Em Busca de uma Outra Hist6ria: Imaginando o Ima-
ginario
RESUMO
O texto uborda a temdtica do
imagindrio como uma das tendéncias
contempordneas de andlise da chamada
Nova Histéria Cultural, tendéncia esta
que se insere na propalada crise dos
paradigmas normativos da realidade que
caracterizam as ciéncias humanas nesta
nossa fin de sigcle, Entendendo 0 imagi-
ndrio como um sistema de idéias €
imagens de representagdo coletiva, 0
texto busca resgatar as posturas teéricas
que, a partir de um novo patamar epis-
temolégico, recuperaram novas cate~
gorias de andlise que tém enriquecido 0
estudo da Historia.
Sandra Jatahy Pesavento*
ABSTRACT
The text deals with the thematic
of the imaginary as one of the contempo-
rary tendencies for the analysis of the so-
called New Cultural History. Such ten-
dency finds its place in the outspread cri-
sis of normative paradigms of reality
which characterize the human sciences
during our fin de sidcle. Understanding
the imaginary as a system of ideas and
images of collective representation, the
text aims at bringing to light the theoreti-
cal lines whick, from a new epystemologic
standard, recuperated categories of
analysis that have enriched the study of
History.
O tema do imagin4rio est4 na ordem do dia, como uma das mais
instigantes tendéncias de andlise da nossa fin de siécle. Apresenta-se no
bojo de uma série de constatagGes relativamente consensuais que caracte-
rizam a nossa contemporaneidade no apagar das luzes do século XX: a
crise dos paradigmas de andlise da realidade, o fim da crenga nas verdades
absolutas legitimadoras da ordem social e a interdisciplinaridade,
Refere Baczko que a interrogagao atual das ciéncias humanas deri-
va da perda da certeza das normas fundamentadoras de um discurso cien-
tifico unitério sobre o homem e a sociedade.' Na medida em que deixa de
ter sentido uma teoria geral de interpretagao dos fendmenos sociais, apoia-
da em idéias-imagens legitimadoras do presente e antecipadoras do futuro
(0 progresso, o homem, a civilizagao), ocorre uma segmentacio das cién-
cias humanas e um movimento paralelo de associagao multidisciplinar em
busca de safdas. Novos objetos, problemas e sentidos se ensaiam, marca-
*Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Rey, Bras, de Hist.dos por um ecletismo teGrico e um grande apelo em termos de fascinio
tematico. Conclui Baczko que os imagindrios sociais, enquanto objeto de
hist6ria, sao safdos deste esvaziamento e desta sedugao.?
No plano das condigGes concretas da existéncia, a faléncia dos re-
gimes socialistas, por um lado, abalou a convicgao de que era possivel a
construgo de uma sociedade alternativa ao capitalismo, dada a forma his-
t6rica de realizago totalitéria em que tais regimes haviam descambado,
Por outro lado, as préprias economias do Primeiro Mundo nao conseguem
resolver as questes sociais internas, aumentando o némero de desempre-
gados e sem lar, ao passo que a vigéncia da liberal democracia nao impede
a ascensio da direita no Velho Mundo, com posigdes que podem ser asso-
ciadas a uma conota¢ao nitidamente fascistizante. Em suma, afin de siécle
se colocaria numa encruzilhada de incertezas.
Na opinido de Baczko, a prépria concepgio dos Annales de uma
“histéria global” ter-se-ia esfacelado. Para isso teria contribufdo a propalada
abertura da hist6ria para todos os aspectos da realidade e em diregao as
diferentes ciéncias. Tornou-se mais facil perceber a descontinuidade do
que acontinuidade dentro deste contexto multifacetado e dfspare, dificul-
tando a concretizagao da historia total.*
A chamada “crise dos paradigmas”, implicando para as ciéncias
humanas mudangas de contetido e método, assim como 0 ecletismo teéri-
co, € percebida por varios autores, independente das énfases de andlises
dos seus respectivos enfoques.*
A mesma inflexio no dom{nio das ciéncias humanas é percebida
por Chartier,‘ que, porém, vé no processo em curso um fortalecimento da
geografia, Face o declinio dos esquemas tedricos explicativos sobre os
quais a histéria se apoiava, processo este acompanhado do esgotamento de
suas aliangas tradicionais, como a economia ¢ a sociologia, ela teria sua
vitalidade conservada pelo ecletismo e pela assungao de uma postura cada
vez mais relativista sobre o social.’ Novos “sécios” se apresentam, no
dominio da literatura e da antropologia, que dio 0 reforgo a tendéncia de
apresentar o trabalho histérico como a claboragao de relagdes conjeturais,
onde se admite a incerteza,
A CRISE DOS PARADIGMAS / O ESTUDO DO IMAGINARIO
Deuma forma geral, os autores que se referem a crise dos paradigmas
da nossa fin de siécle estabelecem uma crftica, ora velada, ora explicita,
10aos modelos histéricos interpretativos vigentes na outrafin de siécle e que
perduraram enquanto forma de interpretagao da realidade até cerca de
metade do século XX: 0 historicismo de Ranke, transmudado cm intimeras
variantes de laudatérias “histérias nacionais”, o positivismo de Comte,
com seus pressupostos normativos cientificos, estabelecendo os critérios
da verdade absoluta, ¢ 0 marxismo, mais especialmente a sua versao
leninista e, posteriormente, stalinista, com seu corolario de postulados: 0
reducionismo econémico, o mecanicismo, o etapismo evolutivo.
Por outro lado, através da histéria, o estudo do imaginario tem sido
relegado a uma posig&o secundaria. Esta desvalorizagio deu-se face ao
avango do pensamento racional ¢ cientffico no Ocidente, cujo exemplo sao
as vias de interpretagdo histérica acima referidas. Houve um movimento
reiterado de ruptura a partir do racionalismo cartesiano, com tudo aquilo
que representava opiniées, pré-nogoes e formas de conhecimento transmi-
tidas pela tradigdo ou pelos vieses ideolégicos.’ Para Descartes, a imagi-
nacio era fruto do erro e da falsidade, cabendo-lhe, no maximo, 0
designativo de um estdgio inferior do conhecimento. Ora, quando se afir-
mava que 0 atributo por exceléncia do homo sapiens era o pensamento
racional (cogito, ergo sum), tudo aquilo que escapasse aos critérios e ri-
gores da Idgica formal ¢ que se baseasse em razbes relativas* era pratica-
mente desprezado.
Assim, apés Descartes, 0 saber racional se separou do imaginario,
numa postura que se estenderia até Comte ¢ que opunha o cientificismo,
como critério de verdade, ao ilusério da fic¢ao. O racionalismo cartesiano
instituiu-se como método universal de uma pedagogia do saber cientifico,
podendo mesmo ser dito que os renomados estdgios evolutivos positivistas
so etapas de extingao do simbélico.?
O saber cientffico, tinica fonte do conhecimento, deveria se despo-
jar da imaginagao deformadora. Nao € por acaso que, no senso comum, 0
imaginério aparece como algo inventado, fantasioso e, forgosamente, “no
sério”, porque nao cientifico.
Todavia, se 0 século XIX marcou um dpice do pensamento racio-
nal, tal como vinha se desenvolvendo desde o século XVIII, esta mesma
sociedade, norteada pelo cientificismo ¢ pelas imagens produzidas pelos
avan¢os da técnica, voltou-se contra os seus pressupostos. Esta postura, de
uma certa forma iconoclasta com relago a seus valores, foi capaz de res~
gatar a importancia das imagens na vida mental através da contribui¢ao da
psicandlise e da etnologia. Na opiniao de Gilbert Durand," as duas verten-
tes, apesar de romperem com largos séculos de coergdo contra 0 imagin4-
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