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TRLUCELESO ULE SU SUSU LU LUU LULL RLU EST Tadd ddddIIIIIIIIIAD Capitulo T O tempo da transmissao O ponto de vista “MAIS DO QUE COMUNICAR: TRANSMATIR (0s sores vivos sio 0 objecto da biologia, as linhas ¢ as superticies da geometria, os fenémenos atmosféricos da meteorologia. A primeira vista, uma disciplina é de- Finida pelo cou objecto, e tor-se-A entaoa tentacdo Ge dizer: «A mediologia € 0 estudo dos medias, o que seria um grave equivoco pois, como lembrava recentemente 0 hhistoriador das técnicas André-Georges Haudricourt: «Na realidado, o que caracte- riza uma ciéncia, € 0 ponto de vista e néo o objecio. Por exemplo, temos aqul wma ‘mesa, Pode sor estudada do ponto de vista fisico: pode-se estudar o seu peso, a sua densidade, a sua resisténcia & pressio; do ponto de vista quimico: as suas possibili- dades de combustio pelo fogo ou a dissolupao dos écidos; do ponto de vista bioléal co: a idade o a espécie de érvore que fornecou a madeira; finalmente, do ponto de vista das eiéncias humanas: a origem ¢ a fungée da mesa para os homens'». Se observarmas o largo espoctzo das «ciéncis humanas», veremos que cada uma delas be entranhou na nalureza humana segundo um angulo de incidéncia particular recebendo assim o individuo, a0 longo dos tempos, varios bilhetes de identidade de acordo com as secobes de corte. Cada disciplina desonha dentro ¢ num mesmo fundo antropolégico uma figura distinta e privilegiada, um novo perfil de referéa- cia. Esta «secgao» do objectivo real (é este o termo usado para as subdivisoes do nosso Conselho Nacional das Universidades, ou CNU) mostra em cada oasiéo wm aspecto diferente de umm homem que, no entanto, éinico, global e integrado porque 0 trabalho todrico, por definicéo, separa o que a pritica agrege. Apés dois séculos de esforcos, conhecemos jé bastante bem o homem que fala (Linguistica), deseja (psica- élise), produz (economia), s0 agrupa (sociologia), calcula (ciéneias cognitivas), ‘governa ou é governado (cléncias politicas), aproade ou ensina (ciéncias da educa- {Gi0), otc. Qual 6, entéo, o «assunto» de que trata 2 mediologia? Sem excluir o que é esigmado por «comunicagio», a mediologia interessa-se mais em particular pelo ‘homer que transmite, Como néo 0 conhecemos, a esse, \do bem como aos outros, ‘temos de desenvolver um esforgo concoptual mais original, ou deslocado, no que se relaciona com os pontos de vista anteriores. Original néo significa estranho nem oxciusive. O ponto de vista quea sio da sobre a realidade humana nao é evidentemente exaustivo (reduzindo todos 12 + Régis Debroy ‘os outros comportamentes ao estado de epifenémenos de uma esséncia originéria, ‘como a palevra, 0 deseje, 0 trabalho, etc.). Nem disjuntivo (exigindo de cada carac- lwristica abservavel que pertenca ao seu émbito ou a um outro sem possibilidade de cruzamento ou de mistura), Uma mesma realidade pode ser estudadz consoante pontos de vista simultareamente distintos © compativeis. Uma qualquer lingua natural, por exemplo, pode ser anslisada como meio de comunicagdo permitindo a locutores vives fazerem-se entender entre eles. Mas esea mesina lingua tem tam- bem uma fungdo de transmissao, assurnida nomeadamente pela sua grafia(alfabeto latino, ciilico, ideogramas chineses, hangul coreano, etc.}, na medida em que, condensando a meméria colectiva de um grupo histérico perpetua através dos tem- pos uma epersonelidade Je base> comum a todos os utilizadores dessa lingua ma- lerna, um sistema de significados que permite a um grupo definido de vivos sentir-se ‘om comunhdo com os sexs mortos. No primeiro caso, serdo evidenciadas de forma sinerénica as interacgoes entre individuos; no segundo, numa perspective diacré- hea, entre geragdes. Mas tratar-se- sempre de uma dnica e mesma lingua. ‘O teemo comunicagéo conheceu na nosse época um enorme enriquecimento (nor raves que examinaremos mais adiente). Temos de ultrapassar o horizonte do “ecomunicars para chegar ao continente do «transmitim que nio é visivel a olho nu ‘que, como todos 08 conceltos operatives, nao pode ser recebido ern estado bruto cin imediata, Muilo embora a sua familiaridade e os sous titulos do olive. ou molhor, por eausa deles, encontra-se af 0 nosso primeiro eabstéculo hyplulennioliiictn, A sua ultzapessager néo sera devida ao esquecimento ou & nogli- hic nus antes, tomaré a forma de uma integracao num todo mais complexo. Cunard 0 momento de-um processo mais longo ¢ o fragmento de um todo mais, Iuinple qin Gesignaromos, por convengéo, transmissao. Qualquer divisio disciplt- iiuplicn, yarn comegar, elgumas decisdes terninolégicas. CConsileraremos sob ¢ terme transmissio, tudo o que se relacione com a dinémica «lu menvria colectiva e sob 0 termo comunicagao, a circulagao das mensagens num. momento conereto. Ow ainda, reforgando a distingao, diremos que comunicar consiste ‘om Iransportar uma informagao no espago dentro de uma mesma esfera espaciotem- poral e wansmitir, em trarsportar uma informagdo no tempo entre esferes espaciotem- hrorais diferentes. A comanicagéo tam um horizonte sociolégico e, como rampa de angamento, uma psicalogia interindividual (entre um emissor e um receptor, na expe- viéncie princeps que 6 0 axto de interlocugio). A transmissio tem um horizonte histé- vico e, como rampa de langamento, uma prosza téonica (através da utilizagio de um. supofie). Num caso, faremos a conexao (e portanto associagao) através do relacions- ‘mento de um aqui com um ali; no outro, através da aproximagio de um passado com uma actuelidade, estabeleceremas a continuidadee, portanto, a cultura, Psicanalistes f socidlogos nao podem deixar de se interessar pelo assunto (e pelas ciéncias) da comunicagio, pelo funcionamento das media e pelos estados afectivos que provo- cam. Hislotiadores e antrapdlogos nio podem deixar de se sentir sensibilizados pelo (que faz - ou desfar — a cadeia das geragoes (mediante uma reorganizacéo légica de nogoes familiares promovidas do estado de nebuloca ao de constelagio} de que resul- tam, em cada vertente, vizinhangas e afinidades diferentes (coléquios ¢ leituras). slo oxi Introducio & Mediologic + 19 1: distingdes podem parecer artficiais earbitrdrias ¢ poder-se-4 muito justa- monte observar que pare transmitir é necessério, antes disso, comunicar. Se Jesus Ge Nazaré nao tivesse comunicado com as pessoas que rodeavam, se nao tivesse onversaclo com 0s seus dlscipulos, se nau livesse Interpelede a2 multidées, jamais f Igreja crista poderia ter assegurado @ transmissio de mensagem evangélica atra- ‘Ués das épocas e dos continentes, If urna evidéncla, mas hé uma solugio de cont: uidade entre os dois tipos de fenémenos que mesmo parecendo dar continuidade lum ao oulzo (@ veremos por que razio esta evidéncia pode ser posta em questo] necessitam, para serem compreendidos, de instrumentos conceptuais que podem sobrepor-se mas que nao se confundem. ‘Da mesma roaneira poderé haver a tontagio, mas erradamente, de reduzir 0 binémio transmisséa/comunicagdo a este outro: difusao pablica /troce interpessoal (entze interlocutores, assinantes dos servigos telefénicos ou epistolares). Ora, né0 basta alongar os fios de conexao (ligando o emissor ao receptor), tornar mais com: plexas as sues redes (uni, bi-, xaultidireccional), industrializar os seus canais (Im- ‘prense, rédio, televisio), para obter um fenémeno de transmissio. Seria antes © contvério, O critério nao é a presenga ou auséncia de uma interface maguinica entre homem ¢ homem, mas, a0 invés, o de uma interface institucional, Pode haver ~ eh cada vez mais — de acordo com o titulo de Pierre Schaeffer, «méquines de comuni- car» (0 telégrafo eléctrico, a televisio, o computador). Néo pode haver ~¢ nunca houve ~nenhuma maquina de transmisséo. Uma transmisséo é uma comunicacio optimizada por um corpo, individual ou colectivo, no duplo sentido de waste € 0 ‘meu corpo» e dé «0s grandes corposs, Se hi comunicacdes imediatas, dizectas, ale~ gremente transitives, uma transmisso no é nem imediata nem impessoal. Pode Ser una relagao interpessoal (entre pai e filho, mestre e disc{pulo, professor e alu~ no, companheizo ¢ aprendiz, etc), tecnicamente arquitectada mas onde a interface técnica nao 6 condigéo suficiente, Depols, se ha actos de comunicagéo, o transmis so 6 sempre um processo em forma de procissao (em grego. paradosis, traduzido por tradigao). Tendo a tradigaa a ver com a geragio, com o facto bioldgico que existe nas sociedades dos pequenos e dos grandes, a transiissao comeca pela educagao (pai-filho, mestze-disespulo, professor-aluno, companbeiro-prendiz) mes néo para af, De qualquer forma, desonvolvo-se no tempo seguniio obrigagées, hierarguias © ‘protocolos determinados progredindo por etapas ou degraus stuma sucessdo regrada como se verifica nas formas elevadas que constituem os rituais de cooptagao, apren- Gizagem, fiiagao ou adopeao (sucessor. filo espiritual, executor tostamentério, ec.) . Nao ha biblioteca que néo tenha sido ou nao seja real, califal, pontifical, principesca, do Senado, da Assembleia ou do Presidente, do Instituto, da Ordom, ou da Universidade. Que uma sociabilidade ‘erudita eeja induzida e produzida por uma biblioteca nao pode ecultar a genealogia {institucional do instrumento como prolongamento e complemento de uma comu- nidade organizada suscepttvei de sobreviver aoseu fundador ~quer se trate de uma escola de pensamento, como o liceu de Aristoteles, associagao de direito privado, (nao havie bibliotecas pablicas na Grécia antige); de uma Igreja ou de uma comuni- Gade monéstica; de um colégio ou de ums univarsidade; de um meio académico ou. letrado (como durante a Renascenca), devidamente circunsorito e ordenado, Esté at o suporte do suporte, o invisivel opecador da tansmiss4o do qual a biblioteca € 0 ‘meio vidente mas néo o molor. Mais precisamente, é esta comunidades instituida que transforma o depésito em vector inclusivamente da sua prépria perpetuagio (Escola, Igrefa, Ordem, Nagao, etc.). A sua bib.ioteca seré a prdteso indispensével para a sua reprodugio mas o veiculo nao ¢ automével devendo ser ele proprio mo- bilizado por uma solicitagéo organica prévia. Equivale a dizer que ¢ despensa néo assegura a alimentagdo. A meméria externa dos livros 6 adquire forga ulzawés da ‘membéria interna de um grapo. Os guarda-meméria sto como os monumentos: po-

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