com mais freqüência para representar a ção da estrela de David. Ela aparece em várias repre-
conspiração internacional judaica.
sentações, constituindo-se num dos principais símbo-
Aranha – a imagem da teia e da própria aranha era associada los dos judeus e do judaísmo. Na primeira edição
à idéia de práticas traiçoeiras, de armadilhas. Existe uma repre-
brasileira dos Protocolos, por exemplo, a capa traz um
sentação gráfica clássica mostrando um judeu-aranha tecendo uma
desenho de uma serpente, com uma estrela de David
teia sobre o globo terrestre.
ladeando sua cabeça.
Morcego (vampiro) e sanguessuga – figuras que sugerem
O motivo da estrela foi muito utilizado para sim-
exploração, parasitismo.
bolizar a afinidade entre judaísmo e comunismo:
Serpente – animal repelente, perigoso e mortal. Algumas das
edições dos “Protocolos” traziam na capa representações de ser-
pentes, freqüentemente desenhadas envolvendo a Terra8 . O estudo dos mitos e dos símbolos pode conduzir ao encon-
tro da Verdade que êles ocultam. A svástica hitleriana leva-nos
Há um outro aspecto interessante em relação às re- aos ários, avós dos germanos; o fascio mussolínico leva-nos à
presentações da serpente. Tradicionalmente, esse animal grandeza de Roma; o sigma integralista leva-nos aos primitivos
cristãos gregos. A estrêla vermelha dos Soviets leva-nos ao
representa a sedução, a sensualidade, como no mito bí-
judaismo talmúdico. (BARROSO, 1935b, p.197)
blico de Adão e Eva. Podemos perceber este elemento
também no anti-semitismo. A conspiração judaico-co-
munista é, algumas vezes, ligada à imagem da sedução: A estrela de David foi associada à estrela ver-
melha da bandeira soviética, sugerindo a existên-
O judeuzinho de cabelos negros espreita, horas e horas, com cia de uma decisiva inspiração judaica por trás do
um prazer satânico, a menina inocente que êle macula com o seu
ideário comunista. Algumas representações ico-
nográficas também exploram o tema, mostrando as
duas estrelas (soviética e de David) em situação de
8
Na capa da edição sueca de 1924 foi reproduzido um desenho proximidade.
interessante: uma serpente, tendo como cabeça a figura do judeu
estilizado, abraça o globo terrestre. CARNEIRO, Op. Cit..p.359.
Rodrigo Patto Sá Motta / Revista de História 138 (1998), 93-105 103

Conclusão sores do bem”, que teriam de usar força e violência


para vencer o “bom combate”.
Para finalizar, abordaremos duas questões de fun- Evidentemente, a mitologia conspirativa se pres-
damental importância para o entendimento do mito tava também ao combate às idéias revolucionárias,
da conspiração judaico-comunista: particularmente ao comunismo. Ao contrário de ide-
A quem ou a que servia o mito e o próprio anti- alistas bem intencionados, como se auto-proclama-
semitismo? vam, os comunistas seriam agentes perversos da cons-
Como se explica o fato de tantas pessoas terem nele piração mundial judaica, cujo fim último era a
acreditado? escravização do mundo. Deveriam, portanto, ser com-
Parece claro que tanto a “visão conspirativa da batidos sem trégua, sendo aceitáveis todas as armas
história” quanto o preconceito contra os judeus tive- e meios.
ram uma origem popular. Porém, sem nenhuma dú- Contudo, devemos tomar cuidado para não criar
vida, houve uma manipulação política consciente por uma mitologia conspirativa ao contrário, ou ceder a
parte de determinados líderes políticos, que soube- uma análise simplória, que levaria a encarar o anti-
ram explorar os temores populares para se fortalece- semitismo e o anticomunismo como obra de forças
rem e/ou combaterem as idéias radicais e revolucio- malignas. Mesmo reconhecendo a existência de inten-
nárias, e através de suas ações criaram e amplifica- ções e práticas manipulatórias, não se deve excluir a
ram a doutrina e o movimento anti-semita. possibilidade de muitos líderes anti-semitas e antico-
Existem exemplos ilustrativos a tal respeito. Como munistas acreditarem sinceramente em sua doutrina.
já foi dito, há fortes indícios de que os “Protocolos” te- De outro modo, como entender as ordens dadas em
nham sido forjados por encomenda da OKHRANA, alguns setores do front oriental, ao final da II Guerra,
polícia política do Estado czarista russo, interessada em quando a situação militar do exército alemão era de-
mobilizar os setores sociais mais atrasados contra as sesperadora, para priorizar o transporte ferroviário de
aspirações reformistas e revolucionárias. Hitler, grande prisioneiros judeus aos campos de extermínio, em
conhecedor do comportamento das massas populares, detrimento do transporte de tropas? Alguns líderes
compreendeu que sua mobilização seria mais fácil se nazistas realmente encaravam os judeus como inimi-
houvesse um inimigo poderoso a quem temer: gos perigosos e pensavam em sua destruição como um
benefício a seu país e ao mundo.
A conquista da alma do povo só é realizável quando, ao mes-
Outro aspecto fundamental é tentar entender como
mo tempo que se luta para os próprios fins, se aniquila o adversá-
foi possível tantas pessoas serem envolvidas pelo mito
rio dos mesmos. (...)
e acreditarem na veracidade de uma conspiração ju-
A nacionalização de nossa massa popular só é realizável quan-
daica objetivando a implantação do comunismo. Na
do, na luta positiva para a conquista da alma do nosso povo, ao
mesmo tempo esmagarmos os seus envenenadores internacionais. verdade, os mitos, particularmente os modernos, não
(HITLER, 1983, p.217) podem ser criados no vazio. Sua construção e aceita-
ção dependem de alguma verossimilhança, de algum
Transformar o judeu/comunista em inimigo assus- contato com o real. No início do trabalho relaciona-
tador, em encarnação do mal e do demônio, legitimava mos a emergência dos mitos conspirativos ao temor
a existência de uma força antagônica representante e ansiedade provocados pelas transformações do
do bem. Contra um inimigo terrível seria indispen- mundo moderno. Porém, falta ainda explicar por que
sável constituir-se uma poderosa falange dos “defen- a figura do judeu se prestou tão bem ao papel de “bode
104 Rodrigo Patto Sá Motta / Revista de História 138 (1998), 93-105

expiatório”, responsabilizado por todos os problemas Quanto ao comunismo, tido como o ponto culmi-
e foco contra o qual o ódio e o medo foram dirigidos. nante da ação das forças destrutivas e maléficas, sua
Na realidade, os judeus possuíam algumas carac- vinculação com a figura do judeu também não foi
terísticas que tornaram possível a construção do mito: construída no vazio. Havia algo de real sustentando
o mito. O número de judeus ligados aos movimentos
. a força de sua cultura e de sua identidade, mantida e comunistas era muito expressivo, bem como sua in-
reproduzida através dos séculos; fluência. Na liderança bolchevique e nos quadros do
. a manutenção de uma forte presença no mundo dos PC russo a presença judaica era grande. Além do
negócios e das finanças; muito conhecido Trotsky, destacavam-se também
. sua posição destacada na produção intelectual; Zinoviev, Kamenev, Radek, Litvinov, Piatnitski,
. o fato de terem uma inserção internacional; Kaganovich, Iezhov, Lozovski, entre outros. Na Inter-
. uma certa propensão a apoiar projetos reformistas nacional Comunista acontecia o mesmo. Há um dado
e/ou revolucionários. que ajuda a avaliar o poder de atração das idéias de
esquerda sobre a comunidade judaica, particularmen-
Quanto ao último ponto é preciso evitar uma ge- te no contexto da luta antifascista: dos cerca de 32.000
neralização abusiva. Sempre houve membros conser- voluntários das brigadas internacionais na guerra ci-
vadores no interior da comunidade judaica. No en- vil espanhola, aproximadamente 25% (de 7 a 8 mil)
tanto, durante o período áureo das reformas e revo- eram de origem judaica (COURTOIS & LAZAR,
luções, aproximadamente entre o final do século 1987, p.140).
XVIII e início do XX, os judeus se posicionaram com Voltando os olhos para o Brasil, encontramos na
mais freqüência ao lado das mudanças. E a razão é história do comunismo brasileiro uma destacável par-
simples: como grupo marginalizado na sociedade tra- ticipação de judeus nas fileiras do PCB. Vários tive-
dicional cristã viam com bons olhos as propostas de ram projeção nacional, entre eles Leôncio Basbaum,
liberdade e igualdade entre os homens, que soavam Jacob Gorender, Maurício Grabois e Salomão Malina.
como a promessa de sua emancipação do gueto O PCB, inclusive, foi presidido por um deles, Malina,
(COURTOIS & LAZAR, 1987, p.138-141). fato raríssimo na história brasileira9.
Não é sem motivo, portanto, que os judeus atraí- O partido possuía algumas organizações de base –
ram o ódio dos grupos insatisfeitos e temerosos em as células da estrutura leninista – compostas exclusiva-
relação às transformações do mundo moderno. Eles mente de judeus10. Após a tentativa revolucionária de
pareciam representantes perfeitos da modernidade: 1935 a polícia desarticulou uma dessas bases, com a
políticos e intelectuais radicais, empresários moder- prisão de 23 pessoas. O documento policial com o re-
nos e seres cosmopolitas, quer dizer, sem pátria. O
internacionalismo atribuído aos judeus era um ele-
mento particularmente odiado pelos setores conser-
9
vadores, que depositavam na nação e no nacionalis- Salomão Malina desempenhou o cargo nos anos 1980. Foi, pro-
vavelmente, o único judeu a ocupar a presidência de um partido
mo suas melhores esperanças de construir uma iden-
político em toda a história brasileira.
tidade segura num mundo encarado como caótico e 10
Em Belo Horizonte, a título de exemplo, a base judaica funci-
em decomposição. O “judeu sem pátria” era visto com onou até os anos 1970. Depoimento de Jayme Goifman, setem-
temor e desprezo, pois era encarado como um possí- bro/outubro de 1996. Acervo do Grupo de História Oral da
vel destruidor da integridade e da pureza da nação. FAFICH/UFMG.
Rodrigo Patto Sá Motta / Revista de História 138 (1998), 93-105 105

gistro das detenções diz que pertenciam todos à organi- aceitável o surgimento dos movimentos contra os
zação revolucionária BRAZCOR, ligada ao PCB.11 judeus e o judaísmo. A constatação é que algumas
Enfim, alguns dados da realidade ajudam a enten- características existentes no interior da comunidade
der porque o mito se viabilizou. O fato de uma par- judaica, observáveis notadamente no período anteri-
cela expressiva da comunidade judaica ter abraçado or à Segunda Guerra, facilitaram a propagação do
os valores modernos e lutado por sua implantação, anti-semitismo. É aí que reside o “contato” da mito-
inclusive os ideais revolucionários, tornou possível a logia conspirativa com a realidade.
construção e, principalmente, a divulgação do mito Atribuir, porém, aos judeus responsabilidade pela
da conspiração judaica e judaico-comunista. criação da modernidade e pela explosão revolucionária,
No entanto, tal constatação não pode ser utiliza- acreditando terem eles conspirado longa e secretamente
da para responsabilizar os judeus pela criação do mito, em prol destes objetivos é entrar decididamente no ter-
isto seria absurdo. Tampouco torna justificável ou reno do mito, no sentido de pura fabulação.

Bibliografia
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de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935(b). MAYER, Arno. A força da tradição. São Paulo, Cia. das Letras, 1990.
BARROSO, Gustavo. Comunismo, cristianismo e corporativismo. ROSENFELD, Anatol. Mistificações literárias: “Os Protocolos
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CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O Anti-semitismo na Era Vargas SILVA, Hélio. A Ameaça Vermelha: o Plano Cohen. Porto Ale-
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COHN, Norman. El mito de la conspiración judía mundial. TAGUIEFF, Pierre-André. Les Protocoles des Sages de Sion:
Madrid, Alianza Editorial, 1983. introduction à l’étude des Protocoles. Paris, Berg, 1992.
COURTOIS, Stéphane & LAZAR, Marc. Le communisme. Paris, WEBER, Eugen. França fin-de-siècle. São Paulo, Cia. das Le-
M.A. Editions, 1987. tras, 1988.

11
“27 de novembro de 1935. Ilmo Sr. Dr. Director da Casa de Zibenberk, David Lerer, Sgulin Seko Vrabel, Moyses Kava, Nute
Detenção: Goifman, João Schachter e Baruh Zell, os quaes ahi ficarão reco-
De ordem do Exmo Sr. Chefe de Polícia, faço-vos apresentar os lhidos, á disposição daquella autoridade, afim de serem expulsos
comunistas: Abrahão Rosemberg, Jayme Gardelsran, Waldemar do territorio nacional, por perigosos á ordem publica e nocivos
Gutnik, Jacob Gria, Rubens Goldberg, Armando Guelman, aos interesses do paiz.
Henrique Jviblaski, Jayme Sterneberg, José Hachternwaker, Ass. Affonso Henrique de Miranda Corrêa (Delegado Especial
Waldemar Roiteberg, Nicolau Marinoff, Joseph Fridman, Carlos de Segurança Política e Social)” - Arquivo Geral da Polícia Civil
Garfunkel, José Veveiss, Matias Janosai, Moisi Lipes, Cesar do Distrito Federal. Prontuário no 15.709.
106 Rodrigo Patto Sá Motta / Revista de História 138 (1998), 93-105
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

MARTIN BRAUNWIESER NA VIAGEM DA MISSÃO DE


PESQUISAS FOLCLÓRICAS (1938): DIÁRIO E CARTAS*

Álvaro L. R. S. Carlini
Doutorando no Depto. de História-FFLCH/USP

RESUMO: O artigo relata, através de excertos inéditos do diário e de correspondências, a participação do maestro austrí-
aco Martin Braunwieser (1901-1991) na viagem da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. Esta expedição etnográfica
foi o último projeto idealizado por Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura de São Paulo.

ABSTRACT: The article tells, through unpublished excerpt of the diary and of correspondences, the Austrian maestro’s
Martin Braunwieser (1901-1991) participation in the trip of the Mission of Folkloric Researches of 1938. This ethnological
expedition was the last project idealized by Mário of Andrade ahead of the Department of Culture of São Paulo.

PALAVRAS-CHAVE: Martin Braunwieser, Missão de Pesquisas Folclóricas, Mário de Andrade, Discoteca Pública Mu-
nicipal, Departamento de Cultura de São Paulo.

KEYWORDS: Martin Braunwieser, Mission of Folkloric Researches, Mário de Andrade, Discoteca Pública Municipal,
Department of Culture of São Paulo.

Durante o primeiro semestre de 1938, Martin Departamento de Cultura da Municipalidade de São


Braunwieser (1901-1991), músico austríaco, residen- Paulo. A Missão de Pesquisas Folclóricas foi uma
te havia dez anos no Brasil, teve oportunidade de in- expedição pioneira, o último projeto de grande enver-
tegrar uma equipe de pesquisas etnográficas que via- gadura realizado na gestão de Mário de Andrade à
jou Nordeste e Norte do país. A equipe composta por
quatro integrantes especializados em suas funções, foi
formada por indicação de Mário de Andrade (1893- *
Apresentado como Comunicação Oral no I Simpósio Latino-
1945), à época mantendo o cargo de Diretor geral do Americano de Musicologia, Curitiba, 1997.
108 Álvaro L. R. S. Carlini / Revista de História 138 (1998), 107-116

frente da Instituição. Seu objetivo principal era efe- Instrutor de Música nos Parques Infantis da Prefeitu-
tuar pesquisas musicais gravando manifestações po- ra de São Paulo (SANTA ROSA, 1995, p.35-51),
pulares brasileiras em discos 78 rpm. Os discos e publicando diversos trabalhos relacionados à renova-
demais informes coletados estavam destinados a su- ção do repertório destinado à Educação Musical da
prir o acervo especializado da Discoteca Pública criança (BRAUNWIESER, 1952; 1959). Foi profes-
Municipal, seção do Departamento de Cultura diri- sor nas disciplinas de composição, regência e teoria nos
gida por Oneyda Alvarenga (1911-1984) fornecendo principais estabelecimentos de ensino musical da ca-
assim subsídios materiais para estudos e aproveita- pital paulista, como o Conservatório Santa Marcelina
mento artístico por compositores, escritores, folclo- (1948-1951), o Instituto Musical de São Paulo (1939-
ristas e demais interessados na questão de identida- 1970) e o Conservatório Estadual de Canto Orfeônico,
de nacional em música (CARLINI, 1994, p.26-37). atual Instituto de Artes da UNESP (1949-1971). Em
Durante a viagem da Missão, ocorrida de fevereiro a 1945, foi membro fundador da Academia Brasileira
julho, Mário de Andrade foi definitivamente afastado de Música, ocupando a cadeira n° 7, do patrono Fran-
do cargo de Diretor geral do Departamento de Cultura cisco Manuel da Silva. Em 1961, foi designado para
de São Paulo, “exilando-se” em seguida no Rio de Ja- o cargo de Orientador de Canto Orfeônico da cidade
neiro por quatro anos (CASTRO, 1989, p.19-32). de São Paulo, colaborando para a estruturação
A viagem de seis meses da Missão marcou de curricular da disciplina Canto Orfeônico e de seu re-
maneira definitiva a vida de Martin Braunwieser, trans- conhecimento oficial pelo MEC em fins de 1960
formando-se em um “divisor de águas” para suas ati- (CARLINI, 1991, p.11-12).
vidades após o retorno a São Paulo. Ao reassumir suas Pode-se perceber pelas atividades acima relacio-
funções profissionais na capital paulista, Braunwieser nadas, a inteira dedicação de Braunwieser em prol da
orientou-se pelas influências recebidas durante a via- música brasileira. Sua opção pelo Brasil está inteira-
gem da expedição. A experiência vivida naqueles seis mente articulada com a descoberta que fez do país
meses consolidou definitivamente o seu processo in- durante a viagem da Missão de 1938. Na realidade,
terno de adoção do Brasil como segunda pátria. Braunwieser foi um homem de seu tempo, vivendo o
Para os nascidos na década de 1960 em diante, seu presente, identificado com a proposta naciona-
será difícil lembrar-se de Martin Braunwieser. Cabe lizante de Mário de Andrade para a música erudita do
observar no entanto, que para analisar com maior pro- Brasil1. Um estudo aprofundado sobre o período de
fundidade a influência e significância do maestro aus-
tríaco no cenário musical brasileiro, em particular, o
paulista, seria necessário algo além do que este bre-
ve artigo. Sua importância no Brasil abrange várias 1
Ao contrário de outros músicos germânicos contemporâneos
áreas: foi ele o criador e diretor artístico da Sociedade também atuantes no país – como Francisco Curt Lange (1903-
Bach de São Paulo (1935-1977), entidade autônoma 1997) ou Hans J. Koellreutter (1915) – Martin Braunwieser dedi-
em grande parte responsável pela valorização e enten- cou-se intensamente à pedagogia musical, defendendo com fer-
vor as propostas musicais apresentadas por Mário de Andrade
dimento de compositores como o próprio J. S. Bach
para a sua época. Paralelamente, F. Curt Lange desenvolveu suas
e W. A. Mozart, patrocinando concertos e cursos es-
pesquisas em direção ao nosso passado musical, devolvendo ao
pecializados durante os seus 42 anos de existência conhecimento público as obras da Escola Mineira de Composi-
(CARLINI, 1995, p.8). Braunwieser foi um impor- ção do período colonial, séc. XVIII. Hans J. Koellreutter, chega-
tante pedagogo infantil, atuando de 1937 a 1964 como do ao Brasil em 1937, tem seu destaque histórico por haver intro-
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formação no Mozarteum de Salzburgo, envolvendo as longa e bem para trás montanhas, alguns montes e elevações bas-
primeiras atividades musicais de Braunwieser antes de tante ressaltadas. Cada vez mais tornavam-se nítidas as formas
sua chegada ao Brasil em 1928 – entre 1901-1927 este- individuais, até que pudemos distinguir claramente cada uma das
montanhas de formatos tão únicos. Inesperadamente vê-se uma
ve na Áustria, Croácia e Grécia – foi realizado por An-
entrada estreita, quase como um rio desaguando no mar, e realmen-
tônio Alexandre Bispo, musicólogo brasileiro radicado
te lá entra o navio. Penhascos e montes em parte nus – somente a
na Alemanha, em trabalho publicado em 1991 (BISPO, pedra é visível – alguns casebres, todas as áreas possíveis planta-
1991, p.1-100). Mesmo este volumoso trabalho faz pou- das com cana-de-açúcar, árvores, ilhas maiores ou menores, para
cas referências à participação de Braunwieser na viagem trás montanhas, e lentamente, vendo sempre mais casas, a cidade
musical da Missão de Pesquisas Folclóricas. Na reali- de Vitória aparece. Penso que raramente Deus deixou que apare-
dade, o estudo, a compreensão e a valorização histórica cessem juntas tantas belezas. Qualquer pessoa com algum senti-
deste evento iniciou-se somente com trabalhos mais mento pela natureza ficaria encantada pelos rochedos em parte
parecidos com o Pão de Açúcar no Rio, pelas suaves elevações
recentes (CARLINI, 1993a; 1993b; 1994).
encobertas pela floresta, e pelas pequenas casas aparecendo no
Martin Braunwieser teve a rara oportunidade de
entremeio; novamente, de maneira inesperada, grandes penhas-
reviver em meados do século XX a experiência de cos e bem para trás uma cadeia de montanhas azuladas, parte em
tantos viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil formatos suaves depois novamente em formas inverossímeis. Por
durante o século XIX, como Spix, Martius, Pohl, toda a volta no vale, braços de rio grandes e pequenos. Eu estava
Koseritz, Barão Langsdorff, e tantos outros proveni- encantado. Em terra encontramos uma cidade mediana, bem es-
entes do continente Europeu. Como eles, Braunwieser praiada, em visível desenvolvimento e como dito, situada de ma-
encantou-se com a exuberância da natureza brasilei- neira rara junto à água e aos rochedos. Como havia pouco tempo
somente pudemos empreender um rápido passeio de bonde. Ruas
ra, sensibilizou-se com as precárias condições de vida
estreitas, bem antigas, com casas velhas – muito romântico – e
e moradia do homem do Norte e Nordeste do país,
ruas novas, largas ou em alargamento com algumas casas novas.
aprendendo a respeitar suas peculiaridades, o caráter O calor quase insuportável. Pela primeira vez, vi pessoas toman-
e personalidade, suas manifestações espontâneas e do água de côco nos Cafés. Esta beleza não pode ser descrita,
ritualísticas, as danças e as músicas. Como os viajan- para mim será inesquecível e se no futuro aparecer a oportunida-
tes do século XIX, também Braunwieser registrou a de, virei novamente e observarei com mais atenção estas belezas
nova experiência em um diário de viagem, que mante- naturais assim como o interior que deve ser especialmente boni-
ve distante do conhecimento público até ser redes- to. Cada vez mais distantes ficam as montanhas, não se vê mais a
costa. As altas montanhas ficam cada vez menos visíveis, o mar
coberto por familiares, após seu falecimento em 1991.
aberto nos recebe novamente. Até agora a mais sublime impres-
são desta recém-iniciada viagem(...)2.
(...) Até quase meio-dia apenas mar por todos os lados, muito
lentamente nos aproximamos da costa, a princípio uma praia muito
Foram seis meses de afastamento da família, dos
amigos e do trabalho cotidiano. Durante esse tempo,
Braunwieser pôde conhecer uma realidade inteira-
duzido no país as propostas e técnicas modernas de escrita musi-
mente distinta de tudo o que lhe era próximo. Ele e
cal, veiculadas a partir do pensamento Dodecafônico e Serial de
seus companheiros de viagem enfrentaram várias si-
Arnold Schoenberg (1874-1951), representante máximo da Se-
gunda Escola de Viena do início do séc. XX. A influência germâ-
nica na música brasileira têm seu quadro completado com a pre-
sença desses três músicos no país: Curt Lange, atuando em favor
2
do nosso passado musical; Martin Braunwieser, pelo presente; e Diário de viagem de Martin Braunwieser, Vitória, 9 de fevereiro
Hans J. Koellreutter pelo futuro. de 1938. Tradução: Wolfgang Fischer, 1994.
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tuações adversas, percorrendo o interior dos Estados não constituindo portanto um povoado em sentido estrito. Fiquei
do Nordeste e Norte brasileiros ora a cavalo, ora na decepcionado com os Caboclinhos. Quando espera-se encontrar
carroceria de um caminhão, terrenos desconhecidos certa característica racial, como esperei, só se pode ficar decepci-
onado. Os Caboclinhos – completamente mesclados com sangue
e impróprios para qualquer espécie de tráfego. Por ve-
estranho – pelo menos aqui, não se distinguem das pessoas do
zes, os integrantes da Missão tiveram poucas condi-
povoado lá fora. Muito raramente encontra-se algum traço típico
ções de manter a higiene pessoal. Sentiram fome e em um rosto. Isso ocorre mais com os olhos: muitos têm olhos
sede, dormiram mal alojados. Em seus relatos pesso- escuros que expressam quase sempre grande retraimento, tristeza
ais, como o diário de viagem e as correspondências à e submissão. Em geral já perderam até sua própria língua: uma
família – ainda inéditos – ou nos artigos de divulga- ou outra pessoa ainda sabe incertamente umas poucas palavras.
ção e estudo sobre material folclórico coletado pela Todos foram já absorvidos pela população local. A cor escura da
equipe, Martin Braunwieser registrou suas impressões pele de muitos dos Caboclinhos é notável. Cada um destes Cabo-
clinhos tem algo em comum com os outros: o hábito da mendicân-
sobre o país ainda desconhecido (BRAUNWIESER,
cia. Mal nos viramos para um lado e já aparece alguém pedindo
1946a, 1946b).
dinheiro. A música, as danças ainda têm características, mas creio
À semelhança de Johann B. von Spix (1781-1826) que também já influenciadas. Uma dança chama-se Praiá, dançada
e de Karl F. P. von Martius (1794-1849), Martin com as velhas roupas indígenas e com uma cantora acompanhan-
Braunwieser viajou pelo Brasil em missão oficial, de- do: isto realmente ainda é algo original. Outra dança – chamada
legada pelo Departamento de Cultura de São Paulo, Toré – é dançada com roupas comuns por muitas pessoas. Dois
representado na pessoa de Mário de Andrade, como instrumentos chamados Búzios, tocam juntos e todos cantam uma
Músico Responsável da Missão de Pesquisas Folcló- melodia muito simples a duas vozes. A forma – coreográfica – é
interessante. As melodias do Praiá, na minha opinião, já desapare-
ricas, com a função múltipla de registrar, anotar, gra-
ceram: as canções vêm da boca da cantora de forma muito insegu-
far melodias em notação específica, coordenar e su-
ra e, parece-me, muito variável. Tive a impressão de que a cantora
pervisionar as gravações musicais em discos, procu- cantava o que queria. Para mim, de qualquer maneira, foi interes-
rando estudar o máximo possível das manifestações sante conhecer este modo de cantar. Na volta fui a cavalo. (...)3
populares brasileiras. Como Karl Martius, Martin
Braunwieser envolveu-se intensamente com a nova Além do diário de viagem, manuscrito em alemão
pátria adotiva, convertendo-se, a partir da viagem da em cerca de 150 páginas de uma pequena caderneta,
expedição, em uma das personalidades mais diligen- Braunwieser relatou suas impressões sobre o Brasil
tes para a elevação cultural e artística do Brasil, atuan- em uma vasta série de correspondências redigidas du-
do de maneira decisiva no projeto de nacionalização rante o período para a esposa, a pianista de origem
da música erudita brasileira delineado por Mário de russa Tatiana Kipman Braunwieser (1903-1988), e
Andrade: para sua primogênita, Tamara Braunwieser (1933-
1957). Também nos vários relatórios oficiais entre-
(...) Tacaratu – 6ª feira – 11 III – Depois de penosa viagem gues à Discoteca Pública Municipal após o retorno a
em um caminhão – com caminho muito ruim – chegamos ao meio- capital paulista, Martin narrou sua satisfação em ter
dia em Brejo [dos Padres – PE], como é chamado o lugar onde
participado ativamente da viagem da expedição, ci-
moram os índios ou Caboclinhos. Ninguém aqui chama os indí-
genas de índios – são por toda parte conhecidos e chamados de
Caboclinhos. O lugar em que vivem é um vale maravilhosamente
situado. Tem-se a impressão de que aqui a terra é melhor planta- 3
Diário de viagem de Martin Braunwieser, Tacaratu, 11 de mar-
da do que fora – os Caboclinhos demarcaram seu próprio territó- ço de 1938. Tradução: Wolfgang Fischer, 1994. A palavra “cami-
rio. Muitas casas pequenas a uma certa distância uma da outra, nhão” foi registrada em português no original.
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tando o evento como significativo para mudanças ra a esposa Tatiana prestes a dar a luz a sua segunda
substanciais em sua vida. Esta série de correspondên- filha, Renata Braunwieser, nascida em abril daquele
cias – setenta e cinco cartas também manuscritas em ano e falecida em 1987. Preocupado com o acrésci-
sua língua pátria, o alemão – esteve inacessível até o mo de mais um componente na família, Braunwieser
momento, sendo preservada por seus familiares jun- manifestar-se-á nas correspondências que manteve
tamente com o diário de viagem. com Tatiana durante aquele período, o constante de-
sejo de adquirir uma moradia própria em São Paulo,
(...) Finalmente ontem, depois de uma viagem muito exausti- incrementar seus ganhos financeiros e conseguir guar-
va, cansativa, de quinze dias sobre o caminhão, chegamos aqui
dar alguma soma para formar um pequeno patrimônio:
em bom estado. Tu, pobrezinha, desta vez ficaste muito tempo
sem notícias, mas foi melhor não postar cartas no interior. Mes-
mo da capital já demora tempo suficiente. Ficaremos mais cinco (...) Algumas vezes disseste-me, em tom de brincadeira, que
dias por aqui, e depois viajaremos para Belém. Mas desta vez, sem minha presença em casa economizarias muito mais, que eu
com um navio confiável será seguro. Em João Pessoa, todos dizi- gasto muito dinheiro, e que na minha ausência o dinheiro ficaria
am que a viagem para São Luís sempre é feita de navio, pois em casa. Tuas palavras vieram-me à mente mais tarde, e então te
custa menos, é mais rápida e mais confortável. Por terra não há escrevi, sem pensar nas conseqüências, em diversas cartas segui-
estradas de verdade, não há ajuda, longe ou perto, se algo se que- das, sobre a compra de uma casa, sobre pagamento de dívidas e
bra. E foi exatamente o que aconteceu: péssimas estradas, erra- sobre guardar dinheiro no banco. Naturalmente, com isto não
mos o caminho uma vez, e quebrou-se uma peça do carro. Por pensei que tu devesses ganhar mais dinheiro. Imagino que minha
sorte, foi perto de uma cidade, pois se fosse há horas de distância postura em relação às questões financeiras talvez seja a causa
desta localidade, teríamos muito a fazer. Assim, um tempo de inconsciente de tuas preocupações. (...) Quanto às dívidas, já te
viagem de navio de quatro, cinco dias transformou-se quinze dias escrevi que não deves ver tudo de maneira tão trágica. Tenho cer-
por terra. Mas, enfim, chegamos. teza que Mário [de Andrade] esperará pela restituição do dinhei-
ro se explicares a situação a ele. Devo escrever a ele? Quando eu
As últimas notícias de ti, tive-as em João Pessoa: duas cartas
voltar a São Paulo também ganharei mais, e logo estaremos me-
aéreas seguidas, e no dia de nossa partida, tua carta simples de 17
lhor. Nos últimos dois meses tiveste despesas extras com Renata.
de maio com as belas fotografias, pelas quais agradeço-te imen-
Como escreveste, Rina morou algumas semanas conosco, e tam-
samente, pois trouxeram-me grande e profunda alegria.
bém outras pessoas vieram mais do que normalmente. Com cer-
Por favor, escreva-me por enquanto para: M.B., posta res- teza, tiveste despesas com o médico, com a farmácia, automó-
tante, Belém, Pará. Esta carta parte amanhã e deve alcançar-te veis, etc. Logo, isto chega a uma soma elevada sem que se perce-
mais ou menos quando estarei partindo daqui para Belém, onde é ba direito. Acredito que hoje essas despesas extras já acabaram e
previsto que fiquemos mais tempo, de maneira que tuas novas em alguns meses a diferença estará acertada. Se alguma vez chega-
alcançar-me-ão por lá. Sobre tudo o mais de nossa viagem te con- remos a por dinheiro no banco, só Deus sabe. Nunca faltou boa
tarei em seguida.” (...) 4 vontade, mas disso nada resultou. Quando eu estiver em São Pau-
lo, talvez possamos nos comprometer, e o que é mais importante,
Para Braunwieser, a época era de grandes mudan- cumprir, a depositar mensalmente pelo menos 20-25$ em um ban-
ças familiares e pessoais. Ao sair da capital paulista, co. Vais rir, isto não é nada, dirás. Desta quantia poderíamos sem-
pre dispor mensalmente. É melhor do que nada, e se houver a pos-
em princípios de fevereiro de 1938, o maestro deixa-
sibilidade, poderíamos elevar a quantia. Pelo menos seria dado um
início e com o tempo somaríamos um pequeno patrimônio. (...)” 5

4 5
Correspondência n° 54, São Luís do Maranhão, 15 de junho de Correspondência n° 47 (cont. Carta n° 19), João Pessoa, 27 de
1938. Tradução de Wolfgang Fischer, 1995. A palavra “caminhão” maio de 1938. Tradução: Wolfgang Fischer, 1995. A palavra “far-
foi grafada em português no original. mácia” foi grafada em português no original.
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Também no plano estritamente pessoal as mudan- ção do Departamento de Cultura de São Paulo, o rela-
ças estavam presentes. Braunwieser preocupava-se cionamento entre eles tornou-se mais estreito.
com a questão da própria nacionalidade: austríaco de Braunwieser foi convidado por Mário de Andrade
nascimento, ele acompanhou a Alemanha nazista para selecionar, em companhia do compositor
anexar sua pátria natal – um dos primeiros atos de Camargo Guarnieri (1907-1993), os cantores que iri-
guerra do III Reich, o Anschluss – exatamente no am integrar duas novas instituições musicais criadas
período de realização da viagem da Missão, época em pelo Departamento de Cultura: o Madrigal e o Coral
que já havia encaminhado seu processo de naturali- Paulistano. Em 1936, Braunwieser foi admitido no
zação brasileira, completado em 1939: quadro de funcionários da Municipalidade de São
Paulo, contratado para exercer a função de Maestro
(...) Perto de João Pessoa vi um tipo de campina repleta de substituto do Coral Paulistano.
flores amarelas brilhantes. Isto me fez lembrar da minha pátria Ainda em 1936, Mário de Andrade escolheu
que agora pertence à Alemanha. Como veio rápido este Anschluss.
Braunwieser para ser Maestro titular de um novo
Quanto tempo falou-se em uma guerra, e como tudo ficou aparen-
coral, destinado a agregar os interessados em canto
temente calmo. Como estarão as pessoas em Salzburgo nesta nova
situação? O que fará Paumgartner?6 Será que verei de novo a mi- que não possuíssem conhecimentos musicais ou trei-
nha pátria? Insisti na idéia de criar aqui no Brasil uma nova pátria namento vocal: o Coral Popular. A confiança de
para mim e sinto-me satisfeito. Que Deus dê-me forças e resis- Mário de Andrade na personalidade, competência e
tência para que eu ainda possa trabalhar muito, e após minha vol- capacidade musical de Braunwieser está claramente
ta a São Paulo, que eu tenha a oportunidade de transmitir os conhe- manifestada no ato de sua escolha. O Coral Popular
cimentos adquiridos nesta viagem. (...)7 foi projeto de grande significância para Mário de
No campo profissional, as preocupações de Andrade, criado para ser uma instituição que pudes-
Martin Braunwieser aumentaram após o retorno da se realizar de maneira concreta o conceito de “força
expedição a São Paulo. Durante a viagem, em maio socializante da música”, segundo seus próprios pres-
de 1938, Mário de Andrade foi definitivamente afasta- supostos. De acordo com o programa impresso para
do da direção do Departamento de Cultura. Como o recital de estréia, realizado como parte do “13°
integrante do quadro de funcionários da Prefeitura Concerto Popular Grátis do Departamento de Cultu-
Municipal de São Paulo, atuando como instrutor de ra”, em 1936, no Teatro Municipal de São Paulo, o
música dos Parques Infantis da capital, Braunwieser Coral Popular era a “primeira tentativa brasileira de
viu-se sem o apoio permanente de Mário de Andrade, reunir-se um coro popular, absolutamente sem dis-
seu amigo e incentivador nas atividades musicais de- tinção de classes nem especialização musical ”:
senvolvidas junto às crianças da capital.
Martin Braunwieser conheceu Mário de Andrade O concerto de hoje reveste-se de particular importância por
no início da década de 1930, Em 1935, com a cria- ser a apresentação do Coral Popular. A bem [da verdade] esta é a
primeira tentativa brasileira de reunir-se um coro popular, abso-
lutamente sem distinção de classes nem especialização musical.
Quem quer possa cantar, mesmo que não tenha conhecimentos
6 técnicos de música, pode pertencer ao Coral Popular. Assim o
Bernhard Paumgartner (1887-1971) – Musicólogo austríaco,
discípulo de Gustav Mahler, professor de Braunwieser no nosso coro de hoje ainda não tem aquelas prerrogativas de arte
Mozarteum de Salzburg. com que já se pode apresentar o Coral Paulistano. É porém um
7 esforço para o desenvolvimento entre nós do canto a várias vo-
Diário de viagem de Martin Braunwieser, João Pessoa, 24 de
março de 1938. Tradução: Wolfgang Fischer, 1994 zes. A importância pois do Coral Popular, aquilo que deve prin-
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cipalmente tocar a compreensão dos ouvintes, é seu valor social. Em fins de 1937, Martin Braunwieser foi convi-
Universalmente se sabe que o coro é o processo musical mais dado por Mário de Andrade para integrar a equipe de
perfeito para dispor o indivíduo em harmonia com os seus com- especialistas da Missão de Pesquisas Folclóricas.
panheiros de organismo social. Não se trata de impor a brutal e
Mais uma vez, o maestro austríaco viu-se envolvido
enceguecida unanimidade, mas sim criar aquele unanimismo [sic],
com o projeto de nacionalização da música erudita
aquela consciência da coletividade e do organismo social que leva
o homem a um equilíbrio mais perfeito entre o seu ser indivíduo brasileira esboçado por Mário de Andrade. À seme-
e a sua forma social de ser. Quem quer tenha vivido angustiosos lhança da escolha para o Coral Popular, pode-se per-
meses paulistas de 1932, já teve a percepção concreta do que seja ceber a confiança de Mário de Andrade na seriedade
esse unanimismo [sic] e esse equilíbrio sublime do ser. Mas não e competência profissional de Braunwieser. Dez anos
devemos esperar momentos trágicos da vida, as grandes calami- após a viagem etnográfica do Turista Aprendiz (1928-
dades públicas, as revoltas e guerras para obter o que torna o ser 1929), Martin Braunwieser foi o escolhido para inte-
humano mais completo e perfeito. É preciso aproveitar as dádi-
grar a expedição, substituindo, de certa maneira, ao
vas da paz para essa reeducação do indivíduo, e nada como o
próprio Mário de Andrade. Coube ao maestro a res-
coro para proporcionar tal reeducação. E é com estas credenciais
humanas que o Coral Popular se apresenta. ponsabilidade da decisão: foi ele quem avaliou a re-
As inscrições para o Coral Popular estão permanentemente levância musicológica das manifestações folclóricas
abertas no Departamento de Cultura, seção de Teatros e Cine- presenciadas pela Missão e autorizou o registro
mas, Teatro Municipal (porta dos fundos) das 12 às 17 horas”. 8 fonográfico em discos.
Iniciada em fevereiro de 1938, a Missão foi for-
A escolha de Braunwieser para o Coral Popular mada por quatro componentes. Além de Martin
não se deu por acaso. Amigo pessoal de Mário de Braunwieser, faziam parte da equipe: Luiz Saia (1911-
Andrade, excelente pedagogo e orientador musical, 1975), arquiteto, membro da Sociedade de Etnografia
Braunwieser desde o princípio identificou-se e pôde e Folclore, pesquisador e diretor da 6ª região do Ser-
compreender a significância do projeto de nacionali- viço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
zação da música erudita brasileira preconizado por (SPHAN), designado como Chefe da expedição, res-
Mário de Andrade, transformando-se em personali- ponsável pelos contatos políticos e oficiais e porta-
dade importante empenhada no sucesso do projeto. voz autorizado do Departamento de Cultura de São
A questão nacional no campo musical estava estrei- Paulo; Benedito Pacheco, colaborador da Discoteca
tamente vinculada à questão pedagógica. Mário de Pública Municipal, técnico contratado do Departa-
Andrade e os demais modernistas acreditavam que mento de Cultura de São Paulo e profundo conhece-
somente através de ampla reforma do ensino artísti- dor da máquina de gravação Presto Recorder utiliza-
co seria possível incutir nos jovens uma preocupação da na expedição, designado Técnico de Gravação; e
com a cultura brasileira, preocupação esta que resul- Antônio Ladeira, indicado como auxiliar geral e as-
tasse na modificação da mentalidade ainda Român- sistente-técnico de gravação9.
tica dos intérpretes e professores de música.

9
Todas as informações sobre a viagem da Missão foram extraí-
8
Programa oficial do “13° Concerto Popular Grátis do Departa- das na íntegra de: CARLINI, Álvaro – Cante lá que gravam cá:
mento Municipal de Cultura”, São Paulo, Teatro Municipal, 17 Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938.
de novembro de 1936. Texto de Mário de Andrade (?). Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP. São Paulo, 1994.
114 Álvaro L. R. S. Carlini / Revista de História 138 (1998), 107-116

Em 6 de fevereiro de 1938, os componentes da gravação ocorreram entre 29 de junho a 7 de julho,


Missão partiram do porto de Santos (SP) com desti- com a gravação de boi-bumbás e da feitiçaria do
no ao Recife (PE), a bordo do Itapagé, embarcação babassuê. O regresso a São Paulo foi a bordo do na-
da Companhia de Navegação Costeira. No dia seguin- vio-vapor Itanagé, também Companhia de Navega-
te, o Itapagé aportou no Rio de Janeiro (RJ) para uma ção Costeira, com escalas em São Luís (MA), Forta-
rápida escala. Do Rio, a expedição chegou ao Recife leza (CE), Macau e Natal (RN), Salvador (BA), Vi-
em 13 de fevereiro, após escalas realizadas em Vitó- tória (ES), Rio de Janeiro (RJ), e, finalmente, a capi-
ria (ES), Salvador (BA) e Maceió (CE). A Missão tra- tal paulista onde chegaram em 21 de julho de 1938.
balhou em Pernambuco até 26 de março, viajando em A participação, experiência e colaboração de
seguida para João Pessoa, Paraíba. Braunwieser na viagem da Missão de Pesquisas Fol-
Na Paraíba, as atividades da expedição foram mais clóricas foi marcante sob todos os aspectos pessoais
demoradas: cerca de 2 meses de permanência. Duran- e profissionais. A expedição registrou 169 discos de
te o período de 26 de março a 30 de maio, a Missão acetato com várias dimensões contendo cerca de 1500
realizou duas viagens ao interior do Estado – à zona melodias de 48 manifestações musicais brasileiras.
do sertão e à zona do brejo – além de efetuar coletas Foram registrados 12 rolos cinematográficos silenci-
próximas à capital João Pessoa. No total, os integran- osos de 16 mm documentando 12 rituais populares;
tes da expedição visitaram cerca de 30 localidades 760 fotografias contendo registros de arquitetura
paraibanas. A quantidade de melodias e manifesta- popular e religiosa, dos informantes cantadores e de
ções musicais documentadas nos discos, filmes e fo- outros detalhes; cerca de 3500 páginas com anotações
tografias, supera a marca de 760, envolvendo aboios, de letras das melodias registradas, observações sobre
cabocolinhos, cantos de mendigos, catimbós, cocos, poética popular, um outro diário de viagem e notas
nau catarineta, reis de congo, entre várias outras. diversas de autoria de Luiz Saia10 , distribuídas em 15
A partir de 31 de maio, com o objetivo de regis- cadernetas de campo, cadernos de música e outros
trar as festas juninas tradicionais na região, a Missão papéis em escritos diferentes suportes. Constam tam-
deslocou-se em direção aos Estados do Norte do Bra- bém do material coletado pela equipe aproximada-
sil. Em uma viagem realizada ora em caminhão, ora mente 600 objetos, entre instrumentos musicais, ex-
por trem, a expedição partiu com destino à capital do votos, e objetos de ritos de feitiçaria afrobrasileiros.
Maranhão, percorrendo novamente o interior da Após o retorno da expedição a São Paulo, todo o
Paraíba, parte do Ceará, Piauí, para atingir São Luís material coletado pela equipe foi incorporado ao acer-
em 16 de junho. Durante o trajeto, ocorreram diver- vo da Discoteca Pública Municipal (atualmente lo-
sas paradas não planejadas devido ao esforço e des- calizada no Centro Cultural São Paulo), sob os cuida-
gaste imposto ao caminhão. Por 72 horas, os integran- dos de sua diretora Oneyda Alvarenga. Enfrentando
tes da expedição foram obrigados a permanecer na uma situação político-financeira adversa após o afas-
cidade de Jaicós, no interior do Piauí, devido à que- tamento de Mário de Andrade do Departamento de
bra do radiador do veículo. Cultura de São Paulo, a Discoteca somente pôde ini-
No dia seguinte à chegada em São Luís do ciar o projeto de estudo e divulgação do acervo da
Maranhão, a Missão registrou a dança dramática do
bumba-meu-boi e a música de feitiçaria do tambor-
de-mina. Em 21 de junho, a expedição partiu de São 10
O diário de Luiz Saia foi transcrito e analisado integralmente
Luís com destino a Belém do Pará. Os trabalhos de em minha Dissertação de Mestrado.
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Missão em 1946, oito anos após o término da viagem. praticamente toda a coleção documentada pela equi-
A história da Missão tem um final melancólico. Não pe, ainda hoje, inéditas.
obstante seu relativo sucesso como evento isolado, os É importante ressaltar que Martin Braunwieser
objetivos fundamentais dessa expedição – a divulga- não divulgou suas anotações de viagem da Missão de
ção, estudo e aproveitamento do acervo folclórico re- Pesquisas Folclóricas em vida. Nem mesmo os seus
gistrado, para fornecer subsídios materiais ao proje- familiares mais próximos sabiam da existência do seu
to de nacionalização da música brasileira – foram so- diário pessoal e da sobrevivência, por mais de 50 anos,
mente consumados, ainda de maneira insatisfatória, das cartas escritas à esposa Tatiana durante a expedi-
com o passar dos anos11. A intenção inicial de reali- ção. Após o falecimento do maestro em 1991, em
zar a transcrição em notação musical dos fonogramas organização efetuada em sua residência por parentes,
gravados pela Missão foi iniciada em 1946 sob res- esses documentos pessoais foram localizados, acon-
ponsabilidade do compositor Camargo Guarnieri, dicionados e protegidos por envelope plástico. A pos-
contrariando a óbvia expectativa de contratação de sibilidade de estudo desse importante acervo pessoal
Martin Braunwieser. Guarnieri, no entanto, realizou foi facultada pela família que compreendeu o valor
apenas transcrições musicais experimentais de peque- da documentação, e permitiu a tradução do alemão
na parte do acervo, que permanecem, a exemplo de para o português e a conseqüente divulgação.

Bibliografia
BISPO, Antônio. Martin Braunwieser – Espiritualismo, nova BRAUNWIESER, Martin. “O cabaçal”. Boletin Latino-Ameri-
objetividade, humanismo clássico e as tradições do oriente cano de Musica, Montevidéu, vol. 6, 1946, p.601-606.
e do ocidente na pedagogia e na criação artística: contri- BRAUNWIESER, Martin. 25 brinquedos cantados: populares
buição ao estudo da influência austríaca e alemã na música infantis. São Paulo, Irmãos Vitale Ed., 1952, 55p.
do Brasil no século XX. Alemanha, Köln, Consociatio BRAUNWIESER, Martin. 25 rodas cantadas: populares infan-
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1977)”. Informativo Carlos Gomes, 1(3): 1-8, 1995.

11
Oneyda Alvarenga organizou ao longo dos anos de 1940-60, 2 Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, com 5 volu-
coleções destinadas à divulgação do acervo: Arquivo Folclórico mes, destinados a subsidiar a audição dos discos registrados pela
da Discoteca Pública Municipal, com 2 volumes publicados; e Missão de Pesquisas Folclóricas.
116 Álvaro L. R. S. Carlini / Revista de História 138 (1998), 107-116

CARLINI, Álvaro. Cachimbo e maracá: o catimbó da Missão 10 (110):11-12, 1991.


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Endereço do Autor: Av. Onze de Junho, 685/31 – CEP 04041-900 – São Paulo – SP
Roy Hora / Revista de História 138 (1998), 119-130 117

ENSAIO BIBLIOGRÁFICO
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

HOBSBAWM Y EL SIGLO XX.


A PROPÓSITO DE AGE OF EXTREMES

Roy Hora
Master of Studies, University of Oxford.
Candidato Doctoral, St Antony’s College, Universidad de Oxford.

RESUMO: Este artigo analisa o livro Age of Extremes, de Eric Hobsbawm. O livro é discutido no contexto da visão que
Hobsbawm oferece da história mundial dos séculos XIX y XX. Os compromissos políticos e intelectuais de Hobsbawm
são também considerados para entender sua visão da história contemporânea mundial.

PALAVRAS-CHAVE: Hobsbawm, história mundial, historia siglo XX, intelectual comunista, marxismo.

ABSTRACT: This essay analyses Age of Extremes, Eric Hobsbawm’s last book. Age of Extremes is discussed in the context
of Hobsbawm’s approach to XIX and XX century world history. Hobsbawm´s intellectual and political commitments are
also taken into consideration in order to understand the way in which he examines and describes modern world history.

KEYWORDS: Hobsbawm, world history, XX century history, comunist intelectual, marxism.

La obra de Eric John Hobsbawm ha tenido una telectual de izquierda a ambos lados del Atlántico. El
influencia muy notoria entre los historiadores y los primero de ellos fue Primitive Rebels. Aparecido en
científicos sociales del mundo anglosajón formados 1959, Rebeldes Primitivos llamó la atención sobre las
desde la década del sesenta. En América Latina los formas de protesta y rebelión del mundo campesino
trabajos de Hobsbawm han dejado una marca no o preindustrial en contextos sociales de transición al
menos persistente. Las razones sin duda están a la capitalismo. Fue quizá este trabajo, traducido al
mano. Desde fines de los años cincuenta, Hobsbawm castellano en 1968, aquel que lo hizo conocido –y dis-
publicó un conjunto sorprendentemente vasto de cutido– en Latinoamérica, dada la relevancia de las
ensayos y trabajos que pronto ganaron la atención no rebeliones “arcaicas” en el clima político y las
sólo de los historiadores sino también del mundo in- discusiones intelectuales de esos años en muchas
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regiones de América del Sur. Hobsbawm continuó la English Working Class. En esos años, Hobsbawm hizo
exploración de esta forma de protesta social en también una contribución mayor a la historia socio-
Bandits (1969).1 económica del surgimiento y expansión del capitalis-
A esta reflexión sobre las formas de protesta y mo británico; como visión de conjunto, su Industry
conflicto en sociedades campesinas y preindustriales and Empire (1968) todavía hoy resulta difícilmente
la antecedía otra preocupación, más clásica, por la superable. Tiempo antes, en 1954, su conocido ensayo
historia del trabajo y la clase obrera, que el joven sobre la crisis general del siglo XVII ya había incor-
Hobsbawm comenzó a desarrollar con una serie de porado al marxista inglés a la gran discusión sobre la
publicaciones surgidas en la posguerra del ya casi transición del feudalismo al capitalismo.
mítico Grupo de Historiadores del Partido Comunis- Más recientemente, en los años ochenta, Hobsbawm
ta Británico y una tesis doctoral sobre el fabianismo ha vuelto a hacerse notar por sus contribuciones sobre
inglés.2 En los sesenta, esta línea de investigación la “invención de las tradiciones” y sobre las naciones,
tomó cuerpo y dio lugar a la compilación de artícu- el nacionalismo y la tradición revolucionaria francesa.
los conocida como Labouring Men (1964), y a Así, pues, a su renombre surgido en el campo de la
Captain Swing (escrito en colaboración con George historia del trabajo y las clases subalternas, Hobsbawm
Rudé, y aparecido en 1969). Ambos agregaron capí- sumó posteriormente, con The Invention of Tradition
tulos notables a la historia del movimiento obrero y (editado con Terence Ranger en 1983), Nations and
del mundo del trabajo urbano y rural inglés, abonan- Nationalism since 1780 (1990), y Echoes of the
do, de varias maneras, un campo que iba a ser Marsaillese (1990), amplio reconocimiento como es-
fuertemente impactado por la publicación de la gran tudioso de los fenómenos culturales. Una rápida
obra de Edward Thompson, The Making of the ojeada a esta producción más reciente permite obser-

1
Es conveniente señalar que la contribución de Hobsbawm a los algunas reflexiones sobre la apropiacion de Hobsbawm en Ar-
estudios sobre campesinado ha estado en el centro de varios de- gentina (SABATO, 1993). The Varieties of Latin American
bates (CORRIGAN, 1975). Una serie de viajes a América del Sur Banditry (SLATTA, 1987) y discusiones más recientes sobre el
en los años sesenta, algunos de ellos motivados por su actividad bandismo social muestran todavía la vitalidad de los problemas
de militancia comunista, le permitieron a Hobsbawm dedicar cierta abiertos por el pequeño libro escrito por Hobsbawm en 1969.
2
atención al campesinado latinoamericano, más específicamente El Grupo de Historiadores del Partido Comunista de Gran
al de Colombia y Perú (HOBSBAWM, 1967 a y b, 1969, 1974, Bretaña funcionó entre 1946 y 1956. Entre esos años, reunió a un
1976). Pero parece razonable concluir que en América Latina el brillante grupo de historiadores afiliados a dicho partido: Maurice
impacto de estos estudios ha sido menor que el interés desperta- Dobb, Rodney Hilton, Christopher Hill, George Rudé, Victor
do por sus trabajos sobre la política “arcaica”. Por razones en Kiernan, John Saville, el propio Hobsbawm, y, en menor medida,
gran medida ligadas a las peculiaridades de la historia de sus clases Edward Thompson. Entre el esfuerzo editorial del Grupo se cuenta
subalternas, tal vez fue Brasil el país donde los trabajos de la colección de documentos Labour’s Turning Point, 1880-1900,
Hobsbawm sobre la protesta primitiva despertaron un interés más editada y prologada por Hobsbawm. Los conflictos desatados
vivo. Sin embargo, es importante señalar que la influencia de la dentro del comunismo británico por la invasión soviética a Hungría
obra de Hobsbawm en Latinoamérica se ha dado de muchas en 1956 virtualmente le pusieron fin al Grupo, así como a la
maneras, aunque su contribución todavía no ha sido objeto de pertenencia de muchos de sus integrantes al partido. Hobsbawm,
estudio sistemático. Hilda Sabato ha ofrecido recientemente sin embargo, permaneció dentro del PCGB (KAYE, 1984).
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var como en el curso de tres décadas Hobsbawm ha bargo no encuentra su núcleo en este ya de por sí vasto
venido renovando sus preguntas e inquietudes: de la conjunto de trabajos. En cambio, es en sus volúmenes
discusión sobre los orígenes y la dinámica del capi- dedicados a la historia general del siglo XIX donde
talismo, de la interrogación por los procesos de radican tanto su proyecto más ambicioso como sus
constitución de las clases subalternas y por sus mayores logros. Y tanto es así que resulta difícil preci-
prácticas asociativas y políticas, el historiador inglés sar hasta qué punto nuestra comprensión de la historia
ha girado su atención hacia las dimensiones simbóli- europea y mundial de la etapa que va de 1789 a 1914 –
cas de la realidad social, acompañando de este modo el “largo” siglo XIX– ha sido moldeada por la formi-
una deriva más general de la historiografía mundial. dable trilogía que el comunista inglés publicó a lo largo
Conviene señalar la peculiaridad de este giro de de un cuarto de siglo. Sus tres volúmenes forman el
Hobsbawm, que por momentos se asemeja a una corazón de lo que Perry Anderson ha calificado como
vuelta a sus intereses primeros. Pues a este historia- “la más poderosa historia de la modernidad que
dor inglés –al fin y al cabo, un digno hijo de la actualmente poseemos” (ANDERSON, 1995). The Age
burguesía ilustrada centroeuropea– el campo de la of Revolution (1962) interpretó los años que van de 1789
historia cultural nunca le había sido ajeno. No sólo a 1848 como una etapa de revolución social y cambio
porque Hobsbawm, todavía como estudiante de gra- político, cuyo tema dominante fue la emergencia y
do en Cambridge, había hecho sus primeras armas el ascenso de la burguesía y los avances del capita-
como comentarista cinematográfico en publicaciones lismo como nuevo sistema económico y social. Trece
de circulación universitaria; más fundamentalmente, años más tarde, en 1975, Hobsbawm dio a conocer
porque había incursionado firmemente desde los The Age of Capital, que analizaba el desarrollo de esas
cincuenta como crítico e historiador de la música tendencias en las décadas centrales del siglo, a las que
popular. Con el seudónimo de Francis Newton, en esos veía signadas por el triunfo silencioso de la burguesía
años Hobsbawm escribió una serie de ensayos sobre en las principales naciones de Europa. Finalmente, en
jazz –pero también sobre temas que van de la rumba a 1987 apareció The Age of Empire, focalizado en la
Bob Dylan– aparecidos en New Statesman, así como expansión económica y política de las metrópolis
su libro The Jazz Scene (1959). Además de todo ello, capitalistas lanzadas a la conquista del globo.
Hobsbawm es también un historiador del marxismo y En su conjunto, la obra de Hobsbawm, en especi-
un conocedor de la obra de Marx, editor de The History al su visión del siglo XIX, representa una de las ci-
of Marxism y recordado por su renovador prólogo a las mas de la escritura histórica de la posguerra. En una
Pre Capitalist Economic Formations.3 época de creciente parcialización del saber, no resul-
Prodigiosamente amplia, escrita con maestría e ta sencillo encontrar una obra que combine economía,
impecable erudición, la obra de Hobsbawm sin em- política, sociedad y cultura con la destreza y seguridad
que es habitual en los escritos de Eric Hobsbawm.
Menos aun, que al mismo tiempo sea capaz de arti-
cular un relato cuyo alcance y poderes explicativos
3
Una exhaustiva bibliografía de la obra de Hobsbawm hasta
sean parangonables a la historia decimonónica nar-
comienzos de los años ochenta ha sido confeccionada por Keith
rada por este autor. Siempre atento a la especificidad
McClelland (McCLELLAND, 1984). Sobre la producción poste-
rior de Hobsbawm, además de los trabajos ya mencionados,
de cada sociedad, al mismo tiempo que a la totalidad
conviene señalar la compilación de ensayos políticos titulada del proceso en cuestión, el relato hobsbawmniano del
Politics for a Rational Left (1988). siglo XIX tiene un tema central y un eje articulador:
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la historia del capitalismo y de su formidable los complejos político-culturales y los grandes


capacidad para transformar sociedades, de los movimientos obreros constituídos en la época de la
conflictos y los cambios que su despliegue ha Segunda Internacional, con sus solidaridades clasistas
generado. Podría decirse, incluso, que todo el trabajo y sus aspiraciones anticapitalistas.
de Hobsbawm –que recorre el arco que va del siglo Son precisamente esas promesas de avance en el
XVII al XX– tiene por telón de fondo el problema de sentido de un socialismo que, como hijo pleno de la
los orígenes, desarrollo y expansión del capitalismo Ilustración, parecía encaminado a recoger la herencia
como un proceso de cambio social que, de la econo- del mundo decimonónico –promesas con las que
mía a la cultura, impacta todos las dimensiones de la Hobsbawm una y otra vez se identifica– las que el
vida social. siglo XX parece haber frustrado de modo radical. Al
Para Hobsbawm, el largo siglo XIX asistió al cerrarse el siglo Hobsbawm no sólo advierte que
surgimiento y la expansión en Europa de una civili- nuestra época ha terminado por cuestionar severa-
zación basada en la economía capitalista, y en un mente la posibilidad de orientar con firmeza las so-
orden legal y constitucional liberal sobre el que se ciedades humanas por el camino de la igualdad.
asentaba un sistema internacional de estados. La También ha hecho naufragar mucho de lo que el co-
burguesía fue su clase típicamente hegemónica; el avan- munista inglés ve valioso en el mundo burgués del
ce de la ciencia y el conocimiento, del progreso materi- siglo XIX. Por todo ello, la historia del siglo XX que
al y moral, su bandera y su objetivo. Por todo ello, para nos ha presentado recientemente Hobsbawm no puede
Hobsbawm, el siglo XIX no sólo admite la posibilidad ser sino el relato de la caída brutal de una civilización
de una historia mundial; el vigor de las tendencias (HOBSBAWM, 1995). Como señaló Tony Judt, la
universalizadoras desatadas en los países centrales historia de lo que Hobsbawm denomina la “Era de los
también la impone como perspectiva general. Extremos” es la historia de una época –la que va de
Hacia fines del siglo XIX, estas fuerzas arrolla- la Primera Guerra Mundial al derrumbe del sistema
doras se hallaban en camino de desplegarse plenamen- soviético– que ha llevado a su mayor esplendor el
te. En el tono que signa a La era del imperialismo se potencial material y cultural de progreso social pre-
advierte la serena admiración de Hobsbawm por los parado a lo largo de más de un siglo que por muchas
logros del mundo decimonónico, capaz de una acumu- razones merece ser calificado de excepcional, y final-
lación formidable de riqueza y saber, de poder y mente lo ha desbaratado (JUDT, 1995, p.20).
sofisticación técnica. Y esa celebración de la dinámica Y es que para Hobsbawm no es sólo la desafora-
renovadora de las sociedades construídas por la da victoria del capital a escala mundial – hoy
burguesía, acelerada en las décadas finales del “siglo avanzando sin obstáculos sobre Moscú y Pekín – la
largo”, puede ser aun más plena para Hobsbawm pues que signa este fin de siglo, ni la declinación de los
entonces ella se ofrecía como el suelo de un futuro grandes partidos de base y discurso clasistas que
distinto y mejor. Pues al igual que los jóvenes auto- fueron los principales mecanismos para transformar
res del Manifiesto Comunista, en todos sus textos hombres y mujeres en ciudadanos o actores políti-
Hobsbawm traza una imagen del siglo XIX que se camente activos en el mundo occidental, ni la defun-
encuentra pautada por tendencias secularizadoras, ción de las vanguardias estéticas, o la regresión a una
igualitarias y progresistas de muy largo alcance, que barbarie guerrera que a principios de siglo parecía
se hunden en el pasado pero que fundamentalmente superada o inimaginable, las que dan la medida de
apuntan al futuro. Fueron ellas las que dieron lugar a esta tragedia. Es la combinación y la suma de todos
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estos elementos los que indican la verdadera dimen- de Oskar Lange, inquieto por la pregunta sobre si
sión de esta caída y esta traición. hubiese sido posible otro modelo de industrialización
Por muchas de estas razones, los motivos del en la Unión Soviética, menos brutal, menos indis-
pesimismo de Hobsbawm son comprensibles. Pero criminado, menos costoso en términos de esfuerzos
esta visión sombría no sólo es consecuencia de que y vidas humanas.
el marxista inglés fue testigo de una época que se Age of Extremes está organizado en tres partes,
inició con promesas de progreso y culmina ingre- que periodizan etapas del desarrollo socioeconómico
sando al siglo XIX a golpes de mercado. Quizá más capitalista. Cada una de ellas tiene un tema dominan-
que ello, también resulta de circunstancias biográfi- te, y sobre ese fondo se articulan los detalles de un
cas. Hobsbawm fue y sigue siendo un actor de los cuadro general que evidencia la amplitud de conoci-
dramas de este “siglo veinte corto” que termina con mientos que es típica de todos sus escritos. Al mismo
el opacamiento de los ideales a los que consagró su tiempo, a esta estructura tripartita se le sobreimpone
vida de intelectual comunista. Ello se advierte en el una narración centrada en los conflictos político-ide-
hecho de que escribir la historia del siglo XX es para ológicos del siglo, que Hobsbawm ve dominada por
Hobsbawm un proyecto vinculado a su propia bio- el enfrentamiento entre capitalismo y comunismo. En
grafía (el siglo corto, por otra parte, coincide prácti- la primera parte, llamada la “Era de las Catástrofes”,
camente con la vida de este intelectual nacido en Hobsbawm analiza un período de guerras, crisis y
Alejandría en 1917, tres años después de que el Archi- revoluciones en el que ve derrumbarse el mundo del
duque Francisco Fernando muriese asesinado en siglo XIX. Esas tres décadas de inestabilidad se
Sarajevo). Por ello contar la historia de nuestro siglo inician con la Primera Guerra Mundial, cuyo origen
es, para Hobsbawm, un ejercicio de trabajo – de relaciona con la competencia interimperialista. Sin
expansión, de rectificación – sobre su propia memoria embargo, Hobsbawm no investiga en profundidad en
política e histórica (y el resultado es, sin duda, su libro qué medida la etapa previa prepara ese desenlace, y
más personal y autobiográfico). En distintas ocasio- en cambio prefiere subrayar como las transforma-
nes, el propio Hobsbawm se hace presente en el rela- ciones que la Guerra desata implican un punto de no
to, en instantáneas que muchas veces se vinculan con retorno respecto de las formas de sociabilidad domi-
su vida de militante comunista. Así lo vemos, en una nantes en el siglo que entonces ve cerrarse. De este
tarde de invierno de 1930, como un alumno de escuela modo, Hobsbawm le quita relevancia a aquellos
secundaria que en su camino a casa en Berlin es sor- desarrollos que, como en el caso del nacionalismo
prendido por los periódicos que anuncian la llegada decimonónico, en especial el de las clases subalter-
de Adolf Hitler a la Cancillería alemana. Más tarde nas, ofrecen una imagen alternativa de la herencia que
aparece, ya como miembro del Partido Comunista, el siglo moribundo ofrecía al nuevo.
defendiendo la República en la Guerra Civil Española. A Hobsbawm le interesa señalar el corte por so-
Lo hallamos en los años cincuenta, en Moscú, descu- bre la continuidad. Es por eso que subraya como tras
briendo con sorpresa que el todopoderoso Stalin se re- cuatro o cinco años de una carnicería sin igual, la civi-
vela, una vez embalsamado, un hombre extremadamente lización que resurgiría de la guerra no iba a ser la de
pequeño (menos de 1,6m de estatura). Hobsbawm antes. En primer lugar, porque de allí en más el siglo
también se retrata formando parte de las multitudes no puede concebirse disociado de un nuevo tipo de
seducidas por los interminables discursos de Fidel esfuerzo bélico tan central a su historia como cuali-
Castro. Aparece, asimismo, junto al lecho de muerte tativamente distinto de los que el mundo había
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conocido hasta entonces. Y ello no sólo por la sión se combinó con la crisis de las antiguas clases
abundancia de los conflictos o las nuevas técnicas de dominantes y el ascenso de la izquierda organizada,
destrucción puestas en juego. También porque de allí la salida más habitual fue el fascismo.
en más la guerra total comenzó a golpear con especi- El fascismo resultó entonces una respuesta a los
al dureza a las poblaciones civiles que sostenían el desafíos de una sociedad en profunda crisis econó-
enorme esfuerzo que acarrean los nuevos conflictos. mica y social, al mismo tiempo que amenazada por
Un primer anticipo de esta nueva situación lo ofrece un movimiento obrero de izquierda poderoso aunque
la prolongada y desgastante Primera Guerra Mundi- incapaz de hacerse con el poder (como se advierte,
al. La Gran Guerra debilitó a todos los regímenes Japón y España, entre otros, no ingresan dentro de la
políticos, y los imperios continentales se hundieron categoría, y Hobsbawm prefiere describirlos como
como consecuencia del esfuerzo que reclamaron de regímenes autoritarios). Afirmando una interpretación
sus súbditos, o como resultado de la derrota. Ello hizo ya clásica, Hobsbawm ve al fascismo como una
posible que en el más débil y atrasado de ellos, el reacción a un avance de la izquierda, y por ello sos-
zarista, la ola de descontento social fuese transforma- tiene que el mismo encontró su núcleo en la movili-
da por Lenin y sus bolcheviques en un régimen alter- zación de los sectores medios; si destaca su pertenen-
nativo. Para Hobsbswm, este origen signó la historia cia a la era de la política de masas, prefiere en cam-
futura del socialismo en Rusia, y al cabo, en el mun- bio exculpar a las clases populares de toda identifica-
do. Los bolcheviques debieron entonces enfrentar los ción estricta con el fenómeno en cuestión.
dilemas de una revolución anticapitalista que reinaba Tras consolidarse internamente y restablecerse de
sobre una sociedad diezmada por la guerra, profun- los efectos más dramáticos de la Depresión, los
damente atrasada y básicamente campesina, y que al regímenes fascistas y su coro de aliados se lanzaron
mismo tiempo debía competir en un contexto inter- a una política expansionista que iba a culminar en la
nacional extremadamente hostil. Fueron estos dile- Segunda Guerra. Este gran enfrentamiento es consi-
mas los que, independientemene de las propuestas po- derado por Hobsbawm como el momento decisivo en
lítico-organizativas provistas por el marxismo, pron- la historia política del siglo XX. En esos años el
tamente hicieron que el comunismo soviético tomase enfrentamiento entre capitalismo y comunismo
la forma de un programa autoritario para modernizar permaneció en un segundo plano, ya que entonces se
sociedades atrasadas. jugó la suerte de estos dos regímenes que prefiere
En el Oeste, la guerra iba a dejar también enor- calificar como hijos de la Ilustración, en abierta
mes secuelas. El arreglo de Versalles ofreció una batalla contra las fuerzas del fascismo. Por ello,
solución inviable al excluir a Alemania de todo pa- Hobsbawm describe el conflicto como una gran guer-
pel en el sistema de poder internacional. La Depre- ra civil a escala internacional, y ello lo obliga a
sión, en parte ligada a las consecuencias del tratado asordinar los componentes nacionales de la resis-
de paz, fue el siguiente golpe asestado sobre unas tencia antifascista y de la alianza que finalmente iba
sociedades que no se habían recuperado de los trau- a vencer a las fuerzas del Eje.
mas de la Gran Guerra. La Depresión no sólo quebró Paradójicamente, la economía soviética lanzada
a todas las grandes economías capitalistas y al siste- pocos lustros antes al proceso de industrialización
ma mundial que las ligaba; para Hobsbawm, al mismo planificada, iba a ser la clave de la derrota de Hitler,
tiempo puso en cuestión la supervivencia de la demo- y con ella, del reverdecimiento de las democracias
cracia liberal. En aquellos países en los que la depre- liberales occidentales. Pues no sólo el Ejercito Rojo,
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tras detener a las fuerzas alemanas, avanzó de triun- plejidad de esas décadas vertiginosas. Pero sin duda con
fo en triunfo desde Stalingrado hasta Berlin. La su argumento Hobsbawm encuentra, póstumamente, un
experiencia de la economía planificada que estaba sentido insospechado a la experiencia soviética.
sosteniendo materialmente ese avance ofreció inspi- En todo caso, tras la Segunda Guerra un capita-
ración para la planificación indicativa que se colocó en lismo muy cambiado y con una enorme capacidad de
la base de los acuerdos sociales forjados en todo crecimiento y expansión dio lugar a la “Edad de Oro”
Occidente en la inmediata posguerra. Asimismo, el del siglo, que comprende las décadas que van de la
temor a un avance comunista en una situación de finalización del conflicto a la crisis de comienzos de
depresión similar a la que sucedió a la Primera Guer- los años setenta. Hobsbawm es bastante parco para
ra, proveyó incentivos para que el capitalismo se re- indicar las razones de este gran despegue, y prefire
formara sobre estas líneas socialmente inclusivas. describir como esos años asistieron a transforma-
Ya se ha señalado como Hobsbawm ofrece una ciones espectaculares tanto en los países centrales
explicación en clave social del autoritarismo del como en la periferia del mundo capitalista. En el cen-
modelo soviético, sin vincularlo con el sistema de tro, las economías desarrolladas, empujadas por la
creencias que se convirtió en ideología oficial de los norteamericana, ingresaron desde comienzos de los
estados socialistas. Pero Hobsbawm no sólo intenta años cincuenta en una etapa de abundancia y prosperi-
una recuperación de la tradición de la Segunda Inter- dad nunca antes imaginada, en la que el estado de
nacional. Asimismo, instala la experiencia soviética bienestar apuntalaba al mismo tiempo el proceso de
como un elemento positivo en la historia del Occidente acumulación y la distribución de sus frutos. Es impor-
capitalista. En primer lugar porque enfatiza el papel de tante señalar que las consecuencias sociales y culturales
los partidos comunistas y el Ejército Rojo en la de esa transformación son decisivas para Hobsbawm,
resistencia y luego en la derrota del fascismo. En se- pues a la larga iban a minar las bases sobre las que se
gundo lugar, porque sostiene que las grandes reformas asentaba la cohesión política de las clases subalternas,
de las sociedades capitalistas en la posguerra debieron debilitando por tanto aquel factor que en el pasado había
mucho a los estímulos provenientes de la competencia sido la principal fuerza de cambio social en Occidente.
entre sistemas sociales rivales. Este es un punto espe- En esos años, la declinación de las viejas potencias
cialmente debatible, ya que otros factores – de la imperialistas en la periferia apuró el proceso de
economía keynesiana a las experiencias fascistas – descolonización, también fomentado por la Unión
podrían argumentarse convincentemente como Soviética y los Estados Unidos, que anhelaban sumar
alicientes igualmente poderosos para tales cambios. nuevos reclutas a sus áreas de influencia. Un nuevo
Esta evaluación de la experiencia comunista está en sistema de estados nominalmente soberanos surgió en
las antípodas de la ofrecida –también recientemente– Asia y Africa. Muchos de ellos buscaron inspiración
por Francois Furet en Le passe d’ une ilussion en las recetas moscovitas de industrialización y
(FURET, 1995). Mientras que Hobsbawm prefiere desarrollo, que eran, según Hobsbawm, el principal
enmarcar esta experiencia en la matriz “progreso- atractivo que el sistema socialista entonces podía ofre-
reacción”, Furet la coloca, junto a la fascista, como cer a lo que comenzaba a llamarse el Tercer Mundo.
los dos grandes enemigos del mundo liberal y demo- Gracias a ellas, o a otras provistas por las economías
crático. Si el debate entre estas dos posiciones no tiene capitalistas, estas décadas también allí fueron de
visos de cerrarse, al menos puede decirse que ninguna sostenido cambio. En sociedades hasta entonces
de ellas parece en condiciones de captar la com- agrarias, una transformación cualitativa de la econo-
126 Roy Hora / Revista de História 138 (1998), 119-130

mía puso fin al destino campesino o agrícola que funcionar a la economía y la sociedad, sin que hubiese
habían mantenido por varios miles de años, incluso alternativa alguna para reemplazarlos.
después de los avances en la mercantilización de la Cuando el estado soviético entró en crisis, toda su
producción agrícola, la fuerza de trabajo o la tierra ex- sistema de estados aliados y clientes se quebró sin
perimentados en la previa era de expansión imperial.4 mayor resistencia. Salvo en Polonia, donde desde
La Guerra Fría que ensombreció la posguerra tuvo comienzos de los años ochenta había surgido una
su principal escenario en este terreno recientemente oposición obrera y católica al régimen, en el resto del
sumado al mundo de los estados soberanos. En Eu- hinterland soviético los regímenes comunistas se
ropa, en cambio, Hobsbawm advierte un acuerdo tá- desarmaron sin que enfrentasen desafío organizado
cito que respetaba las líneas trazadas al finalizar la alguno. La lección que saca Hobsbawm de los sucesos
Segunda Guerra Mundial entre las fuerzas de la Unión del Este no ofrece el optimismo de quienes vieron allí
Soviética y sus satélites y la alianza liderada por Es- un triunfo de la libertad sobre el despotismo, mucho
tados Unidos. Según Hobsbawm, a pesar de la encen- menos de quienes consideraron esa ocasión como una
dida retórica de los contendientes – en especial la oportunidad para reunir al socialismo con la demo-
apocalíptica que dominó al estado norteamericano – cracia. La disolución de esos regímenes, que se
los dos aceptaron prontamente que el poder nuclear desfondaron sin fuerte oposición interna, refuerza su
sólo admitía la coexistencia relativamente pacífica de idea sobre el carácter limitado de los cambios que
los sistemas rivales. sufrieron las sociedades sobre las que reinó la buro-
Esta situación, aunque recalentada por los conflic- cracia socialista, así como para argumentar la
tos de los años setenta – en Centroamérica, en debilidad de la implantación de las ideologías socia-
Afganistán – no iba a ser modificada sino por la ines- listas oficiales.
perada debacle del sistema soviético. La caída de la El fin de un conjunto de estados nominalmente
Unión Soviética es vista por Hobsbawm como un re- socialistas cierra el gran conflicto que, salvo en los
sultado de las dilemas que enfrentaron los reformis- años de la amenaza fascista, estuvo en el centro de la
tas soviéticos cuando se decidieron a iniciar una po- historia política del siglo. Pero hoy Hobsbawm
lítica destinada a superar el estancamiento de las eco- advierte que el final de esta historia era previsible.
nomías planificadas, que a fines de los años sesenta Vistas en perspectiva, las circunstancias que dieron
ya se había tornado evidente. Pues la política de lugar al surgimiento del fascismo –la serie de cala-
glasnost puesta en marcha por Gorvachev minó la midades de la “Era de las Catástrofes”, en especial la
autoridad de la burocracia del estado/partido, el úni- Gran Guerra y la Depresión Mundial– fueron para
co actor que, a falta de una verdadera sociedad civil, Hobsbawm las mismas que hicieron que un sistema
tenía capacidad para liderar y conducir la perestroika social nacido en una periferia atrasada del mundo
que debía vigorizar la vida soviética. El resultado fue capitalista pudiese aparecer como una alternativa
la destrucción de los viejos mecanismos que hacían sustancial a ese orden, ya que le dieron una proyección
desproporcionada al poder de los estados socialistas.
Una vez que el capitalismo se recuperase –como
sucedió en los años de la posguerra– esta situación de
4
Algunas críticas a este argumento pueden verse en Therborn
competencia no estaba destinada a durar, pues uno de
(THERBORN, 1995, p.88). Consúltense también los comentarios los rivales era indudablemente más poderoso que el
de Tom Nairn (NAIM, 1995) y Michael Mann (MANN, 1995). otro. Cuando entre esos estados socialistas hoy sólo
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cuenta la China comunista que, bajo el liderazgo de vos. Este derrumbe contribuye no sólo a la debacle
Deng, decidió abrirse a las fuerzas de una expansión de la economía y la sociedad soviéticas; también de-
capitalista firmemente controlada por un estado nada sorganiza el sistema de poder mundial, con percep-
dispuesto a tolerar disidencias (en términos de Age tibles efectos en Europa Oriental, Asia y Oriente
of Extremes, una especie de perestroika sin glasnost), Medio. Hay que tener en cuenta que Hobsbawm hace
todo parece indicar que es la dinámica interna de las un esfuerzo por señalar que esta caída se produce
sociedades occidentales la que signará la suerte de las después de finalizada la Segunda Guerra Fría (un
décadas por venir. suceso que ve, por cierto, como una iniciativa unila-
Y es en estas sociedades que han vivido con el teral de Gorvachev). Por otra parte, Hobsbawm afir-
boom de la posguerra la etapa de prosperidad más ma que la dinámica del capitalismo ha adquirido una
formidable de toda su historia donde las dos últimas forma ecológicamente más destructiva y socialmen-
décadas –lo que Hobsbawm llama “El Derrum- te más excluyente que en el pasado, y – quizá peor–
bamiento”– han dado signos que no alientan su opti- incontrolable. Es esta dinámica la que es capaz de
mismo. Desde comienzos de los años setenta la eco- infligir severos e irreparables daños en la sociedad,
nomía mundial no ha conocido crisis como la del ‘30, en el medio ambiente.
pero parece claro que los mecanismos que la habían Por cierto, el colapso repentino de la Unión Sovi-
hecho crecer de modo armonioso han dejado de fun- ética y la ausencia de alternativas consistentes a un
cionar aceitadamente. Los estados nacionales, por su orden capitalista fuera de control parecen sostener la
parte, se debilitan, o reformulan los acuerdos sociales idea de que una etapa se ha cerrado en la historia del
de la posguerra. Hoy día, el desempleo y la mendici- mundo. Y con ello resulta posible volcarse hacia los
dad forman otra vez parte del paisaje urbano en enfrentamientos y los conflictos de un pasado que
cualquier ciudad del occidente desarrollado. Quizá hasta hace poco era parte del presente con la sensación
más importante, mientras duró, el sorprendente éxito de que pertenecen a una época que ya no es totalmente
de los años dorados minó las bases de las solidarida- la nuestra. Es esta distancia que no se mide sólo en
des clasistas que habían actuado hasta ese momento años la que ahora permite reabrir la pregunta sobre
como el principal estímulo para el cambio social: la la verdadera clave de nuestra época, y Hobsbawm por
vieja clase obrera viene perdiendo peso entre los momentos ofrece una respuesta desconsoladora, que
sectores subalternos, las instituciones y tradiciones reconoce en los enfrentamientos sociopolíticos que
sobre las que se asentaba su poder se han opacado, hicieron vibrar al siglo algo similar a las guerras reli-
minadas por la prosperidad y las tendencias privatiza- giosas medievales. Si es que el conflicto entre siste-
doras de las sociedades de consumo. Llegado a este mas ideológicos rivales no fue más que un conjunto
punto, Hobsbawm es extremadamente escéptico de batallas navales en un vaso de agua, la historia sus-
respecto del potencial de las nuevas fuerzas surgidas tancial de nuestra era se ubica en un movimiento de
de ese ocaso – en especial, del estudiantado y el fe- larga duración en el que Hobsbawm destaca el triun-
minismo – y muy crítico de todas las formas de con- fo de la sociedad industrial sobre la agricultura pri-
testación social nacidas desde los años sesenta. mitiva y el mundo campesino, la explosión demográ-
Considerado en perspectiva, el pesimismo de fica del Tercer Mundo, los cambios en la estructura
Hobsbawm se sustenta fuertemente en dos afirma- familiar, entre los sexos y las generaciones.
ciones cruciales. Por una parte, que la caída de la ¿Es esta una victoria inesperada de un modo de
Unión Soviética debe evaluarse en términos negati- considerar la historia en un tiempo identificado con
128 Roy Hora / Revista de História 138 (1998), 119-130

una estación en la deriva de la Escuela de Annales? En otro sentido, las críticas del intelectual palestino
Por muy decisivas que resulten, estas transformaciones indican que las trayectorias y los compromisos polí-
– producidas en lo que Goran Therborn ha llamado el ticos e intelectuales de uno y otro inciden fuertemente
nivel de la “geología social” (THERBORN, 1995, p.84), en sus consideraciones sobre el momento actual. Por
no ocupan el centro de la atención de Hobsbawm. Más cierto, esta última línea de reflexión nos alerta sobre
bien hacen las veces de telón de fondo y de producto de cómo la mirada de este comunista de toda la vida se
un proceso histórico ritmado por la combinación de identifica con la suerte del proyecto político-institucional
movimientos estructurales y acciones colectivas. Y es que, con la crisis del sistema de estados que lo sostuvo,
desde esta matriz interpretativa que, al revisar la hoy aparece fenecido, y sobre como ello no puede dejar
marcha del siglo, a Hobsbawm le resulta difícil hallar de pesar en su visión del presente y el futuro.5
en las últimas décadas aquellas perspectivas esperan- Teniendo este pesimismo en mente es posible ar-
zadoras que algunos de sus comentaristas, incluso gumentar que el contraste entre la era dorada y el
dentro de la tradición de izquierda, encuentran más derrumbe que la sucede aparece sobreenfatizado en
fácilmente. Como resulta esperable, entre estos últi- Age of Extremes. Y ello no sólo porque Hobsbawm
mos se cuentan quienes prefieren otorgar menor rele- tiende a destacar y generalizar las transformaciones
vancia a las características de los procesos de acumu- producidas entre 1945 y 1973. También porque pres-
lación y a las dimensiones clasistas que siguen siendo ta escasa atención a aquellas señales que evidencian
tan centrales para Hobsbawm (aunque en Age of tendencias expansivas en las décadas que suceden a
Extremes, los primeros ocupan un lugar más desta- 1973. Entre estas sobresale el formidable desarrollo,
cado que las últimas). Edward Said se halla entre los económico pero también social, del Oriente. ¿O es
que han llevado adelante una crítica de este tipo, que el sorprendente crecimiento de las economías del
valorando de muy otro modo los cambios en las Sudeste Asiático y el desplazamiento del centro de
actitudes populares desde los años sesenta, enfati- la economía mundial del Atlántico al Pacífico no
zando la autonomía de los procesos sociales en el ofrece un panorama distinto al de un derrumbamiento
Tercer Mundo respecto de las fuerzas sociopolíticas en todos los frentes? ¿O es que el incremento en los
de los países centrales, señalando el carácter eminen- estándares de vida que de él resulta no indica pers-
temente discursivo de las identidades constituídas a pectivas que contrastan con el empobrecimiento y la
lo largo de esta historia (SAID, 1995, p.22-23). Por declinación del sistema soviético, Africa o América
momentos, la evaluación de uno y otro no puede ser Latina? Y no se trata sólo, por cierto, de las nuevas
más opuesta. Así, por ejemplo, donde Hobsbawm ve potencias industriales que comenzaron a crecer ace-
que la “revolución cultural” de la segunda posguerra leradamente en los años setenta, como Corea y
remata en el triunfo del individuo sobre la sociedad, Taiwan. Se trata también de los países que se han in-
el autor de Culture and Imperialism advierte en cam-
bio que, al despertar toda una serie de transforma-
ciones en la subjetividad, ella ofrece una renovada
5
El propio Hobsbawm recordaba hace poco que “gran parte de mi
fuente de recursos para el cambio social.
vida, probablemente la mayor parte de mi vida adulta, estuvo
En alguna medida, la diferencia entre conclu-
dedicada (...) a una causa que ha fracasado completamente”. Allí
siones como las de Hobsbawm y Said radica en las mismo señalaba cómo ello contribuyó a definir su visión de la
distintas evaluaciones que cada uno de ellos hace de estructura tripartita del siglo que aquí consideramos (HOBSBAWM,
los núcleos duros que remiten al marxismo clásico. 1993, p. 22).
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corporado más tarde a esa dinámica de crecimiento, su complejo legado al siglo XX. El resultado es que,
que entre todos suman unos 2.000 millones de habi- al comparar las dos épocas, Hobsbawm tiende a exage-
tantes. China crece a una tasa anual acumulativa del rar el contraste entre uno y otro momento. Ello no sólo
10% desde hace quince años; en los últimos diez años, ofrece argumentos al pesimismo del autor inglés. Quizá
ha logrado duplicar –aunque no sin acusadas desi- más importante, con ello se debilita su explicación de
gualdades– el ingreso per cápita de su población. los motivos que revirtieron las fuerzas que, aunque
Menos espectacular, pero también digno de atención, parecían mover unidireccionalmente al siglo XIX, se
es lo que sucede en Indonesia, Malasia y la India. opacaron brusca e inesperadamente en el XX.
Dicho sea de paso, es en la consideración del Orien- Se advierte aquí no sólo uno de los aspectos más
te –y en menor medida de los Estados Unidos– don- discutibles de Age of Extremes, sino también uno de
de se encuentra el único punto en el que esta historia los mayores límites del enfoque de Hobsbawm. Estos
del siglo queda corta respecto del fin del eurocen- límites, sin embargo, merecen ser situados. Vale la
trismo que Hobsbawm anuncia como una marca dis- pena advertir que, más allá de sus dificultades para
tintiva del siglo. Con relación a otras áreas como el dar cuenta de ciertos procesos que desafían su visión
Oriente Medio, la India, América Latina o Africa, y secular y progresista, la preferencia de Hobsbawm por
más allá de las esperables críticas del especialista de formas de pensar la historia hoy vistas como poco
cada una de estas regiones, ese objetivo se cumple novedosas debiera evaluarse con atención. Por una par-
admirablemente. te, es claro que la riqueza de la reflexión de Hobsbawm
Al contrastarla con comentarios como el de Said, no es sólo producto de su marxismo, que sigue bajo la
también se advierte que esa diferencia en las mira- marca de perspectivas teóricas tenidas hace tiempo por
das tiene otro origen. Resulta asimismo de las dificul- poco innovadoras incluso dentro de la tradición inte-
tades de Hobsbawm para pensar todo aquello que no lectual de la izquierda británica (SAMUEL Y JONES,
parece encuadrarse facilmente dentro de la perspec- 1994, p.X); lo es también de su conocimiento olím-
tiva que ofrece la veta racional y progresista que según pico, de su siempre imaginativa y amplia curiosidad
él recorre la historia occidental, marcando a los histórica, de su destreza para la generalización, de su
actores con los que se identifica, en especial a su clase agudeza para destacar el detalle sugestivo. Todas es-
obrera. En este como en otros textos, Hobsbawm se tas capacidades muy bien pueden desarrollarse en el
muestra reacio a entender resultados no previstos den- marco de otras tradiciones de investigación. Pero en
tro de ese patrón de comportamiento, que nuestro todo caso, resulta destacable que haya sido en el
siglo ofrece en cantidades abundantes. El impacto de marco de un pensamiento matrizado por perspectivas
ideologías no específicamente clasistas en las clases que señalan la globalidad y unidad de lo social, y las
populares, en especial del nacionalismo, es uno de dimensiones estructurales y fuertemente determina-
ellos. A lo largo de Age of Extremes – al tratar los das de los procesos históricos, que Hobsbawm haya
orígenes de la Primera Guerra Mundial, el ascenso del logrado producir la mejor síntesis de nuestro siglo de
fascismo o la movilización desatada por la Segunda que por ahora disponemos. Y si es que la problemáti-
Guerra Mundial – Hobsbawm lidia no sin dificultad ca de una historia mundial todavía conserva su legiti-
con el punto. Ello resulta de una visión por momen- midad y su vigencia, poco parece indicar que el recha-
tos unilateral del siglo XIX. Pero sin duda el proble- zo de perspectivas como la de Hobsbawm resulte
ma mayor es que estas limitaciones para interpretar capaz de ofrecer, a cambio, una propuesta alternati-
el siglo XIX se traducen en dificultades para evaluar va para interpretar los problemas generales de nuestro
130 Roy Hora / Revista de História 138 (1998), 119-130

siglo XX. El impacto de la restructuración capitalis- el siglo XX, a su modo, también está pautado por la
ta en curso, tanto en las metrópolis como en las peri- expansión de la sociedad capitalista, y por las trans-
ferias, por ejemplo, parece indicar la justeza de formaciones y conflictos que su avance ha generado.
aquellas afirmaciones que destacan la unidad de este En todo caso, y más allá de las limitaciones del mag-
proceso, así como su centralidad para moldear los nífico Age of Extremes, una cosa es segura: Hobsbawm
destinos colectivos. Más en general, resulta difícil ha colocado la discusión sobre el sentido de nuestra
pensar en otros principios capaces de articular una época en una posición bien elevada. Es de esperar que
narrativa cuyo alcance explicativo resulte igualmente quienes se internen en su espesura lo hagan con la
amplio y convincente. Aun cuando se discrepe con la inquietud y la amplitud de miras que signa la trayec-
visión pesimista que Hobsbawm hace suya, el histori- toria de este historiador que sigue haciendo del pasado
ador inglés no parece no haber errado al afirmar que un instrumento de comprensión del presente.

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Endereço do Autor: Domicilio entre el 20/09/1996 y el 20/04/1997: Bonpland 2348 5° D • 1425 • Buenos Aires • Argentina • Tel: 541–
775–7083 • E-mail: rhora hisrav.filo.uba.ar • Domicilio permanente: St Antony’s College Oxford • OX2 6JF • United Kingdom • Fax:
44–01865–310518 • E-mail: roy.hora sant.ox.ac.uk
Fábio Pestana Ramos / Revista de História 138 (1998), 133-138 131

RESENHAS
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Unesp,
1997, 678 páginas.

Organizado pela Professora Doutora Mary Lucy importância e referência obrigatória, à medida que
Murray Del Priore, do Departamento de História da pioneiros.
Universidade de São Paulo, fartamente ilustrado, A Professora Mary abre a obra com uma breve
História das Mulheres no Brasil, pretende ser uma apresentação, que é seguida pelo texto de Ronald
obra destinada a especialistas, não especialistas, e Raminelli, professor adjunto do Departamento de His-
curiosos, tarefa que cumpre com maestria. Na verda- tória da Universidade Federal do Paraná, “Eva Tupi-
de a obra reúne os escritos de 19 historiadores, em nambá”, no qual através de uma visão histórico-antro-
sua quase totalidade professores universitários, e de pológica, o autor levanta questões relacionadas com
uma escritora, Lygia Fagundes Telles. Todos eles o cotidiano das indígenas brasileiras do início da colo-
contribuem com temas que refletem o estágio atual nização portuguesa, destacando sobretudo a tribo
das pesquisas relacionadas à feminilidade no Brasil, Tupinambá, sem deixar de mencionar algumas práti-
mostrando o papel desempenhado pelas mulheres ao cas observadas entre os Caetés e Caraíbas. Lembran-
longo de nossa história, abarcando desde o cotidiano do que a documentação, dos séculos XVI e XVII,
das indígenas do início da colonização até os movi- referente ao tema é pouco precisa e muito contradi-
mentos de trabalhadoras desenvolvidos ao longo do tória, uma vez que os relatos dos viajantes europeus,
século XX. principal fonte na reconstituição do cotidiano indíge-
O fato da organizadora ser uma das maiores, e tal- na, viam com estranheza e julgavam pela ótica de seus
vez mesmo a maior, especialista no assunto no Bra- próprios valores os costumes silvícola, o historiador
sil, garantiu que a obra tomasse um corpo unívoco, descreve o cotidiano feminino indígena desde o nas-
não obstante ter sido construída a partir do conheci- cimento até a idade dos “seios caídos”, passando pela
mento de diversos autores das mais variadas especiali- análise da sexualidade, pelo papel desempenhado
dades. Cabe aqui lembrar que a tese de doutorado da pelas mulheres nas cerimônias canibalescas, pelas
Professora Mary, Ao Sul do Corpo: condição femini- relações observadas entre mães e filhos, os ritos de
na, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia, passagem de menina à mulher, e a inserção e o papel
defendida sob a orientação da Professora Doutora desempenhado pelas indígenas dentro do contexto
Maria Luiza Marcílio em 1990, bem como os diver- familiar silvícola. Curiosamente o autor consegue tra-
sos artigos publicados ao longo de sua carreira como çar o vínculo temático implicado entre o sexo femini-
docente, abordando questões ligadas à sexualidade e no, a sedução, o canibalismo, a vida e a morte; mos-
sociabilidade feminina, constituem trabalhos de suma trando que no imaginário Europeu, as mulheres, ín-
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dias ou européias, eram vistas como filhas de Eva, nhada pelas danças e costumes africanos, concluin-
reunindo sob este desígnio os piores predicados. do que, no Brasil colonial, das mais variadas formas
O segundo texto da obra, “A arte da sedução: se- as mulheres contornavam a repressão deixando aflorar
xualidade feminina na Colônia”, de autoria de Emanuel a arte da sedução.
Araújo, professor do Departamento de História da O terceiro texto, “Magia e medicina na Colônia:
Universidade de Brasília, aborda questões ligadas a re- o corpo feminino”, de autoria da Professora Mary Del
pressão da sexualidade feminina por parte da socie- Priore, aborda a ciência médica entre os séculos XVI
dade colonial, que distinguia o papel da mulher mãe e XVII, quando se acreditava que as doenças eram
e esposa do papel desempenhado pela amante. À boa derivadas dos pecados cometidos, os cirurgiões eram
esposa cabiam os atos contidos e a auto repressão se- poucos e mal instruídos e o atraso da medicina era
xual, ao passo que o bom marido deveria respeitar sua grande. Em uma época em que muitas mulheres que
esposa, tendo sexo com ela apenas com fins a procria- tinham algum conhecimento de como curar enfermi-
ção, o prazer só podia ser vivido ao lado da amante e dades desempenhavam o papel que caberia a um mé-
nunca da esposa. Não obstante esta repressão, no dico, tendo sido por este motivo perseguidas, mas nem
Brasil colonial imperava a sensualidade feminina, exi- por isso deixando de curar, o conhecimento médico
bida através dos trajes provocantes, leves e típicos de sobre o corpo feminino era extremamente reduzido e
um país quente. Reprimidas pela sociedade, as mu- relegado a segundo plano. A historiadora mostra que
lheres encontravam nas festas religiosas a oportuni- enquanto o conhecimento médico acerca do corpo da
dade ideal para deixarem-se seduzir, e embora o ris- mulher estava reduzido aos órgãos ligados a reprodu-
co fosse grande, pois caso fossem pegas podiam de ção, a prática de curandeirismo era extremamente co-
acordo com a justiça ter a pena capital aplicada pelo mum no Brasil colonial, suprindo a lacuna deixada
próprio cônjuge, trair ao marido. Dentro deste contex- pela medicina oficial, como resposta ao desconhe-
to, o autor coloca a idéia de que a tentativa de controle cimento médico do corpo feminino as mulheres termi-
da sexualidade feminina, tinha como resposta ou a navam tratando a si mesmas.
submissão aos padrões impostos, ou, ao contrário, o O quarto texto, “Homoerotismo feminino e o San-
exercício da sedução e da transgressão, descrevendo to Ofício”, de autoria de Ronaldo Vainfas, professor
como forma de não aceitação ao domínio masculino titular do Departamento de História da Universidade
o homossexualismo feminino. Lembrando por vezes Federal Fluminense, aborda os chamados casos de so-
as interpretações de “uma historiadora”, a saber Mary domia entre mulheres no Brasil colonial, depois de
Del Priore, o texto mostra com clareza que a mulher discutir a concepção de sodomia, o historiador mos-
era vista como um animal a ser domado, e que exata- tra que a prática do homossexualismo feminino era
mente por isso deveria ter sua sexualidade reprimi- muito mais comum do que se poderia imaginar. Não
da. A expressão máxima da repressão da sexualidade obstante a inquisição ter perseguido os praticantes do
feminina e também da transgressão às normas de con- ato de sodomia, fossem homens ou mulheres, poucos
duta ditadas pela sociedade era representada pelo foram os condenados, pois somente em caso de con-
convento, onde filhas e esposas repudiadas eram con- duta escandalosa e reincidência o réu terminava na
finadas e mantinham seus amantes, fato notoriamen- fogueira. Além disto a inquisição enfrentava um gran-
te conhecido que todos fingiam não saber. De certa de problema no que diz respeito a considerar possí-
forma o autor termina também por tocar na questão vel ou não a uma mulher cometer sodomia, na Euro-
da sensualidade das escravas, e na sedução desempe- pa Moderna foi bastante comum o lesbianismo, sen-
Fábio Pestana Ramos / Revista de História 138 (1998), 133-138 135

do este tipo de relação passado desapercebido ou to- Campus de Araraquara, “Mulher e Família Burgue-
lerado, o autor mostra que no Brasil Colônia esta es- sa”, sétimo texto da obra, saímos da esfera do Brasil
trutura tendeu a se reproduzir. colonial para passearmos pelo universo do século
O texto de Vainfas é seguido pelo texto de seu XIX. Autora de Amor e família no Brasil, D’Incao
colega Luciano Figueiredo, professor assistente do narra as transformações arquitetônicas realizadas ao
Departamento de História da Universidade Federal longo do século XVIII e XIX que possibilitaram a for-
Fluminense, “Mulheres nas Minas Gerais”, onde o mação dos espaços privados, e que por conseqüência
autor reconstitui o cotidiano feminino Mineiro do trariam também significativas mudanças na esfera dos
século XVIII, quando as mulheres apesar de serem sentimentos. Através de sua visão sociológica ela
minoria, representadas por negras forras e escravas, mostra a formação da sensibilidade romântica no in-
exerciam funções secundárias ligadas ao abasteci- terior das famílias burguesas, enfatizando o enraiza-
mento e prostituição. O historiador mostra como algu- mento de novos valores neste meio social.
mas funções, tais como a ocupação exercida pelas Enquanto Miridan Knox Falci, professora do
“negras do tabuleiro” (vendedores ambulantes), eram Departamento de História da Universidade Federal do
encaradas como possível foco de revolta escrava, e Rio de Janeiro, em “Mulheres do Sertão Nordestino”,
por isso combatidas e vigiadas de perto pela Coroa aborda a situação vivida pelas mulheres nordestinas
Portuguesa. O artigo de Figueiredo é extremamente no século XIX, em meio a uma sociedade extrema-
rico em detalhes e informações, e como lembra o pró- mente hierarquizada e escravista; Joana Maria Pedro,
prio autor, condensa alguns temas desenvolvidos em professora titular do Departamento de História da
seu livro O avesso da memória: cotidiano e trabalho Universidade Federal de Santa Catarina, em “Mulhe-
da mulher em Minas Gerais no século XVIII, bem res do Sul”, relata uma realidade totalmente oposta,
como sua dissertação de mestrado, Barrocas famíli- não só no sentido geográfico como também social,
as: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, pois neste caso as mulheres na ausência dos homens,
defendida junto ao Departamento de História da Uni- geralmente envolvidos em guerras ou com a política,
versidade de São Paulo. possuíam uma relativa liberdade, e, ao contrário das
Em a “Maternidade Negada”, sexto texto da obra, mulheres nordestinas, estavam quase sempre a fren-
Renato Pinto Venâncio, professor do Departamento te dos negócios da família.
de História da Universidade Federal de Ouro Preto, Com o décimo texto da obra, “Psiquiatria e Fe-
discute a questão do abandono de crianças no Brasil minilidade”, de Magali Engel, professora do Depar-
colonial, prática comum entre as famílias pobres, tamento de História da Universidade Federal Flumi-
principalmente no meio urbano, e entre as mulheres nense, entramos na esfera do Brasil republicano,
que engravidavam em relações extraconjugais. Além quando os parâmetros burgueses se legitimam norma-
de abordar a prática do abandono de crianças, o au- tizando os comportamentos, e exigindo a “medicali-
tor toca também na questão do massacre dos “anji- zação da loucura”. A historiadora mostra a relação
nhos”, quando em uma sociedade em que a morte de implicada entre feminilidade e loucura, através de sua
bebês era um fato corriqueiro da ordem de 20% a 30% interpretação da instituição da psiquiatria como ciên-
dos recém-nascidos, muitas crianças eram deixadas cia, pelos primeiros republicanos, enquanto aparelho
expostas ao tempo por suas mães para que morressem. de controle político, social e sexual.
Com o texto de Maria Ângela D’Incao, professo- Colega de Engel na Universidade Fluminense,
ra do Departamento de Sociologia da UNESP do professora titular do Departamento de História,
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Rachel Soihet, autora de Condição feminina e formas ver, e não só romances e poemas como também jor-
de violência: mulheres pobres e a ordem urbana (1890- nais, uma forma de participar do cotidiano da socie-
1920), contribui para a formação de um panorama his- dade da época, escapando do jugo masculino.
tórico da condição feminina em nosso país, com seu Com um recorte extremamente especifico, Guacira
texto “Mulheres Pobres e Violência no Brasil Urba- Lopes Louro, professora titular do Departamento de
no”, onde a historiadora mostra como o processo de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
aceleração da urbanização estimulou um progressi- Sul, autora de Educação e Gênero: a escola e a pro-
vo movimento das populações pobres em direção as dução do masculino e do feminino, em seu texto “Mu-
capitais, no fim do século XIX e já princípio do XX. lheres na sala de Aula”, reconstitui uma espécie de
Enfatizando que a pressão social exigia das mulhe- história das mulheres na educação brasileira, mostran-
res um recato restrito a esfera do privado, cabendo so- do que durante o século XIX, ao mesmo tempo em
mente aos homens o domínio do público, a autora que os homens estavam abandonando as salas de aula,
demostra que esta exigência não era acatada pelas o magistério se tornava cada vez mais uma profissão
mulheres das classes populares, que quase sempre feminina. De certa forma, a educadora termina tam-
movidas pela necessidade de prover o próprio susten- bém por tocar na questão do conteúdo destinado ao
to, além do sustento dos filhos, eram seres rudes e ensino dos meninos e das meninas, diferenciado prin-
resistentes como qualquer homem. Utilizando os pro- cipalmente no tocante a praticidade do que era ensi-
cessos criminais como principal fonte, ela mostra que, nado. As meninas, por exemplo, deviam ser ensina-
ao contrário do que se poderia imaginar, quando víti- das a serem futuras boas esposas e mães, enquanto
mas de violência nem sempre as mulheres pobres aos meninos cabia aprender a serem bons provedo-
agüentavam tudo caladas, figurando muitas delas res e chefes de família.
como principais personagens dos crimes passionais, Doutora pela École des Hautes Études en Sciences
não obstante muitas vezes figurarem também como Sociales de Paris, com sua tese Les femmes dans le
vítimas, de um modo ou de outro elas eram sempre catholicisme au Brésil-Lecas des communautés
castigadas pela violência masculina. ecclésiales de base, defendida em 1991, Maria José
Através do décimo segundo texto da obra, “Escri- Rosado Nunes, professora da Faculdade de Teologia
toras, Escritas, Escrituras”, de autoria de Norma Nossa Senhora Assunção (de São Paulo), discorre no
Telles, professora do Programa de Estudos Pós-gra- décimo quarto texto da obra sobre o papel desempe-
duados em Ciências Sociais da Pontifícia Universi- nhado pelas “Freiras no Brasil”. Em seu artigo a auto-
dade Católica de São Paulo, entramos em uma subdi- ra defende a idéia de serem as freiras, com exceção das
visão da história social, intimamente ligada a ela, a mulheres pobres, as primeiras mulheres a de fato de-
história da cultura. Em seu texto a socióloga enxerga o sempenharem uma profissão em nosso país, enquanto
século XIX como o século do romance, e muito embora a maioria das mulheres era simplesmente do lar, rela-
tenha sido também uma época em que as mulheres fo- tando todos os conceitos implicados em ser freira no
ram inferiorizadas pelos homens, foi neste período que Brasil, e suas modificações ao longo dos séculos.
os primeiros textos escritos por mulheres começaram a Em “Ser Mulher, Mãe e Pobre”, décimo quinto
aparecer. Apesar do romance, por mais inocente que texto da obra, Cláudia Fonseca, professora do Depar-
fosse, ser considerado como uma leitura imprópria tamento de História da Universidade Federal do Rio
para moças, excluídas da participação política, mui- Grande do Sul, delimita o cotidiano da mulher pobre
tas mulheres acabaram encontrando no ato de escre- dos núcleos urbanos das primeiras décadas do sécu-
Fábio Pestana Ramos / Revista de História 138 (1998), 133-138 137

lo XX. Levando o leitor a passear por temas como: o tir do cotidiano das fábricas, e da luta travada por
trabalho feminino nas indústrias enquanto necessida- anarquistas e socialistas, a mulher conquistou o espa-
de complementar ao salário do marido, ao mesmo tem- ço público, contando como ocorreu o início da vira-
po em que estas mulheres eram mal vistas pela socie- da da situação exposta nos textos precedentes da con-
dade; a dinâmica familiar dentro dos grupos populares; dição da mulher na esfera social, por meio de uma
a precariedade dos laços familiares e a questão do aban- batalha intensa das chamadas “indesejáveis”, ou seja
dono de mulheres; a moralidade oficial e as contradi- das feministas.
ções implicadas no cerne desta moral, que culminavam Carla Bassanezi, mestre em História Social pela
na oposição pureza ou prostituição; e a maternidade USP e doutoranda em Ciências Sociais da UNICAMP,
entre as famílias pobres, entre outras questões. responsável pela coordenação geral de textos da obra,
Com o texto de Maria Aparecida Silva, professo- em “Mulheres dos Anos Dourados”, colabora para a
ra livre docente do Departamento de Sociologia da formação de uma imagem mais contemporânea da
UNESP do Campus de Araraquara, “De Colona a condição feminina ao examinar a estrutura mental dos
Bóia-Fria”, entramos em um universo polêmico e anos 50. Utilizando como principal fonte, revistas
atual, a questão da terra e o envolvimento do traba- femininas da década de 1950, ela vislumbra a gama
lho feminino nesta questão. Com a substituição do tra- de imaginário envolvida na conceituação do “ser
balho escravo pela mão de obra livre, a mulher colona, mulher”, e as relações implicadas entre namoro, ca-
a imigrante, aparece nas áreas rurais paulistas enquan- samento, virgindade, honra, filhos, e aventuras extra-
to força de trabalho, esta situação prevalece como do- conjugais, entre outros assuntos. O texto de Bassanezi
minante até 1960, a partir desta data, o processo de é extremamente rico e parece estar em consonância
urbanização do país concentra as terras nas mãos de com sua dissertação de mestrado, Virando as pági-
poucos, e expulsa os trabalhadores residentes, os co- nas, revendo as mulheres; relações homem-mulher e
lonos, da terra, criando um empobrecimento genera- revistas femininas, 1945-1964, defendida junto ao
lizado. Na década de 1970, com a implementação do Departamento de História da Universidade de São
plano governamental Proálcool, cria-se a necessida- Paulo em 1992.
de da utilização de uma mão de obra intinerante para Complementando e dando continuidade ao con-
cultivar e colher a cana de açúcar, surgem os bóia- teúdo abordado no texto de Margareth Rago, em “Os
frias. A socióloga aborda justamente em seu artigo a Movimentos de trabalhadoras e a sociedade Brasilei-
questão do trabalho feminino integrado ao sistema de ra”, Paola Cappellin Giulani, professora do Departa-
bóias-frias, discutindo as raízes de uma questão obser- mento de Sociologia da Universidade Federal do Rio
vada em nosso presente, tratando assim de um tema de Janeiro, aborda a questão da formação da cidada-
que interessa tanto a pesquisadores como a curiosos. nia ao longo do século XX, e a história da formação
Em “Trabalho Feminino e Sexualidade”, décimo dos movimentos sindicais no Brasil, destacando so-
sétimo texto da obra, Margareth Rago, professora do bretudo o período compreendido entre 1979 e 1985,
Departamento de História da UNICAMP, autora de que foi marcado pelas greves do ABC paulista e pela
Os prazeres da noite: prostituição e códigos de se- vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. A
xualidade feminina em São Paulo e Do cabaré ao lar: historiadora toca não só na participação das mulhe-
a utopia da cidade disciplinar (1890-1930), traça um res nos movimentos sindicais, como também nos mo-
panorama acerca das trabalhadoras dos primórdios da vimentos femininos rurais, na crise da divisão sexual
industrialização brasileira, demostrando como a par- do trabalho e da representação sindical, nas reivindi-
138 Fábio Pestana Ramos / Revista de História 138 (1998), 133-138

cações de igualdade sexual no trabalho, e na prática tema, à medida que, inserido na tendência de recons-
política das trabalhadoras; chegando a mencionar tituição da micro história, coloca o leitor em contato
fatos ocorridos em 1996, demostrando assim a atua- com autores que de algum modo trabalham ou já abor-
lidade de seu texto. daram questões relacionadas com a história das mu-
A escritora Lygia Fagundes Telles, representan- lheres no Brasil.
te da terceira fase do movimento modernista, autora Através da descrição do conteúdo de cada um dos
entre outros romances de As meninas, encerra a obra textos integrantes da obra, pudemos notar que eles
com um texto totalmente inédito e escrito especial- estão intimamente ligados entre si, encadeados de
mente para a ocasião, intitulado “Mulher, Mulheres”, maneira extremamente lógica e coerente, o que certa-
constituindo o vigésimo texto da obra. Apesar de seu mente foi garantido pela organização e experiência
texto não possuir um caráter propriamente histórico, da Professora Mary. Publicado com o apoio da
termina por deliciosamente fechar de forma coeren- FAPESP, Historia das Mulheres no Brasil é uma obra
te a obra enquanto corpo temático, e por ter sido es- de leitura obrigatória não só aos interessados no tema
crito por Lygia merece uma leitura atenta. propriamente dito, como também a todos os estudan-
A exemplo de algumas obras publicadas no exte- tes e pesquisadores interessados na história de nosso
rior, sobretudo na França, como por exemplo o livro país da colônia aos dias atuais, constituindo também
de Catherine Delamarre e Bertrand Sallard, La Femme fonte de referência para sociólogos, psicólogos, e
au Temps des Conquistadores, a obra organizada pela educadores. Com certeza esta obra deverá tornar-se
Professora Mary vem preencher uma brecha na em breve mais um clássico da historiografia brasilei-
historiografia brasileira, constituindo um importante ra, que não pode deixar de ser lido quer seja de for-
esforço no sentido de fazer conhecer este importante ma parcial ou em sua totalidade.

Fábio Pestana Ramos


Pós Graduando - Depto. de História-FFLCH/USP
Bolsista da FAPESP
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

FALBEL, Nachman. Manasche: Sua Vida e Seu Tempo. São Paulo, Editora Perspectiva, 1996.

No princípio de sua pesquisa biográfica, Falbel gor dos esforços empreendidos pelo nosso autor, com
revela um propósito monumental: a ambição de es- o fim (pioneiro) de organizar e estruturar as fontes da
crever uma História do Sionismo brasileiro. Talvez memória e, da potência ao ato, respaldar o trabalho
tão monumental quanto irrealizável, e por assim o ser, de recuperação, resgatando figuras do anonimato para
volta-se o autor, como parte deste projeto, para “al- o conhecimento de todos nós.
guns estudos sobre certos aspectos e momentos”. Manasche: Sua Vida e Seu Tempo figurou-se a
(pág. 15). A biografia dada à nossa leitura é um frag- mim como um trabalho que ultrapassa o horizonte de
mento desta história (veja-se um outro “fragmento” do uma curiosidade biográfica. “... Manasche, a Polish
autor: Jacob Nachbin. São Paulo, Editora Nobel, 1985), jew with the unpronounceable surname of Krzepicki”:
sendo que a sua totalidade, tão inatingível, é todavia assim se pronunciou a seu respeito Teddy Kollek
atestada por este mesmo fragmento: através dos de- (p.110-111, apud T. Kollek, Amos, For Jerusalém.
talhes que ele revela, numa vida dentro de um tempo New York: Ramdom House, 1978, p.75), amigo pes-
épico, trágico, conturbado, do período entre guerras soal de Manasche, e que viria a tornar-se prefeito de
até os primeiros anos do Estado de Israel... Hegel Jerusalém. Com efeito, o personagem central pode-
afirma, em sua Phänomenologie des Geistes, que a ria ter compartilhado e reproduzido a história de qual-
verdade, manifestada no real, só se encontra no total quer imigrante: “A sua viagem ao Brasil se prende,
(“Das Wahre ist das Ganze”), ao que Adorno contes- além do espírito de aventura, à atmosfera anti-semita
ta, em sua Minima Moralia, invertendo o famoso que reinava na Alemanha e se estendia a outros paí-
dictum de Hegel, ao postular que “O Todo é o Falso”... ses europeus, incluindo a Polônia, associada às limi-
Falbel é um historiador medievalista (Prof. Dr. tações econômicas provocadas pelo desemprego, pela
Titular na USP), dotado de notável e competente de- grande inflação e a crise geral que tomou conta da-
dicação aos Franciscanos (de sua autoria: Os Espiri- quele país” (pág. 24).
tuais Franciscanos. São Paulo, Editora da Universi- Esta é a história de mais de uma geração da épo-
dade de São Paulo, FAPESP e Editora Perspectiva, ca moderna, que parte dos obstáculos à persistência
1995) e aos destinos da Ordem... Mas é também um física e espiritual para a procura de novos ambientes,
homem autenticamente preocupado com seu tempo que correspondiam aos horizontes americanos do
e com as histórias a serem descobertas, histórias que norte e do sul. Esta é uma parte da história de
ainda não encontraram cronistas que as narrassem. O Manasche Krzepicki, uma fatia correspondente à
Arquivo Histórico Judaico Brasileiro deriva seu vi- infraestrutura: a busca do sobreviver – esta parece ser
140 Oscar Zimmermann / Revista de História 138 (1998), 139-141

a fórmula mais apropriada para expressar, grosso var a vida no Novo Mundo; por diferença específica,
modo, uma necessidade de tudo abandonar e de cons- fez de sua vida, em tempos conturbados, um atendi-
tituir uma nova base de existência. Em cada alma que mento ao chamado: tomou consciência dele, raciona-
abandonava o velho continente europeu, uma história, lizou seus pressupostos e efetivou sua realização
dramas, esperanças... em cada uma, a demanda do como uma meta de vida; e mais: elevou-o à categoria
êxodo por razões vitais, carregando latente e eterna- de ideal, que ouvido naqueles tempos, classificar-se-
mente as marcas do abandono, do exílio, da sina do ia como utopia de uma epopéia. Esta é a narrativa que
desenraizamento, da perda da identidade como trá- Falbel expõe ao público leitor: a do resgate, dos sub-
gico denominador comum daqueles que procuravam terrâneos de uma cautela sigilosa, da história de uma
preencher o vazio de tudo. vida dedicada a fazer parte daqueles que foram toca-
O que faz a história que Falbel nos conta digna dos, e assim o sentiram, por uma missão pioneira, em
de ser lida e valorizada, é o fato de que o imigrante, tempos difíceis e indecisos, com a visão profética de
que teve êxito na reconstrução de sua vida, parece ter que o momento havia chegado: o de ter um Estado.
sido tocado por uma missão, um chamamento, Beruf, A escrita do autor não se pauta por afirmações
como chamou Max Weber – um dos pilares da socio- carentes do suporte de uma documentação. Há, antes,
logia moderna -, em sua A Ética Protestante e o Es- um modo de narrativa histórica rico e interessante:
pírito do Capitalismo. O pronto atendimento de Falbel usa de uma erudição deveras profunda para
Manasche ao chamado denotava a identificação do in- proceder a densas análises a respeito do contexto da
divíduo com a luta de seu povo, marcada pela finali- época; em seguida, apresenta a seqüência de aconte-
dade de estabelecer o seu lar nacional: o Estado de cimentos, que vêm a completar aquilo que o discur-
Israel. A mobilização deu-se em função de uma cam- so analítico estabelecera, apresentando-se assim um
panha sigilosa e da mais alta importância: a compra quadro interpretativo dentro dos limites permissíveis
de armas para a defesa de um Estado ameaçado de pelos fatos: um autêntico diálogo entre concepções
sucumbir ante a ameaça de destruição por parte de intelectuais e dados de realidade. Impressiona, à guisa
seus vizinhos. Tratava-se de uma operação complexa, de exemplo deste estilo metodológico, as páginas que
tecida numa rede de enorme amplitude, que incluía a prefaciam o último capítulo, “Após a Tormenta”
compra, o transporte, a provisão de fundos, e todo o (págs. 131-136, especialmente).
demais concernente à missão denominada Rechesch Falbel faz este resgate numa hermenêutica fasci-
– “Rede que se formou para a aquisição de armas para nante: os fatos centrais corroboram uma exegese le-
a Haganá, que antecedeu o futuro exército de Israel gítima, não procurando a História “wie es eigentlich
(...) que enfrentaria, após a partilha da Palestina, em gewesen ist”, como aspirava o ideal iluminista do
29 de novembro de 1947, e a promulgação do Estado historiador tedesco Leopold von Ranke, dentro da
de Israel em 14 de maio de 1948, a invasão dos exérci- tradição da Aufklärung do séc. XIX; em nossos tem-
tos dos países árabes ao seu redor” (p. 12, n. 3). O pos, céticos e relativistas – classificados como “pós-
clamor, o apelo que pedia ajuda para alicerçar uma modernos”, epíteto que antes indetermina que define
das bases do futuro estado, a sua infraestrutura econô- – negar-se-ia até mesmo a própria existência de uma
mica e sua capacidade de defesa, era claro e singelo. História – o que existem são historiadores. E Nachman
Porém, quantos o ouviram e dedicaram suas vidas a Falbel expõe uma narrativa que traz reflexões e faz
esta missão capital? Por gênero próximo, Manasche perguntas, instigando o leitor a desejar saber mais.
é um dos milhares de imigrantes em busca de preser- Um intelectual deste calibre pode-nos proporcionar
Oscar Zimmermann / Revista de História 138 (1998), 139-141 141

uma leitura repleta de reflexões enriquecedoras para vontade decisiva, munida de dotes talhados para
o nosso conhecimento. “ realizar missões que exigissem entrega e dedi-
Na “Introdução”, Falbel faz menção à “(...) impor- cação pessoal, além de uma alta dose de fidelida-
tância do movimento juvenil na formação dos filhos de e apego a um objetivo, ao mesmo tempo em que
dos imigrantes que chegaram ao Brasil (...)”, mas (é o caso de Manasche Krzepicki) possuía uma ca-
adverte que esta “ainda está por ser avaliada” (p.11). pacidade de liderança pouco comum entre os com-
Deveríamos supor que esta é uma referência a possí- ponentes da comunidade judaica no Brasil”.
veis – ou prováveis – pesquisas futuras? Aqueles que (p.13). E talvez também haverá aqueles que pen-
participaram desta experiência de vida apreciarão a sarão como Nicolau Maquiavel (em Historie
perspectiva da época exposta na obra de Falbel, uma fiorentine) que, ao narrar as vicissitudes lógicas
vez que carregam até hoje as marcas do movimento da vida pública dos florentinos, arquiteta a idéia
juvenil. As gerações mais jovens encontrarão um da existência de dois horizontes no firmamento
passado muito mais rico, que poderá provocar uma daquela vida: a Virtu, como conjunto dos ideais,
perplexidade positiva mesclada a uma ponta de admi- concepções, ideologias, a supra-estrutura – o pri-
ração patriótica. meiro; a Fortuna, representada pelas condições
Em suma, o relato une perspectivas, funde hori- materiais, sociais e políticas, a infra-estrutura –
zontes, enfeixando um ideal vivido e em parte reali- o segundo. Somente um encontro, uma fusão des-
zado num arco-íris de tipos-ideais pendulantes, des- tes horizontes, explica uma entrada na História.
de aqueles que interpretam os caminhos da História Falbel ilumina – Manasche: Virtu Fortunaque...
como conseqüências de seus personagens que a fa- Seja qual for a concepção de história que cada um
zem marchar para uma direção pré-designada, até professe, a obra é apaixonante, não só pela baga-
aqueles que, no outro extremo do movimento do pên- gem concernente ao puro relato dos fatos, como
dulo, valorizam a circunstância do surto de uma também em função do peso de sua erudição.

Oscar Zimmermann
Universidade de Tel-Aviv, Kibutz Brorchail, Israel
142 Oscar Zimmermann / Revista de História 138 (1998), 139-141
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de Canudos. Uma revisão histórica. Petrópolis, Vo-


zes, 1997. 148pp.

Até bem pouco tempo os historiadores tinham verso mental popular nordestino que a de Euclides da
deixado a cargo de sociólogos e antropólogos a tare- Cunha n’Os Sertões. É dessa etnografia alternativa de
fa de pensar o milenarismo. Só recentemente, traba- Canudos que se utiliza Hoornaert em seu ensaio.
lhos de Robert Levine, Jean Delumeau, Ronaldo A trajetória do Conselheiro, o cotidiano do arrai-
Vainfas e vários outros têm revertido essa situação. al e dos desclassificados que engrossam suas fileiras
Os anjos de Canudos, último livro de Eduardo emergem das belas páginas de Os anjos de Canudos
Hoornaert, insere-se neste contexto de revalorização, não como excêntrico fruto de uma suposta ‘desin-
no âmbito da historiografia, do estudo daquilo que formação’. Tradições cristãs antiqüíssimas, exclusão
Lanternari chama “expressões heterodoxas da religio- social, síntese de religião popular e oficial, tudo isso
sidade popular”. ajuda a explicar Canudos. Hoornaert rejeita uma certa
Nascido por ocasião de um colóquio realizado na análise de filiação weberiana, demasiado centrada na
Universidade de Colônia em 1997, o livro de Hoornaert figura do líder carismático, para mostrar em que me-
é inovador (e provocador) sob múltiplos pontos de vis- dida a religião popular nordestina (que ele tipifica como
ta. Tentarei dar conta das suas proposições mais “catolicismo rústico”) foi negligenciada pelos estudi-
instigantes, embora às vezes discorde delas ou as uti- osos enquanto substrato do fenômeno. Um dos maio-
lize como ponto de partida para reflexões próprias. res méritos do seu livro, ao meu ver, foi ter demons-
Autor de uma extensa e importante obra sobre a trado que esse catolicismo rústico, mesmo na sua ex-
Igreja brasileira e latino-americana, o autor de Forma- pressão milenarista, nada tem de mortificante ou de
ção do catolicismo brasileiro não tem por objetivo excessivamente penitencial. A imagem passada em fil-
esmiuçar Canudos e sua trajetória, mas antes apreciá- mes como Deus e o Diabo na Terra do Sol ou Canu-
la a partir de uma outra ótica - a dos excluídos. “Este dos, neste sentido, tem pouco a ver com a realidade.
pequeno ensaio tenta apresentar a conhecida história O que ocorre ali é algo diferente. Ao lado das
nas categorias usadas pelos sertanejos que dela parti- extensas ladainhas, da igreja, dos sacramentos trazi-
ciparam” (p. 10). Sua fonte principal será o livro O rei dos por sacerdotes que vêm de fora, dos inflamados
dos jagunços, publicado em 1899 pelo jornalista Ma- sermões do Conselheiro, o que reina é a festa: “Como
nuel Felício. Correspondente do Jornal do Commercio, em muitos lugares, a música ‘profana’ anima as noi-
Felício foi posteriormente afastado da cobertura da tes canudenses, apesar das beatas insistências” (p. 36).
guerra pelo Exército, de vez que demonstrava uma A lição é simples. Se há boa dose de verdade na afir-
sensibilidade bem mais acurada em relação ao uni- mação de Julio Caro Baroja (Las formas complejas
144 Sérgio da Mata / Revista de História 138 (1998), 143-146

de la vida religiosa, Círculo de Lectores, 1995, vol. I, ções 70, 1988, p. 168) vê na guerra “a réplica moder-
p. 200) de que “la religión y la filosofía cristianas son, na e sombria da festa”, e não deixa de ser interessante
siempre, moderadoras de la alegría”, há que se reco- verificarmos o paralelismo e, mais que isso, a com-
nhecer que esta fórmula tem grande dificuldade de se plementaridade dos dois fenômenos sociais no ser-
adequar - ou impor - ao universo religioso popular. tão baiano de 1897.
Uma melhor percepção da dimensão festiva de O próximo ensaio versa sobre a importância da obra
Canudos, atestada pelo autor, permitiria abordagens in- de José Calazans, precursor na utilização da tradição oral
teressantes do milenarismo brasileiro, onde sobressa- no estudo da história de Canudos. Hoornaert insiste na
em duas “constantes” que, penso, ainda não tinham importância da abordagem feita à maneira de Calazans,
sido exploradas como deveriam: o revelador binômio na medida em que recuperaria de dentro a lógica da
guerra (violência) & festa por um lado, e, por outro, a mentalidade camponesa. É nítido o parentesco desta
instituição sagrada do espaço social. Hoornaert demon- abordagem com o viés epistemológico do grupo de his-
strou estar atento para as duas possibilidades. Não por toriadores da CEHILA (Comissão de Estudos de His-
acaso, a segunda parte de seu livro intitula-se A cons- tória da Igreja na América Latina), do qual Hoornaert é
trução do espaço sagrado, enquanto que o primeiro dos uma das figuras principais: o desafio de se escrever uma
seus “mini-ensaios” vale-se da chamada ‘antropologia história eclesiástica “a partir do pobre”.
gerativa’ de René Girard para explicar a violência É neste momento que, segundo me parece,
sacrificial que se abateu sobre o arraial. Hoornaert assume posições que caberia problematizar
São justamente os “mini-ensaios”, que perfazem um pouco mais extensamente. Não fica claro o estatu-
metade do livro, a parte da obra que me pareceu mais to da teoria na sua visão da disciplina histórica. Num
instigante. O primeiro deles, como dissemos acima, primeiro momento o que transparece, curiosamente, é
parte dos conceitos elaborados por Girard. A ‘moder- uma certa desconfiança em relação às iniciativas dos
nidade’ e a unidade republicana exigiam, diz o autor, cientistas sociais em analisar manifestações particula-
a eliminação sacrificial de Antônio Conselheiro e seus res de messianismo e milenarismo num marco teórico
seguidores. Realmente: a luta contra os ‘fanáticos’ pré-estabelecido. O elogio a Calazans (parte sempre
está imbuída de sacralidade e é, portanto, profunda- de “fatos comprovados” e, assim, “inaugura uma pos-
mente religiosa. Para Hoornaert, Euclides da Cunha tura propriamente historiográfica”) se faz em contra-
exerce assim um papel fundamental - o de legitimar posição à perspectiva de uma Maria Isaura Pereira de
o sacrifício: “Os sertões é um livro articulado em Queiroz (cuja teoria do messianismo “não consegue
torno da construção da civilização através da violên- convencer”). Ao leitor fica a impressão de que a teoria
cia e da destruição” (p. 82). A via oposta, ainda que tenderia a afastar o historiador do ‘efetivamente vi-
não examinada no ensaio, poderia ser avaliada pela vido’. É o próprio Hoornaert, aliás, quem o diz: “toda
mesma ótica pois a solidariedade dos moradores do e qualquer teoria social só é válida na medida em que
arraial, iniciados os conflitos, exigiu o seu sacrifício corresponde ao efetivamente vivido e consegue expli-
tanto quanto o do inimigo. car sem recorrer a postulados” (p. 105, grifo meu).
Inversão e/ou suspensão temporária de parte das Torna-se difícil conceber o exercício da historio-
normas sociais, êxtase coletivo, retorno mítico à in- grafia contemporânea sem auxílio de um marco teó-
diferenciação do Urzeit, desejo sagrado de destrui- rico qualquer e, mais ainda, a possibilidade de existên-
ção - não seriam características comuns à guerra e à cia de uma teoria tal como a entende Hoornaert. Basta
festa? De fato, Caillois (O homem e o sagrado, Edi- citar o exemplo de alguns historiadores franceses que
Sérgio da Mata / Revista de História 138 (1998), 143-146 145

escreveram trabalhos clássicos nas suas respectivas espe- tade do caminho. Possivelmente por esta razão o au-
cialidades, como o helenista Louis Gernet, o sinólogo tor de Os anjos de Canudos não consegue evitar al-
Marcel Granet e o medievalista Marc Bloch, e que parti- gumas generalizações, como a de que os messianis-
ram, grosso modo, do arcabouço durkheimiano. O mes- mos “são simples expressões do desejo dos agricul-
mo ocorreu na Alemanha, em relação à obra de Weber. tores e pobres de possuir um pedaço de terra” (p. 63).
A posição de Hoornaert é compreensível, ao me- Uma crítica oportuna de Hoornaert foi a que ele
nos em parte. Ele se levanta contra alguns simplismos endereçou aos historiadores e cientistas sociais bra-
que ainda persistem na historiografia religiosa brasi- sileiros por ignorarem a contribuição da Ciência da
leira, mesmo naquela dita das mentalidades. Há um Religião e da História da Religião alemãs. Em parte,
furor secularista em diversos autores (mais evidente pela distância imposta pela língua, em parte pela de-
em alguns), o qual não raro distorce a visão que se pendência que assumimos em relação ao campo inte-
tem da religião do povo. Para esta, sobram epítetos lectual francês, esse afastamento tem se mantido. Por
como “fanática”, “acrítica”, “delirante”, “bizarra”. conta de um ou outro bairrismo herdado, obras bri-
Em que esta historiografia foi além de Euclides da lhantes como a de Troeltsch, permanecem desconhe-
Cunha, é algo que caberia perguntar. Falta-lhe sem cidas mesmo quando aclamadas por autores como
dúvida um exercício de exploração psicológica, ou de Pierre Bourdieu, Émile Poulat e Jean Séguy. Falta
proximidade com seu objeto, o que lhe permitiria su- ecumenismo entre as diversas ciências da religião.
perar esses etnocentrismos que o leitor atento tão fa- O penúltimo “mini-ensaio” fala do “Antônio Con-
cilmente percebe. selheiro escritor” e evidencia como, ao contrário do
Todavia, imaginar que a construção de modelos que tantas vezes se imagina, os escritos por ele dei-
só possa se legitimar na medida em que vier a se cons- xados “apresentavam uma doutrina católica perfeita-
tituir num retrato fiel do prévio levantamento mente ortodoxa” (p. 114), algo que já fora observado
empírico, já é verter o bebê junto com a água do ba- por outros pesquisadores. O Deus do Conselheiro é
nho. Os bons antropólogos, que em geral não podem o Deus neotestamentário: Ele “fala docemente”, co-
ser acusados de estarem desatentos às “categorias menta Hoornaert.
nativas”, são explícitos a respeito. Ouçamos um de- “O cristianismo beato” é o último ensaio do vo-
les: “Se a etnologia não é ‘a ciência social do ponto lume, e nele são tecidas considerações em torno dos
de vista do observador’, como diz Lévi-Strauss, ela estudos que Duglas T. Monteiro, Alexandre Otten e
também não é ciência social do ponto de vista do Marco Antônio Villa dedicaram ao tema do messianis-
observado”. Os modelos são, pois, “construções teó- mo brasileiro. Segue-se uma rápida contraposição das
ricas de caráter operatório (...) e que não podem, por- duas escolas que pretenderam, a partir do século XIX,
tanto, substituir a realidade empírica, uma vez que têm explicar a religião: a crítica/sociológica e a fenomeno-
por objetivo precisamente pensar esta última e, em lógica. Uma referência ligeira a Durkheim permite ao
particular, pôr em evidência o que ela não diz” (F. autor taxá-lo de “redutivo” (p. 127) por supostamen-
LAPLANTINE, Antropologia da doença, Martins te comungar das posições de Lévy-Bruhl a respeito
Fontes, 1991, p. 34; grifos meus). O historiador que do “pensamento primitivo”, o que, obviamente, não
se esforça em superar o etnocentrismo e conhecer de faz jus à visão durkheimiana (vide o final do capítulo
dentro a experiência religiosa popular, como propõe “A origem das crenças totêmicas”, n’As Formas ele-
Hoornaert, certamente faz um avanço importantíssi- mentares da vida religiosa).
mo - mas, ainda assim, corre o risco de ficar na me-
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Hoornaert toma o partido da escola fenome- uma radicalização da adesão à “idéia original” do
nológica iniciada por Rudolf Otto (O sagrado, Im- Evangelho. A seita surge historicamente em oposição
prensa Metodista, 1985), considerando-a “mais con- à Igreja, na medida em que a vê como uma degene-
sistente”. Trata-se de uma opção legítima do autor, ração do ideal cristão. Portanto, o “ecumenismo” que
uma vez que não são compatíveis os pressupostos da Hoornaert sugere existir entre Igreja, seita e misticismo
religionswissenschaftliche Schule com os das ciências em Canudos é uma hipótese de difícil sustentação. E é
sociais. Para a primeira o sagrado é uma categoria a sobre tal improbabilidade que ele esboça não o seu di-
priori, os fenômenos religiosos devem ser analisados agnóstico final, mas seu programa: “um cristianismo
na sua lógica interna, e não a partir de uma outra que bem vivido comporta um ‘mínimo de Igreja’ e um má-
lhes determinaria ‘de fora’ (desde que se tome este ximo de mística e sectarismo” (p. 133). Detemo-nos por
‘fora’, é claro, por “social” e/ou “psíquico”). Esta aqui, porque neste momento não é mais o Hoornaert
tomada de posição obviamente se coaduna com sua historiador quem escreve, mas o homem de fé.
proposta de entender o catolicismo rústico nos seus Que não se tomem nossas discordâncias por algo
próprios termos. Mas se não há como saber se a ver- além do que elas de fato são: uma tentativa de apro-
dade da fenomenologia é “mais consistente” que a fundar, em diálogo com o autor, nossa compreensão
verdade antropocêntrica das ciências sociais, qualquer de um dos acontecimentos mais marcantes da histó-
consideração no sentido de sobrepor uma à outra ine- ria brasileira. N’Os anjos de Canudos sobressaem
vitavelmente reduz as possibilidades de estreitar o contribuições de suma importância: nas suas páginas,
diálogo entre estas duas tradições. Hierarquizar, aqui, onde quase se sente o fresco e alegre ar de Canudos,
implica necessariamente excluir. superam-se os limites do modelo weberiano e dá-se ao
Entretanto, a opção de Hoonaert por este viés (que catolicismo rústico um estatuto teórico próprio. O texto
não nos cabe discutir uma vez que “os deuses da so- alia concisão, beleza formal e extrema sensibilidade
ciologia”, como diz Wolfgang Schluchter, são outros), psicológica. Nem mesmo alguns ligeiros descuidos a
não o impede de buscar em Troeltsch uma última nível editorial prejudicam a agradável leitura d’Os an-
chave (teórica!) para a compreensão do seu objeto. jos. Há que felicitar o autor por contribuir na divulga-
Baseando-se na clássica tipologia desenvolvida ao ção da obra de Troeltsch entre os historiadores brasilei-
longo das Soziallehren, o autor sustenta que em Canu- ros, e, finalmente, por dar passos decisivos rumo a uma
dos teriam coexistido as três manifestações históricas abordagem religionswissenschaftliche da religião popu-
do “ideal” cristão: Igreja, seita e misticismo (p. 131). lar nordestina. Se o paradigma desta escola pode pare-
Ora, a experiência mística pode sem dúvida conviver cer pouco atraente àqueles que partem do referencial
com o tipo Igreja ou mesmo com o tipo seita, mas não antropocêntrico das ciências sociais, não se pode dei-
parece ser o caso do par Igreja/seita. Como escreve xar de reconhecer, em nome do bom senso, que ela terá
Troeltsch (The social teaching of the christian ido mais longe na compreensão do fenômeno religioso
churches, vol. I, p. 342), enquanto a Igreja “dominates que inúmeros membros da comunidade historiográfica
the world and is therefore also dominated by the ainda dominados pelos simplismos secularistas.
world”, a seita representa uma negação do mundo e

Sérgio da Mata
Mestre em História pela UFMG
FEMM - Sete Lagoas (MG)
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A Historiografia Como Ciência da Política. Rio


de Janeiro, Access Editora, 1997, 341 pp.

Não são raros os pensadores que nos advertem que auto-explicativa. Permaneceu, assim, como o ovo de
“é mais difícil formular um problema do que resolvê- Colombo, a espera de alguém que soubesse colocá-la
lo”, como é o caso, para dar um exemplo, do reacio- de pé e demonstrasse, como fez Jasmin, que, explo-
nário Joseph de Maistre em suas Considérations sur rando-a, um outro território ainda pouco conhecido do
la France (1796). Pois bem, a primeira coisa que cabe continente Tocqueville poderia ser descoberto.
dizer do livro de Marcelo Jasmin é que ele soube for- Para construir o que chama de “percurso interno
mular, inteligentemente, e resolver, com êxito, um do problema da história na obra tocquevilleana” (per-
problema sobre Tocqueville ainda não explorado a curso trabalhoso – registre-se en passant – pois
fundo pelos seus numerosos e qualificados estudio- Tocqueville foi um grande escritor, seja pela qualida-
sos: qual a concepção de História que o pensador fran- de, seja pela quantidade de seus textos: suas Oeuvres
cês fabricou em suas obras (assim mesmo, “fabricou”, Complètes, organizadas em mais de 15 tomos, atin-
pois, como lembrou alguém, os clássicos, e só os clás- gem três dezenas de volumes), Jasmin parte de duas
sicos, são fabricadores de idéias) e como ela se articu- frases, bastante conhecidas, de A Democracia na
la e enforma sua teoria da política? América: “Como o passado não esclarece o futuro, o
A hipótese básica, afirma Marcelo Jasmin, na espírito marcha nas trevas” e “Precisamos de uma
apresentação, “supõe que a história constitui um dos nova ciência política para um mundo inteiramente
centros sensíveis da reflexão política de Tocqueville novo”. Colocadas assim, isto é, em uma seqüência in-
e que as dimensões éticas e epistemológicas do pro- versa à apresentada por Tocqueville (em A Democra-
blema historiográfico tal como elaborado pelo autor cia na América a primeira se encontra na Conclusão
são solidárias à sua reflexão sobre o futuro da demo- e a segunda na Introdução), a relação entre as duas
cracia”. O belo livro de Marcelo Jasmin nos demons- frases torna-se mais evidente uma vez que mesmo
tra que o sentido da obra tocquevilleana repousa na uma leitura atenta do livro não nos revela por si só os
identidade entre história e política, e depois de sua pressupostos e a articulação que existe entre ambas.
leitura, somos levados a nos perguntar porque este Elas exigem uma hipótese prévia, uma chave interpre-
aspecto importante e crucial da obra de Tocqueville tativa, como demonstra o livro de Jasmin, cuja eco-
permaneceu até agora sem ser explorado. A única res- nomia pode ser resumida como segue.
posta que nos ocorre é que esta identidade, embora Os dois primeiros capítulos, de caráter introdutó-
percebida e mencionada por todos, talvez por ser mui- rio e sintético, oferecem uma interpretação das “for-
to evidente, ou óbvia demais, foi considerada como mas da História” dominantes no Ocidente e um es-
148 Modesto Florenzano / Revista de História 138 (1998), 147-152

boço biográfico de Tocqueville. Os oito restantes, porque aí é contrabalançado pela religião, pelo judi-
todos de caráter analítico, apresentam: um tratamen- ciário e sobretudo pelo espírito e pelas práticas asso-
to minucioso e sistemático, do “sistema conceitual de ciativas de auto-governo), seja o despotismo de um
Tocqueville” e do problema do despotismo e da his- novo tipo de poder e de agente (como na França, onde
tória tal como se encontram em A Democracia na a Revolução de 1789 deu origem não só a um novo
América (capítulos 3 a 5); uma demonstração, inédi- tipo de Estado, muito mais poderoso e centralizado,
ta na literatura sobre Tocqueville, de que em duas como a um novo tipo social, o revolucionário); e, no
obras menores deste, não publicadas em forma de li- plano social, o individualismo e o conformismo.
vro (“As Reflexões Sobre a História da Inglaterra”, Em suma, Tocqueville descobre que o estado so-
de 1828 e “Memorial sobre o Pauperismo”, de 1835) cial democrático apresenta, entre outras característi-
encontram-se os exercícios preparatórios, as antecipa- cas intrínsecas, um dilema e um paradoxo, e, tanto
ções de A Democracia na América que é de 1835- um quanto o outro são brilhantemente captados e ana-
1840 (capítulos 6 e 7); uma interpretação sobre a lisados por Jasmin. O dilema é assim formulado: “a
maneira como Tocqueville usa a idéia de Providên- liberdade política na sociedade igualitária e de mas-
cia e opera com a história e a política também nas suas sas parece-lhe (a Tocqueville) depender de uma práxis
duas outras obras-primas, escritas na década de 1850, e de um conjunto de valores cujos pressupostos ten-
As Lembranças de 1848 e O Antigo Regime e a Revo- dem a ser destruídos pelo desenvolvimento continua-
lução (capítulos 8 a 10). do das disposições internas à própria democracia. O
Em sua viagem à América do Norte, em 1830, diagnóstico tocquevilleano a respeito das sociedades
Tocqueville viu plenamente confirmado aquilo que modernas afirma que o individualismo inerente ao es-
ele e alguns outros antes dele e junto com ele (como tado social democrático e o conseqüente confinamento
Chateaubriand e Guizot, para nos limitar à França, e dos homens nas esferas da privacidade são produtores
a dois nomes que muito influenciaram o pensamento de uma crescente indiferença cívica que constitui o cal-
de Tocqueville), se já não sabiam, suspeitavam: que do de cultura da emergência de um novo tipo de
o mundo ocidental caminhava em marcha acelerada despotismo”(p.31-32).
e irresistível para a democracia, isto é, para um esta- O paradoxo, tomo a liberdade de assim definir:
do social, de igualdade de condições jurídico-políti- o estado social democrático, inédito e “inteiramente
cas. Esse estado social democrático ou igualitário era novo”, é criado pelo passado (pela história como pro-
o oposto do estado social aristocrático do qual se ori- cesso real, como res gestae), mas esse mesmo passa-
ginava (à exceção dos Estados Unidos que já nasce- do (só que agora enquanto História, enquanto repre-
ram democráticos) e, como tal, inédito, sem preceden- sentação do real, como rerum gestarum), não pode
tes na história, pelo menos na do Ocidente onde as mais, como fizera anteriormente, iluminar o futuro.
sociedades sempre haviam sido hierárquicas e aristo- Daí a necessidade, para o espírito não marchar nas
cráticas. Em suas viagens aos Estados Unidos e à trevas, de uma nova ciência política. Para melhor
Inglaterra, Tocqueville constatara, aterrorizado, o apa- expor e situar a proposta tocquevilleana de uma nova
recimento desses novos e inéditos fenômenos, por ciência política, Jasmin, elabora uma síntese sobre as
exemplo, no plano econômico, o novo pauperismo in- concepções de História dominantes no Ocidente, da
dustrial; no plano político, o despotismo, seja o des- Antigüidade grega clássica ao Iluminismo e à época
potismo da maioria (como nos Estados Unidos, onde de Tocqueville. Utilizando-se da mais rica e atualiza-
coexiste com a liberdade política e só não a anula da literatura sobre a historiografia Antiga e Moderna
Modesto Florenzano / Revista de História 138 (1998), 147-152 149

(onde se destacam historiadores como Arnaldo cia e ao determinismo. Afirma Jasmin: “De constru-
Momigliano, Reinhart Koselleck, José Antônio tores da história, os revolucionários pareciam agora
Maravall e J.G.A. Pocock, para citar nomes impor- impulsionados por sua irresistibilidade, inaugurando-
tantes mas ainda, infelizmente, quase desconhecidos se o que Hannah Arendt denominou ‘o espetáculo da
entre nós), Jasmin oferece-nos um pequeno tratado, impotência do homem a respeito de sua própria ação’.
invejável pelo rigor, concisão e profundidade, sobre Termos como ‘torrente’, ‘marcha’, ‘corrente’ e ‘flu-
a concepção de História que predominou no Ociden- xo’, antes utilizados na referência à natureza, foram
te, qual seja, a Historia Magistra Vitae, segundo a incorporados ao vocabulário político, de onde migra-
célebre formulação ciceroniana. Nesta concepção, o ram para o conhecimento historiográfico em geral. O
passado é visto essencialmente como uma pedagogia, processo histórico parecia descolado dos seus atores.
como uma instância moral, um repositório inesgotá- As filosofias da história do século XIX consolidaram
vel de exemplos, a serem seguidos e/ou evitados, a inversão do voluntarismo iluminista: a história dei-
portanto, um norte para o futuro e um guia para a ação xava de ser vista como o resultado da vontade e da
no presente. ação humanas para ser representada enquanto proces-
Mas, e sempre de acordo com Jasmin, no século so autônomo, independente dos homens e cuja força
XVIII, a consciência histórica européia passa por não se podia contrariar”(p.11).
transformações internas que levam à “descoberta da A ciência política de Tocqueville, que se revela
unidade dos processos históricos subjacente à noção na sua filosofia da história (bem como a de Marx e
iluminista do progresso” e põem em cheque o esta- de Comte, para citar os dois outros grandes teóricos
tuto da História Mestra da Vida com sua crença na sociais, contemporâneos do primeiro e mencionados
natureza exemplar dos eventos. “Reagindo à concep- por Jasmin), tem como ambição encontrar uma res-
ção setecentista do caos ontológico da história, a fi- posta, uma solução, teórica e prática para a “perda da
losofia das Luzes destituiu os eventos de sua digni- conexão entre espaço de experiências e horizonte de
dade própria e exigiu sua inserção num contexto tem- expectativas”, para o descolamento que se estabele-
poral mais amplo que os tornava inteligíveis enquan- ce na consciência ocidental moderna (pós-Revolução
to elos de uma cadeia diacrônica abrangente porta- Francesa e Revolução Industrial) entre processo e
dora de direção e de significado. As diversas históri- atores. Ou ainda, para usar as outras formulações de
as até então reunidas pelo orador tradicional em fun- Jasmin, “para resolver a tensão entre determinação e
ção de sua exemplaridade cederam seu lugar ao dis- vontade”, “entre processo e ator”. Assim, também as
curso historiográfico sobre uma unidade ontológica formas modernas de História utilizam-se do passado
que articulava o conjunto dos fatos da aventura hu- para “encontrar algum grau de controle sobre as con-
mana no tempo”. E Jasmin conclui citando uma for- seqüências possíveis ou prováveis das ações políticas”.
mulação do historiador Droysen: “para além das his- Como disse, de maneira lapidar, Joseph de Maistre
tórias, existe a História”(p.9). Mas, se o Iluminismo, (de quem Tocqueville foi leitor atento e cuja filosofia
abre a possibilidade para a “vontade esclarecida da da história apesar de teocrática e reacionária é moder-
razão” mudar o presente, romper com o passado e na), no mesmo livro citado no início desta resenha: “...
construir um futuro inédito, a Revolução Francesa, e se o raciocínio penetra em nossos espíritos, acredi-
por sua vez, ao mesmo tempo que leva às últimas temos pelo menos na história, que é a política experi-
conseqüências o voluntarismo, a vontade de dirigir e mental”. Em suma, também Tocqueville nunca deixa-
acelerar a história, leva, paradoxalmente, à impotên- rá de ver a história como política experimental e de
150 Modesto Florenzano / Revista de História 138 (1998), 147-152

lhe atribuir uma “função ético-política”. Função “éti- cientista político, seu aristocratismo (também conser-
co-política”, e não função “cientifica”, da história, pois, vador além de liberal) não lhe permitiu essa abertura
como muito bem nota Jasmin, Tocqueville recusa e e uma ciência da política sem espírito democrático
combate as filosofias da história da sua época que se não poderia funcionar num mundo democrático. Pois,
pretendem científicas (ou teocráticas, como a de de não se deve esquecer, o liberalismo tocquevilleano
Maistre), pois todas elas com seu caráter determinista, nunca foi nem burguês, como o de Constant ou
fatalista ou providencialista, anulam o espaço da liber- Guizot, nem radical ou progressivo, como o de seu
dade humana e levam os indivíduos (e a ação indivi- admirador e correspondente John Stuart Mill.
dual) à impotência e/ou à irresponsabilidade. Assim, se a recusa de Tocqueville em abandonar
“Operando simultaneamente como ‘ciência’ e a concepção tradicional de História não o impediu,
como ‘política’, afirma Jasmin, o novo saber de mas, ao contrário e paradoxalmente, o ajudou a fazer
Tocqueville quer não apenas determinar o quadro no uma nova História, sua recusa em abraçar um dos
qual se encontram inexoravelmente os homens no novos sistemas filosóficos em circulação, únicos ade-
mundo moderno como também convênce-los da ne- quados para operar em um mundo totalmente novo,
cessidade, e da possibilidade, de reagir a ele”(p.86). fez com que sua “nova ciência política”, não passas-
Dir-se-ia que Tocqueville, ao não renunciar à “preten- se, em termos práticos, de um whishful thinking. Não
são da empresa ciceroniana (que) era fundamental- por outra razão, Tocqueville, ao contrário de Comte
mente ética” e ao combater a “pretensão das filosofi- e Marx, por exemplo, que também pretenderam criar
as modernas (que) é fundamentalmente científica”, uma nova ciência baseada na história, não formou
combinou estranha e excepcionalmente, dois mode- discípulos, não deixou seguidores, partidários ou
los ou formas de História. Mas, como se depreende adeptos. Como poderia, Tocqueville, pretender inter-
da própria leitura do livro de Jasmin, se Tocqueville ferir em comportamentos individuais e coletivos e,
foi muito bem sucedido na tarefa de “determinar o eventualmente dirigi-los, se só tinha a oferecer dúvi-
quadro no qual se encontram inexoravelmente os das, dilemas, ao invés de certezas e convicções. Nesse
homens no mundo moderno”, fracassou completa- sentido, ele nos faz lembrar Erasmo diante da Refor-
mente na tarefa de “convencê-los da necessidade, e ma. Erasmo, diferentemente de Lutero, nada tinha para
da possibilidade, de reagir a ele”. oferecer às massas, pois o seu (de Erasmo) era um cris-
Em outras palavras (e avançando um pouco mais tianismo muito elevado e espiritual, um cristianismo
nessas reflexões que nos foram suscitadas pela leitu- somente ao alcance de uns poucos e nobres espíritos.
ra do livro de Jasmin), se Tocqueville soube criar, Na mesma época em que Tocqueville está propon-
como poucos – e sem abandonar a antiga concepção do “uma nova ciência da política”, também Comte e
de História como Mestra da Vida – uma nova Histó- Marx, estão elaborando suas grandes teorias sociais:
ria que continua a nos espantar pela sua originalida- o primeiro, uma ciência da sociedade (a física social
de, profundidade e atualidade, não soube, criar uma ou sociologia, como a chamou) e o segundo, uma
nova ciência da política. Dir-se-ia que a razão do que ciência da história (o materialismo histórico); ora,
é ao mesmo tempo o seu sucesso e o seu fracasso, está assim como o materialismo histórico é, ao mesmo
no fato de que o aristocrata Tocqueville, soube e pôde, tempo, uma ciência da sociedade, o positivismo
como historiador, se abrir para a democracia, isto é, comteano é uma ciência da história (pois, nas pala-
combinou e potencializou o que a historiografia aris- vras do próprio Comte, “o verdadeiro espírito geral
tocrática e democrática tinham de melhor; mas como da sociologia dinâmica consiste em conceber cada um
Modesto Florenzano / Revista de História 138 (1998), 147-152 151

destes estados sociais consecutivos como o resulta- resultaria que todo homem que apresenta um siste-
do necessário do precedente e o motor indispensável ma completo e absoluto, pelo simples fato de seu sis-
do seguinte, segundo o luminoso axioma do grande tema ser completo e absoluto, está num estado quase
Leibniz: o presente está grávido de futuro.”). certo de erro ou mentira, e todo homem que queira
Como se vê, Comte e Marx, ao contrário de impor à força um tal sistema a seus semelhantes, deve
Tocqueville, estavam convencidos de que, com seus ser considerado, ipso facto e sem exame prévio de
sistemas, tinham encontrado a chave para iluminar o suas idéias, como um tirano e um inimigo do gênero
presente e esclarecer o futuro. E mais, enquanto os dois humano”. E “Odeio, de minha parte, estes sistemas
primeiros rompem com a tradição que vem desde os absolutos, que fazem depender todos os acontecimen-
gregos, ao subsumir e subordinar a esfera do político tos da história de grandes causas primeiras, ligando-
à esfera do social (invertendo assim a concepção clás- as umas às outras por uma cadeia fatal, e que supri-
sica que dava primazia à política e a esta subordina- mem, por assim dizer, os homens da história do gê-
va todas as demais esferas da vida), o terceiro, man- nero humano. Eu os acho limitados em sua pretensa
tém-se fiel à tradição, isto é, continua a ver e a dar à grandeza, e falsos sob seu ar de verdade matemá-
esfera da política a autonomia e a primazia de sem- tica...”(pp.214 e 234).
pre. Daí decorre que a concepção de Tocqueville da Em outras palavras, se, por um lado, Tocqueville,
história e da política (ou seja, da liberdade, da ação rende-se à inevitabilidade da marcha da história (ao
livre do homem na história), não é, ao contrário da mesmo tempo que elabora uma engenhosa constru-
de Comte e Marx, nem determinista, nem teleológica, ção intelectual, uma “arquitetura das temporali-
ela não se resolve e dissolve em um futuro previsivel- dades”, como a chama Jasmin, para apreendê-la e
mente positivo e comunista; e embora a sua fosse uma explicá-la), por outro, recusa-se a acreditar que seja
perspectiva e uma posição aristocrática, portanto de possível a algum mortal extrair da história o segredo
retaguarda, por ser indeterminada e aberta, parece, nos capaz de dar à humanidade a ciência, e a solução, do
dias de hoje, mais atual que as outras duas. seu futuro. Não é por outra razão que Tocqueville foi
Duas passagens de Tocqueville, citadas por buscar, não na filosofia do seu tempo, nem na filoso-
Jasmin e que não foram publicadas em vida do autor fia do Iluminismo, mas na do Renascimento (e, por-
(pois, a primeira faz parte das notas de A Democra- tanto, também na da Antigüidade Clássica) inspira-
cia na América e a segunda das Lembranças de 1848, ção para a imagem sobre a condição e o destino dos
estas últimas só publicadas em 1893), não poderiam indivíduos com a qual finaliza sua A Democracia na
ser mais eloqüentes para mostrar a visão cética e críti- América: “... a Providência não Criou o gênero hu-
ca do pensador francês quanto às possibilidades de mano nem inteiramente independente, nem comple-
se encontrar a ciência, a verdade, da política e da so- tamente escravo. É verdade que traça, ao redor de cada
ciedade, ou seja, da história: “Não há homem no mun- homem, um círculo fatal do qual ele não pode sair;
do que tenha encontrado, e é praticamente certo que mas dentro dos seus vastos limites, o homem é pode-
jamais veremos algum que venha encontrar, o ponto roso e livre; assim também os povos. As nações de
central para onde convergem, eu nem digo todos os hoje em dia não poderiam impedir que em seu seio
raios da vontade geral que só se reúnem em Deus, mas as condições fossem iguais; mas depende delas que
nem mesmo todos os raios de uma vontade particu- a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade, às
lar. Os homens apreendem fragmentos da verdade, luzes ou à barbárie, à prosperidade ou às misérias”.
mas jamais a verdade em si. Sendo isto admitido,
152 Modesto Florenzano / Revista de História 138 (1998), 147-152

Essa formulação tocquevilleana nos faz lembrar, Que nos seja permitido, para terminar nossa apre-
irresistivelmente, duas outras imagens, muito seme- ciação do livro de Jasmin, citar mais duas pequenas
lhantes. A de de Maistre, na abertura das Considé- passagens, uma dele próprio, para mostrar o espírito,
rations, “O que há de mais admirável na ordem uni- a justa ambição, que animou o seu trabalho: “O pen-
versal das coisas, é a ação dos seres livres sob a mão samento de Tocqueville interessa aqui na medida em
divina. Livremente escravos, operam todos ao mes- que a abordagem do olhar contemporâneo possa ser
mo tempo voluntariamente e necessariamente: fazem útil ao seu esclarecimento e que sua problematização
realmente o que querem, mas sem poder contrariar teórica das relações entre historiografia e conheci-
os planos gerais. Cada um desses seres ocupa o cen- mento político nos sirvam como exercício para o
tro de uma esfera de atividade cujo diâmetro varia ao autoconhecimento de nossa própria historicida-
sabor do eterno geômetra, que sabe estender, restrin- de”(p.24). A outra, do prefácio de Luiz Werneck Vianna,
gir, deter ou dirigir a vontade, sem alterar sua natu- que assinala, com justiça, que o trabalho de Jasmin so-
reza”. E a de Pico della Mirandola, no Discurso so- bre Tocqueville “nada fica a dever ao que se produz na
bre a dignidade do homem, “Diz o Criador a Adão: literatura internacional sobre este autor clássico, quer
Coloquei-te no meio do mundo, para que mais facil- pela originalidade do seu argumento, ao demonstrar o
mente possas olhar a tua volta e ver tudo o que te papel da História na ação política que se orienta em fa-
cerca. Criei-te como um ser nem celestial nem terre- vor da democracia de homens livres, quer pela riqueza
no, nem mortal nem imortal apenas, para que sejas de suas fontes e elegante clareza na exposição”.
tu a moldar e superar livremente a ti próprio. Podes E lembrar, por último, que quando se afirma que
degenerar-te em animal ou recriar-te à semelhança os clássicos nunca morrem isto implica não só fazer
divina...”. A semelhança da metáfora de Tocqueville o elogio dos clássicos mas também dos comentadores
com a de de Maistre está apenas na letra, ao passo que que lendo-os e relendo-os, sucessivamente no tem-
com a de Pico della Mirandola está tanto na letra po, são capazes de reinterpretá-los e reatualizá-los.
quanto no espírito. Tocqueville, como Pico della Em outras palavras, que, se é preciso saber interpre-
Mirandola, acredita que Deus dotou o homem de li- tar os clássicos, a arte de fazê-lo não é nada fácil,
vre-arbítrio, do poder de escolher entre ser livre e ser porque, sobre eles, tudo parece já ter sido dito e per-
escravo, de Maistre acredita no contrário, isto é, que guntado. Pois bem, Marcelo Jasmin, soube, com
Deus ao fazer dos indivíduos seres “livremente escra- muito brilho, oferecer uma importante e original rein-
vos” não deu a estes alternativa ou poder de escolha terpretação e reatualização deste grande clássico que
quanto à sua condição e destino. é Tocqueville.

Modesto Florenzano
Depto. de História-FFLCH/USP
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos
no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996, 509p.

Os Fios da Liberdade
De certa forma, vale dizer que a recente historio- tempos do “politicamente correto” estas constatações
grafia brasileira sobre os negros evoca a sina de Sísifo. viram obsessão. Procedido o exercício da escolha,
Condenada por um calendário renitente, de tempo em pode-se vislumbrar alguma luz capaz de fazer brilhar
tempo, assiste-se ao repetido castigo de subir a mon- argumentos potentes para instruir procedimentos que
tanha com a pedra que há de rolar novamente. Tudo superam revanchismos ou práticas paternalistas. So-
recomeça a cada sol, ou a nova celebração que dê bretudo, para isto, convoca-se o exame de uma histó-
oportunidade para se tocar em temas afeitos à ria de relevância temática, capaz de propor nova ló-
negritude. Em regra, tudo funciona como um monóto- gica em uma sociedade onde, vis à vis, o espelho e o
no movimento pendular que marca as horas de cer- “esquecimento” promovem repetições.
tos mesmismos explicativos. Foi assim com o cente- Especificamente sobre os negros, o comportamen-
nário da abolição; da mesma forma ocorreu com a co- to crítico-historiográfico tem sido sobremaneira omis-
memoração dos 300 anos da morte de Zumbi, assina- so. Vendo em conjunto, considerando o mau resulta-
lada no transcorrer de 1995. do dos estudos sobre a escravidão brasileira e a pro-
Congressos, cursos, conferências se sucedem em jeção sobre o presente, verifica-se que os debates vin-
situações como essas reprisando, quase sem exceções, culados à chamada “questão negra” parecem ter per-
a seqüência de protestos que se esgotam na inefável dido a consistência. Faltam análises seqüenciais e esta
explicação consubstanciada no mito da democracia ausência estabelece uma fronteira fechada entre par-
racial. Como mero discurso de denúncia, o que se tem tes. Esfacelada em espontaneísmos lustrados na prá-
feito é a conclamação da sociedade a devolver aos tica da denúncia, do silêncio ou do deslumbramento
negros os direitos que lhes foram usurpados. Se isto exotista, o que se compromete na visão do negro é a
é legítimo, cabe questionar os fundamentos e nesta dimensão histórica que dá vida ao tempo presente. A
senda perscrutar novidades. falta de relação entre o enredo pretérito e a lista de
Os mais sensatos, depois de procedidos rescaldos reivindicações do momento provoca uma sensação de
da avalanche de textos que decorrem do celebracio- vazio explicativo que justifica uma militância às ve-
nismo, podem ter algumas surpresas que fogem das zes fastidiosa porque ignorante.
modestas revisões sobre a prática dos preconceitos, O pior é que no ostracismo palaciano dos debates
racismos, lapsos e equívocos da legislação, desvios acadêmicos sobre o passado racista nacional fica
das normas supostamente antidiscriminatórias – em trancada a perspectiva histórica que garantiria
154 José Carlos Sebe Bom Meihy / Revista de História 138 (1998), 153-158

especificidade aos debates sobre os negros na socie- por João José Reis e Flávio dos Santos Gomes. Reu-
dade nacional. Sendo verdade que este é um problema nindo especialistas em temas vinculados a escravidão
genérico, de diferentes quadrantes do mundo, não é ou a assuntos diretamente ligados a ela, dezessete au-
menos evidente que a perda da dimensão histórica tem tores apresentam versões sobre um daqueles temas ca-
produzido monstros na razão das políticas do estado pitais na formação da sociedade brasileira: os quilom-
de hoje. No Brasil, isto resulta deformações formi- bos. Sendo verdade que o assunto já havia recebido
dáveis. Como se fossem duas metades distintas, os atenção de autores como Edson Carneiro, Arthur
estudos históricos sobre o escravismo, quase sempre, Ramos, Ernesto Ennes, Clóvis Moura, Abdias do
se desprendem da discussão sobre o presente. No caso Nascimento e Décio Freitas, pergunta-se desde logo:
da escravidão, com freqüência, os trabalhos deleitam qual o significado distintivo deste trabalho? Qual o
em aliviar o teor violento do passado e no lugar suge- sentido de sua inscrição no momento corrente?
rem exercícios que nada tem a ver com o quadro atual. Dois vetores nortearam o arranjo do livro: os es-
A descontinuidade é marca não apenas da alienação paços geográficos que percorrem o mapa brasileiro e
acadêmica mas também da descartabilidade da cultura o atravessamento temporal que flui do século XVII
universitária na instrução de políticas públicas. até o presente. Exibindo um contexto geral, de sul a
A tradição de uma história incruenta, sem sangue norte do país a fuga de escravos é mostrada como
nem ódios, isenta de torturas e definições de diferen- prática incessante de busca da liberdade, dignidade. A
ças, tem sido reinventada entre nós a partir dos usos, persistência deste recurso através dos tempos deixa
às vezes ingênuos, de supostos da Nova História arre- entrever a longa duração do tratamento separatista entre
medada da forma francesa. Sobre isto aliás Jacob negros e brancos. Por lógico, não se pode deixar de
Gorender já escreveu, exponenciando os efeitos da reclamar neste plano quase perfeito a ausência dos
adocicação do processo escravocrata, que troca, sem quilombos paulistas posto que pesquisadores do porte
pudor, a luta de classes, pelas soltas explicações sobre de Carlos Vogt e Peter Fry esmeram-se em estudos
mentalidade, imaginário e representações. sobre Cafundó (que é apenas citado em nota de rodapé).
Paradoxalmente, o celebracionismo que marca nos- Aliás, a inclusão desta pesquisa no conjunto daria mais
sa vida acadêmica, de repente, tem tido que enfrentar vida a temporalidade pretendida pelo projeto. Ainda
a perversidade do calendário e render-se ao inevitável, que em tamanho os artigos se equilibrem, em termos
às conexões entre passado e presente. Isto ocorre quan- de abordagem e de conteúdo são bem diferentes. Mais
do o sujeito desta história, o próprio negro, convoca que a preocupação espacial e temporal cabe garantir
explicações, gera o debate que lhe garanta algum di- que o conjunto discute as relações entre o escravismo,
reito. É aí que a contradição entre o processo historio- sua projeção e a sociedade brasileira.
gráfico encerrado nas faculdades de filosofia se mos-
tra mais frágil e afônico para dar respostas. Palmares
Num balanço possível sobre o que se tem publica-
do no Brasil a respeito do negro, em um esforço para O livro, como seria previsível, dá especial ênfase
não se perder os nexos capazes de estabelecer lógi- ao caso de Palmares, a mais importante de nossas
cas de tratamento entre o passado e o presente, surge experiências de quilombolas. Neste sentido, há um
um trabalho inquietante e assaz provocativo. Liber- bloco composto de seis textos devotados ao tema. A
dade por um fio: história dos quilombos no Brasil ordem, contudo, deixa dúvidas posto que abre com
(Companhia das Letras) é uma coletânea organizada uma pesquisa que ainda é promessa, de retomada dos
José Carlos Sebe Bom Meihy / Revista de História 138 (1998), 153-158 155

debates historiográficos através da aventura arqueoló- maneira é sagaz a pontuação feita em cima do caráter
gica. O artigo de Pedro Paulo Funari, narrado a moda solidário que tanto aliava fugitivos como proprietári-
de relatório ou projeto, desperta curiosidades que não os. É exatamente no extravasamento do “delito” e na
são satisfeitas ao longo de exposições convencionais “coletivização” da repressão que se deu o estabeleci-
e mal cozidas. mento sistemático de um medo de “outros Palmares”.
A proposta seguinte, de Richard Price, aponta para A graça do texto de Luiz Mott cai como uma
uma interessante história ucrônica, mas, a autoridade benção no conjunto dos artigos. Ao discutir a figura
do autor em relação às experiências, de quase trinta de Santo Antônio, retraça o perfil da sociedade que
anos no Suriname, fica desequilibrada em relação a impunha papeis belicosos que mesclavam conceito de
nossa que lhe é muito pouco conhecida. O resultado guerra santa com militância religiosa. Tudo é proce-
pois é uma “carta de intenções” que tanto compro- dido com cuidados que mostram a fundamentação
mete o autor como o distancia de outros brasilianistas teológica na ação do santo evocado como intercessor
dedicados a esta questão. Mesmo assim não há como do pavor infidelium. Se o texto é abrangente não deixa
desconhecer a relevância da comparação indicada também de calibrar exemplos que vinculam direta-
posto que, finalmente, apontar-se-ia para uma história mente com repressão a Palmares onde o santo teria
da América Negra. ido, em imagem, lutar contra os negros rebelados.
Estimulante a proposta de Ronaldo Vainfas que,
mostrando os jesuítas como um bloco, parte do discu- Quilombos Regionais
tível pressuposto de que os loyolanos “falaram pouco
de Palmares”. O autor, ao costurar o discurso do Pa- O texto de Carlos Magno Guimarães funciona
dre Vieira ao de Manuel Fernandes, estabelece o pa- como ponte entre a temática específica de Palmares
radoxo entre cristianização e colonização garantin- e a abertura para a reflexão sobre outros quilombos
do que os S.J. ao evitar os quilombos detiveram-se regionais. Minas é apontada como alternativa de des-
mais na escravidão. É claro, o acento é colocado na dobramento pela concentração de negros escravos
posição do Padre Antônio Vieira que, contudo, é trabalhando na mineração. Tratando de “classe escra-
mostrado apenas em relação aos escravos, sendo dei- va” o autor mostra a especificidade daqueles quilom-
xado de lado o enquadramento triológico da ação bos generalizando, porém, as conclusões para o Bra-
vieirense centrada na combinação salvacionista dos sil. Nesta senda, pontua um dos problemas mais ex-
índios, judeus e escravos. Sem mencionar que os pressivos na retomada da temática quilombola: seu
homens só se salvariam em conjunto fica sem cenário caráter de “contradição do escravismo moderno, le-
integrativo, a visão do missionário. vando em conta as especificidades conjunturais”.
Instruído o texto de Silvia Hunold Lara é uma Apesar de ser um texto que arrola problemas relevan-
preciosa retomada do percurso historiográfico de tes esmorece, tanto por insistir em uma linha exposi-
Palmares. Sem perder a tendência às aproximações tiva demais pedagógica como por apelar para dispen-
épicas, o quilombo é salientado pelas leituras “à es- sável fundamentação conceitual acetada em Bobbio
querda” que o evidenciam como um problema capaz e Lênin que, aplicados explicitamente para explicar
de justificar um processo repressivo que contava com Minas, causa ruídos inúteis. De qualquer forma, abre
capitães-do-campo, capitães-mores-das-entradas. debate para os demais quilombos e garante o diálogo
Toda uma legislação cautelosa se constitui como com outros temas dados à proposição do quilombismo
maneira de articular prevenções de fugas. Sobre- na história nacional.
156 José Carlos Sebe Bom Meihy / Revista de História 138 (1998), 153-158

Donald Ramos retoma o mote da inscrição do da expedição que possuía músicos e rezava missas,
quilombo no contexto regional e mostra que os redu- dando mostras da existência de um lado moral na
tos de Minas não existiam isoladamente. Mais, indi- “caça” aos escravos. Ainda que a autora veja poemas
ca que a aventura dos quilombolas pode ser vista populares como “toquíssimos” e constate “versinhos
como estrada de mão dupla, onde trafegavam propo- ingênuos” e “orquetrinhas” estas manifestações, en-
sições coletivas, contra a escravidão, e interesses in- cravadas no cotidiano violento dos mineiros é prova
dividuais. Situado o campo de exemplificação em paradoxal da “civilidade” tida como padrão.
Minas, fica ressaltada a característica da proximida- Reclamando que a historiografia pouca atenção
de daqueles quilombos dos centros de mineração. A tem prestado aos quilombos mato-grossenses, Luiza
questão do recrutamento é ponto básico para se enten- Rios Ricci Volpato contextualiza a vida daquele in-
der a multiplicidade dos quilombos. Ao mostrar a sin- terior como “zona de fronteira” e, baseada nisto, alia
tonia entre os mucambos e os pólos urbanos, Ramos a instalação dos redutos de fugitivos com a fixação
salienta o papel dos vínculos institucionais, principal- do povoamento, principalmente na segunda metade do
mente da Igreja Católica, como forma de relaciona- século XVIII. As regras rígidas da mineração limitavam
mento entre os escravos e a sociedade. A educação e a agricultura e os escravos da área possuíam pouca es-
o acesso às irmandades são mostradas como critéri- pecialização o que atesta o nível de pobreza local. Isto
os de “aculturação” e que mesmo eficientes, não te- porém não atrapalhou a organização de alguns quilom-
riam conseguido a adesão dos negros ao regime. Os bos que tiveram resultados felizes na estruturação inter-
quilombos de Vila Rica no século XVIII, embora na. A característica mais exuberante deste estudo diz
pequenos são fundamentais para o entendimento do respeito á prática da cooptação pelo estado. Tanto ne-
processo como um todo. Os quilombos que ele cha- gros quilombolas quanto índios eram igualmente atraí-
ma de “anônimos” teriam sido “parte integrante da dos para os trabalhos nas fileiras da ordem que precisa-
vida do século XVIII”. va vigiar as fronteiras. A finalização do texto é uma sau-
Laura de Mello e Souza, como todos os demais dação aos quilombos que teriam provocado pequenos
autores, exponencia a questão do medo. Sua ênfase, núcleos de povoamento, disciplinando a população além
contudo, centra-se na sociedade mineira da segunda de motivar a solidariedade grupal.
metade do nosso século de ouro. O ressurgimento do A brasilianista Mary Karasch aborda Goiás mos-
quilombo do Ambrósio é o tema do texto que analisa trando a resistência de quilombos que teriam durado
um dos mais curiosos casos de repressão a quilombos: desde 1727 até o século XX. Mostrando que um es-
a campanha para o aniquilamento daquele campo. tudo da cultura negra quilombada exige técnicas
Várias expedições “bélicas” eram organizadas a fim múltiplas, inclusive a comparação com outras comu-
de vasculhar o sertão atrás de quilombos, mas nenhu- nidades da América, apresenta uma evidência demo-
ma teria, em Minas, sido mais eloqüente que a articu- gráfica interessante pois os quilombos costumavam
lada durante três anos, contando com cerca de quatro- aparecer quando a população negra mostrava-se su-
centos integrantes. A figura de Inácio Correia perior a dos brancos. Na mesma medida, a fuga de
Pamplona é eregida como desbravador de sertões e homens era mais aberta posto que exerciam ativida-
destruidor de quilombos, na mesma medida em que des diferentes e de controle mais difícil. O vínculo
é mostrado como um dos três grandes delatores da entre os jesuítas e os quilombolas é mostrado segun-
Inconfidência Mineira. Um dos ângulos mais interes- do um pacto que também envolvia índios. Este ponto
santes deste processo é a mostra do lado “civilizado” aliás é dos mais polêmicos posto que, em regra, a
José Carlos Sebe Bom Meihy / Revista de História 138 (1998), 153-158 157

igreja é vista como aliada do estado. Vale lembrar que Quilombos baianos
no momento focado pela autora, a Companhia de
Jesus estava em questão com o estado. Como seria de se esperar os quilombos baianos
Sem dúvidas as relações entre os quilombos e o se constituem na parte mais forte do livro. Com tex-
estado ou a igreja eram complexas e dependiam de tos bem documentados e articulados são eles que
situações muito específicas. O caso do Rio de Janeiro deixam de lado o mero sabor de novidade e retraçam
é analisado por Flávio dos Santos Gomes que parte os diálogos historiográficos mais importantes.
da inversão historiográfica que insiste em mostrar o O texto de João José Reis é aberto com a propos-
quilombo em oposição a escravidão. A atividade ta de estudo da relação entre os quilombos e a socie-
quilombola teria modificado também a vida dos es- dade que os cercava. A superação da tradição palma-
cravos. Focalizando a baixada Iguaçuana, o autor rina é mostra da oposição simplista do mucambo
mostra o impacto causado pela vinda da família real como espaço isolado do contexto. No jogo de rela-
ao Rio. Depois disto a multiplicação dos mocambos ções entre os quilombolas e os “cidadãos”, a figura
que, contudo, nesta área, se relacionaram indireta- do coiteiro assume papel importante como elemento
mente com a população, principalmente através de ta- problemático entre a proteção e a repressão aos ne-
berneiros, exercendo um comércio clandestino. Uma gros. Salvador, como o terminal mais importante do
verdadeira teia de relações sociais seria decorrente da tráfego, deveria possuir bom aparelho de controle e
fixação dos quilombos que acabavam por se impor no o teste das relações é medido pelo autor no exame do
tecido social. quilombo do Oitizeiro, estabelecido às margens do rio
O sul do Brasil também passou pela experiência das Contas. Entre os outros redutos, este teve uma
dos quilombos pois teve o negro atuando em todas as expedição organizada para sua destruição em 1806.
etapas de sua inscrição na história nacional. Aliás, Como era comum, índios foram usados nas tropas
eram eles mesmos um dos principais produtos contra os negros fugidos e a organização da milícia
contrabandeados em Sacramento. Dada a solução ganhava foros de empresa. Não faltam sugestões de
econômica da região, as charqueadas exigiam gran- corrupção para a façanha de repressão que, contudo,
de número de escravos. Como o pampa é área de es- não foi cabalmente bem sucedida dados avisos pré-
conderijo difícil, as fugas davam-se para a região da vios. O que marca este estudo é a originalidade do
serra e nelas as localizações próximas às cidades. O objeto bem domado pelo analista. Oitizeiro foi um
caso de Pelotas é importante pois revela a preocupa- quilombo especialíssimo possivelmente dirigido por
ção dos amos com a concentração de negros que eram homens livres, com escravos e com índice de integra-
retidos nas charqueadas tidas como presídios. O im- ção no mercado regional. De tal forma a contextuali-
pacto da Revolução Farroupilha, por outro lado, mo- zação deste quilombo era natural que chega-se a per-
tivou a multiplicação de mocambos posto que os guntar, finalmente, se ele não teria sido uma fabrica-
rebelados soltavam os escravos para tornarem-se sol- ção jurídica para impressionar.
dados. De qualquer forma, este texto aborda a ques- Stuart B. Schwartz depois de caracterizar a resis-
tão da especificidade dos quilombos gaúchos mos- tência negra no Brasil entre as fugas e as rebeliões
trando como o isolamento teria sugerido formas in- urbanas, procura mostrar que estas alternativas não
ternas de ordenamento social. eram opostas ou independentes. Para tanto, analisa a
revolta promovida pelos haussás, islâmicos, em 1814.
A instruída informação das políticas internas da Áfri-
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ca ajuda perceber como as disputas religiosas de ne- cia. Salientando que o Maranhão representava, às
gros continuaram deste lado do Atlântico. Da mesma vésperas da Independência, a mais alta concentração
forma, as soluções de organização que resultaram em escrava do Império (55%), o autor trabalha com a
rebeliões continuadas num esforço de integração do hipótese da persistência de quilombos endêmicos
grupo haussás. O autor discute os dilemas da negocia- naquela região. A multiplicação de quilombos, con-
ção cultural feita entre estratos de ethos tribais africa- tudo, teria sugerido a existência de redes. Os “quilom-
nos e a imposição de padrões culturais portugueses. O bos tardios” teriam tido alterações no perfil das lide-
canto e os quilombos seriam os pólos entre a submis- ranças e isto sugere uma espécie de perda dos
são e a resistência. Os conspiradores de 1814, pois são referenciais africanos e que através de um “sincre-
mostrados como grupo político de oposição dos tismo” teriam sido passados aos crioulos.
dominadores e com notável capacidade de resistência. O último texto, de Eurípedes A. Funes, fecha com
O quilombo de Catucá, de Pernambuco, é o tema chave de ouro a lista destes trabalhos. Explorando a tra-
de Marcus Joaquim M. de Carvalho que indica a dição oral, o autor aborda a questão dos mucambos no
mudança, no século XIX, da localização dos quilom- baixo Amazonas. A evocação de Vansina aponta para a
bos da longínquas a floresta para a proximidade dos linha da reconstituição histórica através da memória.
engenhos. Prestando, principalmente, atenção no Caracterizando os quilombos regionais como in-
período situado entre 1817 e 1825 – portanto entre dependentes não identifica neles, como na grande mai-
uma fase de rebelião e o esforço da Confederação do oria nacional, uma “economia parasitária”. Mostrando
Equador -, localiza neste período a tentativa especí- que, como o índio, ao fugir do branco os espaços de
fica de um grupo em construir uma sociedade alter- reclusão iam se internando na floresta o autor conclui
nativa, onde houvesse liberdade para os negros. A es- que a experiência de organização interna do grupo teria
tratégia de resistência à repressão indica que foi ado- gerado, até hoje, um sentido utópico de liberdade.
tada a prática de quilombos móveis. Um dos pontos Ao fim da leitura de tantos textos é de se questio-
mais interessantes desse texto remete à estruturação nar o saldo. Evidentemente, a riqueza das experiên-
interna dos próprios quilombos que, eventualmente, cias e a fertilidade das informações sugerem que no-
poderiam estabelecer espécie de sucessões familiares. vos estudos devam decorrer desta feliz aventura. Ao
Buscando entender na complexa documentação se a lado da sensação de surpresa prezarias, algumas dú-
figura de Malunguinho se confundia (ou não ) com o vidas fertilizam a curiosidade dos leitores. Afinal, o
gentílico “malunguinho”, ou seja, os quilombolas em juízo sobre a aventura de busca da liberdade dos qui-
geral, o autor mostra que, este líder passou para a lombolas teria alguma seqüência? Não havendo uni-
cultura popular como uma espécie de herói. dade de procedimentos em conjunto o que significa-
Os quilombos maranhenses são focalizado por ria esses empreendimentos? Quais seriam seus efei-
Matthias Röhrig Assunção que identifica, no século tos hoje: negociações, isolacionismos? Extrapolariam
XIX “uma extraordinária multiplicação de quilom- a aventura da fuga e da mera resistência? Cabe por
bos”. Procedendo uma tipologia dos mucambos, per- fim perguntar da lógica do silêncio entre o “esqueci-
cebe quatro tipos que percorreriam a trajetória dos mento” deste tema pela nossa historiografia e a po-
quilombos desde a tradição “clássica” até o momen- breza dos conteúdos presentes nos debates atuais so-
to em que a escravidão já se encontrava em decadên- bre a chamada questão negra brasileira.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Depto. História – FFLCH/USP
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

SABIA, Debra. Contradicion and conflict : The Popular Church in Nicarágua. Tuscaloosa
and London, The University of Alabama Press, 1997. 239 p.

I – O Tema e seu suporte metodológico

O livro de Debra Sabia é um estudo sobre a Igreja rentes tipos ideais, que ela foi concebendo em cada
popular na Nicarágua e está dividido em três partes: momento da pesquisa. A primeira fase se realizou na
a primeira inclui os capítulos 2 a 5 onde a autora des- primavera de 1990. Naquele momento visitou as Co-
venda os problemas das profundas transformações munidades Eclesiais de Base. Depois de dois meses de
que ocorreram na Igreja Católica, a partir de 1962, pesquisa, passou a pesquisar os Institutos e centros
quando em Roma realizou-se o Concílio Vaticano II, cristãos que haviam se distinguido pela participação
ou seja, um momento de revisão no sentido da criação na igreja popular. As outras fases ocorreram no verão
de uma igreja popular; a segunda, capítulos 6 a 9, de 1991 e no inverno de 1992. Tentando estabelecer as
analisa os cismas ocorridos no setor popular e seus conexões entre fatos, procurou recuperar os vários
efeitos na religião, na política e na vida social dos ni- pontos de vista, através de contatos com os membros
caragüenses; a terceira procura reconstruir e resgatar da igreja popular, líderes governamentais, elites eco-
as experiências vividas pela população no sentido de nômicas, e oficiais da hierarquia católica, inclusive o
criar a igreja dos pobres, o desenvolvimento da teolo- cardeal Miguel Obando y Bravo da Nicarágua.
gia da Libertação e sua força no reordenamento do Outra estratégia empregada no projeto foi o méto-
país após a derrubada de Somoza. do de pesquisa participante que levou à observação
A pesquisa desenvolvida levou a autora a defrontar- direta, à participação nas atividades promovidas pelas
se com uma enorme heterogeneidade no setor popular, CEBs, a levar em consideração as conversas informais
cujas divisões internas são analisadas no conjunto do com os vários personagens envolvidos na construção
trabalho. Como suporte metodológico, utiliza-se da da igreja popular, inclusive os protestantes, e final-
construção weberiana de tipo ideal, que para a autora mente, a participar de atos públicos e toda sorte de
são construções lógicas criadas pelos cientistas sociais eventos organizados por estes grupos.
para conceitualizar e analisar os fenômenos observados. Os procedimentos definidos constituíram-se pela
Ela reconhece as dificuldades do uso do método dupla checagem das informações e também por con-
escolhido, uma vez que as abstrações teóricas podem sultas sobre o entendimento do problema detectado.
dificultar a relação entre o vivido e os elementos arro- Conseguiu-se deste modo, organizar uma taxionomia
lados na construção do modelo. Deste modo, conside- político-ideológica e espiritual que identificava os
ra a igreja popular na Nicarágua composta de dife- membros dos vários grupos envolvidos. As comunida-
160 Zilda Márcia Iokoi / Revista de História 138 (1998), 159-162

des observadas e analisadas foram as de San Pablo, relacionam a vida religiosa com a vida profana, criti-
San Judas e Adolfo Reyes, todas na cidade Manágua. cando a politização da religião e rejeitando o movi-
Elas foram selecionadas pelas seguintes razões: mento das comunidades de base.
primeiro, por serem as mais antigas, numerosas e ati- Considerando que esses tipos auxiliam no entendi-
vas comunidades da cidade; segundo, por razões his- mento da dinâmica da experiência revolucionária da
tóricas, ou seja, serem portadoras de uma cultura po- igreja popular, a autora ainda considera que eles ofere-
lítica que as diferencia das demais e produzirem um cem importantes esclarecimentos para o tema da religi-
modo de vida baseado no processo de organização osidade e do comportamento humano de modo geral.
popular contra as formas opressivas decorrentes da
ditadura somozista. Essas comunidades atuaram de II – A constituição dos capítulos
modo ativo e representaram a força de combate da
Frente Sandinista de Libertação Nacional na capital. O primeiro capítulo leva o nome de Introdução,
Esta comunidades ofereceram, também, o trabalho de no qual a autora faz um belo trabalho de guia do lei-
muitos de seus membros de diferentes classes sociais tor nos meandros, impasses e escolhas na formula-
para a organização dos bairros. Elas foram ainda esco- ção do tema. Em seguida, de modo extremamente
lhidas por serem as mais significativas comunidades generoso, mostra seu caminho teórico com tal expli-
da igreja popular, reconhecidas inclusive pela hierar- citação que demonstra, por si mesma, os limites das
quia católica. Deste modo a autora também informa opções e das escolhas. Essa interessante introdução
que a escolha se deveu ainda às facilidades de acesso antecipa uma série de conclusões ao leitor e de fato
às fontes, uma vez que as comunidades têm preserva- desestimula a leitura atenta no sentido da descoberta,
do as histórias e a memória das lutas. da surpresa, do interesse literário da narrativa apre-
O primeiro tipo ideal constituído foi o referente à sentada. De todo modo, é correta do ponto de vista
presença dos partisans como força organizadora, dos procedimentos, podendo ser útil ao jovem pesqui-
motivo que permitiu encontrar diferentes modos de sador que não tem disponíveis trabalhos desta nature-
práticas religiosas e de organização de comunidades za com maior freqüência.
cristãs. Essas diferenças permitiram um progressivo No segundo capítulo, a autora estuda o Concilio
movimento cristão rumo à formação da igreja popular. Vaticano II, reunido em Roma em 1962 e, como de-
Assim, neste primeiro tipo estariam os marxistas que corrência dele, a reunião episcopal de Medellín e sua
atuaram de modo central na FSLN. repercussão na Nicarágua. Neste ponto não há novi-
O segundo tipo é constituído pelos Cristãos revo- dades, uma vez que repete o que a literatura sobre o
lucionários, ou seja, aqueles que atuavam movidos tema já demonstrou. Trata-se de um capítulo de aber-
pela fé em Cristo o sujeito histórico e pela meta li- tura do tema e dos primeiros estudos para a formula-
bertadora contra a opressão e em defesa dos pobres. ção do objeto da pesquisa.
O terceiro tipo representaria o Reformismo Cris- O terceiro capítulo, A Origem da Igreja Popular,
tão, ou seja, os que defendem a justiça social sem, en- tem um tratamento muito delicado na recuperação do
tretanto, desejar alterações na estruturação da socie- trabalho do Padre José de La Jara, na comunidade de
dade em classes. Defendem a hierarquia religiosa e, San Pablo. A autora destaca o importante papel da
de certo modo, temem a Igreja popular. comunidade no sentido de reunir a população e dela
Finalmente, a autora define o conjunto composto emergirem práticas cooperativas e associativas que re-
pelos Cristãos alienados, ou seja, aqueles que não dimensionaram o sentido agregador e as dimensões
Zilda Márcia Iokoi / Revista de História 138 (1998), 159-162 161

de futuro desses grupos. Os primeiros movimentos Daí terem também seguido a definição das linhas
tinham um caráter mais próximo de um sentido ca- pastorais definidas por Gustavo Gutierrez, articulador
rismático. Pouco a pouco, além da leitura e do enten- da Teologia da Libertação. O Padre Ernesto Cardenal
dimento da vida, o cotidiano foi sendo revelado, como (irmão de Fernando) passou a imprimir um conjunto
um lugar de discussão dos dilemas cotidianos e de de escritos que aproximavam os princípios do Mar-
troca de experiências. As necessidades do dia a dia xismo com o social Cristianismo. Este foi o sinal para
passaram a ser tema dos encontros e o que se tornou as lideranças Sandinistas. A união entre os dois grupos
visível foi o encaminhamento das soluções e o fortale- permitiu a derrubada da ditadura de Somoza e a revolu-
cimento de todos. A partir de San Pablo, proliferou o ção nicaraguense inaugurou uma nova coalizão radical
número de comunidades por todo o país, sendo cria- de esquerda constituída de cristãos e marxistas.
do a Operación Permanente de la Emergencia Nacio- O Desmoronamento da Coalizão Cristã é o título
nal (OPEN), que passou a questionar o governo de do capítulo quinto, no qual a autora procurará de-
Somoza por sua legitimidade em governar o país. As monstrar como a ofensiva conservadora, que toma
comunidades proliferaram e foram sendo apoiadas conta da igreja mesmo com a vitória dos encaminha-
por entidades não governamentais e cada vez mais se mentos sociais em 1979 em Puebla, abalou a compo-
aproximaram dos pobres. Pouco a pouco, as conexões sição política que sustentou a revolução. A análise das
com os estudantes foram sendo estabelecidas, espe- razões dos conflitos entre o grupo de Ortega e a coali-
cialmente depois da aproximação com a Universida- zão contra-revolucionária de Chamorro foram cen-
de Nacional. Deste processo participaram duas figu- trais na perda do poder político dos marxistas. A partir
ras magníficas como o Padre Uriel Molina e o Padre deste ponto, a autora passa a construir os vários tipos
Jesuíta e poeta Fernando Cardenal1 . ideais para proceder às operações analíticas propos-
No capítulo quatro, a autora trata da Radicaliza- tas na introdução: O Tipo Marxista, capítulo sexto,
ção da Igreja Popular, quando relata o aumento do O Tipo Cristão Revolucionário, capítulo sétimo, O
poder das CEBs e a formação da Frente Sandinista Tipo Cristão Reformista, no capítulo oitavo e o Tipo
de Libertação Nacional. Evidentemente o ditador res- Cristão Alienado no capítulo nono.
pondia com maior repressão a todas as medidas
organizativas das comunidades, e os conflitos se tor- III – Por uma Teoria do devir
navam cada vez mais explícitos. Do mesmo modo que
no Peru, as determinações do concílio Vaticano II Finalmente, no décimo capítulo, a autora elabo-
passaram a ser operacionalizadas a partir do entendi- ra as suas conclusões quando procura projetar quais
mento do mundo através do materialismo dialético. as tendências de futuro da igreja popular. Em pri-
meiro lugar, pretende estabelecer entre a política e
a religiosidade. Evidentemente, na tessitura dos ti-
1
Cardenal esteve no Brasil em 1982, tendo participado de pos ideais foi possível perceber uma série de sepa-
uma mesa-redonda organizada pela AELA – Associação de Estu- rações entre as duas esferas do conhecimento. En-
dos Latino-Americanos, criada por um grupo de acadêmicos ame-
tretanto, as experiências concretas apontam para a
ricanistas. Foi um evento que reuniu mais de mil pessoas no auditó-
inter-relação dos vários tempos simultâneos que se
rio do Departamento de História da FFLCH da USP. Seu apoio
ao movimento revolucionário católico foi muito importante pois,
interpõem no vivido, impossibilitando a comparti-
naquele momento, as forças de resistência estavam enfraquecidas mentação do homem em racionalidade e subjetivi-
pela forte repressão de 1973/75. dade. A autora termina o livro apostando que a igreja
162 Zilda Márcia Iokoi / Revista de História 138 (1998), 159-162

popular e a teologia da libertação conseguiram pro- frutos da construção de um novo significado para o
duzir um novo conceito de pessoa, exatamente pela resgate da humanidade do homem.
junção entre os dois níveis aqui estudados. Discor- Eu pergunto... O humanismo não se constituiu exa-
dando da literatura dos, por ela chamados, pessimis- tamente no bojo do racionalismo e do iluminismo? Ou
tas, que afirmam estar a Teologia da Libertação em estaríamos pensando uma concepção do humano en-
declínio, ela prefere aqueles que ainda aguardam os quanto unidade da matéria e da vontade de potência?

Zilda Marcia Iokoi


Depto. de História – FFLCH/USP
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

SANTOS, Andrea Paula dos. Ponto de Vida: Cidadania de Mulheres Faveladas. São Pau-
lo, Loyola, 1996, 151p.

Five years ago, a team of graduate students in oral center; to see the establishment of a local woman’s
history under the direction of Jose Carlos Sebe Bom legal rights center; to organize a free theater; to create
Meihy of the University of Sao Paulo (USP) set out a clinic for alternative (non-allopathic) medical treat-
to track down not only the surviving children of the ment. She is politically astute, feisty, and realistic. “The
black diarist and writer Carolina Maria de Jesus but women who started the Carolina center,” she concludes,
to interview persons influenced by her during her life “question things, fight, and know that they have to
and after her death in 1977. One of the students, create something new, or else they will be lost. We
Andrea Paula dos Santos, discovered a small group cannot always remain dependent on others...We are
of indigent women in the small city of Guaruja, who filled with hopes, but as long as we do not achieve them,
belonged to a women’s center named after Carolina we remain trapped between the day-to-day struggle to
de Jesus and who called themselves “Carolinas.” After survive and our longing to arrive at a higher place.”
many visits and extensive life history studies of the Although they share many traits in common, each
women, the author learned that they only faintly knew of the women presents a varied and different life
who their namesake was, but that the study of their stories. Bonding together in their association named
own lives revealed fascinating and important features for Carolina Maria de Jesus, they reveal collectively
of the lives of black and mixed-race Brazilian women what the literary critic Marisa Lajolo terms “a
living on the economic margin of society, just as feminine identity less mutilated” than the ordinary.
Carolina Maria de Jesus had done. Their testimonies dwell not on the hopelessness
After an introductory statement by Bom Meihy of lower-class life but evidence that with a minimum
and an explanatory section by the author, the book of assistance from outside (in this case, state and lo-
presents in their entirety life study interviews with six cal social services) and with the strength of associa-
of the “favelada” women in the Guaruja association: tion derived from mutual support, women such as the-
Ana, Cecilia, Luiza, Penha, Veronica, and Marlene. se are elevating the quality of their lives.
Two were raised locally; the others migrated from the The author provides a concluding chapter in
Northeast (two from Bahia, one from Pernambuco, which she classifies the women according to their out-
one from Paraiba). looks on life, their coping strategies, their relation-
Cecilia is the leader, born in 1958, married, and ships to institutions and to women’s problems, and
with two daughters, 19 and 20. Her goals are clear their individual personalities. She chooses to let Ana,
and ambitious: to maintain the Carolina de Jesus one of the six “Carolinas,” provide the summary
164 Robert M. Levine / Revista de História 138 (1998), 163-164

statement for the interviews: “I’m finished. I started I am thirty-six and I believe that life is worth living!
out to talk about myself, about my own life...But I have learned to believe in myself...”
thinking about it, I realized that my life is really good This short book speaks volumes about the lives
now. I have matured, I have grown as a human being, of these proud and self-realized women. Andrea Paula
I am a better person, I can confront things with greater dos Santos has challenged stereotypes and provides
serenity than before...I think this is positive...Me, who invaluable insight into the lives of six poor women
didn’t believe in anyone over the age of thirty! Today who otherwise would not be heard.

Robert M. Levine
University of Miami
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

SILVA, Rogério Forastieri. Colônia e nativismo – a história como “biografia da nação”


São Paulo, Ed. Hucitec, 1997, 143 p.

Colônia e nativismo – a história como “biografia às não-equivalências da realidade, no seu trabalho de


da nação”, situa-se na difícil intersecção da crítica tornar compreensível o real.
historiográfica com um dos grandes temas da atuali- O primeiro capítulo – A História como “biogra-
dade: a questão nacional. Rogério Forastieri coloca em fia da nação”- parte da crítica de Gramsci às formula-
discussão uma noção sempre presente nas diversas ções que impõem à história um sentido unívoco: o da
gerações de historiadores que se preocuparam com o lenta e gradual manifestação dos elementos forma-
Brasil: o nativismo. Como bem mostra o autor, esta dores de um sentimento nacional que, por sua vez,
idéia ganhou na historiografia, seja brasileira, seja encontra num determinado momento as condições fa-
brasilianista, uma consistência por ele tida como apa- voráveis para se realizar plenamente, como se a histó-
rente, servindo mais de instrumento de discursos his- ria fosse o inevitável caminho da formação de uma
tóricos instituidores do um nexo colônia-nativismo- nação, e toda a história a somatória das histórias na-
nação, do que como um recurso eficaz para a compre- cionais particulares. Voltando-se então para o caso
ensão de realidades históricas precisas. As principais brasileiro, onde existe o peso de um passado colonial,
preocupações da obra são, portanto, aquelas relacio- o autor identifica como correspondente daquele sen-
nadas ao nativismo como elo entre colônia e nação. timento nacional o sentimento nativista, ao qual a his-
Na introdução o autor expõe sua concepção de toriografia comumente recorre para estabelecer a rela-
história, fundamento do trabalho a que se propôs. ção histórica entre colônia e nação. E assim surge um
Admitindo o avanço da pesquisa histórica das últimas problema: se a época colonial não passa de um mo-
décadas com a abertura de uma infinidade de temas, mento da história nacional, perde-se o que lhe era es-
tem o cuidado de rejeitar o relativismo ao observar pecífico, prevalecendo apenas o que foi selecionado
que não há tema neutro. Qualquer investigação supõe para fazer parte da história da nação brasileira. A ta-
um conjunto de pressupostos comprometidos com refa de demonstrar que o período colonial tem uma
uma teoria, e o trato de um tema particular não pres- historicidade própria completa o capítulo.
cinde das articulações deste com um quadro de refe- Tal operação tem, como ponto de partida, a pers-
rências e determinações mais geral que lhe dá senti- pectiva sugerida por Fernando A. Novais de que o
do e dimensão. Assim, merece destaque o cuidado que Antigo Regime, correspondendo à transição do feuda-
deve tomar o historiador com a articulação entre a lismo para o capitalismo, define o papel das colônias
perspectiva da unidade, referente às equivalências es- na Época Moderna, e de que o Antigo Sistema Colo-
tabelecidas no discurso, e a da diversidade, referente nial, peça fundamental daquele sistema mais geral,
166 Thomas Wisiak / Revista de História 138 (1998), 165-167

compreende o conjunto das determinações que agem balho escravo, questiona até que ponto o escravismo
sobre as situações coloniais particulares. Como con- pode ser tomado como decisivo para caracterizar uma
seqüência tem-se, entre outras, que a diversidade, as situação colonial. E sua questão se justifica plenamen-
variações, e as particularidades inerentes a cada situa- te quando lembra que este compreende uma forma
ção estão inscritas dentro dos limites impostos pelo particular de um tipo de trabalho, o trabalho compul-
próprio sistema, ao mesmo tempo em que a crise do sório que, de resto, também se fez presente na Europa
Antigo Sistema Colonial e do Antigo Regime, coinci- Central e Oriental no mesmo período, quando do
dente com a emancipação política das áreas coloni- advento da chamada segunda servidão.
ais na América, abre um campo de possibilidades Sem uma resposta definitiva para o problema, o
onde o resultado do processo não foi mais do que a leitor vê-se contudo diante de um avanço na defini-
realização de uma delas. ção de colônia. Tomando como ponto de partida as
Nestes termos, o campo para a pesquisa histórica observações de Maurice Dobb, o autor admite que o
apontado por Forastieri é justamente o quadro de al- capitalismo deve ser compreendido como um siste-
ternativas aberto em cada uma das áreas coloniais com ma sócio-econômico único, que se constituiu plena-
o desenvolvimento da crise, e o processo ulterior de mente na Inglaterra da Revolução Industrial, com a
escolha, que acabou por privilegiar uma possibilida- eliminação do produtor independente e, portanto, com
de em detrimento de outras. Fica enfatizado, então, a consolidação da divisão entre capital e trabalho.
que deve-se compreender a colônia não em função de Neste sentido, a Época Moderna compreenderia a pri-
uma época posterior, mas a partir da sua relação com meira fase do sistema capitalista, a fase de sua forma-
o todo de que fazia parte e que a determinava enquanto ção, e a situação colonial se definiria pela posição de
segmento de um processo histórico específico. periferia a ela atribuída na relação de transferência
O segundo capítulo, Sobre colônias e colonização, de riquezas ou, melhor, na relação de acumulação
é reservado para uma discussão sobre os elementos primitiva de capital, por um centro dinâmico determi-
que, na historiografia, comumente aparecem como nado, ou seja, pelos países europeus em expansão
definidores do que seja colônia. Forastieri identifica, econômica. Ainda que o debate sobre o destino de tais
inicialmente, uma tradição que relaciona o período riquezas na Europa não se tenha encerrado, o autor
colonial com o período anterior à emancipação polí- insiste que, para a periferia, a transferência de rique-
tica do Brasil, como encontramos, por exemplo, em zas foi marcante no seu desenvolvimento histórico,
Sérgio Buarque de Holanda. Mas logo mostra que determinando as diversas formas de dominação polí-
outros importantes autores não aceitam o rompimento tica e trabalho compulsório em cada uma das áreas
dos laços políticos com Portugal como o divisor de coloniais na América.
águas entre colônia e não-colônia. Neste caso, vê-se O trabalho se completa no terceiro capítulo Sobre
obrigado a discutir determinadas interpretações que “movimentos nativistas”, com a análise de uma das
marcaram a historiografia, privilegiando Celso Fur- formas com que a negação da situação colonial tem
tado, Ciro Flamarion S. Cardoso, Jacob Gorender e sido apresentada na historiografia, o nativismo. Per-
Maria Sylvia de Carvalho Franco. Constatando que, correndo um largo período de produção historiográ-
para além das diferentes abordagens consideradas por fica, Forastieri constata que o tema aparece associa-
estes autores, o debate acerca da passagem do mun- do a conteúdos variados, que podem ser agrupados
do colonial para o não-colonial remete a uma ques- em pelo menos três campos: conflitos - tanto para o
tão de fundo que é a da ausência ou presença do tra- período colonial como para o regencial, instituições
Thomas Wisiak / Revista de História 138 (1998), 165-167 167

- como no caso do Instituto Histórico e Geográfico ção de instrumento de uma história viesada, incapaz
Brasileiro, e lideranças políticas. Além disso, os con- de avançar na compreensão da realidade.
textos em que tal expressão é mobilizada são também Em suas conclusões, Forastieri sugere duas for-
os mais variados: luta contra estrangeiros, movimen- mas de leitura de seu trabalho. A primeira, está liga-
tos precursores da independência, lusofobia, reivindi- da à clara posição de crítica ao nexo colônia-
cações populares, movimentos precursores do nacio- nativismo-nação em que a história colonial perde a
nalismo e sentimento autonomista. De tal modo que sua especificidade e o nativismo, como elo de ligação
a mobilização do termo para os diversos movimen- com a nação, dilui as diferenças entre colônia e não-
tos significativos na colônia e, muitas vezes, em pe- colônia. A segunda, tem a ver com uma tentativa de
ríodos posteriores, tem mais a ver com o confron- definir o que seja colônia, uma vez rejeitada a perspec-
to de opiniões entre autores do que com a possibili- tiva do nativismo nos termos em que foi criticado.
dade de unificar estes movimentos a partir de um Admitindo os dois momentos históricos do capita-
“denominador comum” (p. 66). lismo, o da sua formação e o da sua consolidação, a
A inconsistência deste recurso explicativo é refor- colônia deve ser entendida na sua historicidade pró-
çada quando se constata a preocupação revelada por pria, isto é, na sua relação com o capitalismo mercan-
esta historiografia em afirmar ou negar o conteúdo na- til, enquanto que os elementos ordenadores da reali-
tivista de algum movimento, descurando da busca da dade posterior, como as noções de nação, homem li-
operacionalidade do conceito. Dessa forma, o recur- vre, e liberdade, pertencem ao contexto do capitalis-
so à expressão nativismo acaba imprimindo à histó- mo industrial. Desta forma, o autor aponta para a pos-
ria uma homogeneização na seleção dos eventos que sibilidade de se avançar no debate de um problema
contrasta com a complexidade do processo. Esta últi- sempre recorrente na historiografia, e cada vez mais
ma observada por Sérgio Buarque de Holanda, que atual, que é o da formação do Estado nacional brasi-
anunciou a dificuldade em se determinar o momento leiro, preocupando-se em anotar que “a compreensão
em que passa a existir a percepção da unidade na do objeto ‘nação’ não seria dado a partir do ‘passado
América portuguesa, além de ter apontado para uma colonial’ entendido como ‘anterioridade lógica’ e cro-
diferenciação de ritmos entre o processo de unifica- nológica da nação, mas como objeto posto por um
ção e de emancipação políticas do Brasil. A dificul- novo ordenador do real: o capital industrial. (p. 91)”
dade aumenta quando o termo nativismo aparece al- O texto vem acompanhado, ainda, de três impor-
ternando-se com expressões como nacionalismo e pa- tantes anexos onde se apresentam a ocorrência da
triotismo, reforçando a posição de autores que vêem expressão nativismo na historiografia brasileira e bra-
a existência da nação brasileira desde inícios da colo- silianista, os diversos contextos em que tal expressão
nização. Nesse plano, a conexão entre nativismo e é utilizada, além do poema A Ilha de Maré, de Ma-
patriotismo aparece sob a forma de “exaltação das nuel Botelho de Oliveira (primeira edição de 1705),
coisas da terra” (p. 74). Presente numa certa fase da primeiro texto considerado nativista -no sentido de
história literária no Brasil, o nativismo com este con- exaltação das coisas da terra- na literatura brasileira
teúdo pode ser datado, em contraste com o seu varia- ou, nos termos propostos por Forastieri, na literatura
díssimo uso na historiografia, reduzindo-o à condi- da América portuguesa.

Thomas Wisiak
Pós-graduando do Depto. de História da USP
168 Thomas Wisiak / Revista de História 138 (1998), 165-167
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

SILVEIRA, Marco Antonio. O Universo do Indistinto - Estado e Sociedade nas Minas


Setecentistas (1735-1808). São Paulo, Hucitec, 1996.

Interpretar a sociedade mineira a partir do seu co- pertencentes a camadas menos abastadas e de poder
tidiano, ter como ponto de partida os referenciais pró- de influência individual menor nas esferas de decisão.
prios do objeto estudado, foram algumas das balizas Foram estes homem que fundaram nas Minas uma
que guiaram Marco Antonio Silveira neste trabalho. sociedade que experimentaria uma situação singular
Partindo sempre do geral para o particular, Silveira em relação às outras possessões do Império Luso na
insere a região das Minas no contexto de preocupa- América. Aqui, o ouro promoveria uma dinâmica que
ções das elites do século XVIII. O Autor demonstra resultaria numa sociedade cuja extrema fluidez tor-
que a “Ideologia da Colonização” trouxe consigo o naria mais flexíveis os estreitos caminhos do estamen-
modelo civilizador, o qual bateu às portas das Minas to. Enquanto as elites queriam “civilizar” atos e dei-
importado pelos elementos mais prestigiados dessa xar as “coisas em seus devidos lugares”, esperando
região, preocupados com esta sociedade tão inclina- daí uma clara distinção entre os homens, o cotidiano
da aos desvios. oferecia uma realidade diversa. A mercantilização, a
Desta situação primeira, Marco Antonio Silveira importância central do crédito e alta urbanização para
avança a fim de refletir sobre as relações de choque e a época, resultaram em elementos que problemati-
adaptação entre o modelo importado e a realidade zaram o contexto, obrigando uma reconsideração a
quotidiana das Gerais. O Autor preocupa-se com as respeito da validade das dicotomias Senhor/Escravo,
variantes decorrentes da absorção e remodelamento, Nobre/Plebeu, como modelos explicativos da reali-
promovidas individualmente e relativamente autôno- dade das Minas.
mas, da cultura. No estudo do cotidiano esta cultura, As Gerais eram o “Universo do Indistinto”. Mais
suas transformações e permanências, é contemplada que título de obra, esta expressão reflete os resulta-
permitindo a aproximação entre a Antropologia e a dos obtidos pelo estudo. Numa sociedade onde todos
História com a valorização da “experiência humana”, desejavam ser fidalgos, os elementos de distinção
no sentido dado por Edward Thompson. eram banalizados por seu uso pelos indivíduos das ca-
Processos-crimes, ações cíveis e cartas particula- madas inferiores. Em pleno vigor do escravismo,
res compuseram a maior parte das fontes primárias uti- negros cativos tinham grande mobilidade espacial,
lizadas. Trata-se de um rico material, cheio de porme- alguns trabalhavam livremente, constituíam família
nores amplamente explorados pelo autor, que conduz e adquiriam bens como casas e por vezes a própria
o texto num ritmo intimista, valorizando sobremanei- liberdade. A estrutura social permitia que alguns es-
ra o papel desempenhado pelos homens, mesmo os cravos tivessem seu “ir e vir” mais desobstruído que
170 André Roberto Machado / Revista de História 138 (1998), 169-171

muitos homens livres pobres. Ao mesmo tempo a tem dar uma versão definitiva sobre os papéis de cada
pobreza da maioria dos negros, mulatos e pardos, atividade das Gerais, o que Silveira tem o cuidado de
devolvia-lhes ao limbo. Como se vê a região mineira admitir. Contudo, é possível sinalizar para um universo
não pode ser entendida num único golpe, a risco de no qual a mineração não era a ocupação que absorvia o
se perder aspectos fundamentais. maior contigente de mão de obra entre os habitantes.
Dentro deste contexto perturbador, Marco Anto- Isto posto, o papel do mercado interno sobressai
nio lembra-se também de elementos desprestigiados e junto com ele a importância dos comerciantes. Em
desta sociedade. Numa “sociedade de homens” a fa- conjunto com esta realidade e os problemas de uma
mília patriarcal foi artigo para poucos, tendo que circulação ineficaz, prejudicada pela escassez de
conviver lado a lado com famílias dirigidas por mu- moeda, as Gerais tornavam-se um lugar onde o cré-
lheres que muitas vezes reuniam à sua volta inclusi- dito era fundamental. Todos deviam a todos e ser cre-
ve agregados. Eram também comuns matrimônios de dor era uma forma de exercer poder, uma variante do
corpos e domicílios separados, o que denota a gran- prestígio patrimonialista luso. Boa parte dos minera-
de mobilidade das mulheres, sobretudo as negras, que dores estava nas mãos dos comerciantes, seus credo-
aliás respondiam por grande parcela da população res, gerando aqui mais um foco de tensão. O grande
dedicada ao pequeno comércio. Ao mesmo tempo e poder dos mercadores era visto como algo negativo
sem necessariamente contradizer o que já foi indica- pelos memorialistas que viam nesta categoria social
do, muitas mulheres eram vítimas de violência “dos um grupo guiado pela ambição, desenraizado e inca-
seus homens”, motivados a salvar a honra e exigir paz de buscar o bem comum, objetivo último do Ab-
reciprocidade. Aliás numa sociedade onde a palavra solutismo Português.
era capital a honra merece destaque, sendo a violên- O avanço dos comerciantes e a bancarrota dos
cia uma linguagem adequada à busca de distinção. antigos senhores definia-se para esses memorialistas
Lavar a honra com sangue, nas Gerais podia ser uma como demonstração de um estado de decadência.
forma de virtude. Assim diziam, pois não enxergavam nesta socieda-
Esta violência generalizada era favorecida por um de o que Silveira chama de aluvionismo social. Se-
Aparelho Judicial moroso, corrupto e extremamente gundo ele, o desenvolvimento das atividades nas
caro para grande parcela da população. “As demandas Gerais teve ritmos diferentes o que tornava possí-
são caras e incertas”, era um pensamento comum que vel que o comércio tivesse esplendor em pleno es-
refletia o alto risco de buscar a justiça e o pequeno gotamento das minas. A fluidez desta sociedade fa-
retorno advindo dela. Numa população em que as no- zia com que os movimentos fossem rápidos e pos-
ções de direito estavam na mente, desde a elite até as sibilitassem que a distinção tivesse diversos referen-
classes marginalizadas, era necessário encontrar uma ciais. “Deixar tudo em seu devido lugar”, como
saída que desafogasse este sentimento de impotência. Silveira afirma que desejaram até mesmo os Incon-
Vale dizer que não foram apenas os problemas fidentes, não era tarefa fácil de realizar-se naquelas
relacionados à honra que serviram de motor para a Minas de ruas tortas, repleta de aclives e declives,
instalação de uma sociedade marcada pelo conflito. que faziam os eruditos portugueses suspirarem pelo
Marco Antonio relativiza a importância das ativida- urbanismo do Velho Mundo. Neste lugar, valores
des mineradoras e revaloriza o papel do comércio, decantados por europeus como a cortesia perdiam a
apoiado pela documentação levantada. É lógico que força em meio a eterna “dança das cadeiras” e a
suas fontes e a natureza dos seus estudos não permi- pequena visibilidade de elementos distintivos.
André Roberto Machado / Revista de História 138 (1998), 169-171 171

Nesta Gerais onde um negro cativo podia per- prolongamento. Aqui o processo civilizatório mis-
turbar um Senhor de Escravos por uma dívida não turou-se ao patrimonialismo luso, ao escravismo e
paga, ao ponto do último angustiar-se, criou-se um à miscigenação criando algo extremamente parti-
universo particular que resistiu à ambição metropo- cular. A isto Silveira deu o nome de o Universo do
litana de o subjugar completamente e fazê-lo seu Indistinto.

André Roberto Machado


Bolsista do PET/CAPES - História/USP
172 André Roberto Machado / Revista de História 138 (1998), 169-171
Mary Lucy Murray Del Priore / Revista de História 138 (1998), 175-179 173

INFORMAÇÕES SOBRE ARQUIVOS


REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

MEMÓRIA E HISTÓRIA DE MULHERES:


UMA BIBLIOTECA FEMINISTA

Mary Lucy Murray Del Priore


Depto. de História-FFLCH/USP

Historiadores, interessados em assuntos, memó- Marguerite recebeu a educação religiosa tradici-


ria temas e bibliografia sobre a história do gênero, da onal das jovens burguesas de sua época; ela freqüen-
mulher ou da condição feminina, têm, agora, ende- tou o convento das Damas Trinitárias cujos ensina-
reço certo para suas pesquisas. Trata-se da Bibliote- mentos e ideais convinham mal a uma jovem que,
ca Marguerite Durand, em Paris. Criada há sessenta muito cedo, optou pela carreira teatral. Em 1881 já
anos, é a primeira biblioteca de documentação femi- entrava na Comédie Française onde procurava ence-
nista, criada por uma feminista de renome internaci- nar peças de gosto feminista. Em 1891, depois de
onal – a própria Marguerite Durand – que em 1931 divorciar-se do marido, um político que a introduziu
doou à prefeitura da cidade a coleção de documentos ao jornalismo, Marguerite passou a colaborar para o
e livros reunidos ao longo de sua vida. Le Fígaro, no qual animava um correio de leitores.
Mas quem foi esta personagem histórica? Marguerite- Em 1896, depois do nascimento de Jacques, seu fi-
Charlotte Durand nasceu em 24 de janeiro de 1864 e seus lho natural com o famoso jornalista Antonin Périvier,
documentos declaravam-na filha de pai desconhecido. Marguerite é encarregada de cobrir aquele que foi o
Sua mãe, contudo, nascida no interior de uma famí- evento do ano: o congresso feminista internacional,
lia de eruditos, criara-se no palácio imperial russo organizado pela Liga Francesa pelos Direitos da
onde era a leitora da grã-duquesa Helena e autora de Mulher. O congresso, presidido por Maria Pognon,
um “Dicionário de Mulheres Célebres”, jamais pu- feminista, livre pensadora e membro da maçonaria,
blicado. Seu avô, fora amigo e advogado de Benjamim conheceu acaloradas discussões: os estudantes soci-
Constant e o primeiro tradutor de Schiller para o fran- alistas acusavam as congressistas de “burguesas ex-
cês. Embora não tenha sido reconhecida oficialmen- ploradoras”. Maria Pognon retrucava afirmando que
te por seu pai, sabe-se que esse era o coronel Alfred as operárias não poderiam adquirir direitos econômi-
Bocher, um “royaliste”, personagem importante de cos se as burguesas não metessem as mãos “na mas-
campanhas militares na Criméia, Itália e México. sa”! Defendendo a solidariedade do sexo e recusan-
176 Mary Lucy Murray Del Priore / Revista de História 138 (1998), 175-179

do a luta de classes dentro do feminismo, ela se opu- tantes da Exposição, foi, também, montada. Primei-
nha firmemente à idéia de que apenas a via socialista ra no gênero, essa exposição reuniu cinco sociedades
permitiria a libertação das mulheres. O congresso de feministas que expuseram retratos e fotografias de mi-
1896 foi uma verdadeira revelação para Marguerite. litantes vivas ou mortas, livros, revistas e brochuras.
Convertida ao feminismo, ela tornou-se, rapidamen- Madame Vincent apresentou os arquivos que organi-
te, uma militante: “Meditar sobre a justeza dessas zara com documentos relativos ao papel e à história
reivindicações – escreve ela em 1902 – e considerar das mulheres; podia-se, ainda, consultar painéis com
um dever social o auxílio ao triunfo de suas idéias, estatísticas e informações relativos às diferentes as-
eis o que me levou a conceber um grande jornal femi- sociações. O congresso conheceu, segundo a crônica
nista onde, quotidianamente, as mulheres possam de- de época, um retumbante sucesso.
fender os interesses das mulheres”. Foi assim que, em Marguerite Durand continuou sua carreira de jor-
1897 nasceu La Fronde, um jornal único na história nalista criando o anti-clerical e socialista L’Action,
da imprensa, inteiramente redigido, composto, admi- em 1905 e depois, Les Nouvelles em 1909, esse últi-
nistrado e dirigido por mulheres. Aí trabalharam mo de nítido caráter financeiro. Em 1907, ela dirigiu
Séverine, filha espiritual de Jules Vallès, defensora re- um congresso tendo em vista a criação de um Ofício
nhida dos pobres e oprimidos; Madame Vincent, cria- do Trabalho da Mulher. Um ano mais tarde, lançou a
dora da Sociedade para a reivindicação dos Direitos da idéia de organizar candidaturas femininas às eleições
Mulher e fundadora de um “feminismo histórico” ba- legislativas apresentando-se como deputada. Em
seado em pesquisas que buscavam, nos documentos, 1921, sempre incansável, formalizou novamente sua
provar a hegemonia do poder feminino no passado; candidatura, agora no seio do partido republicano-so-
Nelly Roussel, socialista e partidária de Dreyfus, de- cialista. Ao longo de sua vida, interessou-se pela sorte
fensora da “livre maternidade” contra a “maternida- de empregados e operários, criando inúmeros sindica-
de sem consentimento” e dos salários femininos, con- tos, entre outros, o das mulheres tipógrafas.
dição essencial de independência da mulher; Maria Generosa, apaixonada, ambiciosa, bela e muito
Vérone, advogada e importante personalidade femi- elegante, Marguerite Durand teve, segundo seus bió-
nista do período entre guerras; Avril de Sainte-Croix, grafos1, uma vida “iluminada”. Grande figura do fe-
autora de inúmeros artigos sobre a condição das pri- minismo de seu tempo, preocupou-se em coletar, reu-
sões femininas, o alcoolismo feminino, a prostituição; nir e conservar os arquivos e documentos relativos à
esses, entre outros grandes nomes de feministas ou
de anônimas que colocaram seu talento a serviço do
jornal. Algumas campanhas do jornal foram tão bem
sucedidas que permitiram às mulheres a admissão à 1
A bibliografia sobre Marguerite Durand é extensa. Vale co-
Escola de Belas Artes, assistir aos debates parlamen- meçar por Annie Didier-Metz e seu La Bibliothèque Marguerite
tares, receber a Légion d’Honneur, aceder aos tribu- Durand: histoire d’une femme, mémoire des femmes, Paris, Mairie
nais etc. de Paris, 1992, a quem emprestei várias das informações aqui
reproduzidas. Ver também Sue Helder Goliber, The life and Ti-
Outra iniciativa de La Fronde foi a realização, em
mes of Marguerite Durand, tese PHD, Kent State University, 1975;
plena Exposição Universal de Paris, entre 5 e 8 de
Huas, Jeanine, Sur les traces du tigre, Paris, Lachuré, 1987, J.
setembro de 1900, de um congresso internacional dos Mermeix, Les coulisses du boulangisme, Paris, Cerf, 1890; Jean
Direitos da Mulher. Além do congresso, uma exposi- Rabaud, Marguerite Durand (1864-1936): La Fronde féministe
ção feminista destinada a atrair os milhares de visi- ou Le temps en jupons, Paris, L”Harmattan, 1996.
Mary Lucy Murray Del Priore / Revista de História 138 (1998), 175-179 177

história das mulheres e seu papel na sociedade e em nos, fichas das principais bibliotecas contendo documentos sobre
todos os domínios de suas atividades. Em 1931 ela questões feministas e sobre militantes feministas.
doou à cidade de Paris o conjunto de suas coleções, História de Paris: prisões, conventos, casas célebres, planos
de higienização.
criando a primeira biblioteca feminista francesa ofi-
Obras de interesse geral; dicionários históricos, franceses e
cial. Ela a dirigiu até sua morte, aos 76 anos, à 16 de
estrangeiros, revoluções de Paris, dossiers, artigos de imprensa,
março de 1936. dossiers sobre personalidades femininas importantes.
Depois da mulher, a biblioteca. Essa reunia, na Coleção de jornais feministas antigos e modernos, cartazes,
época de sua fundação, 10.000 volumes e vários mi- boletins, etc.
lhares de brochuras. A reprodução integral da doação Documentação sobre carreiras acessíveis às mulheres desde
original permite uma descrição aproximada de seu a segunda metade do século XIX: médicas, advogadas, farma-
acervo: cêuticas, dentistas, engenheiras, etc.
Mulheres vencedoras de prêmios, conquistas femininas: his-
tórico, resultados.
“Conjunto importante de obras, documentos, retratos, autó-
Volumes encadernados ou não ou brochuras sobre novas ati-
grafos relativos à condição das mulheres através dos tempos.
vidades femininas: superintendência de fábricas, enfermeiras
Coleção de decretos, leis, regulamentos especiais sobre
escolares, etc., quantidades não negligenciáveis”.
mulheres.
Coleção de jornais e cartazes feministas, de fichas relativas à
bibliotecas e museus. A biblioteca possui uma vocação enciclopédica
Obras tratando da condição legal ou social das mulheres, sobre tudo o que diz respeito às mulheres e não pa-
3.000 volumes. rou de crescer desde sua fundação. Calcula-se, hoje,
Obras de teorias feministas ou anti-feministas antigas e mo- possuir um acervo em torno de 25.000 volumes. Na
dernas, 2.000 volumes (igual número de brochuras sobre o mes- chamada “Réserve” encontram-se obras raras. Aí
mo tema). contam-se dois títulos do século XVI, vinte e dois,
As mulheres em todos os domínios de atividade social: mu-
do século XVII, cento e cinqüenta e um dos século
lheres científicas, políticas, artistas, literárias, professoras,
XVIII e cento e vinte e cinco da primeira metade do
advogadas, médicas, dentistas, funcionárias etc., aproximadamen-
te 2.000 volumes. século XIX. Um estudo temático, segundo Annie
Coleção (rara) de teses de doutoramento apresentadas por Didier-Metz2, revelou uma grande incidência de li-
mulheres ou relativas à questões da mulher, 300 volumes. vros sobre história e política, seguidos por literatura
Memórias históricas, lembranças escritas por mulheres ou e feminismo. É bom lembrar que o termo surgiu no
relativas às mulheres, cerca de 500 volumes. século XIX e tinha sentido muito amplo. Estão igual-
História e atos de rainhas e regentes, obras e instituições fe- mente bem representadas as memórias e biografias,
mininas, direito da mulher, sufrágio feminino, educação, ensino,
as obras que se referem ao casamento, ao amor e à
etc., 200 volumes
sexualidade, bem quanto à religião.
Ordens religiosas femininas: educadoras, missionárias,
contemplativas, suas fundadoras, as grandes abadessas, etc., 200 Alguns volumes merecem ser citados por sua
volumes. raridade; é o caso, por exemplo, de Galerie des
Obras e associações de caridade: sindicatos femininos, pu- femmes fortes, da autoria do padre Pierre Lemoyne,
blicações do Ministério do Trabalho, leis e decretos sobre o tra- editado em 1654, consagrado às mulheres célebres
balho feminino, 500 volumes
Sociedades feministas novas e antigas: históricos, fundado-
ras, atividades, boletins, publicações, reuniões (documentação em
dia), volumes e brochuras, retratos, autógrafos antigos e moder-
2
Op.cit., pp.42 e passim.
178 Mary Lucy Murray Del Priore / Revista de História 138 (1998), 175-179

da mitologia, da Bíblia e da História. O grande in pam uma volumosa “ephemera” capaz de dar conta
folio comporta numerosas e belíssimas gravuras, de testemunhos diretos e vivos de tudo quanto era re-
Ou de E. de Beaumont, les Vésuviennes ou les lativo aos movimentos feministas históricos ou con-
soldats pour rire, de 1848, obra satírica sobre uma temporâneos. Os dossiers contém ainda documentos
tropa militar de mulheres, organizada pelo gover- manuscritos e autógrafos.
no provisório de 1848, ricamente ilustrado com A biblioteca conta ainda com cerca de 200 cole-
gravuras coloridas. A “Réserve” possui, ainda, ções de manuscritos e 400 cartas autografadas. As
edições originais de numerosas escritoras como primeiras são constituídas por textos de ficção e
Mlle. De Scudéry, Mme. De Genlis, Mme. De documentários diversos; vemos aí desde novelas à
Staël, Olympe de Goujes ou Mary Wollstonecraft, peças de teatro, passando por conferências e discur-
bem como inúmeros tratados de defesa das mulhe- sos, aulas e palestras até agendas pessoais. As car-
res, muitas vezes anônimos, como é o caso do tas mais antigas são do punho de Marie de Cléves,
L’Apothéose du beau sexe (1722) ou Apologie des datada de 1468 e de Santa Catarina de Ricci, de
Dames (1737). A biblioteca conta com todos os 1522. A coleção de cartões postais monta a 3000
textos escritos por feministas, base indispensável unidades. As coleções de cartazes e retratos ilustram,
de todo o estudo sobre o assunto. Mas conta, tam- cada vez mais, teses e livros atualmente publicados.
bém, com um imenso número de obras de literatu- Os documentos iconográficos incidem particular-
ra escritas por mulheres, de George Sand à Colette, mente sobre os retratos de mulheres famosas, os tra-
ou à escritores consideradas “menores” pela críti- balhos femininos tradicionais, roupas e moda, cos-
ca: Myriam Harry ou Renée Vivien entre outras. tumes regionais, caricaturas, casas de mulheres cé-
Na parte de periódicos, a biblioteca é constitu- lebres. Entre as 3000 fotografias do acervo há vári-
ída de publicações exclusivamente feministas ou as sobre reuniões feministas ou “etno-fotografias”
femininas, reunindo um total de 936 títulos, essen- tiradas no início do século em vários países do mun-
cialmente da segunda metade do século XIX e XX, do, apresentando mulheres e seus costumes. Os au-
dos quais a metade é em língua francesa. Entre os tores das fotos são nomes do porte de Aline Lang,
mais conhecidos figuram o já mencionado La Denise Colomb, Jaime Abecassis e outros. Há, ain-
Fronde, La Citoyenne, fundado em 1881, La da, no setor iconográfico, uma coleção de cerca de
suffragiste de 1908 ou o Journal des Dames de 1000 cartazes, sendo que os mais antigos datam de
1759. As revistas contemporâneas são extremamen- 1792, – há um belíssimo sobre Olympe de Goujes e
te atualizadas e aí podemos encontrar exemplares outro sobre a Comuna de Paris. O grosso da cole-
de Signs, editada nos EUA, Feminist Review, na ção cobre os anos 1910-1945.
Inglaterra, Feministische Studies, na Alemanha, Não é possível resumir todos os campos cober-
Cahiers du GRIEF, publicação franco-belga, tos pela enorme variedade de livros e brochuras:
Australian feminist studies, entre outros. filosofia, religião, direito, política, educação, ciên-
Os dossiers biográficos – cerca de 400 – consti- cias, música (inclusive partituras musicais impres-
tuem a parte mais rica da biblioteca. Compostos por sas por compositoras), artes plásticas. A atual po-
recortes de jornais e de revistas, por resenhas, por lítica de aquisições contempla obras publicadas nos
deliberações jurídicas, por folhetos de cordel, por pan- Estados Unidos da América, Espanha, Itália, Ale-
fletos distribuídos quando de greves, manifestações manha e Portugal.
e etc., por cartões de convite e agradecimento, agru-
Mary Lucy Murray Del Priore / Revista de História 138 (1998), 175-179 179

A biblioteca localizada no número 79 da rue muito grata às doações feitas por historiadores brasi-
Nationale, está aberta ao público vinte horas por se- leiros a respeito de suas próprias pesquisas ou de pes-
mana, de terças feiras aos sábados. A recepção é ex- quisas feitas no Brasil. O assunto que lhes interessa,
tremamente gentil e qualquer pesquisador brasileiro contudo, é só um: mulher!
será muito bem vindo. Vale lembrar que a direção fica

L'hebdomadaire "La Française" fut fondé


par la féministe Jane Mise (1865-1935) en
octobre 1906 et parut jusqu'en 1940.
Bibliothèque Marguerite Durand.

Apparition de Raison,
Droiture et Justice à Christine
de Pisan. Construction de la
Cité des Dames, "Christine de
Pisan, La Cité des Dames".
Exemplaire de Jean de Berry,
enluminé par le Maître de la
Cité des Dames, vers 1405.
Bibliothèque nationale de
France.
180 Mary Lucy Murray Del Priore / Revista de História 138 (1998), 175-179
REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1998

ARQUIVO PALMA MUNIZ:


UM NOVO ESPAÇO PARA A PESQUISA

Ana Negrão do Espírito Santo


Arquivo Público do Estado do Pará
José Maia Bezerra Neto
Depto. de História/UFPA
Instituto Histórico e Geográfico do Pará-IHGP.

Fundado em 03 de maio de 1900, o Instituto His- tural e literária por qual passava a cidade de Belém,
tórico e Geográfico do Pará, distintamente do IHGB, principal cidade do norte do país, durante os anos da
surgiu em plena república, reunindo diversos inte- folies du latex (AZEVEDO, 1990).
grantes da intelligentzia e personagens políticas des- É verdade, entretanto, que o IHGP não conseguiu
tacadas da sociedade da borracha, no Estado do Pará1. manter-se consolidado, esvaindo-se em pouco tem-
Visando a construção de uma história e memória po. Somente em 1917, foi reinstalado, passando a ocu-
da mesma, marcadamente événementielle, o IHGP par papel de destaque na produção do conhecimento da
acabava preservando os valores conservadores dos história regional, reunindo em suas fileiras os nomes
grupos sociais hegemônicos na sociedade paraense da tradicionais e geralmente consagrados da historiografia
época em que foi estruturado, não sendo, inclusive, paraense, como por exemplo: Domingos Antônio Rayol;
evento isolado: no mesmo período, havia sido fundada Palma Muniz; Ernesto Cruz; Jorge Hurley;.....
a Academia Paraense de Letras, segundo o modelo Nesta perspectiva, a publicação da revista do
francês, culminando o processo de efervescência cul- IHGP e a preocupação com a guarda de volumosa
obras bibliográficas (biblioteca), de variado acervo
iconográfico (museu), e, particularmente, importan-
1 te documentação manuscrita e impressa, datada des-
Acerca do perfil institucional do IHGB, ver SCHWARCZ (1993).
Consultar também GUIMARÃES (1988) e COELHO (1981). As de as primeiras décadas do século XVIII, de origem
análises construídas sobre o papel do IHGB na historiografia na- diversa (arquivo), enquadravam-se nos propósitos do
cional constituem-se sugestivas para uma reflexão acerca do IHGP. IHGP como guardião oficial da memória e história
182 Ana Negrão do Espírito Santo e José Maia Bezerra Neto / Revista de História 138 (1998), 181-184

pátria e regional. Inclusive, formando as bases de Antônio de Lacerda Chermont (Visconde de Arary),
constituição de sua biblioteca, museu, e arquivo, con- e, posteriormente, da família de Domingos Antônio
forme estipulava os artigos 45º, 46º, 47º, e 48º, do Raiol (Barão de Guajará). Morto o último, em 1912,
Capítulo VIII dos Estatutos da instituição. o prédio continuou como patrimônio familiar até que,
Acontece que, a proposta de organização da biblio- em 1942, através de Pedro Raiol, filho do Barão, foi
teca, museu, e arquivo, concomitantemente à aprova- vendido à Prefeitura Municipal de Belém, na gestão
ção de suas regras de funcionamento e objetivos, cons- do Profº Abelardo Leão Condurú2.
tantes do Capítulo VIII dos Estatutos do IHGP, não Em 1943, sendo interventor federal no Pará, Joa-
conseguiu sair do papel, permanecendo seu vasto e quim Cardoso de Magalhães Barata, “em face da re-
variadíssimo acervo em completa desorganização, solução nº 2.244 de 6 de novembro de 1943, do Con-
particularmente, as fontes documentais, datadas do iní- selho Administrativo do Estado, foi baixado o decre-
cio do século XVIII, que até pouco tempo vinham so- to municipal nº 168, de 10 de novembro de 1944, em
frendo impiedosamente a ação do tempo, da umidade que o prefeito Alberto Engelhard efetuou a doação de
e das traças, haja vista a situação em que se encontra- móveis, biblioteca e prédio do Solar do Barão de
vam as mesmas, ou seja, acondicionadas em uma pe- Guajará ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará,
quena sala sem iluminação, ventilação, ou outro qual- nessa época sob a presidência do Desembargador
quer ambiente favorável à sua conservação, sem sequer Henrique Jorge Hurley” (TRINDADE, 1995, p. 12).
um arrolamento destas, mesmo que precário, enfim Situado na Cidade Velha, a sede do IHGP encon-
condenadas à destruição corrosiva da falta de cuida- tra-se inserida em área “considerada como o miolo
dos recomendados pela prática arquivística. do Centro Histórico de Belém, tombado pela Lei
Dentro deste quadro de cores tão tristes, fez-se Orgânica de 30 de março de 1990, que em conjunto
necessário a efetivação do projeto de organização do com o seu entorno é protegido pela lei nº 7.709 de 18
Arquivo do IHGP e inventariamento das suas fontes de maio de 1994, que define categorias de preserva-
documentais, preservando parte de nossa memória, ção, normas e colocação de letreiros”(TRINDADE,
bem como possibilitando a sua consulta e manuseio, 1995, p. 03). Neste sentido, o antigo Solar do Viscon-
por parte do público, quer especializado, quer leigo. de de Arary e Barão de Guajará, constitui-se parte
Entretanto, façamos uma pausa para explanação sobre integrante do patrimônio histórico e arquitetônico da
as condições físicas do prédio-sede do IHGP, na qual cidade de Belém, sendo inclusive seu tombamento
encontra-se o referido acervo, para posteriormente re- determinado desde 1943, entretanto, efetivado em 23
tomarmos o histórico de organização desta documen- de maio de 1950, através do Serviço do Patrimônio
tação, explicitando a mesma ao público interessado. Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)3.
Na antiga rua Tomázia Perdigão nº 62, atual Desde então, a sede do IHGP sofreu diversos re-
D’aveiro Cidade-Irmã, no bairro da Cidade Velha, paros e obras de conservação e manutenção, desta-
situado à Pça. Dom Pedro II, outrora Largo do Palá- cando-se a restauração empreendida pela Secretaria
cio; Largo da Constituição; e, Largo da Independên-
cia; existe o imponente Solar do Visconde de Arary e
Barão de Guajará, sede-própria do IHGP. 2
Sobre as origens e estilo arquitetônico do prédio-sede do IHGP,
Construção arquitetônica da primeira metade do ver TRINDADE (1995) e Monteiro (1995).
século XIX, caracterizada pelo estilo neo-clássico 3
Acerca do processo de tombamento, ver TRINDADE (1995) e
luso-português, serviu como residência da família de MONTEIRO (1995).
Ana Negrão do Espírito Santo e José Maia Bezerra Neto / Revista de História 138 (1998), 181-184 183

de Viação e Obras Públicas do Governo do Estado, ção de determinadas peças bastante danificadas pelos
em maio de 1969, que durou cerca de um ano, acon- inimigos tradicionais dos papéis envelhecidos e sem ne-
tecendo a reinauguração do prédio em 10 de abril de nhum cuidado: O tempo; a umidade; as traças e fungos.
1970, durante a presidência do historiador Ernesto Neste sentido, o “Projeto de Organização do Acer-
Horácio Cruz, no IHGP. A partir daí, somente em vo Documental do IHGP”, patrocinado pela Funda-
1984, ocorreu novo empreendimento de restauro, ção Cultural do Município de Belém/FUMBEL, sur-
executadas e financiadas pelo SPHAN/Pró-Memória, giu da necessidade de mudança deste quadro contra-
concluída em fins de 1985. Por outro lado, é verda- producente ao trabalho do historiador e demais pes-
de, que em 1986 ainda tentou-se ampliar e comple- quisadores envolvidos, por um motivo ou outro, com
mentar as obras executadas anteriormente, através da o trato da nossa memória através do estudo de deter-
Secretaria de Cultura, Desportos e Turismo, do Go- minadas fontes documentais, como por exemplo, os
verno do Estado do Pará, em conjunto com a Dire- manuscritos da Câmara Municipal de Belém e outras
ção Regional do SPHAN/Pró-Memória, que acaba- do Pará, desde a primeira década do século XVIII; a
ram infelizmente inconclusas. documentação encardenada do Corpo de Bombeiros;
Neste prédio, portanto, em seu primeiro pavimen- ou, da Assembléia Legislativa Provincial; enfim, os
to, na lateral direita, em pequena sala, outrora utili- próprios documentos relativos ao IHGP, que se en-
zado como quarto de escravos 4 , encontrava-se contram no acervo desta instituição.
empilhada sobre uma mesa grande e outra menor e O referido projeto, por outro lado, atuando numa
improvisada, em estado precário, grande parte da perspectiva interdisciplinar, combinando história e
documentação sob a guarda do IHGP. Em outro re- arquivologia, permitiu o treinamento de discentes dos
cinto, reservado ao armazenamento de livros, na par- cursos de graduação de história, ciências sociais e
te dianteira do Solar, também existia uma determinada biblioteconomia, como estagiários, com a perspecti-
documentação posta em caixas, referentes ao Cemi- va de formação de novos pesquisadores habituados à
tério da Soledade. Como já afirmamos anteriormen- pesquisa empírica e conhecimento da prática arquivís-
te, as fontes documentais, basicamente manuscritas, tica, fato incomum à nossa realidade.
encontravam-se sem nenhum tratamento e acondici- Neste rumo, as ações desenvolvidas dentro do
onamento adequado à sua conservação, fazendo com projeto, iniciado em janeiro de 1996, permitiram o
que as mesmas necessitassem urgentemente, sob o mapeamento e levantamento das fontes constantes do
risco de sua perda irreparável, sofrer um processo de acervo documental do IHGP, verificando-se que a
higienização, organização e inventário, ainda, sendo quantidade de documentos históricos que precisavam
necessário um trabalho mais cuidadoso de restaura- ser levantados e preservados era realmente significa-
tiva, principalmente, em termos qualitativos, haja
vista sua fundamental importância para subsidiar fu-
turos trabalhos no campo da história, em suas diver-
4
Sobre a “análise do uso e conservação atual do prédio”, bem sas matizes (econômica; social; política; cultural;...);
como a referência ao quarto de escravos no primeiro pavimento,
das ciências sociais; da antropologia social; da arqui-
consultar TRINDADE (1995). Também, segundo Monteiro
vologia; entre outras.
(1995), o Barão de Guajará, Domingos Antônio Raiol, realizou
diversas transformações no Solar, fazendo por desaparecer “as
Observe-se, também, que a expressiva quantida-
cavalariças, a prisão dos escravos, a capela da família e parte do de de documentos encontrados no acervo do IHGP,
terreno dos fundos que é vendida”. no período compreendido entre as primeiras décadas
184 Ana Negrão do Espírito Santo e José Maia Bezerra Neto / Revista de História 138 (1998), 181-184

do século XVIII até os anos setenta da atualidade, demográfica, a partir das séries de enterros realiza-
relativos a diversos fundos, como a Câmara Munici- dos neste campo santo. Na verdade, estes fundos e
pal de Belém, outrora Senado da Câmara, permitem séries documentais constituem-se exemplos de temas,
estudos acerca da história da mesma ou de outros abordagens e questões que podem eventualmente ser
aspectos políticos, sociais e culturais da cidade de estudadas por parte de outros pesquisadores que tam-
Belém; da mesma forma, a consulta dos Livros de bém venham a se beneficiar dos instrumentos de pes-
Sepultamento do Cemitério de N. S. da Soledade, quisa elaborados e divulgados pelo projeto, tal como
possibilita pesquisas sob o ponto de vista da história o Guia do Arquivo Palma Muniz do IHGP (no prelo).

Bibliografia:
AZEVEDO, José Eustáchio de. Literatura Paraense. Belém, Fun- trópicos. Rio de Janeiro, Vértice, 1988.
dação Cultural do Estado do Pará Tancredo Neves; Sec. do MONTEIRO, Shirley do Socorro Magalhães. Solar do Barão de
Estado de Cultura, 1990. Guajará. Belém, 1995. manuscrito.
COELHO. Geraldo M. História e Ideologia: O IHGB e a Repú- SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. São Paulo,
blica (1889-1891). Belém, Universidade Federal do Pará, Companhia das Letras. 1993.
1981. TRINDADE, Elna Maria Andersen. Solar Barão do Guajará.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos Belém, 1995. digitado.

Endereço: (Prof. José Maia Bezerra Neto) • Av. Serzedelo Corrêa n.º 895, ap. 301 • Batista Campos • Belém • Pará • CEP 66.025-240 •
Tel.: (091) 223-6636
Revista de História 136 (1997) 185

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ção, quantidade de páginas.
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tóricos de quaisquer épocas, abordados por quaisquer me, Data do Volume, Páginas (inicial e final).
metodologias; Artigo de coletâneas: SOBRENOME, Nome do Autor.
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los do mesmo autor no mesmo ano, o dado diferencial
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186 Revista de História 136 (1997)

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