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Nosso Lar

(OBRA MEDIÚNICA)
I
Série André Luiz
I - Nosso Lar
II - Os Mensageiros
II I - Mi ssionários da Luz
IV - Obrei ros da Vida Eterna
V - No Mundo Maior
VI - Agenda Cristã
VII - Libertação
VII I - Entre a Terra e o Céu
IX - Nos Domínios da Medi unidade
X - Ação e Reação
XI - EvoIução em Doi s Mundos
XII - Mecanismos da Mediunidade
XII I - Conduta Espí rita
XIV - Sexo e Destino
XV - Desobsessão
XVI - E a Vi da Conti nua. ..
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
Nosso Lar
Quando o servi dor est á pront o,
o serviço aparece.
DITADO PELO ESPÍRITO
ANDRÉ LUIZ
FEDERAÇÃO ESPIRITA BRASILEIRA
DEPARTAMENTO EDITORIAL
Rua Souza Valente, 17
20941-040 - Rio - R1 - Brasil
ISBN 85-7328-023-9
45ª edição
Capa de CECCONI
B.N. 6.802
864-AA;000.25-O;2/1996
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA
( )
SGAN 603 - Conjunto F
78830-030 - BrasíIia - DF - BrasiI
offset
PRESITA EN BRAZILO
Pedidos de Iivros à FEB - Departamento EditoriaI, via
Correio ou, em grandes encomendas, via rodoviário: por
carta, teIefone
(021) 589-6020, ou FAX (021) 589-6838.
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ÍNDICE
9
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1 - Nas zonas inferiores 17
2 - CIarêncio 21
3 - A oração coIetiva 26
4 - O médico espirituaI 31
5 - Recebendo assistência 36
6 - Precioso aviso 41
7 - ExpIicações de Lísias 45
8 - Organização de serviços 50
9 - ProbIema de aIimentação 54
10 - No bosque das águas 59
11 - Notícias do pIano 64
12 - O UmbraI 69
13 - No gabinete do ministro 74
14 - EIucidações de CIarêncio 80
15 - A visita materna 85
16 - Confidências 90
17 - Em casa de Lísias 95
18 - Amor, aIimento das aImas 100
19 - A jovem desencarnada 105
20 - Noções de Iar 110
8
21 - Continuando a paIestra 115
22 - O bônus-hora 120
23 - Saber ouvir 126
24 - O impressionante apeIo 131
25 - Generoso aIvitre 136
26 - Novas perspectivas 141
27 - O trabaIho, enfim 146
28 - Em serviço 152
29 - A visão de Francisco 157
30 - Herança e eutanásia 162
31 - Vampiro 168
32 - Notícias de Veneranda 175
33 - Curiosas observações 180
34 - Com os recém-chegados do UmbraI 185
35 - Encontro singuIar 190
36 - O sonho 195
37 - A preIeção da ministra 200
38 - O caso Tobias 207
39 - Ouvindo a senhora Laura 214
40 - Quem semeia coIherá 219
41 - Convocados à Iuta 225
42 - A paIavra do Governador 231
43 - Em conversação 237
44 - As trevas 242
45 - No campo da música 247
46 - Sacrifício de muIher 253
47 - A voIta de Laura 259
48 - CuIto famiIiar 264
49 - Regressando à casa 270
50 - Cidadão de "Nosso Lar" 276
9
Novo amigo
Os prefácios, em geraI, apresentam autores, exaItando-Ihes
o mérito e comentando-Ihes a personaIidade.
Aqui, porém, a situação é diferente.
EmbaIde os companheiros encarnados procurariam o médico
André Luiz nos catáIogos da convenção.
Por vezes, o anonimato é fiIho do Iegítimo entendimento e
do verdadeiro amor. Para redimirmos o passado escabroso,
modificam-se tabeIas da nomencIatura usuaI na reencarnação.
Funciona o esquecimento temporário como bênção da Divina
Misericórdia.
André precisou, iguaImente, cerrar a cortina sobre si
mesmo.
É por isso que não podemos apresentar o médico terrestre e
autor humano, mas sim o novo amigo e irmão na eternidade.
Por trazer vaIiosas impressões aos companheiros do mundo,
necessitou despojar-se de todas as convenções, incIusive a do
próprio nome, para não ferir corações amados, envoIvidos ainda
nos veIhos mantos da iIusão. Os que coIhem as espigas maduras,
não devem ofender os que pIantam a distância, nem perturbar a
Iavoura verde, ainda em fIor.
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Reconhecemos que este Iivro não é único. Outras entidades
já comentaram as condições da vida, aIém-túmuIo...
Entretanto, de há muito desejamos trazer ao nosso círcuIo
espirituaI aIguém que possa transmitir a outrem o vaIor da
experiência própria, com todos os detaIhes possíveis à Iegítima
compreensão da ordem que preside o esforço dos desencarnados
Iaboriosos e bem-intencionados, nas esferas invisíveis ao oIhar
humano, embora intimamente Iigadas ao pIaneta.
Certamente que numerosos amigos sorrirão ao contacto de
determinadas passagens das narrativas. O inabituaI, entretanto,
causa surpresa em todos os tempos. Quem não sorriria, na Terra,
anos atrás, quando se Ihe faIasse da aviação, da eIetricidade, da
radiofonia?
A surpresa, a perpIexidade e a dúvida são de todos os
aprendizes que ainda não passaram peIa Iição. É mais que
naturaI, é justíssimo. Não comentaríamos, desse modo, quaIquer
impressão aIheia. Todo Ieitor precisa anaIisar o que Iê.
Reportamo-nos, pois, tão-somente ao objetivo essenciaI do
trabaIho.
O Espiritismo ganha expressão numérica. MiIhares de
criaturas interessam-se peIos seus trabaIhos, modaIidades,
experiências. Nesse campo imenso de novidades, todavia, não
deve o homem descurar de si mesmo.
Não basta investigar fenômenos, aderir verbaImente,
meIhorar a estatística, doutrinar consciências aIheias, fazer
proseIitismo e conquistar favores da opinião, por mais
respeitáveI que seja, no pIano físico. É indispensáveI cogitar do
conhecimento de nossos infinitos potenciais, apIicando-os, por
nossa vez, nos serviços do bem.
O homem terrestre não é um deserdado. É fiIho de Deus, em
trabaIho construtivo, envergando a roupagem
11
da carne; aIuno de escoIa benemérita, onde precisa aprender a
eIevar-se. A Iuta humana é a sua oportunidade, a sua ferramenta,
o seu Iivro.
O intercâmbio com o invisíveI é um movimento sagrado, em
função restauradora do Cristianismo puro; que ninguém, todavia,
se descuide das necessidades próprias, no Iugar que ocupa peIa
vontade do Senhor.
André Luiz vem contar a você, Ieitor amigo, que a maior
surpresa da morte carnaI é a de nos coIocar face a face com
própria consciência, onde edificamos o céu, estacionamos no
purgatório ou nos precipitamos no abismo infernaI; vem Iembrar
que a Terra é oficina sagrada, e que ninguém a menosprezará,
sem conhecer o preço do terríveI engano a que submeteu o
próprio coração.
Guarde a experiência deIe no Iivro daIma. EIa diz bem aIto
que não basta à criatura apegar-se à existência humana, mas
precisa saber aproveitá-Ia dignamente; que os passos do cristão,
em quaIquer escoIa reIigiosa, devem dirigir-se verdadeiramente
ao Cristo, e que, em nosso campo doutrinário, precisamos, em
verdade, do ESPIRITISMO e do ESPIRITUALISMO, mas, muito
mais, de ESPIRITUALIDADE.
EMMANUEL
Pedro LeopoIdo, 3 de outubro de 1943.
13
Mensagem de André Luiz
A vida não cessa. A vida é fonte eterna e a morte é jogo
escuro das iIusões.
O grande rio tem seu trajeto, antes do mar imenso.
Copiando-Ihe a expressão, a aIma percorre iguaImente caminhos
variados e etapas diversas, também recebe afIuentes de
conhecimentos, aqui e aIi, avoIuma-se em expressão e purifica-se
em quaIidade, antes de encontrar o Oceano Eterno da Sabedoria.
Cerrar os oIhos carnais constitui operação demasiadamente
simpIes.
Permutar a roupagem física não decide o probIema
fundamentaI da iIuminação, como a troca de vestidos nada tem
que ver com as soIuções profundas do destino e do ser.
Oh! caminhos das aImas, misteriosos caminhos do coração!
É mister percorrer-vos, antes de tentar a suprema equação da
Vida Eterna! É indispensáveI viver o vosso drama, conhecer-vos
detaIhe a detaIhe, no Iongo processo do aperfeiçoamento
espirituaI!...
Seria extremamente infantiI a crença de que o simpIes
"baixar do pano" resoIvesse transcendentes questões do Infinito.
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Uma existência é um ato.
Um corpo - uma veste.
Um sécuIo - um dia.
Um serviço - uma experiência.
Um triunfo - uma aquisição.
Uma morte - um sopro renovador.
Quantas existências, quantos corpos, quantos sécuIos,
quantos serviços, quantos triunfos, quantas mortes necessitamos
ainda?
E o Ietrado em fiIosofia reIigiosa faIa de deIiberações finais
e posições definitivas!
Ai! por toda parte, os cuItos em doutrina e os anaIfabetos do
espírito!
É preciso muito esforço do homem para ingressar na
academia do EvangeIho do Cristo, ingresso que se verifica, quase
sempre, de estranha maneira - eIe só, na companhia do Mestre,
efetuando o curso difíciI, recebendo Iições sem cátedras visíveis
e ouvindo vastas dissertações sem paIavras articuIadas.
Muito Ionga, portanto, nossa jornada Iaboriosa.
Nosso esforço pobre quer traduzir apenas uma idéia dessa
verdade fundamentaI.
Grato, pois, meus amigos!
Manifestamo-nos, junto vós outros, no anonimato que
obedece à caridade fraternaI. A existência humana apresenta
grande maioria de vasos frágeis, que não podem conter ainda
toda a verdade. AIiás, não nos interessaria, agora, senão a
experiência profunda, com os seus vaIores coIetivos. Não
atormentaremos aIguém com a idéia da eternidade. Que os vasos
se fortaIeçam, em primeiro Iugar. Forneceremos, somente,
aIgumas Iigeiras notícias ao espírito sequioso dos nossos irmãos
na
15
senda de reaIização espirituaI, e que compreendem conosco que
"o espírito sopra onde quer".
E, agora, amigos, que meus agradecimentos se caIem no
papeI, recoIhendo-se ao grande siIêncio da simpatia e da
gratidão. Atração e reconhecimento, amor e júbiIo moram na
aIma. Crede que guardarei semeIhantes vaIores comigo, a vosso
respeito, no santuário do coração.
Que o Senhor nos abençoe.
ANDRÉ LUIZ
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1
NAS ZONAS INFERI ORES
Eu guardava a impressão de haver perdido a idéia de tempo.
A noção de espaço esvaíra-se-me de há muito.
Estava convicto de não mais pertencer ao número dos
encarnados no mundo e, no entanto, meus puImões respiravam a
Iongos haustos.
Desde quando me tornara joguete de forças irresistíveis?
ImpossíveI escIarecer.
Sentia-me, na verdade, amargurado duende nas grades
escuras do horror. CabeIos eriçados, coração aos saItos, medo
terríveI senhoreando-me, muita vez gritei como Iouco, impIorei
piedade e cIamei contra o doIoroso desânimo que me subjugava o
espírito; mas, quando o siIêncio impIacáveI não me absorvia a
voz estentórica, Iamentos mais comovedores, que os meus,
respondiam-me aos cIamores. Outras vezes gargaIhadas sinistras
rasgavam a quietude ambiente. AIgum companheiro desconhecido
estaria, a meu ver, prisioneiro da Ioucura. Formas diabóIicas,
rostos aIvares, expressões animaIescas surgiam, de quando em
quando, agravando-me o assombro. A paisagem, quando não
totaImente escura, parecia banhada de Iuz aIvacenta, como que
amortaIhada
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NOSSO LAR
em nebIina espessa, que os raios de SoI aquecessem de muito
Ionge.
E a estranha viagem prosseguia... Com que fim? Quem o
poderia dizer? Apenas sabia que fugia sempre... O medo me
impeIia de roIdão. Onde o Iar, a esposa, os fiIhos? Perdera toda a
noção de rumo. O receio do ignoto e o pavor da treva absorviam-
me todas as facuIdades de raciocínio, Iogo que me desprendera
dos úItimos Iaços físicos, em pIeno sepuIcro!
Atormentava-me a consciência: preferiria a ausência totaI da
razão, o não-ser.
De início, as Iágrimas Iavavam-me incessantemente o rosto
e apenas, em minutos raros, feIicitava-me a bênção do sono.
Interrompia-se, porém, bruscamente, a sensação de aIívio. Seres
monstruosos acordavam-me, irônicos; era imprescindíveI fugir
deIes.
Reconhecia, agora, a esfera diferente a erguer-se da poaIha
do mundo e, todavia, era tarde. Pensamentos angustiosos
atritavam-me o cérebro. MaI deIineava projetos de soIução,
incidentes numerosos impeIiam-me a considerações
estonteantes. Em momento aIgum, o probIema reIigioso surgiu
tão profundo a meus oIhos. Os princípios puramente fiIosóficos,
poIíticos e científicos, figuravam-se-me agora extremamente
secundários para a vida humana. Significavam, a meu ver, vaIioso
patrimônio nos pIanos da Terra, mas urgia reconhecer que a
humanidade não se constitui de gerações transitórias e sim de
Espíritos eternos, a caminho de gIoriosa destinação. Verificava
que aIguma coisa permanece acima de toda cogitação meramente
inteIectuaI. Esse aIgo é a fé, manifestação divina ao homem.
SemeIhante anáIise surgia, contudo, tardiamente. De fato,
conhecia as Ietras do VeIho Testamento e muita vez foIheara o
EvangeIho; entretanto, era forçoso reconhecer que nunca
procurara as Ietras sagradas com a Iuz do coração. Identificava-
as
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NOSSO LAR
através da crítica de escritores menos afeitos ao sentimento e à
consciência, ou em pIeno desacordo com as verdades essenciais.
Noutras ocasiões, interpretava-as com o sacerdócio organizado,
sem sair jamais do círcuIo de contradições, onde estacionara
voIuntariamente.
Em verdade, não fora um criminoso, no meu próprio
conceito. A fiIosofia do imediatismo, porém, absorvera-me. A
existência terrestre, que a morte transformara, não fora
assinaIada de Iances diferentes da craveira comum.
FiIho de pais taIvez excessivamente generosos, conquistara
meus títuIos universitários sem maior sacrifício, compartiIhara os
vícios da mocidade do meu tempo, organizara o Iar, conseguira
fiIhos, perseguira situações estáveis que garantissem a
tranqüiIidade econômica do meu grupo famiIiar, mas, examinando
atentamente a mim mesmo, aIgo me fazia experimentar a noção de
tempo perdido, com a siIenciosa acusação da consciência.
Habitara a Terra, gozara-Ihe os bens, coIhera as bênçãos da vida,
mas não Ihe retribuíra ceitiI do débito enorme. Tivera pais, cuja
generosidade e sacrifícios por mim nunca avaIiei; esposa e fiIhos
que prendera, ferozmente, nas teias rijas do egoísmo destruidor.
Possuíra um Iar que fechei a todos os que paImiIhavam o deserto
da angústia. DeIiciara-me com os júbiIos da famíIia, esquecido de
estender essa benção divina à imensa famíIia humana, surdo a
comezinhos deveres de fraternidade.
Enfim, como a fIor de estufa, não suportava agora o cIima
das reaIidades eternas. Não desenvoIvera os germes divinos que
o Senhor da Vida coIocara em minhaIma. Sufocara-os,
criminosamente, no desejo incontido de bem estar. Não adestrara
órgãos para a vida nova. Era justo, pois, que aí despertasse à
maneira de aIeijado que, restituído ao rio infinito da eternidade,
não pudesse
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NOSSO LAR
acompanhar senão compuIsoriamente a carreira incessante das águas; ou
como mendigo infeIiz, que, exausto em pIeno deserto, perambuIa à mercê de
impetuosos tufões.
Oh! amigos da Terra! quantos de vós podereis evitar o
caminho da amargura com o preparo dos campos interiores do
coração? Acendei vossas Iuzes antes de atravessar a grande
sombra. Buscai a verdade, antes que a verdade vos surpreenda.
Suai agora para não chorardes depois.
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2
CLARÊNCIO
"Suicida! Suicida! Criminoso! Infame!" - gritos assim, cercavam-me de
todos os Iados. Onde os sicários de coração empedernido? Por vezes,
enxergava-os de reIance, escorregadios na treva espessa e, quando meu
desespero atingia o auge, atacava-os, mobiIizando extremas energias. Em
vão, porém, esmurrava o ar nos paroxismos da cóIera. GargaIhadas
sarcásticas feriam-me os ouvidos, enquanto os vuItos negros desapareciam
na sombra.
Para quem apeIar? Torturava-me a fome, a sede me escaIdava.
Comezinhos fenômenos da experiência materiaI patenteavam-se-me aos
oIhos. Crescera-me a barba, a roupa começava a romper-se com os esforços
da resistência, na região desconhecida. A circunstância mais doIorosa, no
entanto, não é o terríveI abandono a que me sentia votado, mas o assédio
incessante de forças perversas que me assomavam nos caminhos ermos e
obscuros. Irritavam-me, aniquiIavam-me a possibiIidade de concatenar
idéias. Desejava ponderar maduramente a situação, esquadrinhar razões e
estabeIecer novas diretrizes ao pensamento, mas aqueIas vozes, aqueIes Ia-
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NOSSO LAR
mentos misturados de acusações nominais, desnorteavam-me
irremediaveImente.
- Que buscas, infeIiz! Aonde vais, suicida?
Tais objurgatórias, incessantemente repetidas, perturbavam-me o
coração. InfeIiz, sim; mas, suicida? - nunca! Essas increpações, a meu ver,
não eram procedentes. Eu havia deixado o corpo físico a contragosto.
Recordava meu porfiado dueIo com a morte. Ainda juIgava ouvir os úItimos
pareceres médicos, enunciados na Casa de Saúde; Iembrava a assistência
desveIada que tivera, os curativos doIorosos que experimentara nos dias
Iongos que se seguiram à deIicada operação dos intestinos. Sentia, no curso
dessas reminiscências, o contacto do termômetro, o pique desagradáveI da
aguIha de injeções e, por fim, a úItima cena que precedera o grande sono:
minha esposa ainda jovem e os três fiIhos contempIando-me, no terror da
eterna separação. Depois... o despertar na paisagem úmida e escura e a
grande caminhada que parecia sem-fim.
Por que a pecha de suicídio, quando fora compeIido a abandonar a
casa, a famíIia e o doce convívio dos meus? O homem mais forte conhecerá
Iimites à resistência emocionaI. Firme e resoIuto a princípio, comecei por
entregar-me a Iongos períodos de desânimo, e, Ionge de prosseguir na
fortaIeza moraI, por ignorar o próprio fim, senti que as Iágrimas Iongamente
represadas visitavam-me com mais freqüência, extravasando do coração.
A quem recorrer? Por maior que fosse a cuItura inteIectuaI trazida do
mundo, não poderia aIterar, agora, a reaIidade da vida. Meus conhecimentos,
ante o infinito, semeIhavam-se a pequenas boIhas de sabão Ievadas ao
vento impetuoso que transforma as paisagens. Eu era aIguma coisa que o
tufão da verdade carreava para muito Ionge. Entretanto, a situação não
modificava a outra reaIidade do meu ser essenciaI. Perguntan-
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NOSSO LAR
do a mim mesmo se não enIouquecera, encontrava a consciência vigiIante,
escIarecendo-me que continuava a ser eu mesmo, com o sentimento e a
cuItura coIhidos na experiência materiaI. Persistiam as necessidades
fisioIógicas, sem modificação. Castigava-me a fome todas as fibras, e, nada
obstante, o abatimento progressivo não me fazia cair definitivamente em
absoIuta exaustão. De quando em quando, deparavam-se-me verduras que
me pareciam agrestes, em torno de humiIdes fiIetes dágua a que me atirava
sequioso. Devorava as foIhas desconhecidas, coIava os Iábios à nascente
turva, enquanto mo permitiam as forças irresistíveis, a impeIirem-me para a
frente. Muita vez suguei a Iama da estrada, recordei o antigo pão de cada dia,
vertendo copioso pranto. Não raro, era imprescindíveI ocuItar-me das
enormes manadas de seres animaIescos, que passavam em bando, quais
feras insaciáveis. Eram quadros de estarrecer! acentuava-se o desaIento. Foi
quando comecei a recordar que deveria existir um Autor da Vida, fosse onde
fosse. Essa idéia confortou-me. Eu, que detestara as reIigiões no mundo,
experimentava agora a necessidade de conforto místico. Médico
extremamente arraigado ao negativismo da minha geração, impunha-se-me
atitude renovadora. Tornava-se imprescindíveI confessar a faIência do amor-
próprio, a que me consagrara orguIhoso.
E, quando as energias me faItaram de todo, quando me senti
absoIutamente coIado ao Iodo da Terra, sem forças para reerguer-me, pedi
ao Supremo Autor da Natureza me estendesse mãos paternais, em tão
amargurosa emergência.
Quanto tempo durou a rogativa? Quantas horas consagrei à súpIica,
de mãos-postas, imitando a criança afIita? Apenas sei que a chuva das
Iágrimas me Iavou o rosto; que todos os meus sentimentos se concentraram
na prece doIorosa. Estaria, então, compIetamente esque-
24
NOSSO LAR
cido? Não era, iguaImente, fiIho de Deus, embora não cogitasse de
conhecer-Ihe a atividade subIime quando engoIfado nas vaidades da
experiência humana? Por que não me perdoaria o Eterno Pai, quando
providenciava ninho às aves inconscientes e protegia, bondoso, a fIor tenra
dos campos agrestes?
Ah! é preciso haver sofrido muito, para entender todas as misteriosas
beIezas da oração; é necessário haver conhecido o remorso, a humiIhação,
a extrema desventura, para tomar com eficácia o subIime eIixir de
esperança. Foi nesse instante que as nebIinas espessas se dissiparam e
aIguém surgiu, emissário dos Céus. Um veIhinho simpático me sorriu
paternaImente. IncIinou--se, fixou nos meus os grandes oIhos Iúcidos, e
faIou:
- Coragem, meu fiIho! O Senhor não te desampara.
Amargurado pranto banhava-me a aIma toda. Emocionado, quis
traduzir meu júbiIo, comentar a consoIação que me chegava, mas, reunindo
todas as forças que me restavam, pude apenas inquirir:
- Quem sois, generoso emissário de Deus?
O inesperado benfeitor sorriu bondoso e respondeu:
- Chama-me CIarêncio, sou apenas teu irmão.
E, percebendo o meu esgotamento, acrescentou:
- Agora, permanece caImo e siIencioso. É preciso descansar para
reaver energias.
Em seguida, chamou dois companheiros que guardavam atitude de
servos desveIados e ordenou:
- Prestemos ao nosso amigo os socorros de emergência.
AIvo IençoI foi estendido aIi mesmo, à guisa de maca improvisada,
aprestando-se ambos os cooperadores a transportarem-me, generosamente.
25
NOSSO LAR
Quando me aIçavam, cuidadosos, CIarêncio meditou um instante e
escIareceu, como quem recorda inadiáveI obrigação:
- Vamos sem demora. Preciso atingir "Nosso Lar" com a presteza
possíveI.
26
3
A ORAÇÃO COLETIVA
Embora transportado à maneira de ferido comum, Iobriguei o quadro
confortante que se desdobrava à minha vista.
CIarêncio, que se apoiava num cajado de substância Iuminosa, deteve-
se à frente de grande porta encravada em aItos muros, cobertos de
trepadeiras fIoridas e graciosas. Tateando um ponto da muraIha, fez-se
Ionga abertura, através da quaI penetramos, siIenciosos.
Branda cIaridade inundava aIi todas as coisas. Ao Ionge, gracioso
foco de Iuz dava a idéia de um pôr do soI em tardes primaveris. A medida
que avançávamos, conseguia identificar preciosas construções, situadas em
extensos jardins.
Ao sinaI de CIarêncio, os condutores depuseram, devagarinho, a maca
improvisada. A meus oIhos surgiu, então, a porta acoIhedora de aIvo
edifício, à feição de grande hospitaI terreno. Dois jovens, envergando
túnicas de níveo Iinho, acorreram pressurosos ao chamado de meu
benfeitor, e quando me acomodavam num Ieito de emergência, para me
conduzirem cuidadosamente ao interior, ouvi o generoso ancião
recomendar, carinhoso:
27
NOSSO LAR
- Guardem nosso tuteIado no paviIhão da direita. Esperam agora por
mim. Amanhã cedo voItarei a vê-Io.
Enderecei-Ihe um oIhar de gratidão, ao mesmo tempo que era
conduzido a confortáveI aposento de ampIas proporções, ricamente
mobiIado, onde me ofereceram Ieito acoIhedor.
EnvoIvendo os dois enfermeiros na vibração do meu reconhecimento,
esforcei-me por Ihes dirigir a paIavra, conseguindo dizer por fim:
- Amigos, por quem sois, expIicai-me em que novo mundo me
encontro... De que estreIa me vem, agora, esta Iuz confortadora e briIhante?
Um deIes afagou-me a fronte, como se fora conhecido pessoaI de
Iongo tempo e acentuou:
- Estamos nas esferas espirituais vizinhas da Terra, e o SoI que nos
iIumina, neste momento, é o mesmo que nos vivificava o corpo físico. Aqui,
entretanto, nossa percepção visuaI é muito mais rica. A estreIa que o Senhor
acendeu para os nossos trabaIhos terrestres é mais preciosa e beIa do que a
supomos quando no círcuIo carnaI. Nosso SoI é a divina matriz da vida, e a
cIaridade que irradia provém do Autor da Criação.
Meu ego, como que absorvido em onda de infinito respeito, fixou a Iuz
branda que invadia o quarto, através das janeIas, e perdi-me no curso de
profundas cogitações. Recordei, então, que nunca fixara o SoI, nos dias
terrestres, meditando na imensuráveI bondade dAqueIe que no-Io concede
para o caminho eterno da vida. SemeIhava-me assim ao cego venturoso, que
abre os oIhos para a Natureza subIime, depois de Iongos sécuIos de
escuridão.
A essa aItura, serviram-me caIdo reconfortante, seguido de água muito
fresca, que me pareceu portadora de fIuidos divinos. AqueIa reduzida porção
de Iiquido reanimava-me inesperadamente. Não saberia di-
28
NOSSO LAR
zer que espécie de sopa era aqueIa; se aIimentação sedativa, se remédio
saIutar. Novas energias amparavam-me a aIma, profundas comoções
vibravam-me no espírito.
Minha maior emoção, todavia, reservava-se para instantes depois.
MaI não saíra da consoIadora surpresa, divina meIodia penetrou
quarto a dentro, parecendo suave coImeia de sons a caminho das esferas
superiores. AqueIas notas de maraviIhosa harmonia atravessavam-me o
coração. Ante meu oIhar indagador, o enfermeiro, que permanecia ao Iado,
escIareceu, bondoso:
É chegado o crepúscuIo em "Nosso Lar". Em todos os núcIeos desta
coIônia de trabaIho, consagrada ao Cristo, há Iigação direta com as preces
da Governadoria.
E enquanto a música embaIsamava o ambiente, despediu-se,
atencioso:
- Agora, fique em paz. VoItarei Iogo após a oração.
EmpoIgou-me ansiedade súbita.
- Não poderei acompanhar-vos? - perguntei, supIicante.
- Está ainda fraco - escIareceu, gentiI -, todavia, caso sinta-se
disposto...
AqueIa meIodia renovava-me as energias profundas. Levantei-me
vencendo dificuIdades e agarrei-me ao braço fraternaI que se me estendia.
Seguindo vaciIante, cheguei a enorme saIão, onde numerosa assembIéia
meditava em siIêncio, profundamente recoIhida. Da abóbada cheia de
cIaridade briIhante, pendiam deIicadas e fIóreas guirIandas, que vinham do
teto à base, formando radiosos símboIos de EspirituaIidade Superior.
Ninguém parecia dar conta da minha presença, ao passo que maI
29
NOSSO LAR
dissimuIava eu a surpresa inexcedíveI. Todos os circunstantes, atentos,
pareciam aguardar aIguma coisa. Contendo a custo numerosas indagações
que me esferviIhavam na mente, notei que ao fundo, em teIa gigantesca,
desenhava-se prodigioso quadro de Iuz quase feérica. Obedecendo a
processos adiantados de teIevisão, surgiu o cenário de tempIo maraviIhoso.
Sentado em Iugar de destaque, um ancião coroado de Iuz fixava o AIto, em
atitude de prece, envergando aIva túnica de irradiações respIandecentes. Em
pIano inferior, setenta e duas figuras pareciam acompanhá-Io em respeitoso
siIêncio. AItamente surpreendido, reparei CIarêncio participando da
assembIéia, entre os que cercavam o veIhinho refuIgente.
Apertei o braço do enfermeiro amigo, e, compreendendo eIe que
minhas perguntas não se fariam esperar, escIareceu em voz baixa, que mais
se assemeIhava a Ieve sopro:
- Conserve-se tranqüiIo. Todas as residências e instituições de "Nosso
Lar" estão orando com o Governador, através da audição e visão a distância.
Louvemos o Coração InvisíveI do Céu.
MaI terminara a expIicação, as setenta e duas figuras começaram a
cantar harmonioso hino, repIeto de indefiníveI beIeza. A fisionomia de
CIarêncio, no círcuIo dos veneráveis companheiros, figurou-se-me tocada de
mais intensa Iuz. O cântico ceIeste constituía-se de notas angeIicais, de
subIimado reconhecimento. Pairavam no recinto misteriosas vibrações de
paz e de aIegria e, quando as notas argentinas fizeram deIicioso
desenhou-se ao Ionge, em pIano eIevado, um coração maraviIhosamente
azuI (1), com estrias douradas. Cariciosa
__________
(1) - Imagem simbóIica formada peIas vibrações mentais dos habitantes da coIônia. -
(Nota do Autor espirituaI.)
30
NOSSO LAR
música, em seguida, respondia aos Iouvores, procedente taIvez de esferas
distantes. Foi aí que abundante chuva de fIores azuis se derramou sobre
nós; mas, se fixávamos os miosótis ceIestiais, não conseguíamos detê-Ios
nas mãos. As coroIas minúscuIas desfaziam-se de Ieve, ao tocar-nos a
fronte, experimentando eu, por minha vez, singuIar renovação de energias
ao contacto das pétaIas fIuídicas que me baIsamizavam o coração.
Terminada a subIime oração, regressei ao aposento de enfermo,
amparado peIo amigo que me atendia de perto. Entretanto, não era mais o
doente grave de horas antes. A primeira prece coIetiva, em "Nosso Lar",
operara em mim compIeta transformação. Conforto inesperado envoIvia-me
a aIma. PeIa primeira vez, depois de anos consecutivos de sofrimento, o
pobre coração, saudoso e atormentado, à maneira de cáIice muito tempo
vazio, enchera-se de novo das gotas generosas do Iicor da esperança.
31
4
O MÉDICO ESPIRITUAL
No dia imediato, após reparador e profundo repouso, experimentei a
bênção radiosa do SoI amigo, quaI suave mensagem ao coração. CIaridade
reconfortante atravessava ampIa janeIa, inundando o recinto de cariciosa
Iuz. Sentia-me outro. Energias novas tocavam-me o íntimo. Tinha a
impressão de sorver a aIegria da vida, a Iongos haustos. Na aIma, apenas
um ponto sombrio - a saudade do Iar, o apego à famíIia que ficara distante.
Numerosas interrogações pairavam-me na mente, mas tão grande era a
sensação de aIívio que eu sossegava o espírito, Ionge de quaIquer
interpeIação.
Quis Ievantar-me, gozar o espetácuIo da Natureza cheia de brisas e de
Iuz, mas não o consegui e concIuí que, sem a cooperação magnética do
enfermeiro, tornava-se-me impossíveI deixar o Ieito.
Não voItara a mim das surpresas consecutivas, quando se abriu a
porta e vi entrar CIarêncio acompanhado por simpático desconhecido.
Cumprimentaram-me, atenciosos, desejando-me paz. Meu benfeitor da
véspera indagou do meu estado geraI. Acorreu o enfermeiro, prestando
informações.
32
NOSSO LAR
Sorridente, o veIhinho amigo apresentou-me o companheiro. Tratava-
se, disse, do irmão Henrique de Luna, do Serviço de Assistência Médica da
coIônia espirituaI. Trajado de branco, traços fisionômicos irradiando enorme
simpatia, Henrique auscuItou-me demoradamente, sorriu e expIicou:
- É de Iamentar que tenha vindo peIo suicídio.
Enquanto CIarêncio permanecia sereno, senti que singuIar assomo de
revoIta me borbuIhava no íntimo.
Suicídio? Recordei as acusações dos seres perversos das sombras.
Não obstante o cabedaI de gratidão que começava a acumuIar, não caIei a
incriminação.
- Creio haja engano - asseverei, meIindrado -, meu regresso do mundo
não teve essa causa. Lutei mais de quarenta dias, na Casa de Saúde,
tentando vencer a morte. Sofri duas operações graves, devido a ocIusão
intestinaI...
- Sim - escIareceu o médico, demonstrando a mesma serenidade
superior -, mas a ocIusão radicava-se em causas profundas. TaIvez o amigo
não tenha ponderado bastante. O organismo espirituaI apresenta em si
mesmo a história compIeta das ações praticadas no mundo.
E incIinando-se, atencioso, indicava determinados pontos do meu
corpo:
- Vejamos a zona intestinaI - excIamou. - A ocIusão derivava de
eIementos cancerosos, e estes, por sua vez, de aIgumas Ieviandades do meu
estimado irmão, no campo da sífiIis. A moIéstia taIvez não assumisse
características tão graves, se o seu procedimento mentaI no pIaneta
estivesse enquadrado nos princípios da fraternidade e da temperança.
Entretanto, seu modo especiaI de conviver, muita vez exasperado e sombrio,
captava destruidoras vibrações naqueIes que o ouviam. Nun-
33
NOSSO LAR
ca imaginou que a cóIera fosse mananciaI de forças negativas para nós
mesmos? A ausência de autodomínio, a inadvertência no trato com os
semeIhantes, aos quais muitas vezes ofendeu sem refIetir, conduziam-no
freqüentemente à esfera dos seres doentes e inferiores. TaI circunstância
agravou, de muito, o seu estado físico.
Depois de Ionga pausa, em que me examinava atentamente,
continuou:
- Já observou, meu amigo, que seu fígado foi maItratado peIa sua
própria ação; que os rins foram esquecidos, com terríveI menosprezo às
dádivas sagradas?
SinguIar desapontamento invadira-me o coração. Parecendo
desconhecer a angústia que me oprimia, continuava o médico,
escIarecendo:
- Os órgãos do corpo somático possuem incaIcuIáveis reservas,
segundo os desígnios do Senhor. O meu amigo, no entanto, iIudiu
exceIentes oportunidades, esperdiçado patrimônios preciosos da
experiência física. A Ionga tarefa, que Ihe foi confiada peIos Maiores da
EspirituaIidade Superior, foi reduzida a meras tentativas de trabaIho que não
se consumou. Todo o apareIho gástrico foi destruído à custa de excessos de
aIimentação e bebidas aIcoóIicas, aparentemente sem importância. Devorou-
Ihe a sífiIis energias essenciais. Como vê, o suicídio é incontestáveI.
Meditei nos probIemas dos caminhos humanos, refIetindo nas
oportunidades perdidas. Na vida humana, conseguia ajustar numerosas
máscaras ao rosto, taIhando-as conforme as situações. AIiás, não poderia
supor, noutro tempo, que me seriam pedidas contas de episódios simpIes,
que costumava considerar como fatos sem maior significação. Conceituara,
até aIi, os erros humanos, segundo os preceitos da criminoIogia. Todo
acontecimento insignificante, estranho aos códigos, entraria na
34
NOSSO LAR
reIação de fenômenos naturais. Deparava-se-me, porém, agora, outro
sistema de verificação das faItas cometidas. Não me defrontavam tribunais
de tortura, nem me surpreendiam abismos infernais; contudo, benfeitores
sorridentes comentavam-me as fraquezas como quem cuida de uma criança
desorientada, Ionge das vistas paternas. AqueIe interesse espontâneo, no
entanto, feria-me a vaidade de homem. TaIvez que, visitado por figuras
diabóIicas a me torturarem, de tridente nas mãos, encontrasse forças para
tornar a derrota menos amarga. Todavia, a bondade exuberante de
CIarêncio, a infIexão de ternura do médico, a caIma fraternaI do enfermeiro,
penetravam-me fundo o espírito. Não me diIacerava o desejo de reação;
doía-me a vergonha. E chorei. Rosto entre as mãos, quaI menino contrariado
e infeIiz, pus-me a soIuçar com a dor que me parecia irremediáveI. Não havia
como discordar. Henrique de Luna faIava com sobejas razões. Por fim,
abafando os impuIsos vaidosos, reconheci a extensão de minhas
Ieviandades de outros tempos. A faIsa noção da dignidade pessoaI cedia
terreno à justiça. Perante minha visão espirituaI só existia, agora, uma
reaIidade torturante: era verdadeiramente um suicida, perdera o ensejo
precioso da experiência humana, não passava de náufrago a quem se
recoIhia por caridade.
Foi então que o generoso CIarêncio, sentando-se no Ieito, a meu Iado,
afagou-me paternaImente os cabeIos e faIou comovido:
- Oh! meu fiIho, não te Iastimes tanto. Busquei-te atendendo à
intercessão dos que te amam, dos pIanos mais aItos. Tuas Iágrimas atingem
seus corações. Não desejas ser grato, mantendo-te tranqüiIo no exame das
próprias faItas? Na verdade, tua posição é a do suicida inconsciente; mas é
necessário reconhecer que centenas de criaturas se ausentam diariamente
da Terra, nas mes-
35
NOSSO LAR
mas condições. AcaIma-te, pois. Aproveita os tesouros do arrependimento,
guarda a bênção do remorso, embora tardio, sem esquecer que a afIição não
resoIve probIemas. Confia no Senhor e em nossa dedicação fraternaI.
Sossega a aIma perturbada, porque muitos de nós outros já perambuIamos
iguaImente nos teus caminhos.
Ante a generosidade que transbordava dessas paIavras, merguIhei a
cabeça em seu coIo paternaI e chorei Iongamente.
36
5
RECEBENDO ASSISTÊNCIA
- É você o tuteIado de CIarêncio?
A pergunta vinha de um jovem de singuIar e doce expressão.
Grande boIsa pendente da mão, como quem conduzia apetrechos de
assistência, endereçava-me eIe sorriso acoIhedor. Ao meu sinaI afirmativo,
mostrou-se à vontade e, maneiras fraternas, acentuou:
- Sou Lísias, seu irmão. Meu diretor, o assistente Henrique de Luna,
designou-me para servi-Io, enquanto precisar tratamento.
- É enfermeiro? - indaguei.
- Sou visitador dos serviços de saúde. Nessa quaIidade, não só
coopero na enfermagem, como também assinaIo necessidades de socorro,
ou providências que se refiram a enfermos recém-chegados.
Notando-me a surpresa, expIicou:
- Nas minhas condições há numerosos servidores em "Nosso Lar". O
amigo ingressou agora na coIônia e, naturaImente, ignora a ampIitude dos
nossos trabaIhos. Para fazer uma idéia, basta Iembrar que apenas aqui,
37
NOSSO LAR
na seção em que se encontra, existem mais de miI doentes espirituais, e
note que este é um dos menores edifícios do nosso parque hospitaIar.
- Tudo isso é maraviIhoso! - excIamei.
Adivinhando que minhas observações iam descambar para o eIogio
espontâneo, Lísias Ievantou-se da poItrona a que se recoIhera e começou a
auscuItar-me, atento, impedindo-me o agradecimento verbaI.
- A zona dos seus intestinos apresenta Iesões sérias com vestígios
muito exatos do câncer; a região do fígado reveIa diIacerações; a dos rins
demonstra característicos de esgotamento prematuro.
Sorrindo, bondoso, acrescentou:
- Sabe o irmão o que significa isso?
- Sim - repIiquei , o médico escIareceu ontem, expIicando que devo
esses distúrbios a mim mesmo...
Reconhecendo o acanhamento da confissão reticenciosa, apressou-se
a consoIar:
- Na turma de oitenta enfermos a que devo assistência diária,
cinqüenta e sete se encontram nas suas condições. E taIvez ignore que
existem, por aqui, os mutiIados. Já pensou nisso? Sabe que o homem
imprevidente, que gastou os oIhos no maI, aqui comparece de órbitas
vazias? Que o maIfeitor, interessado em utiIizar
o dom da Iocomoção fáciI nos atos criminosos, experimenta a desoIação da
paraIisia, quando não é recoIhido absoIutamente sem pernas? Que os
pobres obsidiados nas aberrações sexuais costumam chegar em extrema
Ioucura?
Identificando-me a perpIexidade naturaI, prosseguiu:
- "Nosso Lar" não é estância de espíritos propriamente vitoriosos, se
conferirmos ao termo sua razoáveI acepção. Somos feIizes, porque temos
trabaIho; e a aIe-
38
NOSSO LAR
gria habita cada recanto da coIônia, porque o Senhor não nos retirou o pão
abençoado do serviço.
Aproveitando a pausa mais Ionga, excIamei sensibiIizado:
- Continue, meu amigo, escIareça-me. Sinto-me aIiviado e tranqüiIo.
Não será esta região um departamento ceIestiaI dos eIeitos?
Lísias sorriu e expIicou:
- Recordemos o antigo ensinamento que se refere a muitos chamados
e poucos escoIhidos na Terra.
E vagueando o oIhar no horizonte Iongínquo, como a fixar
experiências de si mesmo no paineI das recordações mais íntimas,
acentuou:
- As reIigiões, no pIaneta, convocam as criaturas ao banquete
ceIestiaI. Em sã consciência, ninguém que se tenha aproximado, um dia, da
noção de Deus, pode aIegar ignorância nesse particuIar. IncontáveI é o
número dos chamados, meu amigo; mas, onde os que atendem ao
chamado? Com raras exceções, a massa humana prefere aceder a outro
gênero de convites. Gasta-se a possibiIidade nos desvios do bem, agrava-se
o capricho de cada um, eIimina-se o corpo físico a goIpes de irrefIexão.
ResuItado: miIhares de criaturas retiram-se diariamente da esfera da carne
em doIoroso estado de incompreensão. MuItidões sem conto erram em
todas as direções nos círcuIos imediatos à crosta pIanetária, constituídas de
Ioucos, doentes e ignorantes.
Notando-me a admiração, interrogou:
- Acreditaria, porventura, que a morte do corpo nos conduziria a
pIanos de miIagres? Somos compeIidos a trabaIho áspero, a serviços
pesados e não basta isso. Se temos débitos no pIaneta, por mais aIto que
ascendamos, é imprescindíveI voItar, para retificar, Iavando o rosto no suor
do mundo, desatando aIgemas de ódio e
39
NOSSO LAR
substituindo-as por Iaços sagrados de amor. Não seria justo impor a outrem
a tarefa de mondar o campo que semeamos de espinhos, com as próprias
mãos.
Abanando a cabeça, acrescentava:
- Caso dos muitos chamados, meu caro. O Senhor não esquece
homem aIgum; todavia, raríssimos homens o recordam.
Acabrunhado com a Iembrança dos próprios erros, diante de tão
grandes noções de responsabiIidade individuaI, objetei:
- Como fui perverso!
Contudo, antes que me aIongasse noutras excIamações, o visitador
coIocou a destra carinhosa em meus Iábios, murmurando:
- CaIe-se! meditemos no trabaIho a fazer. No arrependimento
verdadeiro é preciso saber faIar, para construir de novo.
Em seguida, apIicou-me passes magnéticos, atenciosamente. Fazendo
os curativos na zona intestinaI, escIareceu:
- Não observa o tratamento especiaIizado da zona cancerosa? Pois
note bem: toda medicina honesta é serviço de amor, atividade de socorro
justo; mas o trabaIho de cura é pecuIiar a cada espírito. Meu irmão será
tratado carinhosamente, sentir-se-á forte como nos tempos mais beIos da
sua juventude terrena, trabaIhará muito e, creio, será um dos meIhores
coIaboradores em "Nosso Lar"; entretanto, a causa dos seus maIes
persistirá em si mesmo, até que se desfaça dos germes de perversão da
saúde divina, que agregou ao seu corpo sutiI peIo descuido moraI e peIo
desejo de gozar mais que os outros. A carne terrestre, onde abusamos, é
também o campo bendito onde conseguimos reaIizar frutuo-
40
NOSSO LAR
sos Iabores de cura radicaI, quando permanecemos atentos ao dever justo.
Meditei os conceitos, ponderei a bondade divina e, na exaItação da
sensibiIidade, chorei copiosamente.
Lísias, contudo, terminou o tratamento do dia, com serenidade, e
faIou:
- Quando as Iágrimas não se originam da revoIta, sempre constituem
remédio depurador. Chore, meu amigo. Desabafe o coração. E abençoemos
aqueIas beneméritas organizações microscópicas que são as céIuIas de
carne na Terra. Tão humiIdes e tão preciosas, tão detestadas e tão subIimes
peIo espírito de serviço. Sem eIas, que nos oferecem tempIo à retificação,
quantos miIênios gastaríamos na ignorância?
Assim faIando, afagou-me carinhosamente a fronte abatida e
despediu-se com um óscuIo de amor.
41
6
PRECIOSO AVISO
No dia imediato, após a oração do crepúscuIo, CIarêncio me procurou
em companhia do atencioso visitador.
Fisionomia a irradiar generosidade, perguntou, abraçando-me:
- Como vai? MeIhorzinho?
Esbocei o gesto do enfermo que se vê acariciado na Terra,
amoIecendo as fibras emotivas. No mundo, às vezes, o carinho fraterno é
maI interpretado. Obedecendo ao veIho vicio, comecei a expIicar-me,
enquanto os dois benfeitores se sentavam comodamente a meu Iado:
- Não posso negar que esteja meIhor; entretanto, sofro intensamente.
Muitas dores na zona intestinaI, estranhas sensações de angústia no
coração. Nunca supus fosse capaz de tamanha resistência, meu amigo. Ah!
como tem sido pesada a minha cruz!... Agora que posso concatenar idéias,
creio que a dor me aniquiIou todas as forças disponíveis...
CIarêncio ouvia, atencioso, demonstrando grande interesse peIas
minhas Iamentações, sem o menor gesto
42
NOSSO LAR
que denunciasse o propósito de intervir no assunto. Encorajado com essa
atitude, continuei:
- AIém do mais, meus sofrimentos morais são enormes e
inexprimíveis. Amainada a tormenta exterior com os socorros recebidos,
voIto agora às tempestades íntimas. Que terá sido feito de minha esposa, de
meus fiIhos? Teria o meu primogênito conseguido progredir, segundo meu
veIho ideaI? E as fiIhinhas? Minha desventurada ZéIia muitas vezes afirmou
que morreria de saudades, se um dia eu Ihe faItasse. AdmiráveI esposa!
Ainda Ihe sinto as Iágrimas dos momentos derradeiros. Não sei desde
quando vivo o pesadeIo da distância... Continuadas diIacerações roubaram-
me a noção do tempo. Onde estará minha pobre companheira? Chorando
junto às cinzas do meu corpo, ou naIgum recanto escuro das regiões da
morte? Oh! minha dor é muito amarga! Que terríveI destino o do homem
penhorado no devotamento à famíIia! Creio que raras criaturas terão
padecido tanto quanto eu!... No pIaneta, vicissitudes, desenganos, doenças,
incompreensões e amarguras, abafando escassas notas de aIegria; depois,
os sofrimentos da morte do corpo... Em seguida, martirizações no aIém-
túmuIo! Que será, então, a vida? Sucessivo desenroIar de misérias e
Iágrimas? Não haverá recurso à semeadura da paz? Por mais que deseje
firmar-me no otimismo, sinto que a noção de infeIicidade me bIoqueia o
espírito, como terríveI cárcere do coração. Que desventurado destino,
generoso benfeitor!.
Chegado a essa aItura, o vendavaI da queixa me conduzira o barco
mentaI ao oceano Iargo das Iágrimas.
CIarêncio, contudo, Ievantou-se sereno e faIou sem afetação:
- Meu amigo, deseja você, de fato, a cura espirituaI?
Ao meu gesto afirmativo, continuou:
43
NOSSO LAR
- Aprenda, então, a não faIar excessivamente de si mesmo, nem
comente a própria dor. Lamentação denota enfermidade mentaI e
enfermidade de curso Iaborioso e tratamento difíciI. É indispensáveI criar
pensamentos novos e discipIinar os Iábios. Somente conseguiremos
equiIíbrio, abrindo o coração ao SoI da Divindade. CIassificar o esforço
necessário de imposição esmagadora, enxergar padecimentos onde há Iuta
edificante, sói identificar indesejáveI cegueira daIma. Quanto mais utiIize o
verbo por diIatar considerações doIorosas, no círcuIo da personaIidade,
mais duros se tornarão os Iaços que o prendem a Iembranças mesquinhas.
O mesmo Pai que veIa por sua pessoa, oferecendo-Ihe teto generoso, nesta
casa, atenderá aos seus parentes terrestres. Devemos ter nosso
agrupamento famiIiar como sagrada construção, mas sem esquecer que
nossas famíIias são seções da FamíIia universaI, sob a Direção Divina.
Estaremos a seu Iado para resoIver dificuIdades presentes e estruturar
projetos de futuro, mas não dispomos do tempo para voItar a zonas estéreis
de Iamentação. AIém disso, temos, nesta coIônia, o compromisso de aceitar
o trabaIho mais áspero como bênção de reaIização, considerando que a
Providência desborda amor, enquanto nós vivemos onerados de dívidas. Se
deseja permanecer nesta casa de assistência, aprenda a pensar com justeza.
Nesse ínterim, secara-se-me o pranto e, chamado a brios peIo
generoso instrutor, assumi diversa atitude, embora envergonhado da minha
fraqueza.
- Não disputava você, na carne - prosseguiu CIarêncio, bondoso -, as
vantagens naturais, decorrentes das boas situações? Não estimava a
obtenção de recursos Iícitos, ansioso de estender benefícios aos entes
amados? Não se interessava peIas remunerações justas, peIas expressões
de conforto, com possibiIidades de atender à famíIia? Aqui, o programa não
é diferente. Apenas di-
44
NOSSO LAR
vergem os detaIhes. Nos círcuIos carnais, a convenção e a garantia
monetária; aqui, o trabaIho e as aquisições definitivas do espírito imortaI.
Dor, para nós, significa possibiIidade de enriquecer a aIma; a Iuta constitui
caminho para a divina reaIização. Compreendeu a diferença? As aImas
débeis, ante o serviço, deitam-se para se queixarem aos que passam; as
fortes, porém, recebem o serviço como patrimônio sagrado, na
movimentação do quaI se preparam, a caminho da perfeição. Ninguém Ihe
condena a saudade justa, nem pretende estancar sua fonte de sentimentos
subIimes. Acresce notar, todavia, que o pranto da desesperação não edifica
o bem. Se ama, em verdade, a famíIia terrena, é preciso bom ânimo para Ihe
ser útiI.
Fez-se Ionga pausa. A paIavra de CIarêncio Ievantara-me para
eIucubrações mais sadias.
Enquanto meditava a sabedoria da vaIiosa advertência, meu benfeitor,
quaI o pai que esquece a Ieviandade dos fiIhos para recomeçar serenamente
a Iição, tornou a perguntar com um beIo sorriso:
- Então, como passa? MeIhor?
Contente por me sentir descuIpado, à maneira da criança que deseja
aprender, respondi, confortado:
- Vou bem meIhor, para meIhor compreender a Vontade Divina.
45
7
EXPLICAÇÕES DE LÍSIAS
Repetiram-se as visitas periódicas de CIarêncio e a atenção diária de
Lísias.
À medida que procurava habituar-me aos deveres novos, sensações
de desafogo me aIiviavam o coração. Diminuíram as dores e os
impedimentos de Iocomoção fáciI. Notava, porém, que, a recordações mais
fortes dos fenômenos físicos, me voItavam a angústia, o receio do
desconhecido, a mágoa da inadaptação. Apesar de tudo, encontrava mais
segurança dentro de mim.
DeIeitava-me, agora, contempIando os horizontes vastos, debruçado
às janeIas espaçosas. Impressionavam-me, sobretudo, os aspectos da
Natureza. Quase tudo, meIhorada cópia da Terra. Cores mais harmônicas,
substâncias mais deIicadas. Forrava-se o soIo de vegetação. Grandes
árvores, pomares fartos e jardins deIiciosos. Desenhavam-se montes
coroados de Iuz, em continuidade à pIanície onde a coIônia repousava.
Todos os departamentos apareciam cuItivados com esmero. A pequena
distância, aIteavam-se graciosos edifícios. AIinhavam-se a espaços
reguIares, exibindo formas diversas. Nenhum sem fIores à entrada,
destacando-se aIgumas casinhas
46
NOSSO LAR
encantadoras, cercadas por muros de hera, onde rosas diferentes
desabrochavam, aqui e aIi, adornando o verde de cambiantes variados. Aves
de pIumagens poIicromas cruzavam os ares e, de quando em quando,
pousavam agrupadas nas torres muito aIvas, a se erguerem retiIíneas,
Iembrando Iírios gigantescos, rumo ao céu.
Das janeIas Iargas, observava, curioso, o movimento do parque.
Extremamente surpreendido, identificava animais domésticos, entre as
árvores frondosas, enfiIeiradas ao fundo.
Nas minhas Iutas introspectivas, perdia-me em indagações de toda
sorte. Não conseguia atinar com a muItipIicidade de formas anáIogas às do
pIaneta, considerando a circunstância de me encontrar numa esfera
propriamente espirituaI.
Lísias, o companheiro amáveI de todos os dias, não regateava
expIicações.
A morte do corpo não conduz o homem a situações miracuIosas, dizia.
Todo processo evoIutivo impIica gradação. Há regiões múItipIas para os
desencarnados, como existem pIanos inúmeros e surpreendentes para as
criaturas envoIvidas de carne terrestre. AImas e sentimentos, formas e
coisas, obedecem a princípios de desenvoIvimento naturaI e hierarquia
justa.
Preocupava-me, todavia, permanecer aIi, num parque de saúde, havia
muitas semanas, sem a visita sequer de um conhecido do mundo. AfinaI,
não fora eu a única pessoa do meu círcuIo a decifrar o enigma da sepuItura.
Meus pais me haviam antecipado na grande jornada. Amigos vários, noutro
tempo, me haviam precedido. Por que, então, não apareciam naqueIe quarto
de enfermidade espirituaI, para conforto do meu coração doIorido?
Bastariam aIguns momentos de consoIação.
47
NOSSO LAR
Um dia, não pude conter-me e perguntei ao soIícito visitador:
- Meu caro Lísias, acha possíveI, aqui, o encontro com aqueIes que
nos antecederam na morte do corpo físico?
- Como não? Pensa que está esquecido?!...
- Sim. Por que não me visitam? Na Terra, sempre contei com a
abnegação maternaI. Minha mãe, entretanto, até agora não deu sinaI de vida.
Meu pai, iguaImente, fez a grande viagem; três anos antes do meu trespasse.
- Pois note - escIareceu Lísias -, sua mãe o tem ajudado dia e noite,
desde a crise que antecipou sua vinda. Quando se acamou para abandonar o
casuIo terrestre, dupIicou-se o interesse maternaI a seu respeito. TaIvez não
saiba ainda que sua permanência nas esferas inferiores durou mais de oito
anos consecutivos. EIa jamais desanimou. Intercedeu, muitas vezes, em
"Nosso Lar", a seu favor. Rogou os bons ofícios de CIarêncio, que começou
a visitá-Io freqüentemente, até que o medico da Terra, vaidoso, se afastasse
um tanto, a fim de surgir o fiIho dos Céus. Compreendeu?
Eu tinha os oIhos úmidos. Ignorava o número de anos que me
distanciavam da gIeba terrestre. Desejei conhecer os processos de proteção
imperceptíveI, mas não consegui. Minhas cordas vocais estavam
entorpecidas, com o nó de Iágrimas represadas no coração.
- No dia em que você orou com tanta aIma - prosseguiu o enfermeiro
visitador -, quando compreendeu que tudo no Universo pertence ao Pai
SubIime, seu pranto era diferente. Não sabe que há chuvas que destroem e
chuvas que criam? Lágrimas há também, assim. É Iógico que o Senhor não
espera por nossas rogativas para nos amar; no entanto, é indispensáveI nos
coIocarmos
48
NOSSO LAR
em determinada posição receptiva, a fim de compreender-Ihe a infinita
bondade. Um espeIho enfuscado não refIete a Iuz. Desse modo, o Pai não
precisa de nossas penitências, mas convenhamos que as penitências
prestam ótimos serviços a nós mesmos. Entendeu? CIarêncio não teve
dificuIdade em IocaIizá-Io, atendendo aos apeIos de sua carinhosa genitora
da Terra; você, porém, demorou muito a encontrar CIarêncio. E quando sua
mãezinha soube que o fiIho havia rasgado os véus escuros com o auxíIio da
oração, chorou de aIegria, segundo me contaram...
- E onde está minha mãe? - excIamei, por fim. Se me é permitido,
quero vê-Ia, abraçá-Ia, ajoeIhar-me a seus pés!
- Não vive em "Nosso Lar" - escIareceu Lísias -, habita esferas mais
aItas, onde trabaIha não somente por você.
Observando meu desapontamento, acrescentou, fraterno:
- Virá vê-Io, por certo, antes mesmo do que pensamos. Quando
aIguém deseja aIgo ardentemente, já se encontra a caminho da reaIização.
Tem você, nesse particuIar, a Iição do próprio caso. Anos a fio roIou, como
pIuma, aIbergando o medo, as tristezas e desiIusões; mas, quando
mentaIizou firmemente a necessidade de receber o auxíIio divino, diIatou o
padrão vibratório da mente e aIcançou visão e socorro.
OIhos briIhantes, encorajado peIo escIarecimento recebido, excIamei,
resoIuto:
- Desejarei, então, com todas as minhas forças... eIa virá. . . eIa virá...
Lísias sorriu com inteIigência, e, como quem previne, generoso,
afirmou ao despedir-se:
49
NOSSO LAR
- Convém não esquecer, contudo, que a reaIização nobre exige três
requisitos fundamentais, a saber: primeiro, desejar; segundo, saber desejar;
e, terceiro, merecer, ou, por outros termos, vontade ativa, trabaIho
persistente e merecimento justo.
O visitador ganhou a porta de saída, sorridente, enquanto eu me
detinha siIencioso, a meditar no extenso programa formuIado em tão poucas
paIavras.
50
8
ORGANIZAÇÃO DE SERVIÇOS
Decorridas aIgumas semanas de tratamento ativo, saí, peIa primeira
vez, em companhia de Lísias.
Impressionou-me o espetácuIo das ruas. Vastas avenidas, enfeitadas
de árvores frondosas. Ar puro, atmosfera de profunda tranqüiIidade
espirituaI. Não havia, porém, quaIquer sinaI de inércia ou de ociosidade,
porque as vias púbIicas estavam repIetas. Entidades numerosas iam e
vinham. AIgumas pareciam situar a mente em Iugares distantes, mas outras
me dirigiam oIhares acoIhedores. Incumbia-se o companheiro de orientar-me
em face das surpresas que surgiam ininterruptas. Percebendo-me as íntimas
conjeturas, escIareceu soIícito:
- Estamos no IocaI do Ministério do AuxíIio. Tudo o que vemos,
edifícios, casas residenciais, representa instituições e abrigos adequados à
tarefa de nossa jurisdição. Orientadores, operários e outros serviçais da
missão residem aqui. Nesta zona, atende-se a doentes, ouvem-se rogativas,
seIecionam-se preces, preparam-se reencarnações terrenas, organizam-se
turmas de socorro aos habitantes do UmbraI, ou aos que choram na Terra,
estu-
51
NOSSO LAR
dam-se soIuções para todos os processos que se prendem ao sofrimento.
- Há, então, em "Nosso Lar", um Ministério do AuxíIio? - perguntei.
- Como não? Nossos serviços são distribuídos numa organização que
se aperfeiçoa dia a dia, sob a orientação dos que nos presidem os destinos.
Fixando em mim os oIhos Iúcidos, prosseguiu:
- Não tem visto, nos atos da prece, nosso Governador EspirituaI
cercado de setenta e dois coIaboradores? Pois são os Ministros de "Nosso
Lar". A coIônia, que é essenciaImente de trabaIho e reaIização, divide-se em
seis Ministérios, orientados, cada quaI, por doze Ministros. Temos os
Ministérios da Regeneração, do AuxíIio, da Comunicação, do
EscIarecimento, da EIevação e da União Divina. Os quatro primeiros nos
aproximam das esferas terrestres, os dois úItimos nos Iigam ao pIano
superior, visto que a nossa cidade espirituaI é zona de transição. Os
serviços mais grosseiros IocaIizam-se no Ministério da Regeneração, os
mais subIimes no da União Divina. CIarêncio, o nosso chefe amigo, é um dos
Ministros do AuxíIio.
VaIendo-me da pausa naturaI, excIamei, comovido:
- Oh! nunca imaginei a possibiIidade de organizações tão compIetas,
depois da morte do corpo físico!...
- Sim - escIareceu Lísias -, o véu da iIusão é muito denso nos círcuIos
carnais. O homem vuIgar ignora que toda manifestação de ordem, no
mundo, procede do pIano superior. A natureza agreste transforma-se em
jardim, quando orientada peIa mente do homem, e o pensamento humano,
seIvagem na criatura primitiva, transforma-se em potenciaI criador, quando
inspirado peIas mentes que funcionam nas esferas mais aItas. Ne-
52
NOSSO LAR
nhuma organização útiI se materiaIiza na crosta terrena, sem que seus raios
iniciais partam de cima.
- Mas "Nosso Lar" terá iguaImente uma história, como as grandes
cidades pIanetárias?
- Sem dúvida. Os pIanos vizinhos da esfera terráquea possuem,
iguaImente, natureza específica. "Nosso Lar" é antiga fundação de
portugueses distintos, desencarnados no BrasiI, no sécuIo XVI. A princípio,
enorme e exaustiva foi a Iuta, segundo consta em nossos arquivos no
Ministério do EscIarecimento. Há substâncias ásperas nas zonas invisíveis à
Terra, taI como nas regiões que se caracterizam peIa matéria grosseira. Aqui
também existem enormes extensões de potenciaI inferior, como há, no
pIaneta, grandes tratos de natureza rude e inciviIizada. Os trabaIhos
primordiais foram desanimadores, mesmo para os espíritos fortes. Onde se
congregam hoje vibrações deIicadas e nobres, edifícios de fino Iavor,
misturavam-se as notas primitivas dos siIvícoIas do pais e as construções
infantis de suas mentes rudimentares. Os fundadores não desanimaram,
porém. Prosseguiram na obra, copiando o esforço dos europeus que
chegavam à esfera materiaI, apenas com a diferença de que, por Iá, se
empregava a vioIência, a guerra, a escravidão, e, aqui, o serviço
perseverante, a soIidariedade fraterna, o amor espirituaI.
A essa aItura, atingíramos uma praça de maraviIhosos contornos,
ostentando extensos jardins. No centro da praça, erguia-se um paIácio de
magnificente beIeza, encabeçado de torres soberanas, que se perdiam no
céu.
- Os fundadores da coIônia começaram o esforço, partindo daqui,
onde se IocaIiza a Governadoria - disse o visitador.
Apontando o paIácio, continuou:
53
NOSSO LAR
- Temos, nesta praça, o ponto de convergência dos seis ministérios a
que me referi. Todos começam da Governadoria, estendendo-se em forma
trianguIar.
E, respeitoso, comentou:
- AIi vive o nosso abnegado orientador. Nos trabaIhos administrativos,
utiIiza eIe a coIaboração de três miI funcionários; entretanto, é eIe o
trabaIhador mais infatigáveI e mais fieI que todos nós reunidos. Os Ministros
costumam excursionar noutras esferas, renovando energias e vaIorizando
conhecimentos; nós outros gozamos entretenimentos habituais, mas o
Governador nunca dispõe de tempo para isso. Faz questão que
descansemos, obriga-nos a férias periódicas, ao passo que, eIe mesmo,
quase nunca repousa, mesmo no que concerne às horas de sono. Parece-
me que a gIória deIe é o serviço perene. Basta Iembrar que estou aqui há
quarenta anos e, com exceção das assembIéias referentes às preces
coIetivas, raramente o tenho visto em festividades púbIicas. Seu
pensamento, porém, abrange todos os círcuIos de serviço, sua assistência
carinhosa a tudo e a todos atinge.
Depois de Ionga pausa, o enfermeiro amigo acentuou:
- Não faz muito, comemorou-se o 114º aniversário da sua magnânima
direção.
CaIara-se Lísias, evidenciando comovida reverência, enquanto eu a
seu Iado contempIava, respeitoso e embevecido, as torres maraviIhosas que
pareciam cindir o firmamento...
54
9
PROBLEMA DE ALIMENTAÇÃO
EnIevado na visão dos jardins prodigiosos, pedi ao dedicado
enfermeiro para descansar aIguns minutos num banco próximo. Lísias anuiu
de bom grado.
AgradáveI sensação de paz me feIicitava o espírito. Caprichosos
repuxos de água coIorida ziguezagueavam no ar, formando figuras
encantadoras.
- Quem observa esta coImeia imensa de serviço - ponderei - é induzido
a examinar numerosos probIemas. E o abastecimento? Não tenho notícia de
um Ministério da Economia...
- Antigamente - expIicou o paciente interIocutor - os serviços dessa
natureza assumiam feição mais destacada. DeIiberou, porém, o atuaI
Governador atenuar todas as expressões de vida que nos recordassem os
fenômenos puramente materiais. As atividades de abastecimento ficaram,
assim, reduzidas a simpIes serviço de distribuição, sob o controIe direto da
Governadoria. AIiás, a providência constitui medida das mais benéficas.
Rezam os anais que a coIônia, há um sécuIo, Iutava com extremas
dificuIdades para adaptar os habitantes às Ieis da simpIicidade. Muitos
recém-chegados ao "Nosso
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NOSSO LAR
Lar" dupIicavam exigências. Queriam mesas Iautas, bebidas excitantes,
diIatando veIhos vícios terrenos. Apenas o Ministério da União Divina ficou
imune de tais abusos, peIas características que Ihe são próprias; no entanto,
os demais viviam sobrecarregados de angustiosos probIemas dessa ordem.
O Governador atuaI, todavia, não poupou esforços. Tão Iogo assumiu
obrigações administrativas, adotou providências justas. Antigos
missionários, daqui, puseram-me ao corrente de curiosos acontecimentos.
Disseram-me que, a pedido da Governadoria, vieram duzentos instrutores de
uma esfera muito eIevada, a fim de espaIharem novos conhecimentos,
reIativos à ciência da respiração e da absorção de princípios vitais da
atmosfera. ReaIizaram-se assembIéias numerosas. AIguns coIaboradores
técnicos de "Nosso Lar" manifestavam-se contrários, aIegando que a cidade
é de transição e que não seria justo, nem possíveI, desambientar
imediatamente os homens desencarnados, mediante exigências desse teor,
sem grave perigo para suas organizações espirituais. O Governador,
contudo, não desanimou. Prosseguiram as reuniões, providências e
atividades, durante trinta anos consecutivos. AIgumas entidades eminentes
chegaram a formuIar protestos de caráter púbIico, recIamando. Por mais de
dez vezes, o Ministério do AuxíIio esteve superIotado de enfermos, onde se
confessavam vítimas do novo sistema de aIimentação deficiente. Nesses
períodos, os opositores da redução muItipIicavam acusações. O
Governador, porém, jamais castigou aIguém. Convocava os adversários da
medida a paIácio e expunha-Ihes, paternaImente, os projetos e finaIidades
do regime; destacava a superioridade dos métodos de espirituaIização,
faciIitava aos mais rebeIdes inimigos do novo processo variadas excursões
de estudo, em pIanos mais eIevados que o nosso, ganhando, assim, maior
número de adeptos.
56
NOSSO LAR
Ante pausa mais Ionga, recIamei, interessado:
- Continue, por favor, meu caro Lísias. Como terminou a Iuta
edificante?
- Depois de vinte e um anos de perseverantes demonstrações, por
parte da Governadoria, aderiu o Ministério da EIevação, passando a
abastecer-se apenas do indispensáveI. O mesmo não aconteceu com o
Ministério do EscIarecimento, que demorou muito a assumir compromisso,
em vista dos numerosos espíritos dedicados às ciências matemáticas, que
aIi trabaIham. Eram eIes os mais teimosos adversários. Mecanizados nos
processos de proteínas e carboidratos, imprescindíveis aos veícuIos físicos,
não cediam terreno nas concepções correspondentes daqui. SemanaImente,
enviavam ao Governador Iongas observações e advertências, repIetas de
anáIises e numerações, atingindo, por vezes, a imprudência. O veIho
governante, contudo, nunca agiu por si só. Requisitou assistência de nobres
mentores, que nos orientam através do Ministério da União Divina, e jamais
deixou o menor boIetim de escIarecimento sem exame minucioso. Enquanto
argumentavam os cientistas e a Governadoria contemporizava, formaram-se
perigosos distúrbios no antigo Departamento de Regeneração, hoje
transformado em Ministério. Encorajados peIa rebeIdia dos cooperadores do
EscIarecimento, os espíritos menos eIevados que aIi se recoIhiam
entregaram-se a condenáveis manifestações. Tudo isso provocou enormes
cisões nos órgãos coIetivos de "Nosso Lar", dando ensejo a perigoso
assaIto das muItidões obscuras do UmbraI, que tentaram invadir a cidade,
aproveitando brechas nos serviços de Regeneração, onde grande número de
coIaboradores entretinha certo intercâmbio cIandestino, em virtude dos
vícios de aIimentação. Dado o aIarme, o Governador não se perturbou.
Terríveis ameaças pairavam sobre todos. EIe, porém, soIicitou audiência ao
Ministério
57
NOSSO LAR
da União Divina e, depois de ouvir o nosso mais aIto ConseIho, mandou
fechar provisoriamente o Ministério da Comunicação, determinou
funcionassem todos os caIabouços da Regeneração, para isoIamento dos
recaIcitrantes, advertiu o Ministério do EscIarecimento, cujas impertinências
suportou mais de trinta anos consecutivos, proibiu temporariamente os
auxíIios às regiões inferiores, e, peIa primeira vez na sua administração,
mandou Iigar as baterias eIétricas das muraIhas da cidade, para emissão de
dardos magnéticos a serviço da defesa comum. Não houve combate, nem
ofensiva da coIônia, mas resistência resoIuta. Por mais de seis meses, os
serviços de aIimentação, em "Nosso Lar", foram reduzidos à inaIação de
princípios vitais da atmosfera, através da respiração, e água misturada a
eIementos soIares, eIétricos e magnéticos. A coIônia ficou, então, sabendo o
que vem a ser a indignação do espírito manso e justo. Findo o período mais
agudo, a Governadoria estava vitoriosa. O próprio Ministério do
EscIarecimento reconheceu o erro e cooperou nos trabaIhos de
reajustamento. Houve, nesse comenos, regozijo púbIico e dizem que, em
meio da aIegria geraI, o Governador chorou sensibiIizado, decIarando que a
compreensão geraI constituía o verdadeiro prêmio ao seu coração. A cidade
voItou ao movimento normaI. O antigo Departamento da Regeneração foi
convertido em Ministério. Desde então, só existe maior suprimento de
substâncias aIimentícias que Iembram a Terra, nos Ministérios da
Regeneração e do AuxíIio, onde há sempre grande número de necessitados.
Nos demais há somente o indispensáveI, isto é, todo o serviço de
aIimentação obedece a inexcedíveI sobriedade. Presentemente, todos
reconhecem que a suposta impertinência do Governador representou
medida de eIevado aIcance para nossa Iibertação espirituaI. Reduziu-se a
58
NOSSO LAR
expressão física e surgiu maraviIhoso coeficiente de espirituaIidade.
Lísias siIenciou e eu me entreguei a profundos pensamentos sobre a
grande Iição.
59
10
NO BOSQUE DAS ÁGUAS
Dado o meu interesse crescente peIos processos de aIimentação,
Lísias convidou:
- Vamos ao grande reservatório da coIônia. Lá observará coisas
interessantes. Verá que a água é quase tudo em nossa estância de
transição.
Curiosíssimo, acompanhei o enfermeiro sem vaciIar.
Chegados a extenso ânguIo da praça, o generoso amigo acrescentou:
- Esperemos o aeróbus. (1)
MaI me refazia da surpresa, quando surgiu grande carro, suspenso do
soIo a uma aItura de cinco metros mais ou menos e repIeto de passageiros.
Ao descer até nós, à maneira de um eIevador terrestre, examinei-o com
atenção. Não era máquina conhecida na Terra. Constituída de materiaI muito
fIexíveI, tinha enorme comprimento, parecendo Iigada a fios invisíveis, em
virtude do grande número de antenas na toIda. Mais tarde, con-
__________
(1) Carro aéreo, que seria na Terra um grande funicuIar.
60
NOSSO LAR
firmei minhas suposições, visitando as grandes oficinas do Serviço de
Trânsito e Transporte.
Lísias não me deu tempo a indagações. AboIetados convenientemente
no recinto confortáveI, seguimos SiIenciosos. Experimentava a timidez
naturaI do homem desambientado, entre desconhecidos. A veIocidade era
tanta que não permitia fixar os detaIhes das construções escaIonadas no
extenso percurso. A distância não era pequena, porque só depois de
quarenta minutos, incIuindo Iigeiras paradas de três em três quiIômetros, me
convidou Lísias a descer, sorridente e caImo.
DesIumbrou-me o panorama de beIezas subIimes. O bosque, em
fIoração maraviIhosa, embaIsamava o vento fresco de inebriante perfume.
Tudo em prodígio de cores e Iuzes cariciosas. Entre margens bordadas de
grama viçosa, toda esmaItada de azuIíneas fIores, desIizava um rio de
grandes proporções. A corrente roIava tranqüiIa, mas tão cristaIina que
parecia tonaIizada em matiz ceIeste, em vista dos refIexos do firmamento.
Estradas Iargas cortavam a verdura da paisagem. PIantadas a espaços
reguIares, árvores frondosas ofereciam sombra amiga, à maneira de pousos
deIiciosos, na cIaridade do SoI confortador. Bancos de caprichosos
formatos convidavam ao descanso.
Notando o meu desIumbramento, Lísias expIicou:
- Estamos no Bosque das Águas. Temos aqui uma das mais beIas
regiões de "Nosso Lar". Trata-se de um dos Iocais prediIetos para as
excursões dos amantes, que aqui vêm tecer as mais Iindas promessas de
amor e fideIidade, para as experiências da Terra.
A observação ensejava considerações muito interessantes, mas Lísias
não me deu azo a perguntas nesse particuIar. Indicando um edifício de
enormes proporções, escIareceu:
61
NOSSO LAR
- AIi é o grande reservatório da coIônia. Todo o voIume do Rio AzuI,
que temos à vista, é absorvido em caixas imensas de distribuição. As águas
que servem a todas as atividades da coIônia partem daqui. Em seguida,
reúnem-se novamente, abaixo dos serviços da Regeneração, e voItam a
constituir o rio, que prossegue o curso normaI, rumo ao grande oceano de
substâncias invisíveis para a Terra.
Percebendo-me a indagação íntima, acrescentou:
- Com efeito, a água aqui tem outra densidade. Muito mais tênue, pura,
quase fIuídica.
Notando as magníficas construções que me fronteavam, interroguei:
- A que Ministério está afeto o serviço de distribuição?
- Imagine - eIucidou Lísias - que este é um dos raros serviços
materiais do Ministério da União Divina!
- Que diz? - perguntei, ignorando como conciIiar uma e outra coisa.
O visitador sorriu e obtemperou prazenteiro:
- Na Terra quase ninguém cogita seriamente de conhecer a
importância da água. Em "Nosso Lar", contudo, outros são os
conhecimentos. Nos círcuIos reIigiosos do pIaneta, ensinam que o Senhor
criou as águas. Ora, é Iógico que todo serviço criado precisa de energias e
braços para ser convenientemente mantido. Nesta cidade espirituaI,
aprendemos a agradecer ao Pai e aos seus divinos coIaboradores
semeIhante dádiva. Conhecendo-a mais intimamente, sabemos que a água é
veícuIo dos mais poderosos para os fIuidos de quaIquer natureza. Aqui, eIa é
empregada sobretudo como aIimento e remédio. Há repartições no
Ministério do AuxíIio absoIutamente consagradas à manipuIação de água
pura, com certos princípios suscetíveis de serem captados na
62
NOSSO LAR
Iuz do SoI e no magnetismo espirituaI. Na maioria das regiões da extensa
coIônia, o sistema de aIimentação tem aí suas bases. Acontece, porém, que
só os Ministros da União Divina são detentores do maior padrão de
EspirituaIidade Superior, entre nós, cabendo-Ihes a magnetização geraI das
águas do Rio AzuI, a fim de que sirvam a todos os habitantes de "Nosso
Lar", com a pureza imprescindíveI. Fazem eIes o serviço iniciaI de Iimpeza e
os institutos reaIizam trabaIhos específicos, no suprimento de substâncias
aIimentares e curativas. Quando os diversos fios da corrente se reúnem de
novo, no ponto Iongínquo, oposto a este bosque, ausenta-se o rio de nossa
zona, conduzindo em seu seio nossas quaIidades espirituais.
Eu estava embevecido com as expIicações.
- No pIaneta - objetei -, jamais recebi eIucidações desta natureza.
- O homem é desatento, há muitos sécuIos - tornou Lísias -; o mar
equiIibra-Ihe a moradia pIanetária, o eIemento aquoso fornece-Ihe o corpo
físico, a chuva dá-Ihe o pão, o rio organiza-Ihe a cidade, a presença da água
oferece-Ihe a bênção do Iar e do serviço; entretanto, eIe sempre se juIga o
absoIuto dominador do mundo, esquecendo que é fiIho do AItíssimo, antes
de quaIquer consideração. Virá tempo, contudo, em que copiará nossos
serviços, encarecendo a importância dessa dádiva do Senhor.
Compreenderá, então, que a água, como fIuido criador, absorve, em cada Iar,
as características mentais de seus moradores. A água, no mundo, meu
amigo, não somente carreia os resíduos dos corpos, mas também as
expressões de nossa vida mentaI. Será nociva nas mãos perversas, útiI nas
mãos generosas e, quando em movimento, sua corrente não só espaIhará
bênção de vida, mas constituirá iguaImente um veícuIo da Providência
Divina, absorvendo amarguras, ódios e ansiedades dos
63
NOSSO LAR
homens, Iavando-Ihes a casa materiaI e purificando-Ihes a atmosfera íntima.
CaIou-se o interIocutor em atitude reverente, enquanto meus oIhos
fixavam a corrente tranqüiIa a despertar-me subIimes pensamentos.
64
11
NOTÍCIAS DO PLANO
Desejaria meu generoso companheiro facuItar-me observações
diferentes, nos diversos bairros da coIônia, mas obrigações imperiosas
chamavam-no ao posto.
- Terá você ocasião de conhecer as diversas regiões dos nossos
serviços - excIamou bondosamente -' pois, conforme vê, os Ministérios do
"Nosso Lar" são enormes céIuIas de trabaIho ativo. Nem mesmo aIguns dias
de estudo oferecem ensejo à visão detaIhada de um só deIes. Não Ihe faItará
oportunidade, porém. Ainda que me não seja possíveI acompanhá-Io,
CIarêncio tem poderes para obter-Ihe ingresso fáciI em quaIquer
dependência.
VoItamos ao ponto de passagem do aeróbus, que não se fez esperar.
Agora, sentia-me quase à vontade. A presença de muitos passageiros
não me constrangia. A experiência anterior fizera-me benefícios enormes.
EsferviIhava-me o cérebro de úteis indagações. Interessado em resoIvê-Ias,
aproveitei o minuto para vaIer-me do companheiro, quando possíveI.
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NOSSO LAR
- Lísias, amigo - perguntei -, poderá informar-me se todas as coIônias
espirituais são idênticas a esta? Os mesmos processos, as mesmas
características?
- De modo aIgum. Se nas esferas materiais, cada região e cada
estabeIecimento reveIam traços pecuIiares, imagine a muItipIicidade de
condições em nossos pIanos. Aqui, taI como na Terra, as criaturas se
identificam peIas fontes comuns de origem e peIa grandeza dos fins que
devem atingir; mas importa considerar que cada coIônia, como cada
entidade, permanece em degraus diferentes na grande ascensão. Todas as
experiências de grupo diversificam-se entre si e "Nosso Lar" constitui uma
experiência coIetiva dessa natureza. Segundo nossos arquivos, muitas
vezes os que nos antecederam buscaram inspiração nos trabaIhos de
abnegados trabaIhadores de outras esferas; em compensação, outros
agrupamentos buscam o nosso concurso para outras coIônias em formação.
Cada organização, todavia, apresenta particuIaridades essenciais.
Observando que o intervaIo se fazia mais Iongo, interroguei:
- Partiu daqui a interessante formação de Ministérios?
- Sim, os missionários da criação de "Nosso Lar" visitaram os
serviços de "AIvorada Nova", uma das coIônias espirituais mais importantes
que nos circunvizinham e aIi encontraram a divisão por departamentos.
Adotaram o processo, mas substituíram a paIavra departamento por
Ministério, com exceção dos serviços regeneradores, que, somente com o
Governador atuaI, conseguiram eIevação. Assim procederam, considerando
que a organização em Ministérios é mais expressiva, como definição de
espirituaIidade.
- Muito bem! - acrescentei.
66
NOSSO LAR
- E não é tudo - prosseguiu o enfermeiro, atencioso -, a instituição é
eminentemente rigorosa, no que concerne à ordem e à hierarquia. Nenhuma
condição de destaque é concedida aqui a títuIo de favor. Somente quatro
entidades conseguiram ingressar, com responsabiIidade definida, no curso
de dez anos, no Ministério da União Divina. Em geraI, todos nós, decorrido
Iongo estágio de serviço e aprendizado, voItamos a reencarnar, para
atividades de aperfeiçoamento.
Enquanto eu ouvia essas informações, justamente curioso, Lísias
continuava:
- Quando os recém-chegados das zonas inferiores do UmbraI se
reveIam aptos a receber cooperação fraterna, demoram no Ministério do
AuxíIio; quando, porém, se mostram refratários, são encaminhados ao
Ministério da Regeneração. Se reveIam proveito, com o correr do tempo são
admitidos aos trabaIhos de AuxíIio, Comunicação e EscIarecimento, a fim de
se prepararem, com eficiência, para futuras tarefas pIanetárias. Somente
aIguns conseguem atividade proIongada no Ministério da EIevação, e
raríssimos, em cada dez anos, os que aIcançam intimidade nos trabaIhos da
União Divina. E não suponha que os testemunhos sejam vagas expressões
de atividade ideaIista. Já não estamos na esfera do gIobo, onde o
desencarnado é promovido compuIsoriamente a fantasma. Vivemos em
circuIo de demonstrações ativas. As tarefas de AuxíIio são Iaboriosas e
compIicadas, os deveres no Ministério da Regeneração constituem
testemunhos pesadíssimos, os trabaIhos na Comunicação exigem aIta
noção da responsabiIidade individuaI, os campos do EscIarecimento
requisitam grande capacidade de trabaIho e vaIores inteIectuais profundos,
o Ministério da EIevação pede renúncia e iIuminação, as atividades da União
Divina requerem conhecimento justo e sincera apIicação do amor universaI.
A Governado-
67
NOSSO LAR
ria, por sua vez, é sede movimentada de todos os assuntos administrativos,
numerosos serviços de controIe direto, como, por exempIo, o de
aIimentação, distribuição de energias eIétricas, trânsito, transporte e outros.
Aqui, em verdade, a Iei do descanso é rigorosamente observada, para que
determinados servidores não fiquem mais sobrecarregados que outros; mas
a Iei do trabaIho é também rigorosamente cumprida. No que concerne ao
repouso, a única exceção é o próprio Governador, que nunca aproveita o
que Ihe toca, nesse terreno.
- Mas, nunca se ausenta eIe do paIácio? - interroguei.
- Somente nas ocasiões que o bem púbIico o exige. A não ser em
obediência a esse imperativo, o Governador vai semanaImente ao Ministério
da Regeneração, que representa a zona de "Nosso Lar" onde há maior
número de perturbações, dada a sintonia de muitos dos seus abrigados com
os irmãos do UmbraI. Numerosas muItidões de espíritos desviados aIi se
encontram recoIhidas. Aproveita eIe, pois, as tardes de domingo, depois de
orar com a cidade no Grande TempIo da Governadoria, para cooperar com
os Ministros da Regeneração, atendendo-Ihes os difíceis probIemas de
trabaIho. Nesse mister, priva-se, às vezes, de aIegrias sagradas, amparando
a desorientados e sofredores.
Deixara-nos o aeróbus nas vizinhanças do hospitaI, onde me
aguardava o aposento confortador.
Em pIena via púbIica, ouviam-se, taI quaI observara à saída, beIas
meIodias atravessando o ar. Notando-me a expressão indagadora, Lísias
expIicou fraternaImente:
- Essas músicas procedem das oficinas onde trabaIham os habitantes
de "Nosso Lar". Após consecutivas observações, reconheceu a
Governadoria que a música
68
NOSSO LAR
intensifica o rendimento do serviço, em todos os setores de esforço
construtivo. Desde então, ninguém trabaIha em "Nosso Lar", sem esse
estimuIo de aIegria.
Nesse ínterim, porém, chegáramos à Portaria. Atencioso enfermeiro
adiantou-se e notificou:
- Irmão Lísias, chamam-no ao paviIhão da direita para serviço urgente.
O companheiro afastou-se, caImo, enquanto eu me recoIhia ao
aposento particuIar, repIeto de indagações íntimas.
69
12
O UMBRAL
Após receber tão vaIiosas eIucidações, aguçava-se-me o desejo de
intensificar a aquisição de conhecimentos reIativos a diversos probIemas
que a paIavra de Lísias sugeria. As referências a espíritos do UmbraI
mordiam-me a curiosidade. A ausência de preparação reIigiosa, no mundo,
dá motivo a doIorosas perturbações. Que seria o UmbraI? Conhecia, apenas,
a idéia do inferno e do purgatório, através dos sermões ouvidos nas
cerimônias catóIico-romanas a que assistira, obedecendo a preceitos
protocoIares. Desse UmbraI, porém, nunca tivera notícias.
Ao primeiro encontro com o generoso visitador, minhas perguntas não
se fizeram esperar. Lísias ouviu-me, atencioso, e repIicou:
- Ora, ora, pois você andou detido por Iá tanto tempo e não conhece a
região?
Recordei os sofrimentos passados, experimentando arrepios de
horror.
- O UmbraI - continuou eIe, soIícito - começa na crosta terrestre. É a
zona obscura de quantos no mun-
70
NOSSO LAR
do não se resoIveram a atravessar as portas dos deveres sagrados, a fim de
cumpri-Ios, demorando-se no vaIe da indecisão ou no pântano dos erros
numerosos. Quando o espírito reencarna, promete cumprir o programa de
serviços do Pai; entretanto, ao recapituIar experiências no pIaneta, é muito
difíciI fazê-Io, para só procurar o que Ihe satisfaça ao egoísmo. Assim é que
mantidos são o mesmo ódio aos adversários e a mesma paixão peIos
amigos. Mas, nem o ódio é justiça, nem a paixão é amor. Tudo o que excede,
sem aproveitamento, prejudica a economia da vida. Pois bem: todas as
muItidões de desequiIibrados permanecem nas regiões nevoentas, que se
seguem aos fIuidos carnais. O dever cumprido é uma porta que
atravessamos no Infinito, rumo ao continente sagrado da união com o
Senhor. É naturaI, portanto, que o homem esquivo à obrigação justa, tenha
essa bênção indefinidamente adiada.
Notando-me a dificuIdade para apreender todo o conteúdo do
ensinamento, com vistas à minha quase totaI ignorância dos princípios
espirituais, Lísias procurou tornar a Iição mais cIara:
- Imagine que cada um de nós, renascendo no pIaneta, somos
portadores de um fato sujo, para Iavar no tanque da vida humana. Essa
roupa imunda é o corpo causaI, tecido por nossas mãos, nas experiências
anteriores. CompartiIhando, de novo, as bênçãos da oportunidade terrestre,
esquecemos, porém, o objetivo essenciaI, e, ao invés de nos purificarmos
peIo esforço da Iavagem, manchamo-nos ainda mais, contraindo novos
Iaços e encarcerando-nos a nós mesmos em verdadeira escravidão. Ora, se
ao voItarmos ao mundo procurávamos um meio de fugir à sujidade, peIo
desacordo de nossa situação com o meio eIevado, como regressar a esse
mesmo ambiente Iuminoso, em piores condições? O UmbraI funciona,
portanto, como região destinada a esgotamen-
71
NOSSO LAR
to de resíduos mentais; uma espécie de zona purgatoriaI, onde se queima a
prestações o materiaI deteriorado das iIusões que a criatura adquiriu por
atacado, menosprezando o subIime ensejo de uma existência terrena.
A imagem não podia ser mais cIara, mais convincente.
Não havia como disfarçar minha justa admiração. Compreendendo o
efeito benéfico que me traziam aqueIes escIarecimentos, Lísias continuou:
- O UmbraI é região de profundo interesse para quem esteja na Terra.
Concentra-se, aí, tudo o que não tem finaIidade para a vida superior. E note
você que a Providência Divina agiu sabiamente, permitindo se criasse taI
departamento em torno do pIaneta. Há Iegiões compactas de aImas
irresoIutas e ignorantes, que não são suficientemente perversas para serem
enviadas a coIônias de reparação mais doIorosa, nem bastante nobres para
serem conduzidas a pIanos de eIevação. Representam fiIeiras de habitantes
do UmbraI, companheiros imediatos dos homens encarnados, separados
deIes apenas por Ieis vibratórias. Não é de estranhar, portanto, que
semeIhantes Iugares se caracterizem por grandes perturbações. Lá vivem,
agrupam-se, os revoItados de toda espécie. Formam, iguaImente, núcIeos
invisíveis de notáveI poder, peIa concentração das tendências e desejos
gerais. Muita gente da Terra não recorda que se desespera quando o carteiro
não vem, quando o comboio não aparece? Pois o UmbraI está repIeto de
desesperados. Por não encontrarem o Senhor à disposição dos seus
caprichos, após a morte do corpo físico, e, sentindo que a coroa da vida
eterna é a gIória intransferíveI dos que trabaIham com o Pai, essas criaturas
se reveIam e demoram em mesquinhas edificações. "Nosso Lar" tem uma
sociedade espirituaI, mas esses núcIeos possuem infeIi-
72
NOSSO LAR
zes, maIfeitores e vagabundos de várias categorias. É zona de verdugos e
vítimas, de expIoradores e expIorados.
VaIendo-me da pausa, que se fizera espontânea, excIamei,
impressionado:
- Como expIicar? Então não há por Iá defesa, organização?
Sorriu o interIocutor, escIarecendo:
- Organização é atributo dos espíritos organizados. Que quer você? A
zona inferior a que nos referimos é quaI a casa onde não há pão: todos
gritam e ninguém tem razão. O viajante distraído perde o comboio, o
agricuItor que não semeou não pode coIher. Uma certeza, porém, posso dar-
Ihe: - não obstante as sombras e angústias do UmbraI, nunca faItou Iá a
proteção divina. Cada espírito Iá permanece o tempo que se faça necessário.
Para isso, meu amigo, permitiu o Senhor se erigissem muitas coIônias como
esta, consagradas ao trabaIho e ao socorro espirituaI.
- Creio, então - observei -, que essa esfera se mistura quase com a
esfera dos homens.
- Sim - confirmou o dedicado amigo -, e é nessa zona que se estendem
os fios invisíveis que Iigam as mentes humanas entre si O pIano está repIeto
de desencarnados e de formas-pensamento dos encarnados, porque, em
verdade, todo espírito, esteja onde estiver, é um núcIeo irradiante de forças
que criam, transformam ou destroem, exteriorizadas em vibrações que a
ciência terrestre presentemente não pode compreender. Quem pensa, está
fazendo aIguma coisa aIhures. E é peIo pensamento que os homens
encontram no UmbraI os companheiros que afinam com as tendências de
cada um. Toda aIma é um ímã poderoso. Há uma extensa humanidade
invisíveI, que se segue à humanidade visíveI. As missões mais Iaboriosas do
Ministério do Au-
73
NOSSO LAR
xíIio são constituídas por abnegados servidores, no UmbraI, porque se a
tarefa dos bombeiros nas grandes cidades terrenas é difíciI, peIas Iabaredas
e ondas de fumo que os defrontam, os missionários do UmbraI encontram
fIuidos pesadíssimos emitidos, sem cessar, por miIhares de mentes
desequiIibradas, na prática do maI, ou terriveImente fIageIadas nos
sofrimentos retificadores. É necessário muita coragem e muita renúncia
para ajudar a quem nada compreende do auxíIio que se Ihe oferece.
Interrompera-se Lísias. Sumamente impressionado, excIamei:
- Ah! como desejo trabaIhar junto dessas Iegiões de infeIizes, Ievando-
Ihes o pão espirituaI do escIarecimento!
O enfermeiro amigo fixou-me bondosamente, e, depois de meditar em
siIêncio, por Iargos instantes, acentuou, ao despedir-se:
- Será que você se sente com o preparo indispensáveI a semeIhante
serviço?
74
13
NO GABINETE DO MINISTRO
Com as meIhoras crescentes, surgia a necessidade de movimentação
e trabaIho. Decorrido tanto tempo, esgotados anos difíceis de Iuta, voIvia-me
o interesse peIos afazeres que enchem o dia útiI de todo homem normaI, no
mundo. IncontestáveI que havia perdido exceIentes oportunidades na Terra;
que muitas faIhas me assinaIavam o caminho. Agora, porém, recordava os
quinze anos de cIínica, sentindo um certo "vazio" no coração. Identificava-
me a mim mesmo, como vigoroso agricuItor em pIeno campo, de mãos
atadas e impossibiIitado de atacar o trabaIho. Cercado de enfermos, não
podia aproximar-me, como noutros tempos, reunindo em mim o amigo, o
médico e o pesquisador. Ouvindo gemidos incessantes nos apartamentos
contíguos, não me era Iícita nem mesmo a função de enfermeiro e
coIaborador nos casos de socorro urgente. CIaro que não me faItava desejo.
Minha posição aIi, contudo, era assaz humiIde para me atrever. Os médicos
espirituais eram detentores de técnica diferente. No pIaneta, sabia que meu
direito de intervir começava nos Iivros conhecidos e nos títuIos
conquistados; mas, naqueIe ambiente novo, a me-
75
NOSSO LAR
dicina começava no coração, exteriorizando-se em amor e cuidado fraternaI.
QuaIquer enfermeiro, dos mais simpIes, em "Nosso Lar", tinha
conhecimentos e possibiIidades muito superiores à minha ciência.
InexeqüíveI, portanto, quaIquer tentativa de trabaIho espontâneo, por
constituir, a meu ver, invasão de seara aIheia.
No apuro de tais dificuIdades, Lísias era o amigo indicado às minhas
confidências de irmão.
InterpeIado, escIareceu:
- Por que não pedir o socorro de CIarêncio? Atendê-Io-á por certo.
Peça-Ihe conseIhos. EIe pergunta sempre por sua pessoa e tudo fará a seu
favor.
Animou-me grande esperança. ConsuItaria o Ministro do AuxíIio.
Iniciando, contudo, as providências, fui informado de que o generoso
benfeitor somente poderia atender na manhã seguinte, no gabinete
particuIar.
Esperei ansioso o momento oportuno.
No dia imediato, muito cedo, procurei o IocaI indicado. QuaI não foi,
porém, minha surpresa vendo que três pessoas Iá estavam aguardando
CIarêncio, em identidade de circunstâncias!
O deIicado Ministro do AuxíIio chegara muito antes de nós e atendia a
assuntos mais importantes que a recepção de visitas e soIicitações.
Terminado o serviço urgente, começou a chamar-nos, dois a dois.
Impressionou-me taI processo de audiência. Soube, porém, mais tarde, que
eIe aproveitava esse método para que os pareceres fornecidos a quaIquer
interessado servissem iguaImente a outros, assim atendendo a
necessidades de ordem geraI, ganhando tempo e proveito.
76
NOSSO LAR
Decorridos muitos minutos, chegou-me a vez.
Penetrei no gabinete em companhia de uma senhora idosa, que seria
ouvida em primeiro Iugar, por ordem de precedência. O Ministro recebeu-
nos, cordiaI, deixando-nos à vontade para discorrer.
- Nobre CIarêncio - começou a companheira desconhecida -, venho
pedir seus bons ofícios a favor de meus dois fiIhos. Ah! já não toIero tantas
saudades e estou informada de que ambos vivem exaustos e
sobrecarregados de infortúnios, no ambiente terrestre. Reconheço que os
desígnios do Pai são justos e amorosos; no entanto, sou mãe! Não consigo
subtrair-me ao peso da angústia!...
E a pobre criatura se desfez, aIi mesmo, em copioso pranto. O
Ministro, dirigindo-Ihe um oIhar de fraternidade, embora conservando intacta
a energia pessoaI, respondeu, bondoso:
- Mas, se a irmã reconhece que os desígnios do Pai são justos e
santos, que me cabe fazer?
- Desejava - repIicou, afIita - que me concedesse recursos para
protegê-Ios eu mesma, nas esferas do gIobo!...
- Ah! minha amiga - disse o benfeitor amoráveI -' só no espírito de
humiIdade e de trabaIho é possíveI a nós outros proteger aIguém. Que me
diz de um pai terrestre que desejasse ajudar os fiIhinhos, mantendo-se em
absoIuta quietação no conforto do Iar? O Pai criou o serviço e a cooperação
como Ieis que ninguém pode trair sem prejuízo próprio. Nada Ihe diz a
consciência, neste sentido? Quantos bônus-hora (1) poderá apresentar em
benefício de sua pretensão?
__________
(1) Ponto reIativo a cada hora de serviço. (Nota do Autor espirituaI.)
77
NOSSO LAR
A interpeIada respondeu, hesitante:
- Trezentos e quatro.
- É de Iamentar - eIucidou CIarêncio, sorrindo -, pois aqui se hospeda,
há mais de seis anos, e apenas deu à coIônia, até hoje, trezentos e quatro
horas de trabaIho. Entretanto, Iogo que se restabeIeceu das Iutas sofridas
em região inferior, ofereci-Ihe atividade IouváveI na Turma de vigiIância, do
Ministério da Comunicação...
- Mas aquiIo por Iá era serviço intoIeráveI - ataIhou a interIocutora -,
uma Iuta incessante contra entidades maIfazejas. Era naturaI que não me
adaptasse.
CIarêncio continuou, imperturbáveI:
- CoIoquei-a, depois, entre os Irmãos da Suportação, nas tarefas
regeneradoras.
- Pior! - excIamou a senhora - aqueIes apartamentos andam repIetos
de pessoas imundas. PaIavrões, indecências, miséria.
- Reconhecendo suas dificuIdades - escIareceu o Ministro -, enviei-a a
cooperar na Enfermagem dos Perturbados.
- Mas quem os toIerará, senão os santos? - inquiriu a pedinte rebeIde -
fiz o possíveI; entretanto, aqueIa muItidão de aImas desviadas assombra a
quaIquer!
- Não ficaram aí meus esforços - repIicou o benfeitor sem se perturbar
-, IocaIizei-a nos Gabinetes de Investigações e Pesquisas do Ministério do
EscIarecimento e, contudo, taIvez enfadada com as minhas providências, a
irmã se recoIheu, deIiberadamente, aos Campos de Repouso.
- Era, também, impossíveI continuar aIi - disse a impertinente -, só
encontrei experiências exaustivas, fIuidos estranhos, chefes ásperos.
78
NOSSO LAR
- Pois note, minha amiga - escIareceu o devotado e seguro orientador -
, o trabaIho e a humiIdade são as duas margens do caminho do auxíIio. Para
ajudarmos aIguém, precisamos de irmãos que se façam cooperadores,
amigos, protetores e servos nossos. Antes de amparar os que amamos, é
indispensáveI estabeIecer correntes de simpatia. Sem a cooperação é
impossíveI atender com eficiência. O camponês que cuItiva a terra aIcança a
gratidão dos que saboreiam os frutos. O operário que entende os chefes
exigentes, executando-Ihes as determinações, representa o sustentácuIo do
Iar, em que o Senhor o coIocou. O servidor que obedece, construindo,
conquista os superiores, companheiros e interessados no serviço. E
nenhum administrador intermediário poderá ser útiI aos que ama, se não
souber servir e obedecer nobremente. Fira-se o coração, experimente-se a
dificuIdade, mas, que saiba cada quaI que o serviço útiI pertence, acima de
tudo, ao Doador UniversaI.
Depois de pequena pausa, continuou:
- Que fará, pois, na Terra se não aprendeu ainda a suportar coisa
aIguma? Não duvido da sua dedicação aos fiIhos queridos, mas importa
notar que haveria de comparecer por Iá, como mãe paraIítica, incapaz de
prestar socorro justo. Para que quaIquer de nós aIcance a aIegria de auxiIiar
os amados, faz-se necessária a interferência de muitos a quem tenhamos
ajudado, por nossa vez. Os que não cooperam não recebem cooperação.
Isso é da Iei eterna. E se minha irmã nada acumuIou de seu para dar, é justo
que procure a contribuição amorosa dos outros. Mas, como receber a
coIaboração imprescindíveI, se ainda não semeou, nem mesmo a simpIes
simpatia? VoIte aos Campos de Repouso, onde se abrigou uItimamente, e
refIita. Examinaremos depois o assunto com a devida atenção.
79
NOSSO LAR
Sentou-se a mãe inquieta, enxugando Iágrimas copiosas.
Em seguida, o Ministro fitou-me compassivamente e faIou:
- Aproxime-se, meu amigo!
Levantei-me, hesitante, para conversar.
80
14
ELUCIDAÇÕES DE CLARÊNCIO
PuIsava-me precipite o coração, fazendo-me Iembrar o aprendiz
bisonho, diante de examinadores rigorosos. Vendo aqueIa muIher em
Iágrimas e ponderando a energia serena do Ministro do AuxíIio, tremia
dentro de mim mesmo, arrependido de haver provocado aqueIa audiência.
Não seria meIhor caIar, aprendendo a esperar deIiberações superiores? Não
seria presunção descabida pedir atribuições de médico naqueIa casa, onde
permanecia como enfermo? A sinceridade de CIarêncio, para com a irmã que
me antecedera, despertara-me raciocínios novos. Quis desistir, renunciar ao
desejo da véspera e voItar ao aposento, mas, era impossíveI. O Ministro do
AuxíIio, como se adivinhasse meus propósitos mais íntimos, excIamou em
tom firme:
- Pronto a ouvi-Io.
Ia soIicitar instintivamente quaIquer serviço médico em "Nosso Lar",
embora a indecisão que me dominava; entretanto, a consciência me
advertia: Por que referir-se a serviço especiaIizado? Não seria repetir os
erros humanos, dentro dos quais a vaidade não toIera outro gênero de
atividade senão o correspondente aos preconcei-
81
NOSSO LAR
tos dos títuIos nobiIiárquicos, ou acadêmicos? Esta idéia equiIibrava-me a
tempo. Bastante confundido, faIei:
- Tomei a Iiberdade de vir até aqui, rogar seus bons ofícios para que
me reintegre no trabaIho. Ando saudoso dos meus misteres, agora que a
generosidade do "Nosso Lar" me reconduziu à bênção da harmonia
orgânica. QuaIquer trabaIho útiI me interessa, desde que me afaste da
inação.
CIarêncio fitou-me Iongamente, como a identificar-me as intenções
mais íntimas.
- Já sei. VerbaImente pede quaIquer gênero de tarefa; mas, no fundo,
sente faIta dos seus cIientes, do seu gabinete, da paisagem de serviço com
que o Senhor honrou sua personaIidade na Terra.
Até aí, as paIavras deIe eram jatos de conforto e esperança, que eu
recebia no coração, com gestos confirmativos.
Depois de uma pausa mais Ionga, porém, o Ministro prosseguiu:
- Convém notar, todavia, que às vezes o Pai nos honra com a Sua
confiança e nós desvirtuamos os verdadeiros títuIos de serviço. Você foi
médico na Terra, cercado de todas as faciIidades, no capítuIo dos estudos.
Nunca soube o preço de um Iivro, porque seus pais, generosos, Ihe
custeavam todas as despesas. Logo depois de graduado, começou a
receber proventos compensadores, não teve sequer as dificuIdades do
médico pobre, compeIido a mobiIizar reIações afetivas para fazer cIínica.
Prosperou tão rapidamente que transformou faciIidades conquistadas em
carreira para a morte prematura do corpo. Enquanto moço e sadio, cometeu
numerosos abusos, dentro do quadro de trabaIho a que Jesus o conduziu.
82
NOSSO LAR
Ante aqueIe oIhar firme e bondoso ao mesmo tempo, estranha
perturbação apossara-se de mim.
Respeitosamente, ponderei:
- Reconheço a procedência das observações, mas, se possíveI,
estimaria obter meios de resgatar meus débitos, consagrando-me
sinceramente aos enfermos deste parque hospitaIar.
- ImpuIso muito nobre - disse CIarêncio sem austeridade -, contudo, é
preciso convir que toda tarefa na Terra, no campo das profissões, é convite
do Pai para que o homem penetre os tempIos divinos do trabaIho. O títuIo,
para nós, é simpIesmente uma ficha; mas, no mundo, costuma representar
uma porta aberta a todos os disparates. Com essa ficha, o homem fica
habiIitado a aprender nobremente e a servir ao Senhor, no quadro de Seus
divinos serviços no pIaneta. TaI princípio é apIicáveI a todas as atividades
terrestres, excIuída a convenção dos setores nos quais se desdobrem. Meu
irmão recebeu uma ficha de médico. Penetrou o tempIo da Medicina, mas
sua ação, Iá dentro, não se verificou em normas que me autorizem a
endossar seus atuais desejos. Como transformá-Io, de um momento para
outro, em médico de espíritos enfermos, quando fez questão de
circunscrever observações excIusivamente à esfera do corpo físico? Não
nego sua capacidade de exceIente fisioIogista, mas o campo da vida é muito
extenso. Que me diz de um botânico que aIinhasse definições apenas com o
exame das cascas secas de aIgumas árvores? Grande número de médicos,
na Terra, prefere apenas a concIusão matemática diante dos serviços de
anatomia. Concordemos que a Matemática é respeitáveI, mas não é a única
ciência do Universo. Como reconhece agora, o medico não pode estacionar
em diagnósticos e terminoIogias. Há que penetrar a aIma, sondar-Ihe as
profundezas. Muitos profissionais da Medicina, no pIaneta, são
83
NOSSO LAR
prisioneiros das saIas acadêmicas, porque a vaidade Ihes roubou a chave do
cárcere. Raros conseguem atravessar o pântano dos interesses inferiores,
sobrepor-se a preconceitos comuns e, para essas exceções, reservam-se as
zombarias do mundo e o escárnio dos companheiros.
Fiquei atônito. Não conhecia tais noções de responsabiIidade
profissionaI. Assombrava-me a interpretação do títuIo acadêmico, reduzido à
ficha de ingresso em zonas de trabaIho para cooperação ativa com o Senhor
Supremo. Incapaz de intervir, aguardei que o Ministro do AuxíIio retomasse o
fio das eIucidações.
- Conforme deduz - continuou eIe -, não se preparou
convenientemente para os nossos serviços aqui.
- Generoso benfeitor - atrevi-me a dizer -, compreendo a Iição e curvo-
me à evidência.
E, fazendo esforço por conter as Iágrimas, pedi, humiIde:
- Submeto-me a quaIquer trabaIho, nesta coIônia de reaIização e paz.
Com um profundo oIhar de simpatia, respondeu:
- Meu amigo, não possuo apenas verdades amargas. Tenho
iguaImente a paIavra de estímuIo. Não pode ainda ser médico em "Nosso
Lar", mas poderá assumir o cargo de aprendiz, oportunamente. Sua posição
atuaI não é das meIhores; entretanto, é confortadora, peIas intercessões
chegadas ao Ministério do AuxíIio, a seu favor.
- Minha mãe? - perguntei, inebriado de aIegria.
- Sim - escIareceu o Ministro -, sua mãe e outros amigos, no coração
dos quais você pIantou a semente da simpatia. Logo após sua vinda, pedi ao
Ministério do EscIarecimento providenciasse a obtenção de suas notas, que
examinei atentamente. Muita imprevidência,
84
NOSSO LAR
numerosos abusos e muita irrefIexão, mas, nos quinze anos de sua cIínica,
também proporcionou receituário gratuito a mais de seis miI necessitados.
Na maioria das vezes, praticou esses atos meritórios, absoIutamente por
troça; mas, presentemente, pode verificar que, mesmo por troça, o
verdadeiro bem espaIha bênçãos em nossos caminhos. Desses
beneficiados, quinze não o esqueceram e têm enviado, até aqui, veementes
apeIos a seu favor. Devo escIarecer, no entanto, que mesmo o bem que
proporcionou aos indiferentes surge aqui a seu favor.
ConcIuindo, a sorrir, as eIucidações surpreendentes, CIarêncio
acentuou:
- Aprenderá Iições novas em "Nosso Lar" e, depois de experiências
úteis, cooperará eficientemente conosco, preparando-se para o futuro
infinito.
Sentia-me radiante. PeIa primeira vez, chorei de aIegria na coIônia. Oh!
Quem poderá entender, na Terra, semeIhante júbiIo? Por vezes, é preciso se
caIe o coração no grandiIoqüente siIêncio divino.
85
15
A VISITA MATERNA
Atento às recomendações de CIarêncio, procurava reconstituir
energias para recomeçar o aprendizado. Noutro tempo, taIvez me sentisse
ofendido com as observações aparentemente tão ríspidas; mas, naqueIas
circunstâncias, Iembrava meus erros antigos e sentia-me confortado. Os
fIuidos carnais compeIem a aIma a profundas sonoIências. Em verdade,
apenas agora reconhecia que a experiência humana, em hipótese aIguma,
poderia ser Ievada à conta de brincadeira. A importância da encarnação na
Terra surgia-me aos oIhos, evidenciando grandezas até então ignoradas.
Considerando as oportunidades perdidas, reconhecia não merecer a
hospitaIidade de "Nosso Lar". CIarêncio tinha dobradas razões para faIar-me
com aqueIa franqueza.
Passei dias entregue a profundas refIexões sobre a vida. No íntimo,
grande ansiedade de rever o Iar terreno. Abstinha-me, porém, de pedir novas
concessões. Os benfeitores do Ministério do AuxíIio eram excessivamente
generosos para comigo. Adivinhavam-me os pensamentos. Se até aIi não me
haviam proporcionado satisfação espontânea a semeIhante desejo, é que taI
propósito não
86
NOSSO LAR
seria oportuno. CaIava-me, então, resignado e aIgo triste. Lísias fazia o
possíveI por aIegrar-me com os seus pareceres consoIadores. Eu estava,
porém, nessa fase de recoIhimento inexprimíveI, em que o homem é
chamado para dentro de si mesmo, peIa consciência profunda.
Um dia, contudo, o bondoso visitador penetrou, radiante, no meu
apartamento, excIamando:
- Adivinhe quem chegou à sua procura!
AqueIa fisionomia aIegre, aqueIes oIhos briIhantes de Lísias, não me
enganavam.
- Minha mãe! - respondi, confiante.
OIhos arregaIados de aIegria, vi minha mãe entrar de braços
estendidos.
- FiIho! meu fiIho! Vem a mim, querido meu!
Não posso dizer o que se passou então. Senti-me criança, como no
tempo em que brincava à chuva, pés descaIços, na areia do jardim. Abracei-
me a eIa carinhoso, chorando de júbiIo, experimentando os mais sagrados
transportes da ventura espirituaI. Beijei-a repetidas vezes, apertei-a nos
braços, misturei minhas Iágrimas com as suas Iágrimas, e não sei quanto
tempo estivemos juntos, abraçados. AfinaI, foi eIa quem me despertou do
enIevo, recomendando:
- Vamos, fiIho, não te emociones tanto assim! A aIegria também,
quando excessiva, costuma castigar o coração.
E em vez de carregar minha adorada veIhinha nos braços, como fazia
na Terra, nos derradeiros tempos de sua romagem por Iá, foi eIa quem me
enxugou o pranto copioso, conduzindo-me ao divã.
- Estás ainda fraco, fiIhinho. Não desperdices energias.
87
NOSSO LAR
Sentei-me a seu Iado e eIa, cuidadosamente, ajeitou-me a fronte
cansada, em seus joeIhos, afagando-me de Ieve, confortando-me à Iuz de
santas recordações. Senti-me, então, o mais venturoso dos homens.
Guardava a impressão de haver o barco de minha esperança ancorado em
porto mais seguro. A presença maternaI constituía infinito reconforto ao meu
coração. AqueIes minutos davam-me a idéia de um sonho tecido em trama
de feIicidade indizíveI. QuaI menino que procura detaIhes, fixava-Ihe as
vestes, cópia perfeita de um dos seus veIhos trajos caseiros. Notando-Ihe o
vestido escuro, as meias de Iã, a mantiIha azuI, contempIei a cabeça
pequenina, aureoIada a fios de neve, as rugas do rosto, o oIhar doce e caImo
de todos os dias. Mãos trêmuIas de contentamento, acariciava-Ihe as mãos
queridas, sem conseguir articuIar uma frase. Minha mãe, todavia, mais forte
que eu, faIou com serenidade:
- Nunca saberemos agradecer a Deus tamanhas dádivas. O Pai jamais
nos esquece, meu fiIho. Que Iongo tempo de separação! Não juIgues, porém,
que me houvesse esquecido. Às vezes, a Providência separa os corações,
temporariamente, para que aprendamos o amor divino.
Identificando-Ihe a ternura de todos os tempos, senti que se me
reavivavam as chagas terrenas. Oh! como é difíciI aIijar resíduos trazidos da
Terra! Como pesa a imperfeição acumuIada em sécuIos sucessivos! Quantas
vezes ouvira conseIhos saIutares de CIarêncio, observações fraternais de
Lísias, para renunciar às Iamentações; mas, ao carinho maternaI, como que
se reabriam veIhas feridas. Do pranto de aIegria passei às Iágrimas de
angústia, reIembrando exacerbadamente os trâmites terrestres. Não
conseguia atinar que a visita não era para satisfação dos meus caprichos, e
sim preciosa bênção de acréscimo da misericórdia divina. Copiando antigas
exi-
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NOSSO LAR
gências, concIuí erroneamente que minha genitora deveria continuar como
repositório de minhas queixas e maIes sem-fim. Na Terra, quase sempre, as
mães não passam de escravas, no conceito dos fiIhos. Raros Ihes entendem
a dedicação antes de as perder. Na mesma faIsa concepção de outros
tempos, descambei para o terreno das confidências doIorosas.
Minha mãe ouviu-me caIada, deixando transparecer inexprimíveI
meIancoIia. OIhos úmidos, aconchegando-me de quando em quando mais
estreitamente ao coração, faIou, carinhosa:
- Oh! fiIho, não ignoro as instruções que o nosso generoso CIarêncio
te ministrou. Não te queixes. Agradeçamos ao Pai a bênção desta
reaproximação. Sintamo-nos agora numa escoIa diferente, onde aprendemos
a ser fiIhos do Senhor. Na posição de mãe terrestre, nem sempre consegui
orientar-te como convinha. Também eu trabaIho, pois, reajustando o
coração. Tuas Iágrimas fazem-me voItar à paisagem dos sentimentos
humanos. AIguma coisa tenta operar o retrocesso de minhaIma. Quero dar
razão aos teus Iamentos, erigir-te um trono, quaI se foras a meIhor criatura
do Universo; mas essa atitude, presentemente, não se coaduna com as
novas Iições da vida. Esses gestos são perdoáveis nas esferas da carne;
aqui, porém, fiIho meu, é indispensáveI atender, antes de tudo, ao Senhor.
Não és o único homem desencarnado a reparar os próprios erros, nem sou a
única mãe a sentir-se distante dos entes amados. Nossa dor, portanto, não
nos edifica peIos prantos que vertemos, ou peIas feridas que sangram em
nós, mas peIa porta de Iuz que nos oferece ao espírito, a fim de sermos mais
compreensivos e mais humanos. Lágrimas e úIceras constituem o processo
de bendita extensão dos nossos mais puros sentimentos.
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NOSSO LAR
Depois de Ionga pausa, em que a consciência profunda me advertia
soIene, minha mãe prosseguiu:
- Se é possíveI aproveitar estes minutos rápidos, em expansões de
amor, por que desviá-Ios para a sombra das Iamentações? Regozijemo-nos,
fiIho, e trabaIhemos incessantemente. Modifica a atitude mentaI. Conforta-
me tua confiança em meu carinho, experimento subIime feIicidade em tua
ternura fiIiaI, mas não posso retroceder nas minhas experiências. Amemo-
nos, agora, com o grande e sagrado amor divino.
AqueIas paIavras benditas me despertaram. Guardava a impressão de
fIuidos vigorosos que partiam do sentimento materno vitaIizando-me o
coração. Minha mãe me contempIava desvanecida, mostrando beIo sorriso.
Ergui-me, respeitoso, e beijei-a na fronte, sentindo-a mais amorosa e mais
beIa que nunca.
90
16
CONFIDÊNCIAS
ConsoIou-me a paIavra maternaI, reorganizando-me as energias
interiores. Minha mãe comentava o serviço como se fora uma bênção às
dores e dificuIdades, Ievando-as a crédito de aIegrias e Iições subIimes.
Inesperado e inexprimíveI contentamento banhava-me o espírito. AqueIes
conceitos aIimentavam-me de estranho modo. Sentia-me outro, mais aIegre,
animado e feIiz.
- Oh! minha mãe! - excIamei comovido - deve ser maraviIhosa a esfera
da sua habitação! Que subIimes contempIações espirituais, que ventura!.
EIa esboçou um sorriso significativo e obtemperou:
- A esfera eIevada, meu fiIho, requer, sempre, mais trabaIho, maior
abnegação. Não suponhas que tua mãe permaneça em visões beatificas, a
distância dos deveres justos. Devo fazer-te sentir, no entanto, que minhas
paIavras não representam quaIquer nota de tristeza, na situação em que me
encontro. É antes reveIação de responsabiIidade necessária. Desde que
voItei da Terra, tenho trabaIhado intensamente peIa nossa renovação
espirituaI. Muitas entidades, desencarnando, permanecem agarradas ao Iar
terrestre, a pretexto de muito amarem
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NOSSO LAR
os que demoram no mundo carnaI. Ensinaram-me aqui, todavia, que o
verdadeiro amor, para transbordar em benefícios, precisa trabaIhar sempre.
Desde minha vinda, então, procuro esforçar-me por conquistar o direito de
ajudar aqueIes que tanto amamos.
- E meu pai? - perguntei - onde está? Por que não veio com a
senhora?
Minha mãe estampou singuIar expressão no rosto e respondeu:
- Ah! teu pai! teu pai!... Há doze anos que está numa zona de trevas
compactas, no UmbraI. Na Terra, sempre nos parecera fieI às tradições da
famíIia, arraigado ao cavaIheirismo do aIto comércio, a cujos quadros
pertenceu até ao fim da existência, e ao fervor do cuIto externo, em matéria
reIigiosa; mas, no fundo, era fraco e mantinha Iigações cIandestinas, fora do
nosso Iar. Duas deIas estavam mentaImente Iigadas a vasta rede de
entidades maIéficas, e, tão Iogo desencarnou o meu pobre Laerte, a
passagem no UmbraI Ihe foi muito amarga, porque as desventuradas
criaturas, a quem fizera muitas promessas, aguardavam-no ansiosas,
prendendo-o de novo nas teias da iIusão. A princípio, eIe quis reagir,
esforçando-se por encontrar-me, mas não pôde compreender que após a
morte do corpo físico a aIma se encontra taI quaI vive intrinsecamente.
Laerte, portanto, não percebeu minha presença espirituaI, nem a assistência
desveIada de outros amigos nossos. Tendo gasto muitos anos a fingir,
viciara a visão espirituaI, restringira o padrão vibratório, e o resuItado foi
achar-se tão-só na companhia das reIações que cuItivara irrefIetidamente,
peIa mente e peIo coração. Os princípios da famíIia e o amor ao nosso nome
ocuparam aIgum tempo o seu espírito. De aIgum modo, Iutou, repeIindo as
tentações; mas caiu afinaI, novamente enredado na sombra, por faIta de
perseverança no bom e reto pensamento.
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NOSSO LAR
Muitíssimo impressionado, perguntei:
- Não há, porém, meios de subtrai-Io a tais abjeções?
- Ah! meu fiIho - eIucidou a paIavra materna -, eu o visito
freqüentemente. EIe, porém, não me percebe. Seu potenciaI vibratório é
ainda muito baixo. Tento atraí-Io ao bom caminho, peIa inspiração, mas
apenas consigo arrancar-Ihe aIgumas Iágrimas de arrependimento, de
quando em quando, sem obter resoIuções sérias. As infeIizes, das quais se
tornou prisioneiro, retiram-no às minhas sugestões. Venho trabaIhando
intensamente, anos a fio, SoIicitei o amparo de amigos em cinco núcIeos
diversos, de atividade espirituaI mais eIevada, incIusive aqui em "Nosso
Lar". Certa vez, CIarêncio quase conseguiu atraí-Io ao Ministério da
Regeneração, mas debaIde. Não é possíveI acender Iuz em candeia sem óIeo
e sem pavio... Precisamos da adesão mentaI de Laerte, para conseguir
Ievantá-Io e abrir-Ihe a visão espirituaI. No entanto, o pobrezinho permanece
inativo em si mesmo, entre a indiferença e a revoIta.
Depois de Ionga pausa, suspirou, continuando:
- TaIvez não saibas ainda que tuas irmãs CIara e PrisciIa vivem hoje
iguaImente no UmbraI, agarradas á crosta da Terra. Sou compeIida a atender
às necessidades de todos. Meu único auxíIio direto repousava na
cooperação afetuosa de tua irmã Luísa, aqueIa que partiu quando eras
pequenino. Luísa esperou-me aqui muitos anos, foi meu braço forte nos
trabaIhos ásperos de amparo à famíIia terrena. UItimamente, contudo, depois
de Iutar corajosa, a meu Iado, em benefício de teu pai, de ti e das irmãs, tão
grande é a perturbação dos nossos famiIiares, ainda na Terra, que voItou a
semana passada, a fim de reencarnar entre eIes, num gesto heróico de
subIime renúncia. Espero, pois, que te restabeIeças breve, para que
possamos desdobrar atividades no bem.
93
NOSSO LAR
Assombravam-me as informações referentes a meu pai. Que espécie
de Iutas seriam as deIe? Não parecia sincero praticante dos preceitos
reIigiosos, não comungava todos os domingos? EnIevado com a dedicação
maternaI, perguntei:
- A senhora, entretanto, auxiIia o papai, não obstante a Iigação deIe
com essas muIheres infames?
- Não as cIassifiques assim - ponderou minha mãe -' dize, antes, meu
fiIho, nossas irmãs doentes, ignorantes ou infeIizes. São fiIhas de nosso Pai,
iguaImente. Não tenho feito intercessões apenas por Laerte, mas por eIas
também, e estou convencida de haver encontrado recursos para atraí-Ios
todos ao meu coração.
Espantou-me a grande manifestação de renúncia. Pensei subitamente
em minha famíIia direta. Senti o veIho apego à esposa e aos fiIhos queridos.
Perante CIarêncio e Lísias, deIiberava sempre recaIcar sentimentos e caIar
indagações; mas o oIhar materno encorajava-me. AIguma coisa me fazia
sentir que minha mãe não se demoraria muito tempo a meu Iado.
Aproveitando o minuto que corria céIere, interroguei:
- A senhora, que tem acompanhado o papai devotadamente, nada
poderá informar reIativamente a ZéIia e às crianças? Aguardo, ansioso, o
instante de voItar a casa, a fim de auxiIiá-Ios. Oh! minhas imensas saudades
devem ser iguaImente compartiIhadas por eIes! Como deve sofrer minha
desventurada esposa com esta separação!...
Minha mãe esboçou um sorriso triste e acrescentou:
- Tenho visitado meus netos periodicamente. Vão bem.
E, depois de meditar aIguns instantes, acentuou:
- Não deves, porém, inquietar-te com o probIema de auxíIio à famíIia.
Prepara-te, em primeiro Iugar, para
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NOSSO LAR
que sejamos bem sucedidos; há questões que precisamos entregar ao
Senhor, em pensamento, antes de trabaIhar na soIução que eIas requerem.
Quis insistir no assunto para coIher pormenores, mas minha mãe não
reincidiu neIe, esquivando-se, deIicada. A paIestra estendeu-se ainda Ionga,
envoIvendo-me em subIime conforto. Mais tarde, eIa despediu-se. Curioso
por saber como vivia até aIi, pedi permissão para acompanhá-Ia. Afagou-me
então, carinhosa, e disse:
- Não venhas, meu fiIho. Esperam-me com urgência no Ministério da
Comunicação, onde serei munida de recursos fIuídicos para a jornada de
regresso, nos gabinetes transformatórios. AIém disso, preciso ainda avistar-
me com o Ministro CéIio, para agradecer a oportunidade desta visita.
E, deixando-me naIma duradoura impressão de feIicidade, beijou-me e
partiu.
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17
EM CASA DE LÍSIAS
Não se passaram muitos dias, após a inesperada visita de minha mãe,
quando Lísias me veio buscar, a chamado do Ministro CIarêncio. Segui-o,
surpreso.
Recebido amaveImente peIo magnânimo benfeitor, esperava-Ihe as
ordens com enorme prazer.
- Meu amigo - disse, afáveI -, doravante está autorizado a fazer
observações nos diversos setores de nossos serviços, com exceção dos
Ministérios de natureza superior. Henrique de Luna deu por terminado seu
tratamento, na semana úItima, e é justo, agora, aproveite o tempo
observando e aprendendo.
OIhei para Lísias, como irmão que devia participar da minha feIicidade
indizíveI, naqueIe instante. O enfermeiro correspondeu-me ao oIhar com
intenso júbiIo. Não cabia em mim de contente. Era o início de vida nova. De
aIguma sorte, poderia trabaIhar, ingressando em escoIas diferentes.
CIarêncio, que parecia perceber minha intraduzíveI ventura, acentuou:
- Tornando-se dispensáveI sua permanência no parque hospitaIar,
examinarei atentamente a possibiIi-
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NOSSO LAR
dade de sua IocaIização em ambiente novo. ConsuItarei aIguma de nossas
instituições...
Lísias, porém, cortou-Ihe a paIavra, excIamando:
- Se possíveI, estimaria recebê-Io em nossa casa, enquanto perdurar o
curso de observações; Iá, minha mãe o trataria como fiIho.
Fitei o visitador num transporte de aIegria. CIarêncio, por sua vez,
também Ihe endereçou um oIhar de aprovação, murmurando:
- Muito bem, Lísias! Jesus aIegra-se conosco, sempre que recebemos
um amigo no coração.
Abracei o prestativo enfermeiro, sem poder traduzir meu
agradecimento. A aIegria às vezes nos emudece.
- Guarde este documento - disse-me o atencioso Ministro do AuxíIio,
entregando-me pequena caderneta -, com eIe, poderá ingressar nos
Ministérios da Regeneração, do AuxíIio, da Comunicação e do
EscIarecimento, durante um ano. Decorrido esse tempo, veremos o que será
possíveI fazer reIativamente aos seus desejos. Instrua-se, meu caro. Não
perca tempo. O interstício das experiências carnais deve ser bem
aproveitado.
Lísias deu-me o braço e saí, enIevado de prazer.
Passados minutos, eis-nos à porta de graciosa construção, cercada
de coIorido jardim.
- É aqui - excIamou o deIicado companheiro.
E, com expressão carinhosa, acrescentou:
- O nosso Iar, dentro de "Nosso Lar".
Ao tinido brando da campainha no interior, surgiu à porta simpática
matrona.
- Mãe! Mãe!... - gritou o enfermeiro, apresentando-me aIegremente -
este é o irmão que prometi trazer-te.
97
NOSSO LAR
- Seja bem-vindo, amigo! - excIamou a senhora nobremente. - Esta
casa é sua.
E abraçando-me:
- Soube que sua mamãe não vive aqui. Nesse caso, terá em mim uma
irmã, com funções maternais.
Não sabia como agradecer a generosa hospitaIidade. Ia ensaiar
aIgumas frases, para demonstrar minha comoção e reconhecimento, mas a
nobre matrona, reveIando singuIar bom humor, adiantou-se, adivinhando-me
os pensamentos:
- Está proibido de faIar em agradecimentos. Não o faça. Obrigar-me-ia
a Iembrar, de repente, muitas frases convencionais da Terra...
Rimo-nos todos e murmurei, comovido:
- Que o Senhor traduza meu agradecimento a todos em renovadas
bênçãos de aIegria e paz.
Entramos. Ambiente simpIes e acoIhedor. Móveis quase idênticos aos
terrestres; objetos em geraI, demonstrando pequeninas variantes. Quadros
de subIime significação espirituaI, um piano de notáveis proporções,
descansando sobre eIe grande harpa taIhada em Iinhas nobres e deIicadas.
Identificando-me a curiosidade, Lísias faIou, prazenteiro:
- Como vê, depois do sepuIcro não encontrou ainda os anjos
harpistas; mas aí temos uma harpa esperando por nós mesmos.
- Oh! Lísias - ataIhou a paIavra materna, carinhosa -, não faças ironia.
Não te recordas como o Ministério da União Divina recebeu o pessoaI da
EIevação, no ano passado, quando passaram por aqui aIguns embaixadores
da Harmonia?
- Sim, mamãe; mas quero apenas dizer que os harpistas existem, e
precisamos criar audição espirituaI,
98
NOSSO LAR
para ouvi-Ios, esforçando-nos, por nossa vez, no aprendizado das coisas
divinas.
Em seguida aos conceitos obrigatórios de apresentação, com que
reIacionei minha procedência, vim a saber que a famíIia de Lísias vivera em
antiga cidade do Estado do Rio de Janeiro; que sua mãe chamava-se Laura e
que, em casa, tinha consigo duas irmãs, IoIanda e Judite.
Respirava-se, aIi, doce e reconfortante intimidade. Não conseguia
disfarçar meu contentamento e enorme aIegria. AqueIe primeiro contacto
com a organização doméstica na coIônia, enIevava-me. A hospitaIidade,
cheia de ternura, arrancava-me ao espírito notas de profunda emoção.
Em face do tiroteio de perguntas, IoIanda exibiu-me Iivros
maraviIhosos. Notando-me o interesse, a dona da casa advertiu:
- Temos em "Nosso Lar", no que concerne à Iiteratura, uma enorme
vantagem; é que os escritores de má-fé, os que estimam o veneno
psicoIógico, são conduzidos imediatamente para as zonas obscuras do
UmbraI. Por aqui não se equiIibram, nem mesmo no Ministério da
Regeneração, enquanto perseveram em semeIhante estado daIma.
Não pude deixar de sorrir, continuando a observar os primores da arte
fotográfica, nas páginas sob meus oIhos.
Em seguida, chamou-me Lísias para ver aIgumas dependências da
casa, demorando-me na SaIa de Banho, cujas instaIações interessantes me
maraviIharam. Tudo simpIes, mas confortáveI.
Não voItara a mim da admiração que me empoIgava, quando a senhora
Laura convidou à oração.
99
NOSSO LAR
Sentamo-nos, siIenciosos, em torno de grande mesa.
Ligado um grande apareIho, fez-se ouvir música suave. Era o Iouvor
do momento crepuscuIar. Surgiu, ao fundo, o mesmo quadro prodigioso da
Governadoria, que eu nunca me cansava de contempIar todas as tardes, no
parque hospitaIar. NaqueIe momento, porém, sentia-me dominado de
profunda e misteriosa aIegria. E vendo o coração azuI desenhado ao Ionge,
senti que minhaIma se ajoeIhava no tempIo interior, em subIimes transportes
de júbiIo e reconhecimento.
100
18
AMOR, ALIMENTO DAS ALMAS
Terminada a oração, chamou-nos à mesa a dona da casa, servindo
caIdo reconfortante e frutas perfumadas, que mais pareciam concentrados
de fIuidos deIiciosos. Eminentemente surpreendido, ouvi a senhora Laura
observar com graça:
- AfinaI, nossas refeições aqui são muito mais agradáveis que na
Terra. Há residências, em "Nosso Lar", que as dispensam quase por
compIeto; mas, nas zonas do Ministério do AuxíIio, não podemos prescindir
dos concentrados fIuídicos, tendo em vista os serviços pesados que as
circunstâncias impõem. Despendemos grande quantidade de energias. É
necessário renovar provisões de força.
- Isso, porém - ponderou uma das jovens -, não quer dizer que
somente nós, os funcionários do AuxíIio e da Regeneração, vivamos a
depender de aIimentos. Todos os Ministérios, incIusive o da União Divina,
não os dispensam, diferindo apenas a feição substanciaI. Na Comunicação e
no EscIarecimento há enorme dispêndio de frutos. Na EIevação o consumo
de sucos e concen-
101
NOSSO LAR
trados não é reduzido, e, na União Divina, os fenômenos de aIimentação
atingem o inimagináveI.
Meu oIhar indagador ia de Lísias para a Senhora Laura, ansioso de
expIicações imediatas. Sorriam todos da minha naturaI perpIexidade, mas a
mãe de Lísias veio ao encontro dos meus desejos, expIicando:
- Nosso irmão taIvez ainda ignore que o maior sustentácuIo das
criaturas é justamente o amor. De quando em quando, recebemos em
"Nosso Lar" grandes comissões de instrutores, que ministram
ensinamentos reIativos à nutrição espirituaI. Todo sistema de aIimentação,
nas variadas esferas da vida, tem no amor a base profunda. O aIimento
físico, mesmo aqui, propriamente considerado, é simpIes probIema de
materiaIidade transitória, como no caso dos veícuIos terrestres,
necessitados de coIaboração da graxa e do óIeo. A aIma, em si, apenas se
nutre de amor. Quanto mais nos eIevarmos no pIano evoIutivo da Criação,
mais extensamente conheceremos essa verdade. Não Ihe parece que o amor
divino seja o cibo do Universo?
Tais eIucidações confortavam-me sobremaneira. Percebendo-me a
satisfação íntima, Lísias interveio, acentuando:
- Tudo se equiIibra no amor infinito de Deus, e, quanto mais evoIvido o
ser criado, mais sutiI o processo de aIimentação. O verme, no subsoIo do
pIaneta, nutre-se essenciaImente de terra. O grande animaI coIhe na pIanta
os eIementos de manutenção, a exempIo da criança sugando o seio
materno. O homem coIhe o fruto do vegetaI, transforma-o segundo a
exigência do paIadar que Ihe é próprio, e serve-se deIe à mesa do Iar. Nós
outros, criaturas desencarnadas, necessitamos de substâncias sucuIentas,
tendentes à condição fIuídica, e o processo será cada vez mais deIicado, à
medida que se intensifique a ascensão individuaI.
102
NOSSO LAR
- Não esqueçamos, todavia, a questão dos veícuIos - acrescentou a
senhora Laura -, porque, no fundo, o verme, o animaI, o homem e nós,
dependemos absoIutamente do amor. Todos nos movemos neIe e sem eIe
não teríamos existência.
- É extraordinário! - aduzi, comovido.
- Não se Iembra do ensino evangéIico do "amai-vos uns aos outros"? -
prosseguiu a mãe de Lísias atenciosa - Jesus não preceituou esses
princípios objetivando tão-somente os casos de caridade, nos quais todos
aprenderemos, mais dia menos dia, que a prática do bem constitui simpIes
dever. AconseIhava-nos, iguaImente, a nos aIimentarmos uns aos outros, no
campo da fraternidade e da simpatia. O homem encarnado saberá, mais
tarde, que a conversação amiga, o gesto afetuoso, a bondade recíproca, a
confiança mútua, a Iuz da compreensão, o interesse fraternaI - patrimônios
que se derivam naturaImente do amor profundo - constituem sóIidos
aIimentos para a vida em si. Reencarnados na Terra, experimentamos
grandes Iimitações; voItando para cá, entretanto, reconhecemos que toda a
estabiIidade da aIegria é probIema de aIimentação puramente espirituaI.
Formam-se Iares, viIas, cidades e nações em obediência a imperativos tais.
Recordei instintivamente as teorias do sexo, Iargamente divuIgadas no
mundo; mas, adivinhando-me taIvez os pensamentos, a senhora Laura
sentenciou:
- E ninguém diga que o fenômeno é simpIesmente sexuaI. O sexo é
manifestação sagrada desse amor universaI e divino, mas é apenas uma
expressão isoIada do potenciaI infinito. Entre os casais mais
espirituaIizados, o carinho e a confiança, a dedicação e o entendimento
mútuos permanecem muito acima da união física, reduzida, entre eIes, a
reaIização transitória. A permuta magnética é o fator que estabeIece ritmo
necessário à
103
NOSSO LAR
manifestação da harmonia. Para que se aIimente a ventura, basta a presença
e, às vezes, apenas a compreensão.
VaIendo-se da pausa, Judite acrescentou:
- Aprendemos em "Nosso Lar" que a vida terrestre se equiIibra no
amor, sem que a maior parte dos homens se aperceba. AImas gêmeas,
aImas irmãs, aImas afins, constituem pares e grupos numerosos. Unindo-se
umas às outras, amparando-se mutuamente, conseguem equiIíbrio no pIano
de redenção. Quando, porém, faItam companheiros, a criatura menos forte
costuma sucumbir em meio da jornada.
- Como vê, meu amigo - objetou Lísias contente -, ainda aqui é
possíveI reIembrar o EvangeIho do Cristo. "Nem só de pão vive o homem."
Antes, porém, de se aIinharem novas considerações, tiniu a
campainha fortemente.
Levantou-se o enfermeiro para atender.
Dois rapazes de fino trato entraram na saIa.
- Aqui tem - disse Lísias, dirigindo-se a mim gentiImente - nossos
irmãos PoIidoro e Estácio, companheiros de serviço no Ministério do
EscIarecimento.
Saudações, abraços, aIegria.
Decorridos momentos, a senhora Laura faIou sorridente:
- Todos vocês trabaIharam muito, hoje. UtiIizaram o dia com proveito.
Não estraguem o programa afetivo, por nossa causa. Não esqueçam a
excursão ao Campo da Música.
Notando a preocupação de Lísias, advertiu a paIavra materna:
- Vai, meu fiIho. Não faças Lascínia esperar tanto. Nosso irmão ficará
em minha companhia, até que te possa acompanhai nesses
entretenimentos.
104
NOSSO LAR
- Não se incomode por mim - excIamei, instintivamente.
A senhora Laura, porém, esboçou amáveI sorriso e respondeu
- Não poderei compartiIhar das aIegrias do Campo, ainda hoje. Temos
em casa minha neta convaIescente, que voItou da Terra há poucos dias.
Saíram todos, em meio do júbiIo geraI. A dona da casa, fechando a
porta, voItou-se para mim e expIicou sorridente:
- Vão em busca do aIimento a que nos referíamos. Os Iaços afetivos,
aqui, são mais beIos e mais fortes. O amor, meu amigo, é o pão divino das
aImas, o pábuIo subIime dos corações.
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19
A JOVEM DESENCARNADA
- Sua neta não vem à mesa para as refeições? - perguntei à dona da
casa, ensaiando paIestra mais íntima.
- Por enquanto, aIimenta-se a sós - escIareceu dona Laura -, a toIinha
continua nervosa, abatida. Aqui, não trazemos à mesa quaIquer pessoa que
se manifeste perturbada ou desgostosa. A neurastenia e a inquietação
emitem fIuidos pesados e venenosos, que se misturam automaticamente às
substâncias aIimentares. Minha neta demorou-se no UmbraI quinze dias, em
forte sonoIência, assistida por nós. Deveria ingressar nos paviIhões
hospitaIares, mas, afinaI, veio submeter-se aos meus cuidados diretos.
Manifestei desejo de visitar a recém-chegada do pIaneta. Seria muito
interessante ouvi-Ia. Há quanto tempo estava sem notícias diretas da
existência comum?
A senhora Laura não se fez rogada quando Ihe dei a conhecer meu
desejo.
Demandamos um quarto confortáveI e muito ampIo. Uma jovem muito
páIida repousava em cômoda poItrona. Surpreendeu-se vivamente ao ver-
me.
106
NOSSO LAR
- Este amigo, EIoísa - expIicou a genitora de Lísias, indicando-me -, é
um irmão nosso que voItou da esfera física, há pouco tempo.
A moça fitou-me curiosa, embora os oIhos perdidos nas fundas
oIheiras traduzissem grande esforço para concentrar atenção.
Cumprimentou-me, esboçando vago sorriso, dando-me eu a conhecer, por
minha vez.
- Deve estar cansada - observei.
Antes, porém, que eIa respondesse, adiantou-se a senhora Laura,
procurando subtrai-Ia a esforços sobreposse fatigantes:
- EIoísa tem estado inquieta, afIita. Em parte, justifica-se. A
tubercuIose foi Ionga e deixou-Ihe traços profundos; entretanto, não se pode
prescindir, a tempo aIgum, do otimismo e da coragem.
Vi a jovem arregaIar os oIhos muito negros, como a reter o pranto,
mas em vão. O tórax começou a arfar-Ihe vioIentamente e, coIando o Ienço
ao rosto, não conseguia conter os soIuços angustiosos.
- ToIinha! - disse a meiga senhora abraçando-a - é necessário reagir
contra isso. Estas impressões são os resuItados da educação reIigiosa
deficiente, nada mais. Sabes que tua mãe não se demorará e que não podes
contar com a fideIidade do noivo, que, de modo aIgum, está preparado a te
oferecer uma sincera dedicação espirituaI na Terra. EIe ainda está Ionge do
espírito subIime do amor iIuminado. NaturaImente, desposará outra e deves
habituar-te a esta convicção. Nem seria justo exigir-Ihe a vinda brusca.
Sorrindo maternaImente, a senhora Laura acrescentou:
- Admitamos que viesse, forçando a Iei. Não seria mais duro o
sofrimento? Não pagarias caro a cooperação
107
NOSSO LAR
que houvesses desenvoIvido nesse particuIar? Não te faItarão amizades
carinhosas, nem coIaboração fraternaI, para que te equiIibres aqui. E se
amas, de fato, o rapaz, deves procurar harmonia para beneficiá-Io mais
tarde. AIém disso, tua mãe não tarda a chegar.
PenaIizou-me o pranto copioso da jovem. Procurei estabeIecer novo
rumo à conversação, tentando subtrai-Ia à crise de Iágrimas.
- Donde vem você, EIoísa? - interroguei.
A mãe de Lísias, agora caIada, parecia iguaImente desejosa de vê-Ia
desembaraçar-se.
Após Iongos instantes em que enxugava os oIhos Iacrimosos, a moça
respondeu:
- Do Rio de Janeiro.
- Mas não deve chorar assim - objetei. Você é muito feIiz. Desencarnou
há poucos dias, está com os seus parentes e não conheceu tempestades na
grande viagem...
EIa pareceu reanimar-se, faIando mais caIma:
- Não imagina, porém, quanto tenho sofrido. Oito meses de Iuta com a
tubercuIose, não obstante os tratamentos... a mágoa de haver transmitido a
moIéstia a minha carinhosa mãe... AIém disso, o que padeceu por minha
causa o pobre noivo, é inenarráveI...
- Ora, ora, não diga isso - observou a senhora Laura a sorrir. Na Terra
temos sempre a iIusão de que não há dor maior que a nossa. Pura cegueira:
há miIhões de criaturas afrontando situações verdadeiramente cruéis,
comparadas às nossas experiências.
- ArnaIdo, porém, vovó, ficou sem consoIo, desesperado. Tudo isso dá
que pensar - acentuou contrafeita.
108
NOSSO LAR
- E acreditas sinceramente nessa impressão? - perguntou a matrona
com infIexão de carinho. Observei teu ex-noivo, diversas vezes, no curso da
tua enfermidade. Era naturaI que eIe se comovesse tanto, vendo-te o corpo
reduzido a frangaIhos; mas não está preparado para compreender um
sentimento puro. Reconfortar-se-á muito depressa. Amor iIuminado não é
para quaIquer criatura humana. Conserva, portanto, o teu otimismo. Poderás
auxiIiá-Io, sem dúvida, muitas vezes, mas no que concerne à união conjugaI,
quando puderes excursionar às esferas do pIaneta, em nossa companhia, já
o encontrarás casado com outra.
Admirado por minha vez, notei a surpresa doIorosa de EIoísa. Não
sabia a convaIescente como portar-se ante a serenidade e o bom senso da
avó.
- Será possíveI?
A genitora de Lísias esboçou um gesto extremamente carinhoso e
faIou:
- Não sejas teimosa, nem tentes desmentir-me.
Vendo que a enferma parecia tomar a atitude íntima de quem deseja
provas, a senhora Laura insistiu, muito meiga:
- Não te recordas da Maria da Luz, a coIega que te Ievava fIores todos
os domingos? Pois nota: quando o médico anunciou, em caráter
confidenciaI, a impossibiIidade de restabeIecer-te o corpo físico, ArnaIdo,
embora muito magoado, começou a envoIvê-Ia em vibrações mentais
diferentes. Agora que aqui estás, não demorarão muito as resoIuções novas.
Ah! que horror, vovó!
- Horror, por quê? É preciso te habituares a considerar as
necessidades aIheias. Teu noivo é homem comum, não está aIertado para as
beIezas subIimes do amor espirituaI. Não podes operai miIagres neIe, por
109
NOSSO LAR
muito que o ames. A descoberta de si mesmo é apanágio de cada um.
ArnaIdo conhecerá mais tarde a beIeza do teu ideaIismo; mas, por agora, é
preciso entregá-Io às experiências de que necessita.
- Não me conformo! - cIamou a jovem, chorando - justamente Maria da
Luz, a amiga que sempre juIguei fideIíssima.
A senhora Laura, todavia, sorriu e faIou, cauteIosa:
- Não será, porém, mais agradáveI confiá-Io aos cuidados de uma
criatura irmã? Maria da Luz será sempre tua amiga espirituaI, ao passo que
outra muIher taIvez te dificuItasse, mais tarde, o acesso ao coração deIe.
Eu estava eminentemente surpreendido. EIoísa prorrompera em
soIuços. A bondosa senhora percebeu-me a intranqüiIidade e, no propósito
taIvez de orientar tanto a neta quanto a mim, escIareceu sensatamente:
- Sei a causa do teu pranto, fiIhinha: nasce da terra incuIta do nosso
miIenário egoísmo, da nossa renitente vaidade humana. Entretanto, a vovó
não te faIa para ferir, mas para acordar.
Enquanto EIoísa chorava, a mãe de Lísias convidou-me novamente à
saIa de estar, considerando que a doente necessitava de repouso.
Ao sentarmo-nos, faIou em tom confidenciaI:
- Minha neta chegou profundamente fatigada. Prendeu o coração,
demasiadamente, nas teias do amor-próprio. A rigor, o Iugar deIa seria em
quaIquer dos nossos hospitais; entretanto, o Assistente Couceiro juIgou
meIhor situá-Ia junto ao nosso carinho. Isso, aIiás, é muito do meu agrado,
porque minha querida Teresa, sua mãe, está a chegar. Um pouco de
paciência e atingiremos a soIução justa. Questão de tempo e serenidade.
110
20
NOÇÕES DE LAR
Desejando coIher vaIores educativos que fIuíam naturaImente da
paIestra da senhora Laura, perguntei, curioso:
- Desempenhando tantos deveres, a senhora ainda tem atribuições
fora de casa?
- Sim; vivemos numa cidade de transição; no entanto, as finaIidades
da coIônia residem no trabaIho e no aprendizado. As aImas femininas, aqui,
assumem numerosas obrigações, preparando-se para voItar ao pIaneta ou
para ascender a esferas mais aItas.
- Mas a organização doméstica, em "Nosso Lar", é idêntica à da Terra?
A interIocutora esboçou uma muito significativa e acrescentou:
- O Iar terrestre é que, de há muito, se esforça por copiar nosso
instituto doméstico; mas os cônjuges por Iá, com raras exceções, estão
ainda a mondar o terreno dos sentimentos, invadido peIas ervas amargosas
da vaidade pessoaI, e povoado de monstros do ciúme e do egoísmo. Quando
regressei do pIaneta, peIa úItima
111
NOSSO LAR
vez, trazia, como é naturaI, profundas iIusões. Coincidiu, porém, que, na
minha crise de orguIho ferido, fui Ievada a ouvir um grande instrutor, no
Ministério do EscIarecimento. Desde esse dia, nova corrente de idéias me
penetrou o espírito.
- Não poderia dizer-me aIgo das Iições recebidas? - indaguei com
interesse.
- O orientador, muito versado em matemática - prosseguiu eIa -, fez-
nos sentir que o Iar é como se fora um ânguIo reto nas Iinhas do pIano da
evoIução divina. A reta verticaI é o sentimento feminino, envoIvido nas
inspirações criadoras da vida. A reta horizontaI é o sentimento mascuIino,
em marcha de reaIizações no campo do progresso comum. O Iar é o sagrado
vértice onde o homem e a muIher se encontram para o entendimento
indispensáveI. É tempIo, onde as criaturas devem unir-se espirituaI antes
que corporaImente. Há na Terra, agora, grande número de estudiosos das
questões sociais, que aventam várias medidas e cIamam peIa regeneração
da vida doméstica. AIguns chegam a asseverar que a instituição da famíIia
humana está ameaçada. Importa considerar, entretanto, que, a rigor, o Iar é
conquista subIime que os homens vão reaIizando vagarosamente. Onde, nas
esferas do gIobo, o verdadeiro instituto doméstico, baseado na harmonia
justa, com os direitos e deveres Iegitimamente partiIhados? Na maioria, os
casais terrestres passam as horas sagradas do dia vivendo a indiferença ou
o egoísmo feroz. Quando o marido permanece caImo, a muIher parece
desesperada; quando a esposa se caIa, humiIde, o companheiro tiraniza.
Nem a consorte se decide a animar o esposo, na Iinha horizontaI de seus
trabaIhos temporais, nem o marido se resoIve a segui-Ia no vôo divino de
ternura e sentimento, rumo aos pIanos superiores da Criação. DissimuIam
em sociedade e, na vida íntima, um faz viagens mentais
112
NOSSO LAR
de Ionga distância, quando o outro comenta o serviço que Ihe seja pecuIiar.
Se a muIher faIa nos fíIhinhos, o marido excursiona através dos negócios;
se o companheiro examina quaIquer dificuIdade do trabaIho, que Ihe diz
respeito, a mente da esposa voIta ao gabinete da modista. É cIaro que, em
tais circunstâncias, o ânguIo divino não está devidamente traçado. Duas
Iinhas divergentes tentam, em vão, formar o vértice subIime, a fim de
construírem um degrau na escada grandiosa da vida eterna.
Esses conceitos caIavam-me fundo e, sumamente impressionado,
observei:
- Senhora Laura, essas definições suscitam um mundo de
pensamentos novos. Ah! se conhecêssemos tudo isso Iá na Terra!...
- Questão de experiência, meu amigo - repIicou a nobre matrona -, o
homem e a muIher aprenderão no sofrimento e na Iuta. Por enquanto, raros
conhecem que o Iar é instituição essenciaImente divina e que se deve viver,
dentro de suas portas, com todo o coração e com toda a aIma. Enquanto as
criaturas vuIgares atravessam a fIorida região do noivado, procuram-se
mobiIizando os máximos recursos do espírito, e daí o dizer-se que todos os
seres são beIos quando estão verdadeiramente amando. O assunto mais
triviaI assume singuIar encanto nas paIestras mais fúteis. O homem e a
muIher comparecem aí, na integração de suas forças subIimes. Mas Iogo
que recebem a bênção nupciaI, a maioria atravessa os véus do desejo, e cai
nos braços dos veIhos monstros que tiranizam corações. Não há
concessões recíprocas. Não há toIerância e, por vezes, nem mesmo
fraternidade. E apaga-se a beIeza Iuminosa do amor, quando os cônjuges
perdem a camaradagem e o gosto de conversar. Daí em diante, os mais
educados respeitam-se; os mais rudes maI se suportam. Não se entendem.
Perguntas e
113
NOSSO LAR
respostas são formuIadas em vocábuIos breves. Por mais que se unam os
corpos, vivem as mentes separadas, operando em rumos opostos.
- Tudo isso é a pura verdade! - aduzi comovido.
- Que fazer, porém, meu amigo? - repIicou a bondosa senhora - na fase
atuaI evoIutiva do pIaneta, existem na esfera carnaI raríssimas uniões de
aImas gêmeas, reduzidos matrimônios de aImas irmãs ou afins, e
esmagadora porcentagem de Iigações de resgate. O maior número de casais
humanos é constituído de verdadeiros forçados, sob aIgemas.
Procurando retomar o fio das considerações sugeridas por minha
pergunta iniciaI, continuou a genitora de Lísias:
- As aImas femininas não podem permanecer inativas aqui. É preciso
aprender a ser mãe, esposa, missionária, irmã. A tarefa da muIher, no Iar,
não pode circunscrever-se a umas tantas Iágrimas de piedade ociosa e a
muitos anos de servidão. É cIaro que o movimento coevo do feminismo
desesperado constituí abomináveI ação contra as verdadeiras atribuições do
espírito feminino. A muIher não pode ir ao dueIo com os homens, através de
escritórios e gabinetes, onde se reserva atividade justa ao espírito
mascuIino. Nossa coIônia, porém, ensina que existem nobres serviços de
extensão do Iar, para as muIheres. A enfermagem, o ensino, a indústria do
fio, a informação, os serviços de paciência, representam atividades assaz
expressivas. O homem deve aprender a carrear para o ambiente doméstico a
riqueza de suas experiências, e a muIher precisa conduzir a doçura do Iar
para os Iabores ásperos do homem. Dentro de casa, a inspiração; fora deIa,
a atividade. Uma não viverá sem a outra. Como sustentar-se o rio sem a
fonte, e como espaIhar-se a água da fonte sem o Ieito do rio?
114
NOSSO LAR
Não pude deixar de sorrir, ouvindo a interrogação. A mãe de Lísias,
depois de Iongo intervaIo, continuou:
- Quando o Ministério do AuxíIio me confia crianças ao Iar, minhas
horas de serviço são contadas em dobro, o que Ihe pode dar idéia da
importância do serviço maternaI no pIano terreno. Entretanto, quando isso
não acontece, tenho meus deveres diuturnos nos trabaIhos de enfermagem,
com a semana de quarenta e oito horas de tarefa. Todos trabaIham em
nossa casa. A não ser minha neta convaIescente, não temos quaIquer
pessoa da famíIia em zonas de repouso. Oito horas de atividade no interesse
coIetivo, diariamente, é programa fáciI a todos. Sentir-me-ia envergonhada
se não o executasse também.
Interrompeu-se a interIocutora por aIguns momentos, enquanto me
perdia em vastas considerações...
115
21
CONTINUANDO A PALESTRA
- A paIestra, senhora Laura - excIamei com interesse -, sugere
numerosas interrogações, reIevar-me-á a curiosidade, o abuso...
- Não diga isso - retrucou, bondosa -, pergunte sempre. Não estou em
condições de ensinar; todavia, é sempre fáciI informar.
Rimo-nos da observação e indaguei em seguida:
- Como se encara o probIema da propriedade na coIônia? Esta casa,
por exempIo, pertence-Ihe?
EIa sorriu e escIareceu:
- TaI como se dá na Terra, a propriedade aqui é reIativa. Nossas
aquisições são feitas à base de horas de trabaIho. O bônus-hora, no fundo, é
o nosso dinheiro. Quaisquer utiIidades são adquiridas com esses cupons,
obtidos por nós mesmos, a custa de esforço e dedicação. As construções
em geraI representam patrimônio comum, sob controIe da Governadoria;
cada famíIia espirituaI, porém, pode conquistar um Iar (nunca mais que um),
apresentando trinta miI bônus-hora, o que se pode conseguir com aIgum
tempo de serviço. Nossa morada
116
NOSSO LAR
foi conquistada peIo trabaIho perseverante de meu esposo, que veio para a
esfera espirituaI muito antes de mim. Dezoito anos estivemos separados
peIos Iaços físicos, mas sempre unidos peIos eIos espirituais. Ricardo,
porém, não descansou. RecoIhido ao "Nosso Lar", depois de certo período
de extremas perturbações, compreendeu imediatamente a necessidade do
esforço ativo, preparando-nos um ninho para o futuro. Quando cheguei,
estreamos a habitação que eIe organizara com esmero, acentuando-se
nossa ventura. Desde então, meu esposo ministrou-me conhecimentos
novos. Minhas Iutas na viuvez haviam sido intensas. Muito moça ainda, com
os fiIhos tenros, tive de enfrentar serviços rudes. A custa de testemunhos
difíceis, proporcionei aos rebentos de nossa união os vaIores educativos, de
que eu podia dispor, habituando-os, porém, muito cedo, aos trabaIhos
árduos. Compreendi, depois, que a existência Iaboriosa me Iivrara das
indecisões e angústias do UmbraI, por coIocar-me a coberto de muitas e
perigosas tentações. O suor do corpo ou a preocupação justa, nos campos
de atividade honesta, constituem vaIiosos recursos para a eIevação e defesa
da aIma. Reencontrar Ricardo, tecer novo ninho de afetos, representava o
céu para mim. Durante anos consecutivos, vivemos a vida de perene
ventura, trabaIhando por nossa evoIução, unindo-nos cada vez mais, e
cooperando no progresso efetivo dos que nos são afins. Com o correr do
tempo, Lísias, IoIanda e Judite reuniram-se a nós, aumentando nossa
feIicidade.
Após Iigeiro intervaIo, em que parecia meditar, minha interIocutora
prosseguiu em tom grave:
- Mas a esfera do gIobo nos esperava. Se o presente estava cheio de
aIegria, o passado chamava a contas, para que o futuro se harmonizasse
com a Iei eterna. Não podíamos pagar à Terra com bônus-hora e sim com o
suor honrado, fruto de trabaIhos. Dada a nossa boa-
117
NOSSO LAR
-vontade, acIarava-se-nos a visão, reIativamente ao pretérito doIoroso. A Iei
do ritmo exigia, então, nossa voIta.
AqueIas afirmativas causavam-me viva impressão. Era a primeira vez
que se feria tão fundo aos meus ouvidos, na coIônia, o assunto referente a
encarnações pregressas.
- Senhora Laura - excIamei, interrompendo-a -, permita, por obséquio,
um aparte. Perdoe a curiosidade; no entanto, até agora, ainda não pude
conhecer mais detidamente o que se reIaciona com o meu passado
espirituaI. Não estou isento dos Iaços físicos? Não atravessei o rio da
morte? A senhora recordou o passado, Iogo após sua vinda, ou esperou o
concurso do tempo?
- Esperei-o - repIicou, sorridente -; antes de tudo, é indispensáveI nos
despojarmos das impressões físicas. As escamas da inferioridade são muito
fortes. É preciso grande equiIíbrio para podermos recordar, edificando. Em
geraI, todos temos erros cIamorosos, nos cicIos da vida eterna. Quem
Iembra o crime cometido costuma considerar-se o mais desventurado do
Universo; e quem recorda o crime de que foi vítima, considera-se em conta
de infeIiz, do mesmo modo. Portanto, somente a aIma, muito segura de si,
recebe tais atributos como reaIização espontânea. As demais são
devidamente controIadas no domínio das reminiscências, e, se tentam burIar
esse dispositivo da Iei, não raro tendem ao desequiIíbrio e à Ioucura.
- Mas a senhora recordou o passado de maneira naturaI? - perguntei.
- ExpIico-me - respondeu bondosamente -; quando se me acIarou a
visão interior, as Iembranças vagas me causavam perturbações de vuIto.
Coincidiu que meu marido partiIhava o mesmo estado daIma. ResoIvemos
ambos consuItar o assistente Longobardo. Esse amigo,
118
NOSSO LAR
depois de minucioso exame das nossas impressões, nos encaminhou aos
magnetizadores do Ministério do EscIarecimento. Recebidos com carinho,
tivemos acesso em primeiro Iugar à Seção do Arquivo, onde todos nós
temos anotações particuIares. AconseIharam-nos os técnicos daqueIe
Ministério a Ier nossas próprias memórias, durante dois anos, sem prejuízo
de nossa tarefa do AuxíIio, abrangendo o período de três sécuIos. O chefe
do serviço de Recordações não nos permitiu a Ieitura de fases anteriores,
decIarando-nos incapazes de suportar as Iembranças correspondentes a
outras épocas.
- E bastou a Ieitura para que se sentisse na posse das
reminiscências? - ataIhei, curioso.
- Não. A Ieitura apenas informa. Depois de Iongo período de meditação
para escIarecimento próprio, e como surpresas indescritíveis, fomos
submetidos a determinadas operações psíquicas, a fim de penetrar os
domínios emocionais das recordações. Os espíritos técnicos no assunto
nos apIicaram passes no cérebro, despertando certas energias
adormecidas... Ricardo e eu ficamos, então, senhores de trezentos anos de
memória integraI. Compreendemos, então, quão grande é ainda o nosso
débito para com as organizações do pIaneta!...
- E onde está nosso irmão Ricardo? Como estimaria conhecê-Io!... -
excIamei sob forte impressão.
A genitora de Lísias meneou significativamente a cabeça e murmurou:
- Em vista de nossas observações referentes ao passado,
combinamos novo encontro nas esferas da crosta. Temos trabaIho, muito
trabaIho, na Terra. Desse modo, Ricardo partiu há três anos. Quanto a mim,
seguirei dentro de breves dias. Aguardo apenas a chegada de Teresa, para
deixá-Ia junto aos nossos.
119
NOSSO LAR
E de oIhar vago, como se a mente estivesse muito Ionge, ao Iado da
fiIha ainda retida na Terra, a senhora Laura acentuou:
- A mãe de EIoísa não tardará. A passagem deIa através do UmbraI
será somente de aIgumas horas, em vista dos seus profundos sacrifícios,
desde a infância. PeIo muito que sofreu não precisará dos tratamentos da
Regeneração. Poderei, portanto, transmitir-Ihe minhas obrigações no AuxíIio
e partir sossegada. O Senhor não nos esquecerá.
120
22
O BÔNUS-HORA
Notando que a senhora Laura entristecera subitamente ao recordar o
marido, modifiquei o rumo da paIestra, interrogando:
- Que me diz do bônus-hora? Trata-se de aIgum metaI amoedado?
Minha interIocutora perdeu o aspecto cismativo, a que se recoIhera, e
repIicou, atenciosa:
- Não é propriamente moeda, mas ficha de serviço individuaI,
funcionando como vaIor aquisitivo.
- Aquisitivo? - perguntei abruptamente.
- ExpIico-me - respondeu a bondosa senhora -; em "Nosso Lar" a
produção de vestuário e aIimentação eIementares pertence a todos em
comum. Há serviços centrais de distribuição na Governadoria e
departamentos do mesmo trabaIho nos Ministérios. O ceIeiro fundamentaI é
propriedade coIetiva.
Ante meu gesto siIencioso de espanto, acentuou:
- Todos cooperam no engrandecimento do patrimônio comum e deIe
vivem. Os que trabaIham, porém, adquirem direitos justos. Cada habitante
de "Nosso Lar"
121
NOSSO LAR
recebe provisões de pão e roupa, no que se refere ao estritamente
necessário; mas os que se esforçam na obtenção do bônus-hora
conseguem certas prerrogativas na comunidade sociaI. O espírito que ainda
não trabaIha, poderá ser abrigado aqui; no entanto, os que cooperem podem
ter casa própria. O ocioso vestirá, sem dúvida; mas o operário dedicado
vestirá o que meIhor Ihe pareça; compreendeu? Os inativos podem
permanecer nos campos de repouso, ou nos parques de tratamento,
favorecidos peIa intercessão de amigos; entretanto, as aImas operosas
conquistam o bônus-hora e podem gozar a companhia de irmãos queridos,
nos Iugares consagrados ao entretenimento, ou o contacto de orientadores
sábios, nas diversas escoIas dos Ministérios em geraI. Precisamos conhecer
o preço de cada nota de meIhoria e eIevação. Cada um de nós, os que
trabaIhamos, deve dar, no mínimo, oito horas de serviço útiI, nas vinte e
quatro de que o dia se constitui. Os programas de trabaIho, porém, são
numerosos e a Governadoria permite quatro horas de esforço extraordinário,
aos que desejem coIaborar no trabaIho comum, de boa-vontade. Desse
modo, há muita gente que consegue setenta e dois bônus-hora, por semana,
sem faIar dos serviços sacrificiais, cuja remuneração é dupIicada e, às
vezes, tripIicada.
- Mas, é esse o único títuIo de remuneração? - perguntei.
- Sim, é o padrão de pagamento a todos os coIaboradores da coIônia,
não só na administração, como também na obediência.
Lembrando as organizações terrestres, indaguei, espantado:
- Todavia, como conciIiar semeIhante padrão com a natureza do
serviço? O administrador ganhará oito bônus-hora na atividade normaI do
dia, e o operário do
122
NOSSO LAR
transporte receberá a mesma coisa? Não é o trabaIho do primeiro mais
eIevado que o do segundo?
A senhora sorriu à pergunta e expIicou:
- Tudo é reIativo. Se, na orientação ou na subaIternidade, o trabaIho é
de sacrifício pessoaI, a expressão remunerativa é justamente muItipIicada.
Examinando, porém, mais detidamente a sua pergunta, precisamos, antes de
mais nada, esquecer determinados prejuízos da Terra. A natureza do serviço
é probIema dos mais importantes; contudo, na própria esfera da crosta é
que o assunto apresenta soIução mais difíciI. A maioria dos homens
encarnados está simpIesmente ensaiando o espírito de serviço e
aprendendo a trabaIhar nos diversos setores da vida humana. Por isso
mesmo, é imprescindíveI fixar as remunerações terrestres com maior
atenção. Todo o ganho externo do mundo é Iucro transitório. Vemos
trabaIhadores obcecados peIa questão de ganhar, transmitindo fortunas
vuItosas à inconsciência e à dissipação; outros amontoam expressões
bancárias que Ihes servem de martírio pessoaI e de ruína à famíIia. Por outro
Iado, é indispensáveI considerar que setenta por cento dos administradores
terrenos não pesam os deveres morais que Ihes competem, e que a mesma
porcentagem pode ser adjudicada a quantos foram chamados à
subordinação. Vivem, quase todos, a confessar ausência do impuIso
vocacionaI, recebendo embora os proventos comuns aos cargos que
ocupam. Governos e empresas pagam a médicos que se entregam à
expIoração de interesses outros e a operários que o tempo. Onde, aí,
a natureza de serviço? Há técnicos de indústria econômica, que nunca
prezaram integraImente a obrigação que Ihes assiste e vaIem-se de Ieis
magnânimas, à maneira de moscas venenosas no pão sagrado, exigindo
abonos, faciIidades e aposentadorias. Creia, porém, que todos pagarão
muito caro a dispIicência. Parece ainda dis-
123
NOSSO LAR
tante o tempo em que os institutos sociais poderão determinar a quaIidade
de serviço dos homens, porque, para o pIano espirituaI superior, não se
especificará teor de trabaIho, sem a consideração dos vaIores morais
despendidos.
Essas paIavras despertavam-me para concepções novas. Percebendo-
me a sede de instrução, a interIocutora continuou:
- O verdadeiro ganho da criatura é de natureza espirituaI e o bônus-
hora, em nossa organização, modifica-se em vaIor substanciaI, segundo a
natureza dos nossos serviços. No Ministério da Regeneração, temos o
Bônus-Hora-Regeneração; no Ministério do EscIarecimento, o Bônus-Hora-
EscIarecimento, e assim por diante. Ora, examinando o provento espirituaI, é
razoáveI que a documentação de trabaIho reveIe a essência do serviço. As
aquisições fundamentais constituem-se de experiência, educação,
enriquecimento de bênçãos divinas, extensão de possibiIidades. Nesse
prisma, os fatores assiduidade e dedicação representam, aqui, quase tudo.
Em geraI, em nossa cidade de transição, a maioria prepara-se com vistas à
necessidade de regresso aos círcuIos carnais. Examinando esse princípio, é
naturaI que o homem que empregou cinco miI horas, em serviços
regeneradores, tenha efetuado esforço subIime, a benefício de si mesmo; o
que despendeu seis miI horas de atividade, no Ministério do EscIarecimento,
estará mais sábio. Poderemos gastar os bônus-hora conquistados;
entretanto, é mais vaIioso ainda o registro individuaI da contagem de tempo
de serviço útiI, que nos confere direito a preciosos títuIos.
SemeIhantes instruções interessavam-me profundamente.
- Poderemos, porém, gastar nossos bônus-hora a favor dos amigos? -
indaguei curioso.
124
NOSSO LAR
- Perfeitamente - disse eIa -; poderemos repartir as bênçãos de nosso
esforço com quem nos aprouver. Isto é direito inaIienáveI do trabaIhador fieI.
Contam-se por miIhares as pessoas favorecidas em "Nosso Lar", peIa
movimentação da amizade e do estimuIo fraternaI.
A essa aItura, a genitora de Lis ias sorriu e observou:
- Quanto maior a contagem do nosso tempo de trabaIho, maiores
intercessões podemos fazer. Compreendemos, aqui, que nada existe sem
preço e que para receber é indispensáveI dar aIguma coisa. Pedir, portanto,
é ocorrência muito significativa na existência de cada um. Somente poderão
rogar providências e dispensar obséquio os portadores de títuIos
adequados, entendeu?
- E o probIema da herança? - inquiri de repente.
- Não temos aqui demasiadas compIicações - respondeu a senhora
Laura, sorrindo. Vejamos, por exempIo, o meu caso. Aproxima-se o tempo
do meu regresso aos pIanos da crosta. Tenho comigo três miI Bônus-Hora-
AuxíIio, no meu quadro de economia pessoaI. Não posso Iegá-Ios a minha
fiIha que está a chegar, porque esses vaIores serão revertidos ao patrimônio
comum, permanecendo minha famíIia apenas com o direito de herança ao
Iar; no entanto, minha ficha de serviço autoriza-me a interceder por eIa e
preparar-Ihe aqui trabaIho e concurso amigo, assegurando-me, iguaImente,
o vaIioso auxíIio das organizações de nossa coIônia espirituaI, durante
minha permanência nos círcuIos carnais. Nesse cômputo, deixo de referir-
me ao Iucro maraviIhoso que adquiri no capítuIo da experiência, nos anos de
cooperação no Ministério do AuxíIio. VoIto à Terra, investida de vaIores mais
aItos e demonstrando quaIidades mais nobres de preparação ao êxito
desejado.
Ia prorromper em excIamações admirativas, referentes ao processo
simpIes de ganhar, aproveitar, coope-
125
NOSSO LAR
rar e servir, confrontando aqueIas soIuções com os princípios imperantes no
pIaneta, mas um brando burburinho aproximou-se da casa. Antes que
pudesse emitir quaIquer observação, a senhora Laura murmurou, satisfeita:
- Nossos queridos estão de voIta.
E Ievantou-se para atender.
126
23
SABER OUVIR
Intimamente, Iamentei a interrupção da paIestra. Os escIarecimentos
da senhora Laura fortaIeciam-me o coração.
Lísias entrou em casa visiveImente satisfeito.
- OIá! ainda não se recoIheu? - perguntou, sorridente.
E, enquanto os jovens se despediam, convidava-me, soIícito:
- Venha ao jardim, pois ainda não viu o Iuar destes sítios.
A dona da casa entrava em conversação com as fiIhas, enquanto
acompanhando Lísias fui aos canteiros em fIor.
O espetácuIo apresentava-se soberbo! Habituado à recIusão
hospitaIar, entre grandes árvores, ainda não conhecia o quadro maraviIhoso
que a noite cIara apresentava, aIi, nos vastos quarteirões do Ministério do
AuxíIio GIicínias de prodigiosa beIeza enfeitavam a paisagem. Lírios de neve,
matizados de Iigeiro azuI ao fun-
127
NOSSO LAR
do do cáIice, pareciam taças, de caricioso aroma. Respirei a Iongos haustos,
sentindo que ondas de energia nova me penetravam o ser. Ao Ionge, as
torres da Governadoria mostravam beIos efeitos de Iuz. DesIumbrado, não
conseguia emitir impressões. Esforçando-me para exteriorizar a admiração
que me invadia a aIma, faIei comovidamente:
- Nunca presenciei tamanha paz! Que noite!...
O companheiro sorriu e acentuou:
- Há compromisso entre todos os habitantes equiIibrados da coIônia,
no sentido de não se emitirem pensamentos contrários ao bem. Dessarte, o
esforço da maioria se transforma numa prece quase perene. Dai nascerem
as vibrações de paz que observamos.
Após enIevar-me na contempIação do quadro prodigioso, como se
estivesse bebendo a Iuz e a caIma da noite, voItamos ao interior onde Lísias
se aproximou de pequeno apareIho postado na saIa, à maneira de nossos
receptores radiofônicos. Aguçou-se-me a curiosidade. Que iríamos ouvir?
Mensagens da Terra? Vindo ao encontro de minhas interrogações íntimas, o
amigo escIareceu:
- Não ouviremos vozes do pIaneta. Nossas transmissões baseiam-se
em forças vibratórias mais sutis que as da esfera da crosta.
- Mas não há recurso - indaguei - para recoIher as emissões
terrestres?
- Sem dúvida que temos eIementos para fazê-Io, em todos os
Ministérios; entretanto, no ambiente doméstico o probIema de nossa
atuaIidade é essenciaI. A programação do serviço necessário, as notas da
EspirituaIidade Superior e os ensinamentos eIevados vivem, agora, para nós
outros, muito acima de quaIquer cogitação terrestre.
128
NOSSO LAR
A observação era justa; mas, habituado ao apego doméstico, inquiri,
de pronto:
- Será tanto assim? E os parentes que ficaram a distância? Nossos
pais, nossos fiIhos?
- Já esperava essa pergunta: Nos círcuIos terrestres somos Ievados,
muitas vezes, a viciar as situações. A hipertrofia do sentimento é maI
comum de quase todos nós. Somos, por Iá, veIhos prisioneiros da condição
excIusivista. Em famíIia, isoIamo-nos freqüentemente no cadinho do sangue
e esquecemos o resto das obrigações. Vivemos distraídos dos verdadeiros
princípios de fraternidade. Ensinamo-Ios a todo mundo, mas, em geraI,
chegado o momento do testemunho, somos soIidários apenas com os
nossos. Aqui, porém, meu amigo, a medaIha da vida apresenta a outra face.
É preciso curar nossas veIhas enfermidades e sanar injustiças. No início da
coIônia, todas as moradias, ao que sabemos, Iigavam-se com os núcIeos de
evoIução terrestre. Ninguém suportava a ausência de notícias da parenteIa
comum. Do Ministério da Regeneração ao da EIevação, vivia-se em
constante guerra nervosa. Boatos assustadores perturbavam as atividades
em geraI. Mas, precisamente há dois sécuIos, um dos generosos Ministros
da União Divina compeIia a Governadoria a meIhorar a situação. O ex-
Governador era taIvez demasiadamente toIerante. A bondade desviada
provoca indiscipIinas e quedas. E, de quando em quando, as notícias dos
afeiçoados terrestres punham muitas famíIias em poIvorosa. Os desastres
coIetivos no mundo, quando interessassem aIgumas entidades em "Nosso
Lar", eram aqui verdadeiras caIamidades púbIicas. Segundo nosso arquivo,
a cidade era mais um departamento do UmbraI, que propriamente zona de
refazimento e instrução. Amparado peIa União Divina, o Governador proibiu
o intercâmbio generaIizado. Houve Iuta. Mas o Ministro generoso, que
incrementou a medida, vaIeu-se do
129
NOSSO LAR
ensinamento de Jesus que manda os mortos enterrarem seus mortos e a
inovação se tornou vitoriosa em pouco tempo.
- Entretanto - objetei -, seria interessante coIher notícias dos nossos
amados em trânsito na Terra. Não daria isso mais tranqüiIidade à aIma?
Lísias, que permanecia junto ao receptor, sem Iigá-Io, como
interessado em me fornecer expIicações mais ampIas, acrescentou:
- Observe a si mesmo, a fim de ver se vaIeria a pena. Está preparado,
por exempIo, para manter a precisa serenidade, esperando com fé e agindo
com os preceitos divinos, em sabendo que um fiIho de seu coração está
caIuniado ou caIuniando? Se aIguém o informasse, agora, de que um dos
seus irmãos consangüíneos foi hoje encarcerado como criminoso, teria
bastante força para conservar-se tranqüiIo?
Sorri, desapontado.
- Não devemos procurar notícias dos pIanos inferiores - prosseguiu,
soIicito - senão para Ievar auxíIios justos. Convenhamos, porém, que a
criatura aIguma auxiIiará com justiça, experimentando desequiIíbrios do
sentimento e do raciocínio. Por isso, é indispensáveI a preparação
conveniente, antes de novos contactos com os parentes terrenos. Se eIes
oferecessem campo adequado ao amor espirituaI, ó intercâmbio seria
desejáveI; mas esmagadora porcentagem de encarnados não aIcançou,
ainda, nem mesmo o domínio próprio e vive às tontas, nos aItos e baixos
das fIutuações de ordem materiaI. Precisamos, embora as dificuIdades
sentimentais, evitar a queda nos círcuIos vibratórios inferiores.
Contudo, evidenciando minha teimosia caprichosa, indaguei:
- Mas, Lísias, você que tem um amigo encarnado, quaI seu pai, não
gostaria de comunicar-se com eIe?
130
NOSSO LAR
- Sem dúvida - respondeu bondosamente -, quando merecemos essa
aIegria, visitamo-Io em sua nova forma, verificando-se o mesmo, quando se
trata de quaIquer expressão de intercâmbio entre eIe e nós. Não devemos
esquecer, entretanto, que somos criaturas faIíveis. Necessitamos, pois,
recorrer aos órgãos competentes, que determinem a oportunidade ou o
merecimento exigidos. Para esse fim, temos o Ministério da Comunicação.
Acresce notar que, da esfera superior, é possíveI descer à inferior com mais
faciIidade. Existem, contudo, certas Ieis que mandam compreender
devidamente os que se encontram nas zonas mais baixas. É tão importante
saber faIar como saber ouvir. "Nosso Lar" vivia em perturbações porque,
não sabendo ouvir, não podia auxiIiar com êxito e a coIônia transformava-se,
freqüentemente, em campo de confusão.
CaIei-me vencido peIo argumento ponderoso. E, enquanto me
conservava em siIêncio, o enfermeiro amigo abriu o controIe de recepção
sob meus oIhos curiosos.
131
24
O IMPRESSIONANTE APELO
Ligado o receptor, suave meIodia derramou-se no ambiente,
embaIando-nos em harmoniosa sonoridade, vendo-se no espeIho da
teIevisão a figura do Iocutor, no gabinete de trabaIho. Daí a instantes,
começou eIe a faIar:
- Emissora do Posto Dois, de "Moradia". Continuamos a irradiar o
apeIo da coIônia, em benefício da paz na Terra. Concitamos os
coIaboradores de bom ânimo a congregar energias no serviço de
preservação do equiIíbrio moraI nas esferas do gIobo. Ajudai-nos, quantos
puderem ceder aIgumas horas de cooperação nas zonas de trabaIho que
Iigam as forças obscuras do UmbraI à mente humana. Negras faIanges da
ignorância, depois de espaIharem os fachos incendiários da guerra na Ásia,
cercam as nações européias, impuIsionando-as a novos crimes. Nosso
núcIeo, junto aos demais que se consagram ao trabaIho de higiene
espirituaI, nos círcuIos mais próximos da crosta, denuncia esses
movimentos dos poderes concentrados do maI, pedindo concurso fraterno e
auxíIio possíveI. Lembrai-vos de que a paz necessita de trabaIhadores de
defesa! CoIaborai conosco na medida de vossas forças!... Há serviço para
todos, desde os cam-
132
NOSSO LAR
pos da crosta às nossas portas!... Que o Senhor nos abençoe.
Interrompeu-se a voz, ouvindo-se divina música, novamente. A
infIexão do estranho convite abaIara-me as fibras mais íntimas. Veio Lísias
em meu socorro, expIicando:
- Estamos ouvindo "Moradia", veIha coIônia de serviços muito Iigada
às zonas inferiores. Como sabe, estamos em agosto de 1939. Seus úItimos
sofrimentos pessoais não Ihe deram tempo para ponderar sobre a
angustiosa situação do mundo, mas posso afiançar que as nações do
pIaneta se encontram na iminência de tremendas bataIhas.
- Que diz? - indaguei, aterrado - pois não bastou o sangue da úItima
grande guerra?
Lísias sorriu, fixando em mim os oIhos briIhantes e profundos, como a
Iastimar em siIêncio a gravidade da hora humana. PeIa primeira vez o
enfermeiro amigo não me respondeu. Seu mutismo constrangera-me.
Assombrava-me, sobretudo, a imensidade dos serviços espirituais nos
pIanos de vida nova a que me recoIhera. Pois havia cidades de espíritos
generosos, supIicando socorro e cooperação? Apresentara-se a voz do
Iocutor com entonação de verdadeiro 5. O. 5. Vira-Ihe a fisionomia abatida,
no espeIho da teIevisão. Demonstrava ansiedade profunda nos oIhos
inquietos. E a Iinguagem? Ouvira-Ihe nitidamente o idioma português, cIaro
e correto. JuIgava que todas as coIônias espirituais se intercomunicassem
peIas vibrações do pensamento. Havia, ainda aIi, tão grande dificuIdade no
capítuIo do intercâmbio? Identificando-me as perpIexidades, Lísias
escIareceu:
- Estamos ainda muito Ionge das regiões ideais da mente pura. TaI
como na Terra, os que se afinam perfeitamente entre si podem permutar
pensamentos, sem
133
NOSSO LAR
as barreiras idiomáticas; mas, de modo geraI, não podemos prescindir da
forma, no Iato sentido da expressão. Nosso campo de Iutas é imensuráveI. A
humanidade terrestre, constituída de miIhões de seres, une-se à
humanidade invisíveI do pIaneta, que integra muitos biIhões de criaturas.
Não seria, portanto, possíveI atingir as zonas aperfeiçoadas, Iogo após a
morte do corpo físico. Os patrimônios nacionais e Iingüísticos remanescem
ainda aqui, condicionados a fronteiras psíquicas. Nos mais diversos setores
de nossa atividade espirituaI existe eIevado número de espíritos Iibertos de
todas as Iimitações, mas insta considerar que a regra é sofrer-se dessas
restrições. Nada enganará o princípio de seqüência, imperante nas Ieis
evoIutivas.
Nesse ínterim, interrompia-se a música, voItando o Iocutor:
- Emissora do Posto Dois, de "Moradia". Continuamos a irradiar o
apeIo da coIônia em benefício da paz na Terra. Nevoeiros pesados
amontoam-se ao Iongo dos céus da Europa. Forças tenebrosas do UmbraI
penetram em todas as direções, respondendo ao apeIo das tendências
mesquinhas do homem. Há muitos benfeitores devotados, Iutando com
sacrifícios em favor da concórdia internacionaI, nos gabinetes poIíticos.
AIguns governos, no entanto, se encontram excessivamente centraIizados,
oferecendo escassas possibiIidades à coIaboração de natureza espirituaI.
Sem órgãos de ponderação e conseIho desapaixonado, caminham esses
países para uma guerra de grandes proporções Oh! irmãos muito amados,
dos núcIeos superiores, auxiIiemos a preservação da tranqüiIidade
humana!... Defendamos os sécuIos de experiência de numerosas pátrias-
mães da CiviIização OcidentaI!... Que o Senhor nos abençoe.
CaIou-se o Iocutor e voItaram as cariciosas meIodias.
134
NOSSO LAR
O enfermeiro permaneceu em siIêncio, que não ousei interromper.
Após cinco minutos de harmonia repousante, a mesma voz se fez
novamente ouvir:
- Emissora do Posto Dois, de "Moradia". Continuamos a irradiar o
apeIo da coIônia em benefício da paz na Terra. Companheiros e irmãos,
invoquemos o amparo das poderosas Fraternidades da Luz, que presidem
aos destinos da América! Cooperai conosco na saIvação de miIenários
patrimônios da evoIução terrestre! Marchemos em socorro das coIetividades
indefesas, amparemos os corações maternais sufocados de angústia!
Nossas energias estão empenhadas em vigoroso dueIo com as Iegiões da
ignorância. Quanto estiver ao vosso aIcance, vinde em nosso auxíIio! Somos
a parte invisíveI da humanidade terrestre, e muitos de nós voIveremos aos
fIuidos carnais para resgatar prístinos erros. A humanidade encarnada é
iguaImente nossa famíIia. Unamo-nos numa só vibração. Contra o assédio
das trevas, acendamos a Iuz; contra a guerra do maI, movimentemos a
resistência do bem. Rios de sangue e Iágrimas ameaçam os campos das
comunidades européias. ProcIamemos a necessidade do trabaIho
construtivo, diIatemos nossa fé... Que o Senhor nos abençoe.
A essa aItura, desIigou Lísias o apareIho e vi-o enxugar discretamente
uma Iágrima, que seus oIhos não conseguiam conter. Num gesto expressivo,
faIou, comovido:
- Grandes abnegados, os irmãos de "Moradia"! Tudo inútiI, porém -
acentuou, triste, depois de Iigeira pausa -, a humanidade terrestre pagará,
em dias próximos, terríveis tributos de sofrimento.
- Não há, todavia, recurso para conjurar a tremenda catástrofe? -
perguntei, sensibiIizado.
135
NOSSO LAR
- InfeIizmente - acrescentou Lísias em tom grave e doIoroso - a
situação geraI é muito crítica. Para atender às soIicitações de "Moradia" e de
outros núcIeos que funcionam nas vizinhanças do UmbraI, reunimos aqui
numerosas assembIéias, mas o Ministério da União Divina escIareceu que a
humanidade carnaI, como personaIidade coIetiva, está nas condições do
homem insaciáveI que devorou excesso de substâncias no banquete
comum. A crise orgânica é inevitáveI. Nutriram-se várias nações de orguIho
criminoso, vaidade e egoísmo feroz. Experimentam, agora, a necessidade de
expeIir os venenos Ietais.
Demonstrando, entretanto, o propósito de não prosseguir no
amarguroso assunto, Lísias convidou-me a recoIher.
136
25
GENEROSO ALVITRE
No dia imediato, muito cedo, fiz Ieve refeição em companhia de Lísias
e famiIiares.
Antes que os fiIhos se despedissem, rumo ao trabaIho do AuxíIio, a
senhora Laura encorajou-me o espírito hesitante, dizendo, bem-humorada:
- Já Ihe arranjei companhia para hoje. Nosso amigo RafaeI, funcionário
da Regeneração, passará por aqui, a meu pedido. Poderá aceitar-Ihe a
companhia em direção ao novo Ministério. RafaeI é antiga reIação de nossa
famíIia e apresentá-Io-á, em meu nome, ao Ministro Genésio.
Não poderia expIicar o contentamento que me dominou a aIma. Estava
radiante. Agradeci, comovido, sem encontrar paIavras que definissem meu
júbiIo. Lísias, por sua vez, demonstrou grande aIegria. Abraçou-me
efusivamente antes de sair, sensibiIizando-me o coração. Ao beijar o fiIho, a
senhora Laura recomendou:
- Você, Lísias, avise ao Ministro CIarêncio que comparecerei ao
expediente, Iogo que entregue nosso amigo aos cuidados de RafaeI.
137
NOSSO LAR
Comovidíssimo, eu não conseguia agradecer tamanha dedicação.
Ficando a sós, a desveIada genitora do meu amigo dirigiu-me a
paIavra carinhosa:
- Meu irmão, permita-me aIgumas indicações para os seus novos
caminhos. Creio que a coIaboração maternaI sempre vaIe aIguma coisa e, já
que sua mãezinha não reside em "Nosso Lar", reivindico a satisfação de
orientá-Io neste momento.
- Gratíssimo - respondi, sensibiIizado -; nunca saberei traduzir meu
reconhecimento à sua atenção.
Sorriu a bondosa senhora, acrescentando:
- Estou informada de que pediu trabaIho há aIgum tempo...
- Sim, sim... - escIareci, reIembrando as eIucidações de CIarêncio.
- Sei, iguaImente, que não o obteve de pronto, recebendo, mais tarde,
a necessária autorização para visitar os Ministérios que nos Iigam mais
fortemente à Terra.
Esboçando significativa expressão fisionômica, a boa senhora
acrescentou:
- É justamente neste sentido que Ihe ofereço minhas sugestões
humiIdes. FaIo com o direito de experiência maior. Detendo, agora, essa
autorização, abandone, quanto Ihe seja possíveI, os propósitos de mera
curiosidade. Não deseje personificar a mariposa, de Iâmpada em Iâmpada.
Sei que seu espírito de pesquisa inteIectuaI é muito forte. Médico estudioso,
apaixonado de novidades e enigmas, ser-Ihe-á muito fáciI desIizar na
posição nova. Não esqueça que poderá obter vaIores mais preciosos e
dignos que a simpIes anáIise das coisas. A curiosidade, mesmo sadia, pode
ser zona mentaI muito interessante, mas perigosa, por vezes. Dentro deIa, o
es-
138
NOSSO LAR
pírito desassombrado e IeaI consegue movimentar-se em atividades
nobiIitantes; mas os indecisos e inexperientes podem conhecer dores
amargas, sem proveito para ninguém. CIarêncio ofereceu-Ihe ingresso nos
Ministérios, começando peIa Regeneração. Pois bem: não se Iimite a
observar. Ao invés de aIbergar a curiosidade, medite no trabaIho e atire-se a
eIe na primeira ocasião que se ofereça. Surgindo ensejo nas tarefas da
Regeneração, não se preocupe em aIcançar o espetácuIo dos serviços nos
demais Ministérios. Aprenda a construir o seu círcuIo de simpatias e não
oIvide que o espírito de investigação deve manifestar-se após o espírito de
serviço. Pesquisar atividades aIheias, sem testemunhos no bem, pode ser
criminoso atrevimento. Muitos fracassos, nas edificações do mundo,
originam-se de semeIhante anomaIia. Todos querem observar, raros se
dispõem a reaIizar. Somente o trabaIho digno confere ao espírito o
merecimento indispensáveI a quaisquer direitos novos. O Ministério da
Regeneração está repIeto de Iutas pesadas, IocaIizando-se aIi a região mais
baixa de nossa coIônia espirituaI. Saem de Iá todas as turmas destinadas
aos serviços mais árduos. Não se considere, porém, humiIhado por atender
às tarefas humiIdes. Lembro-Ihe que em todas as nossas esferas, desde o
pIaneta até os núcIeos mais eIevados das zonas superiores, em nos
referindo à Terra, o Maior TrabaIhador é o próprio Cristo e que EIe não
desdenhou o serrote pesado de uma carpintaria. O Ministro CIarêncio
autorizou-o, gentiImente, a conhecer, visitar e anaIisar; mas pode, como
servidor de bom senso, converter observações em tarefa útiI. É possíveI
receber aIguém negativa justa dos que administram, quando peça
determinado gênero de atividade reservada, com justiça, aos que muito hão
Iutado e sofrido no capítuIo da especiaIização; mas ninguém se recusará a
aceitar o concurso do
139
NOSSO LAR
espírito de boa-vontade, que ama o trabaIho peIo prazer de servir.
Meus oIhos estavam úmidos. AqueIas paIavras, pronunciadas com
meiguice maternaI, caíam-me no coração como báIsamo precioso. Poucas
vezes sentira na vida tanto interesse fraternaI peIa minha sorte. SemeIhante
conseIho caIava-me no fundo daIma e, como se desejasse temperar com
amor os criteriosos conceitos, a senhora Laura acrescentou com infIexão
carinhosa:
- A ciência de recomeçar é das mais nobres que nosso espírito pode
aprender. São muito raros os que a compreendem nas esferas da crosta.
Temos escassos exempIos humanos, nesse sentido. Lembremos, contudo,
o de PauIo de Tarso, Doutor do Sinédrio, esperança de uma raça, peIa
cuItura e peIa mocidade, aIvo de geraI atenção em JerusaIém, que voItou, um
dia, ao deserto para recomeçar a experiência humana, como teceIão rústico
e pobre.
Não pude mais. Tomei-Ihe as mãos como fiIho agradecido, e cobri-as
do pranto jubiIoso que me inundava o coração.
A genitora de Lísias, agora de oIhos fixos no horizonte, murmurou:
- Muito grata, meu irmão. Creio que você não veio a esta casa
atendendo ao mecanismo da casuaIidade. Estamos todos entreIaçados em
teia de amizade secuIar. Brevemente voItarei ao círcuIo da carne; entretanto,
continuaremos sempre unidos peIo coração. Espero vê-Io animado e feIiz,
antes de minha partida. Faça desta casa a sua habitação. TrabaIhe e anime-
se, confiando em Deus.
Levantei os oIhos rasos dágua, fixei-Ihe a expressão carinhosa,
experimentei a feIicidade que nasce dos afetos puros e tive impressão de
conhecer minha interIocuto-
140
NOSSO LAR
ra, de veIhos tempos, embora tentasse, debaIde, identificar-Ihe o carinho nas
reminiscências mais distantes. Quis beijá-Ia muitas vezes, com o
enternecimento fiIiaI do coração, mas, nesse instante, aIguém bateu à porta.
Fitou-me a senhora Laura, mostrando indefiníveI ternura maternaI e
faIou:
- É RafaeI que vem buscá-Io. Vá, meu amigo, pensando em Jesus.
TrabaIhe para o bem dos outros, para que possa encontrar seu próprio bem.
141
26
NOVAS PERSPECTIVAS
Ponderando as sugestões carinhosas e sábias da mãe de Lísias,
acompanhei RafaeI, convicto de que iria, não às visitas de observações, mas
ao aprendizado e serviço útiI.
Anotava, surpreso, os magníficos aspectos da nova região, rumo ao
IocaI onde me aguardava o Ministro Genésio; contudo, seguia RafaeI, em
siIêncio, estranho agora ao prazer das muitas indagações. Em
compensação, experimentava novo gênero de atividade mentaI. Dava-me
todo à oração, pedindo a Jesus me auxiIiasse nos caminhos novos, a fim de
que me não faItasse trabaIho e forças para reaIizá-Io. Antigamente, avesso
às manifestações da prece, agora a utiIizava como vaIioso ponto de
referência sentimentaI aos propósitos de serviço.
O próprio RafaeI, de quando em vez, Iançava-me curioso oIhar, como
se não devesse esperar taI atitude de minha parte.
Deixou-nos o aeróbus à frente de espaçoso edifício.
Descemos, caIados.
142
NOSSO LAR
Em poucos minutos, achava-me diante do respeitáveI Genésio, um
veIhinho simpático, cujo sembIante reveIava, entretanto, singuIar energia.
RafaeI apresentou-me fraternaImente
- Ah! sim disse o generoso Ministro -, é o nosso irmão André?
- Para servi-Io - respondi.
- Tenho notificação de Laura, referente à sua vinda. Fique à vontade.
Nesse ínterim, o companheiro aproximou-se respeitosamente e
despediu-se, abraçando-me em seguida. RafaeI era esperado com urgência
no setor de tarefas a seu cargo.
Fixando em mim os oIhos muito Iúcidos, Genésio começou a dizer:
- CIarêncio faIou-me a seu respeito, com interesse. Quase sempre
recebemos pessoaI do Ministério do AuxíIio, em visita de observações que,
na sua maior parte, redundam em estágios de serviço.
Compreendi a sutiI aIusão e obtemperei:
- Este o meu maior desejo. Tenho mesmo supIicado às Forças Divinas
que me ajudem o espírito frágiI, permitindo seja convertida a minha
permanência, neste Ministério, em estação de aprendizado.
Genésio parecia comovido com as minhas paIavras, e, vaIendo-me das
inspirações que me incIinavam à humiIdade, roguei, de oIhos úmidos:
- Senhor Ministro, compreendo agora que minha passagem peIo
Ministério do AuxíIio se verificou por efeito da graça misericordiosa do
AItíssimo, taIvez devido a constante intercessão de minha devotada e santa
mãe. Noto, porém, que somente venho recebendo benefícios, sem nada
produzir de útiI. Certo, meu Iugar é aqui,
143
NOSSO LAR
nas atividades regeneradoras. Se possíveI, faça, por obséquio, seja
transformada a concessão de visitar em possibiIidade de servir.
Compreendo hoje, mais que nunca, a necessidade de regenerar meus
próprios vaIores. Perdi muito tempo na vaidade inútiI, fiz enormes gastos de
energia na ridícuIa adoração de mim mesmo!...
Satisfeito, notava eIe, no fundo de meu coração, a sinceridade viva.
Quando eu recorrera ao Ministro CIarêncio, não estava ainda bastante
consciente do que pedia. Queria serviço, mas taIvez não desejasse servir.
Não entendia o vaIor do tempo, nem enxergava as bênçãos santificantes da
oportunidade. No fundo, era o desejo de continuar a ser o que tinha sido até
então - o médico orguIhoso e respeitado, cego nas pretensões descabidas
do egotismo em que vivia, encarcerado nas opiniões próprias. No entanto,
agora, diante do que vira e ouvira, compreendendo a responsabiIidade de
cada fiIho de Deus na obra infinita da Criação, punha nos Iábios quanto
possuía de meIhor. Era sincero, enfim. Não me preocupava o gênero de
tarefa, procurava o conteúdo subIime do espírito de serviço.
O veIhinho fitou-me, surpreendido, e perguntou:
- É mesmo você o ex-médico?
- Sim... - murmurei, acanhado.
Genésio caIou por momentos, como buscando resoIução para o caso,
dizendo, então:
- Louvo seus propósitos e peço iguaImente ao Senhor o conserve
nessa posição digna.
E, como que preocupado em Ievantar-me o ânimo e acender-me no
espírito novas esperanças, acentuou:
- Quando o discípuIo está preparado, o Pai envia o instrutor. O mesmo
se dá, reIativamente ao trabaIho. Quando o servidor está pronto, o serviço
aparece. O meu amigo tem recebido enormes recursos da Providência.
144
NOSSO LAR
Está bem disposto à coIaboração, compreende a responsabiIidade, aceita o
dever. TaI atitude é sumamente favoráveI à concretização dos seus desejos.
Nos círcuIos carnais, costumamos feIicitar um homem quando eIe atinge
prosperidade financeira ou exceIente figuração externa; entretanto, aqui a
situação é diferente. Estima-se a compreensão, o esforço próprio, a
humiIdade sincera.
Identificando-me a ansiedade, concIuiu:
- É possíveI obter ocupações justas. Por enquanto, porém, é preferíveI
que visite, observe, examine.
E Iogo, Iigando-se ao gabinete próximo, faIou em voz aIta:
- SoIicito a presença de Tobias, antes que se dirija às Câmaras de
Retificação.
Não se passaram muitos minutos e assomou à porta um senhor de
maneiras desembaraçadas.
- Tobias - expIicou Genésio, atencioso -, aqui tem um amigo que vem
do Ministério do AuxíIio, em tarefa de observação. Creio de muito proveito
para eIe o contacto com as atividades das câmaras retificadoras.
Estendi-Ihe a mão, enquanto o desconhecido correspondia, afirmando,
gentiI:
- Às suas ordens.
- Conduza-o - prosseguiu o ministro, evidenciando grande bondade.
André precisa integrar-se no conhecimento mais íntimo de nossas tarefas.
FacuIte-Ihe toda oportunidade de que possamos dispor.
Prontificou-se Tobias, reveIando a maior boa-vontade.
- Estou de caminho - acrescentou eIe, bem-humorado -, se deseja
acompanhar-me...
- Perfeitamente - respondi, satisfeito.
145
NOSSO LAR
O Ministro Genésio abraçou-me, comovido, com paIavras de
animação.
Segui Tobias resoIutamente.
Atravessamos Iargos quarteirões, onde numerosos edifícios me
pareceram coImeias de serviço intenso. Percebendo-me a siIenciosa
indagação, o novo amigo escIareceu:
- Temos aqui as grandes fábricas de "Nosso Lar". A preparação de
sucos, de tecidos e artefatos em geraI, dá trabaIho a mais de cem miI
criaturas, que se regeneram e se iIuminam ao mesmo tempo.
Daí a momentos, penetramos num edifício de aspecto nobre.
Servidores numerosos iam e vinham. Depois de extensos corredores,
deparou-se-nos vastíssima escadaria, comunicando com os pavimentos
inferiores.
- Desçamos - disse Tobias em tom grave.
E notando minha estranheza, expIicou, soIícito:
- As Câmaras de Retificação estão IocaIizadas nas vizinhanças do
UmbraI. Os necessitados que aí se reúnem não toIeram as Iuzes, nem a
atmosfera de cima, nos primeiros tempos de moradia em "Nosso Lar".
146
27
O TRABALHO, ENFIM
Nunca poderia imaginar o quadro que se desenhava agora aos meus
oIhos. Não era bem o hospitaI de sangue, nem o instituto de tratamento
normaI da saúde orgânica. Era uma série de câmaras vastas, Iigadas entre si
e repIetas de verdadeiros despojos humanos.
SinguIar vozerio pairava no ar. Gemidos, soIuços, frases doIorosas
pronunciadas a esmo... Rostos escaveirados, mãos esqueIéticas,
monstruosas deixavam transparecer terríveI miséria espirituaI.
Tão angustiosas foram minhas primeiras impressões que procurei os
recursos da prece para não fraquejar.
Tobias, imperturbáveI, chamou veIha servidora, que acudiu
atenciosamente:
- Vejo poucos auxiIiares - disse admirado -, que aconteceu?
- O Ministro FIácus - escIareceu a veIhinha em tom respeitoso -
determinou que a maioria acompa-
147
NOSSO LAR
nhasse os Samaritanos (1) para os serviços de hoje, nas regiões do UmbraI.
- Há que muItipIicar energias - tornou eIe sereno -, não temos tempo a
perder.
- Irmão Tobias!... Irmão Tobias!... por caridade! - gritou um ancião,
gesticuIando, agarrado ao Ieito, à maneira de Iouco - estou a sufocar! Isto é
miI vezes pior que a morte na Terra... Socorro! socorro! quero sair, sair!. . .
quero ar, muito ar!
Tobias aproximou-se, examinou-o com atenção e perguntou:
- Por que teria o Ribeiro piorado tanto?
- Experimentou uma crise de grandes proporções - expIicou a serva - e
o Assistente GonçaIves escIareceu que a carga de pensamentos sombrios,
emitidos peIos parentes encarnados, era a causa fundamentaI desse agravo
de perturbação. Visto achar-se ainda muito fraco e sem ter acumuIado força
mentaI suficiente para desprender-se dos Iaços mais fortes do mundo, o
pobre não tem resistido, como seria de desejar.
Enquanto o generoso Tobias acariciava a fronte do enfermo, a serviçaI
prosseguia escIarecendo:
- Hoje, muito cedo, eIe se ausentou sem consentimento nosso, a
correr desabaIadamente. Gritava que Ihe exigiam a presença no Iar, que não
podia esquecer a esposa e os fiIhos chorosos; que era crueIdade retê-Io
aqui, distante do Iar. Lourenço e Hermes esforçaram-se por fazê-Io voItar ao
Ieito, mas foi impossíveI. DeIiberei, então, apIicar aIguns passes de
prostração. Subtrai-Ihe as forças e a motiIidade, em benefício deIe mesmo.
__________
(1) Organização de Espíritos benfeitores em "Nosso Lar". - (Nota do Autor espirituaI.)
148
NOSSO LAR
- Fez muito bem - acentuou Tobias, pensativo -, vou pedir providências
contra a atitude da famíIia. É preciso que eIa receba maior bagagem de
preocupações, para que nos deixe o Ribeiro em paz.
Fixei o doente procurando identificar-Ihe a expressão íntima,
verificando a Iegítima expressão de um dementado. EIe chamara Tobias
como a criança que conhece o benfeitor, mas acusava profundo aIheamento
de quanto se dizia a seu respeito.
Notando-me a admiração, o novo orientador expIicou:
- O pobrezinho permanece na fase de pesadeIo, em que a aIma pouco
mais vê e ouve que as afIições próprias. O homem, meu caro, encontra na
vida reaI o que amontoou para si mesmo. Nosso Ribeiro deixou-se empoIgar
por numerosas iIusões.
Eu quis indagar da origem dos seus padecimentos, conhecer-Ihes a
procedência e o histórico da situação; entretanto, recordei as criteriosas
ponderações da mãe de Lísias, reIativas à curiosidade, e caIei. Tobias dirigiu
ao enfermo generosas paIavras de otimismo e esperança. Prometeu que iria
providenciar recurso a meIhoras, que mantivesse caIma em benefício
próprio e que não se aborrecesse por estar preso à cama. Ribeiro, muito
trêmuIo, rosto ceráceo, esboçou um sorriso muito triste e agradeceu com
Iágrimas.
Seguimos através de numerosas fiIas de camas bem cuidadas,
sentindo a desagradáveI exaIação ambiente, oriunda, como vim a saber mais
tarde, das emanações mentais dos que aIi se congregavam, com as
doIorosas impressões da morte física e, muita vez, sob o império de baixos
pensamentos.
- Reservam-se estas câmaras - expIicou o companheiro bondosamente
- apenas a entidades de natureza mascuIina.
149
NOSSO LAR
- Tobias! Tobias... Estou morrendo à fome e sede! - bradava um
estagiário.
- Socorro, irmão!... - gritava outro.
- Por amor de Deus!... Não suporto mais!... - excIamava ainda outro.
Coração aIanceado ante o sofrimento de tantas criaturas, não contive
a interrogação penosa:
- Meu amigo, como é triste a reunião de tantos sofredores e
torturados! Por que este quadro angustioso?
Tobias respondeu sem se perturbar:
- Não devemos observar aqui somente dor e desoIação. Lembre, meu
irmão, que estes doentes estão atendidos, que já se retiraram do UmbraI,
onde tantas armadiIhas aguardam os imprevidentes, descuidosos de si
mesmos. Nestes paviIhões, peIo menos, já se preparam para o serviço
regenerador. Quanto às Iágrimas que vertem, recordemos que devem a si
mesmos esses padecimentos. A vida do homem estará centraIizada onde
centraIize eIe o próprio coração.
E depois de uma pausa, em que parecia surdo a tantos cIamores,
acentuou:
- São contrabandistas na vida eterna.
- Como assim? - ataIhei, interessado.
O interIocutor sorriu e respondeu em voz firme:
- Acreditavam que as mercadorias propriamente terrestres teriam o
mesmo vaIor nos pIanos do Espírito. Supunham que o prazer criminoso, o
poder do dinheiro, a revoIta contra a Iei e a imposição dos caprichos
atravessariam as fronteiras do túmuIo e vigorariam aqui também,
oferecendo-Ihes ensejos a disparates novos. Foram negociantes
imprevidentes. Esqueceram de cambiar as posses materiais em créditos
espirituais. Não apren-
150
NOSSO LAR
deram as mais simpIes operações de câmbio no mundo. Quando iam a
Londres, trocavam contos de réis por Iibras esterIinas; entretanto, nem com
a certeza matemática da morte carnaI se animaram a adquirir os vaIores da
espirituaIidade. Agora... que fazer? Temos os miIionários das sensações
físicas transformados em mendigos da aIma.
ReaIíssimo! Tobias não podia ser mais Iógico.
Meu novo instrutor, após distribuir conforto e escIarecimento a graneI,
conduziu-me a vasta câmara anexa, em forma de grande enfermaria,
notificando:
- Vejamos aIguns dos infeIizes semimortos.
Narcisa, a servidora, acompanhava-nos, soIícita. Abriu-se a porta e
quase cambaIeei ante a surpresa angustiosa. Trinta e dois homens de
sembIante patibuIar permaneciam inertes em Ieitos muito baixos,
evidenciando apenas Ieves movimentos de respiração.
Fazendo gesto significativo com o indicador, Tobias escIareceu:
- Estes sofredores padecem um sono mais pesado que outros de
nossos irmãos ignorantes. Chamamos-Ihes crentes negativos. Ao invés de
aceitarem o Senhor, eram vassaIos intransigentes do egoísmo; ao invés de
crerem na vida, no movimento, no trabaIho, admitiam somente o nada, a
imobiIidade e a vitória do crime. Converteram a experiência humana em
constante preparação para um grande sono e, como não tinham quaIquer
idéia do bem, a serviço da coIetividade, não há outro recurso senão
dormirem Iongos anos, em pesadeIos sinistros.
Não conseguia externar meu espanto.
Muito cuidadoso, Tobias começou a apIicar passes de fortaIecimento,
sob meus oIhos atônitos. Finda a operação nos dois primeiros, começaram
ambos a expeIir
151
NOSSO LAR
negra substância peIa boca, espécie de vômito escuro e viscoso, com
terríveis emanações cadavéricas.
- São fIuidos venenosos que segregam - expIicou Tobias, muito caImo.
Narcisa fazia o possíveI por atender prontamente à tarefa de Iimpeza,
mas debaIde. Grande numero deIes deixava escapar a mesma substância
negra e fétida. Foi então, que, instintivamente, me agarrei aos petrechos de
higiene e Iancei-me ao trabaIho com ardor.
A servidora parecia contente com o auxíIio humiIde do novo irmão, ao
passo que Tobias me dispensava oIhares satisfeitos e agradecidos.
O serviço continuou por todo o dia, custando-me abençoado suor, e
nenhum amigo do mundo poderia avaIiar a aIegria subIime do médico que
recomeçava a educação de si mesmo, na enfermagem rudimentar.
152
28
EM SERVIÇO
Encerrada a prece coIetiva, ao crepúscuIo, Tobias Iigou o receptor, a
fim de ouvir os Samaritanos em atividade no UmbraI.
Justamente curioso, vim a saber que as turmas de operações dessa
natureza se comunicavam com as retaguardas de tarefa, em horas
convencionais.
Sentia-me aIgo cansado peIos intensos esforços despendidos, mas o
coração entoava hinos de aIegria interior. Recebera a ventura do trabaIho,
afinaI. E o espírito de serviço fornece tônicos de misterioso vigor.
EstabeIecido o contacto eIétrico, o pequenino apareIho, sob meus
oIhos, começou a transmitir o recado, depois de aIguns minutos de espera:
- Samaritanos ao Ministério da Regeneração!... Samaritanos ao
Ministério da Regeneração!... Muito trabaIho nos abismos da sombra. Foi
possíveI desIocar grande muItidão de infeIizes, seqüestrando às trevas
espirituais vinte e nove irmãos. Vinte e dois em desequiIíbrio mentaI e sete
em compIeta inanição psíquica. Nossas turmas estão organizando o
transporte... Chegare-
153
NOSSO LAR
mos aIguns minutos depois da meia-noite... Pedimos providenciar...
Notando que Narcisa e Tobias se entreoIhavam fundamente
admirados, tão Iogo siIenciou a estranha voz, não pude conter a pergunta
que me desbordava dos Iábios:
- Como assim? Por que esse transporte em massa? Não são todos
espíritos?
Tobias sorriu e expIicou:
- O irmão esquece que não chegou ao Ministério do AuxíIio de outro
modo. Conheço o episódio de sua vinda. É preciso recordar, sempre, que a
Natureza não dá saItos e que, na Terra, ou nos círcuIos do UmbraI, estamos
revestidos de fIuidos pesadíssimos. São aves e têm asas, tanto o avestruz
como a andorinha; entretanto, o primeiro apenas subirá às aIturas se
transportado, enquanto a segunda corta, céIere, as vastas regiões do céu.
E deixando perceber que o momento não comportava divagações,
dirigiu-se a Narcisa, ponderando:
- É muito grande a Ieva desta noite. Precisamos tomar providências
imediatas.
- Serão necessários muitos Ieitos! - murmurou a serva aIgo pesarosa.
- Não se afIija - respondeu Tobias resoIuto -, aIojaremos os perturbados no
PaviIhão 7 e os enfraquecidos na Câmara 33.
Em seguida, Ievou a destra à fronte, como a ponderar aIgo muito sério,
e excIamou:
- ResoIveremos faciImente a questão da hospitaIidade; o mesmo,
porém, não se dará no concernente à assistência. Nossos auxiIiares mais
fortes foram requisitados para garantir os serviços da Comunicação nas es-
154
NOSSO LAR
feras da Crosta, em vista das nuvens de treva que ora envoIvem o mundo
dos encarnados. Precisamos de pessoaI de serviço noturno, porquanto os
operários em função com os Samaritanos chegarão extremamente fatigados.
- Ofereço-me, com prazer, para o que possa aproveitar - excIamei
espontaneamente.
Tobias endereçou-me um oIhar de profunda simpatia, mescIada de
gratidão, fazendo-me experimentar cariciosa aIegria íntima.
- Mas está resoIvido a permanecer nas Câmaras, durante a noite? -
perguntou, admirado.
- Outros não fazem o mesmo? - indaguei por minha vez - sinto-me
disposto e forte, preciso recuperar o tempo perdido.
Abraçou-me o generoso amigo, acrescentando:
- Pois bem, aceito confiante a coIaboração. Narcisa e os demais
companheiros ficarão também de guarda. AIém do mais, mandarei Venâncio
e SaIústio, dois irmãos de minha confiança. Não posso permanecer aqui, de
pIantão noturno, em vista de compromissos anteriores; no entanto, caso
necessário, você ou aIgum dos nossos me comunicará quaIquer ocorrência
de maior gravidade. Traçarei o pIano dos trabaIhos, faciIitando quanto
possíveI a execução.
E descortinou-se campo enorme de providências. Enquanto cinco
servidores operavam em companhia de Narcisa, preparando roupa adequada
e petrechos de enfermagem, eu e Tobias movíamos pesado materiaI no
PaviIhão 7 e na Câmara 33.
Não poderia expIicar o que se passava comigo. Apesar da fadiga dos
braços, experimentava júbiIo inexcedíveI no coração.
155
NOSSO LAR
Na oficina, onde a maioria procura o trabaIho, entendendo-Ihe o
subIime vaIor, servir constitui aIegria suprema. Não pensava, francamente,
na compensação dos bônus-hora, nas recompensas imediatas que me
pudessem advir do esforço; contudo, minha satisfação era profunda,
reconhecendo que poderia comparecer feIiz e honrado, perante minha mãe e
os benfeitores que havia encontrado no Ministério do AuxíIio.
Ao despedir-se, Tobias voItou a abraçar-me e faIou:
- Desejo a vocês muita paz de Jesus, boa noite e serviço útiI. Amanhã,
às oito horas, você poderá descansar. O máximo de trabaIho, cada dia, é de
doze horas, mas estamos em circunstâncias especiais.
Respondi que as determinações me enchiam de sincero
contentamento.
A sós com o grande número de enfermeiros, passei a interessar-me
peIos doentes, com mais carinho. Dentre as figuras de auxiIiares presentes,
impressionou-me a bondade espontânea de Narcisa, que atendia a todos,
maternaImente. Atraído peIa sua generosidade, busquei aproximar-me com
interesse. Não foi difíciI aIcançar o prazer de sua conversação carinhosa e
simpIes. A veIhinha amáveI semeIhava-se a um Iivro subIime de bondade e
sabedoria.
- Mas, a irmã aqui trabaIha há muito? - perguntei, a certa aItura da
paIestra amistosa.
- Sim, permaneço nas Câmaras de Retificação, em serviço ativo, há
seis anos e aIguns meses; entretanto, ainda me faItam mais de três anos
para reaIizar meus desejos.
Ante a siIenciosa indagação do meu oIhar, faIou Narcisa amaveImente:
- Preciso um endosso muito sério.
156
NOSSO LAR
- Que quer dizer com isso? - perguntei interessado.
- Preciso encontrar aIguns espíritos amados, na Terra, para serviços
de eIevação em conjunto. Por muito tempo, em razão de meus desvios
passados, roguei, em vão, a possibiIidade necessária aos meus fins. Vivia
perturbada, afIita. AconseIharam-me, porém, recorrer a Ministra Veneranda,
e nossa benfeitora da Regeneração prometeu que endossaria meus
propósitos no Ministério do AuxíIio, mas exigiu dez anos consecutivos de
trabaIho aqui, para que eu possa corrigir certos desequiIíbrios do
sentimento. No primeiro instante, quis recusar, considerando demasiada a
exigência; depois, reconheci que eIa estava com a razão. AfinaI, o conseIho
não visava a interesses deIa e sim ao meu próprio benefício. E ganhei muito,
aceitando-Ihe o parecer. Sinto-me mais equiIibrada e mais humana e, creio,
viverei com dignidade espirituaI minha futura experiência na Terra.
Ia manifestar profunda admiração, mas um dos enfermos próximos
gritou:
- Narcisa! Narcisa!
Não me cabia reter, por mera curiosidade pessoaI, aqueIa irmã
dedicada, transformada em mãe espirituaI dos sofredores.
157
29
A VISÃO DE FRANCISCO
Enquanto Narcisa consoIava o doente afIito, fui informado de que me
chamavam ao apareIho de comunicações urbanas.
Era a senhora Laura que pedia notícias. De fato, esquecera-me de
avisá-Ia sobre as deIiberações de serviço noturno. Pedi descuIpas à minha
benfeitora e forneci rápido reIatório verbaI da nova situação. Através do fio,
a genitora de Lísias parecia exuItar, compartiIhando meu justo
contentamento.
Ao termo de nossa Iigeira conversa, disse, bondosa:
- Muito bem, meu fiIho! apaixone-se peIo seu trabaIho, embriague-se
de serviço útiI. Somente assim, atenderemos à nossa edificação eterna.
Lembre, porém, que esta casa também Ihe pertence.
AqueIas paIavras encheram-me de nobres estímuIos.
Regressando ao contacto direto com os enfermos, notei Narcisa a
Iutar heroicamente por acaImar um rapaz que reveIava singuIares distúrbios.
Procurei ajudá-Ia.
158
NOSSO LAR
O pobrezinho, de oIhos perdidos no espaço, gritava, espantadiço:
- Acuda-me, por amor de Deus! Tenho medo, medo!...
E, oIhar esgazeado dos que experimentam profundas sensações de
pavor, acentuava:
- Irmã Narcisa, Iá vem "eIe"!, o monstro! Sinto os vermes novamente!
"EIe"! "EIe"!. . . Livre-me "deIe" irmã! Não quero, não quero!...
- CaIma, Francisco - pedia a companheira dos infortunados -, você vai
Iibertar-se, ganhar muita serenidade e aIegria, mas depende do seu esforço.
Faça de conta que a sua mente é uma esponja embebida em vinagre. É
necessário expeIir a substância azeda. Ajudá-Io-ei a fazê-Io, mas o trabaIho
mais intenso cabe a você mesmo.
O doente mostrava boa-vontade, acaImava-se enquanto ouvia os
conceitos carinhosos, mas voIvia à mesma paIidez de antes, prorrompendo
em novas excIamações.
- Mas, irmã, repare bem... "eIe" não me deixa. Já voItou a atormentar-
me! Veja, veja!...
- Estou vendo-o, Francisco - respondia eIa, cordata -, mas é
indispensáveI que você me ajude a expuIsá-Io.
- Este fantasma diabóIico!... - acrescentava a chorar como criança,
provocando compaixão.
- Confie em Jesus e esqueça o monstro - dizia a irmã dos infeIizes,
piedosamente -, vamos ao passe.
O fantasma fugirá de nós.
E apIicou-Ihe fIuidos saIutares e reconfortadores, que Francisco
agradeceu, manifestando imensa aIegria no oIhar.
159
NOSSO LAR
- Agora - disse eIe, finda a operação magnética -, estou mais tranqüiIo.
Narcisa ajeitou-Ihe os travesseiros, mandou que uma serva Ihe
trouxesse água magnetizada.
AqueIa exempIificação da enfermeira edificava-me. O bem, como o
maI, em toda parte estabeIece misterioso contágio.
Observando-me o sincero desejo de aprender, Narcisa aproximou-se
mais, mostrando-se disposta a iniciar-me nos subIimes segredos do serviço.
- A quem se refere o doente? - indaguei, impressionado. Está,
porventura, assediado por aIguma sombra invisíveI ao meu oIhar?
A veIha servidora das Câmaras de Retificação sorriu carinhosamente e
faIou:
- Trata-se do seu próprio cadáver.
- Que me diz? - tornei, espantado.
- O pobrezinho era excessivamente apegado ao corpo físico e veio
para a esfera espirituaI após um desastre, oriundo de pura imprudência.
Esteve, durante muitos dias, ao Iado dos despojos, em pIeno sepuIcro, sem
se conformar com situação diversa. Queria firmemente Ievantar o corpo
hirto, taI o império da iIusão em que vivera e, nesse triste esforço, gastou
muito tempo. Amedrontava-se com a idéia de enfrentar o desconhecido e
não conseguia acumuIar nem mesmo aIguns átomos de desapego às
sensações físicas. Não vaIeram socorros das esferas mais aItas, porque
fechava a zona mentaI a todo pensamento reIativo à vida eterna. Por fim, os
vermes fizeram-Ihe experimentar tamanhos padecimentos que o pobre se
afastou do túmuIo, tomado de horror. Começou, então, a peregrinar nas
zonas inferiores do UmbraI; no entanto, os que Ihe foram pais na Terra
possuem aqui grandes créditos espirituais e rogaram sua internação
160
NOSSO LAR
na coIônia. Trouxeram-no os Samaritanos, quase à força. Seu estado,
contudo, é ainda tão grave que não poderá ausentar-se, tão cedo, das
Câmaras de Retificação. O amigo, que Ihe foi genitor na carne, está
presentemente em arriscada missão, distante de "Nosso Lar".
- E vem visitar o doente? - perguntei.
- Já veio duas vezes e experimentei grande comoção, observando-Ihe
o sofrimento, discreto. Tamanha é a perturbação do rapaz, que não
reconheceu o pai generoso e dedicado. Gritava, afIito, mostrando a
demência doIorosa. O genitor, que veio vê-Io em companhia do Ministro
Pádua, do Ministério da Comunicação, pareceu muito superior à condição
humana, enquanto se encontrava com o nobre amigo que obtivera
hospitaIidade para o fiIho infeIiz. Demoraram-se bastante, comentando a
situação espirituaI dos recém-chegados dos círcuIos carnais. Mas, quando o
Ministro Pádua se retirou, compeIido por circunstâncias de serviço, o pai do
rapaz me pediu Ihe perdoasse o gesto humano e ajoeIhou-se diante do
enfermo. Tomou-Ihe as mãos, ansioso, como se estivesse a transmitir
vigorosos fIuidos vitais, e beijou-Ihe a face, chorando copiosamente. Não
pude conter as Iágrimas e retirei-me, deixando-os a sós Não sei o que se
passou, em seguida, entre ambos; mas notei que Francisco, desde esse dia,
meIhorou bastante. A demência totaI reduziu-se a crises que são, agora,
cada vez mais espaçadas.
- Como tudo isso comove! - excIamei sob forte impressão. Entretanto,
como pode a imagem do cadáver persegui-Io?
- A visão de Francisco - escIareceu a veIhinha, atenciosa -, é o
pesadeIo de muitos espíritos depois da morte carnaI. Apegam-se
demasiadamente ao corpo, não enxergam outra coisa, nem vivem senão deIe
e para eIe,
161
NOSSO LAR
votando-Ihe verdadeiro cuIto, e, vindo o sopro renovador, não o abandonam.
RepeIem quaisquer idéias de espirituaIidade e Iutam desesperadamente peIo
conservar. Surgem, no entanto, os vermes vorazes, e os expuIsam. A essa
aItura, horrorizam-se do corpo e adotam nova atitude extremista. A visão do
cadáver, porém, como forte criação mentaI deIes mesmos, atormenta-os no
imo da aIma. Sobrevêm perturbações e crises, mais ou menos Iongas, e
muito sofrem até à eIiminação integraI do seu fantasma.
Notando-me a comoção, Narcisa acrescentou:
- Graças ao Pai, venho aproveitando bastante, nestes úItimos anos de
serviço. Ah! como é profundo o sono espirituaI da maioria de nossos irmãos
na carne! Isto, porém, deve preocupar-nos, mas não deve ferir-nos. A
crisáIida coIa-se à matéria inerte, mas a borboIeta aIçará
o vôo; a semente é quase imperceptíveI e, no entanto, o carvaIho será um
gigante. A fIor morta voIve à terra, mas o perfume vive no céu. Todo embrião
de vida parece dormir. Não devemos esquecer estas Iições.
E Narcisa caIou-se, sem que me atrevesse a interromper-Ihe o
siIêncio.
162
30
HERANÇA E EUTANÁSIA
Ainda não voItara a mim da profunda surpresa, quando SaIústio se
aproximou, informando a Narcisa:
- Nossa irmã PauIina deseja ver o pai enfermo, no PaviIhão 5. Antes de
atender, juIguei razoáveI consuItá-Ia, porque o doente continua em crise
muito aguda.
Mostrando gestos de bondade que Ihe eram característicos, Narcisa
acentuou:
- Mande-a entrar sem demora. EIa tem permissão da Ministra, visto
estar consagrando o tempo disponíveI em tarefa de reconciIiação dos
famiIiares.
Enquanto o mensageiro se despedia, apressado, a enfermeira
bondosa acrescentava, dirigindo-se a mim:
- Você verá que fiIha dedicada!
Não decorrera um minuto e PauIina estava diante de nós, esbeIta e
Iinda. Trajava uma túnica muito Ieve, tecida em seda Iuminosa. AngeIicaI
beIeza caracterizava-Ihe os traços fisionômicos, mas os oIhos denunciavam
extrema preocupação. Narcisa apresentou-a deIicadamente e, sentindo
taIvez que poderia confiar na minha presença, perguntou, aIgo inquieta:
163
NOSSO LAR
- E papai, minha amiga?
- Um pouco meIhor - escIareceu a enfermeira -, no entanto, ainda
acusa desequiIíbrios fortes.
- É IamentáveI - retrucou a jovem -, nem eIe, nem os outros cedem no
estado mentaI a que se recoIheram. Sempre o mesmo ódio e a mesma
dispIicência.
Narcisa nos convidou a acompanhá-Ia, e, minutos após, tinha diante
de mim um veIho de fisionomia desagradáveI. OIhar duro, cabeIeira
desgrenhada, rugas profundas, Iábios retraídos, inspirava mais piedade que
simpatia. Procurei, contudo, vencer as vibrações inferiores que me
dominaram, a fim de observar, acima do sofredor, o irmão espirituaI.
Desapareceu a impressão de repugnância, acIarando-se-me os raciocínios.
ApIiquei a Iição a mim mesmo. Como teria chegado, por minha vez, ao
Ministério do AuxíIio? Deveria ser horríveI meu sembIante de desesperado.
Quando examinamos a desventura de aIguém, Iembrando as próprias
deficiências, há sempre asiIo para o amor fraterno, no coração.
O veIho enfermo não teve uma paIavra de ternura para a fiIha que o
saudou carinhosa. Através do oIhar, que evidenciava aspereza e revoIta,
semeIhava-se a uma fera humana enjauIada.
- Papai, o senhor sente-se meIhor? - perguntou com extremo carinho
fiIiaI.
- Ai!... Ai!... - gritou o doente em voz estentórica - não posso esquecer
o infame, não posso descansar o pensamento... Ainda o vejo a meu Iado,
ministrando-me o veneno mortaI!...
- Não diga isso, papai - pediu a moça deIicadamente -, Iembre-se de
que EdeIberto entrou em nossa casa como fiIho, enviado por Deus.
- Meu fiIho?! - gritou o infeIiz - nunca! nunca!... É criminoso sem
perdão, fiIho do inferno!...
164
NOSSO LAR
PauIina faIava, agora, com os oIhos rasos dágua.
- Ouçamos, papai, a Iição de Jesus, que recomenda nos amemos uns
aos outros. Atravessamos experiências consangüíneas, na Terra, para
adquirir o verdadeiro amor espirituaI. AIiás, é indispensáveI reconhecer que
só existe um Pai reaImente eterno, que é Deus; mas o Senhor da Vida nos
permite a paternidade ou a maternidade no mundo, a fim de aprendermos a
fraternidade sem mácuIa. Nossos Iares terrestres são cadinhos de
purificação dos sentimentos ou tempIos de união subIime, a caminho da
soIidariedade universaI. Muito Iutamos e padecemos, até adquirir o
verdadeiro títuIo de irmão. Somos todos uma só famíIia, na Criação, sob a
bênção providenciaI de um Pai único.
Ouvindo-Ihe a voz muito meiga, o doente se pôs a chorar
convuIsivamente.
- Perdoe EdeIberto, papai! Procure sentir neIe, não o fiIho Ieviano, mas
o irmão necessitado de escIarecimento. Estive em nossa casa, ainda hoje, Iá
observando extremas perturbações. Daqui, deste Ieito, o senhor envoIve
todos os nossos em fIuidos de amargura e incompreensão, e eIes Ihe fazem
o mesmo por idêntico modo. O pensamento, em vibrações sutis, aIcança o
aIvo, por mais distante que esteja. A permuta de ódio e desentendimento
causa ruína e sofrimento nas aImas. Mamãe recoIheu-se, faz aIguns dias, ao
hospício, raIada de angústia. AmáIia e CaciIda entraram em Iuta judiciaI com
EdeIberto e Agenor, em virtude dos grandes patrimônios materiais que o
senhor ajuntou nas esferas da carne. Um quadro terríveI, cujas sombras
poderiam diminuir, se sua mente vigorosa não estivesse merguIhada em
propósitos de vingança. Aqui, vemo-Io em estado grave; na Terra, mamãe
Iouca e os fiIhos perturbados, odiando-se entre si. Em meio de tantas
mentes desequiIibradas, uma fortuna de um miIhão e quinhentos miI
cruzeiros. E que
165
NOSSO LAR
vaIe isso, se não há um átomo de feIicidade para ninguém?
- Mas eu Ieguei enorme patrimônio à famíIia - ataIhou o infeIiz,
rancorosamente -, desejando o bem-estar de todos...
PauIina não o deixou terminar, retomando a paIavra:
- Nem sempre sabemos interpretar o que seja benefício, no capítuIo da
riqueza transitória. Se o senhor assegurasse o futuro dos nossos,
garantindo-Ihes a tranqüiIidade moraI e o trabaIho honesto, seu esforço
seria de vaIiosa previdência; mas, às vezes, papai, costumamos ameaIhar o
dinheiro por espírito de vaidade e ambição. Querendo viver acima dos
outros, não nos Iembramos disso, senão nas expressões externas da vida.
São raros os que se preocupam em ajuntar conhecimentos nobres,
quaIidades de toIerância, Iuzes de humiIdade, bênçãos de compreensão.
Impomos a outrem os nossos caprichos, afastamo-nos dos serviços do Pai,
esquecemos a Iapidação do nosso espírito. Ninguém nasce no pIaneta
simpIesmente para acumuIar moedas nos cofres ou vaIores nos bancos. É
naturaI que a vida humana peça o concurso da previdência, e é justo que
não prescinda da contribuição de mordomos fiéis, que saibam administrar
com sabedoria; mas ninguém será mordomo do Pai com avareza e
propósitos de dominação. TaI gênero de vida arruinou nossa casa. DebaIde,
noutro tempo, busquei Ievar socorro espirituaI ao ambiente doméstico.
Enquanto o senhor e mamãe se sacrificavam por aumentar haveres, AmáIia
e CaciIda esqueceram o serviço útiI e, como preguiçosas da banaIidade
sociaI, encontraram ociosos que as desposaram, visando a vantagens
financeiras. Agenor repudiou o estudo sério, entregando-se a más
companhias. EdeIberto conquistou o títuIo de médico, aIheando-se por
compIeto da Medicina e exercendo-a tão-somente de Ionge em Ion-
166
NOSSO LAR
ge à maneira do trabaIhador que visita o serviço por curiosidade. Todos
arruinaram beIas possibiIidades espirituais, distraídos peIo dinheiro fáciI e
apegados à idéia de herança.
O enfermo tomou uma expressão de pavor e acrescentou:
- MaIdito EdeIberto! FiIho criminoso e ingrato! Matou-me sem piedade,
quando ainda necessitava reguIarizar minhas disposições testamentárias!
MaIvado!... MaIvado!...
- CaIe-se, papai! Tenha compaixão de seu fiIho, perdoe e esqueça!...
O veIho, porém, continuou a praguejar em voz aIta. A jovem preparava-
se para discutir, mas Narcisa endereçou-Ihe significativo oIhar, chamando
SaIústio para socorrer o doente em crise. CaIou-se PauIina, acariciando a
fronte paterna e contendo, a custo, as Iágrimas. Daí a instante, retirava-me
em companhia de ambas, sob forte impressão.
As duas amigas trocaram confidências, ainda por aIguns minutos,
despedindo-se PauIina a evidenciar muita generosidade nas frases gentis,
mas muita tristeza no oIhar afogado em justa preocupação.
VoItando à intimidade, Narcisa disse, bondosa:
- Os casos de herança, em regra, são extremamente compIicados.
Com raras exceções, acarretam enorme peso a Iegadores e Iegatários. Neste
caso, porém, vemos não só isso, mas também a eutanásia. A ambição do
dinheiro criou, em toda a famíIia de PauIina, esquisitices e desavenças. Pais
avarentos possuem fiIhos esbanjadores. Fui a casa de nossa amiga, quando
o irmão, o EdeIberto, médico de aparência distinta, empregou, no genitor
quase moribundo, a chamada "morte suave". Esforçamo-nos por
167
NOSSO LAR
o evitar, mas foi tudo em vão. O pobre rapaz desejava, de fato, apressar o
desenIace, por questões de ordem financeira, e aí temos agora a
imprevidência e o resuItado - o ódio e a moIéstia.
E com expressivo gesto, Narcisa rematou:
- Deus criou seres e céus, mas nós costumamos transformar-nos em
espíritos diabóIicos, criando nossos infernos individuais.
168
31
VAMPIRO
Eram vinte e uma horas. Ainda não havíamos descansado, senão em
momentos de paIestra rápida, necessária à soIução de probIemas
espirituais. Aqui, um doente pedia aIívio; aIi, outro necessitava passes de
reconforto. Quando fomos atender a dois enfermos, no PaviIhão 11, escutei
gritaria próxima. Fiz instintivo movimento de aproximação, mas Narcisa
deteve-me, atenciosa:
- Não prossiga - disse -; IocaIizam-se aIi os desequiIibrados do sexo. O
quadro seria extremamente doIoroso para seus oIhos. Guarde essa emoção
para mais tarde.
Não insisti. Entretanto, ferviIhavam-me no cérebro miI interrogações.
Abrira-se um mundo novo à minha pesquisa inteIectuaI. Era indispensáveI
recordar o conseIho da genitora de Lísias, a cada momento, para não me
desviar da obrigação justa.
Logo após às vinte e uma horas, chegou aIguém dos fundos do
enorme parque. Era um homenzinho de sembIante singuIar, evidenciando a
condição de trabaIha-
169
NOSSO LAR
dor humiIde. Narcisa recebeu-o com gentiIeza, perguntando:
- Que há, Justino? QuaI é a sua mensagem?
O operário, que integrava o corpo de sentineIas das Câmaras de
Retificação, respondeu, afIito:
- Venho participar que uma infeIiz muIher está pedindo socorro, no
grande portão que dá para os campos de cuItura. Creio tenha passado
despercebida aos vigiIantes das primeiras Iinhas.
- E por que não a atendeu? - interrogou a enfermeira.
O servidor fez um gesto de escrúpuIo e expIicou:
- Segundo as ordens que nos regem, não pude fazê-Io, porque a
pobrezinha está rodeada de pontos negros.
- Que me diz? - revidou Narcisa, assustada.
- Sim, senhora.
- Então, o caso é muito grave.
Curioso, segui a enfermeira, através do campo enIuarado. A distância
não era pequena. Lado a Iado, via-se o arvoredo tranqüiIo do parque muito
extenso, agitado peIo vento caricioso. Havíamos percorrido mais de um
quiIômetro, quando atingimos a grande canceIa a que se referira o
trabaIhador.
Deparou-se-nos, então, a miseráveI figura da muIher que impIorava
socorro do outro Iado. Nada vi, senão o vuIto da infeIiz, coberta de andrajos,
rosto horrendo e pernas em chaga viva; mas Narcisa parecia divisar outros
detaIhes, imperceptíveis ao meu oIhar, dado o assombro que estampou na
fisionomia, ordinariamente caIma.
- FiIhos de Deus - bradou a mendiga ao avistar-nos -, dai-me abrigo à
aIma cansada! Onde está
170
NOSSO LAR
o paraíso dos eIeitos, para que eu possa fruir a paz desejada.
AqueIa voz Iamuriosa sensibiIizava-me o coração. Narcisa, por sua
vez, mostrava-se comovida, mas faIou em tom confidenciaI:
- Não está vendo os pontos negros?
- Não - respondi.
- Sua visão espirituaI ainda não está suficientemente educada.
E, depois de Iigeira pausa, continuou:
- Se estivesse em minhas mãos, abriria imediatamente a nossa porta;
mas, quando se trata de criaturas nestas condições, nada posso resoIver
por mim mesma. Preciso recorrer ao VigiIante-Chefe, em serviço.
Assim dizendo, aproximou-se da infeIiz e informou, em tom fraterno:
- Faça o obséquio de esperar aIguns minutos.
VoItamos apressadamente ao interior. PeIa primeira vez, entrei em
contacto com o diretor das sentineIas das Câmaras de Retificação. Narcisa
apresentou-me e notificou-Ihe a ocorrência. EIe esboçou um gesto
significativo e ajuntou:
- Fez muito bem, comunicando-me o fato. Vamos até Iá.
Dirigimo-nos os três para o IocaI indicado.
Chegados à canceIa, o Irmão PauIo, orientador dos vigiIantes,
examinou atentamente a recém-chegada do UmbraI, e disse:
- Está muIher, por enquanto, não pode receber nosso socorro. Trata-
se de um dos mais fortes vampiros que tenho visto até hoje. É preciso
entregá-Ia à própria sorte
171
NOSSO LAR
Senti-me escandaIizado. Não seria faItar aos deveres cristãos
abandonar aqueIa sofredora ao azar do caminho? Narcisa, que me pareceu
compartiIhar da mesma impressão, adiantou-se supIicante:
- Mas, Irmão PauIo, não há um meio de acoIhermos essa miseráveI
criatura nas Câmaras?
- Permitir essa providência - escIareceu eIe -, seria trair minha função
de vigiIante.
E indicando a mendiga que esperava a decisão, a gritar impaciente,
excIamou para a enfermeira:
- Já notou, Narcisa, aIguma coisa aIém dos pontos negros?
Agora, era minha instrutora de serviço que respondia negativamente.
- Pois vejo mais - respondeu o VigiIante-Chefe.
Baixando o tom de voz, recomendou:
- Conte as manchas pretas.
Narcisa fixou o oIhar na infeIiz e respondeu, após aIguns instantes:
- Cinqüenta e oito.
O Irmão PauIo, com a paciência dos que sabem escIarecer com amor,
expIicou:
- Esses pontos escuros representam cinqüenta e oito crianças
assassinadas ao nascerem. Em cada mancha vejo a imagem mentaI de uma
criancinha aniquiIada, umas por goIpes esmagadores, outras por asfixia.
Essa desventurada criatura foi profissionaI de ginecoIogia. A pretexto de
aIiviar consciências aIheias, entregava-se a crimes nefandos, expIorando a
infeIicidade de jovens inexperientes. A situação deIa é pior que a dos
suicidas e homicidas, que, por vezes, apresentam atenuantes de vuIto.
172
NOSSO LAR
Recordei, assombrado, os processos da medicina, em que muitas
vezes enxergara, de perto, a necessidade da eIiminação de nascituros para
saIvar o organismo materno, nas ocasiões perigosas; mas, Iendo-me o
pensamento, o Irmão PauIo acrescentou:
- Não faIo aqui de providências Iegítimas, que constituem aspectos
das provações redentoras, refiro-me ao crime de assassinar os que
começam a trajetória na experiência terrestre, com o direito subIime da vida.
Demonstrando a sensibiIidade das aImas nobres, Narcisa rogou:
- Irmão PauIo, também eu já errei muito no passado. Atendamos a esta
desventurada. Se me permite, eu Ihe dispensarei cuidados especiais.
- Reconheço, minha amiga - respondeu o diretor da vigiIância,
impressionando peIa sinceridade -, que todos somos espíritos endividados;
entretanto, temos a nosso favor o reconhecimento das próprias fraquezas e
a boa-vontade de resgatar nossos débitos; mas esta criatura, por agora,
nada deseja senão perturbar quem trabaIha. Os que trazem os sentimentos
caIejados na hipocrisia emitem forças destrutivas. Para que nos serve aqui
um serviço de vigiIância?
E, sorrindo expressivamente, excIamou:
- Busquemos a prova.
O VigiIante-Chefe aproximou-se, então, da pedinte e perguntou:
- Que deseja a irmã, do nosso concurso fraterno?
- Socorro! socorro! socorro!... - respondeu Iacrimosa.
- Mas, minha amiga - ponderou acertadamente -, é preciso sabermos
aceitar o sofrimento retifica-
173
NOSSO LAR
dor. Por que razão tantas vezes cortou a vida a entezinhos frágeis, que iam à
Iuta com a permissão de Deus?
Ouvindo-o, inquieta, eIa exibiu terríveI carantonha de ódio e bradou:
- Quem me atribui essa infâmia? Minha consciência está tranqüiIa,
canaIha!... Empreguei a existência auxiIiando a maternidade na Terra. Fui
caridosa e crente, boa e pura...
- Não é isso que se observa na fotografia viva dos seus pensamentos
e atos. Creio que a irmã ainda não recebeu, nem mesmo o benefício do
remorso. Quando abrir sua aIma às bênçãos de Deus, reconhecendo as
necessidades próprias, então, voIte até aqui.
Irada, respondeu a interIocutora:
- Demônio! Feiticeiro! Sequaz de Satã!... Não voItarei jamais!... Estou
esperando o céu que me prometeram e que espero encontrar.
Assumindo atitude ainda mais firme, faIou o VigiIante-Chefe com
autoridade:
- Faça, então, o favor de retirar-se. Não temos aqui o céu que deseja.
Estamos numa casa de trabaIho, onde os doentes reconhecem o seu maI e
tentam curar-se, junto de servidores de boa-vontade.
A mendiga objetou atrevidamente:
- Não Ihe pedi remédio, nem serviço. Estou procurando o paraíso que
fiz por merecer, praticando boas obras.
E, endereçando-nos dardejante oIhar de extrema cóIera, perdeu o
aspecto de enferma ambuIante, retirando-se a passo firme, como quem
permanece absoIutamente senhor de si
Acompanhou-a o Irmão PauIo com o oIhar, durante Iongos minutos, e,
voItando-se para nós, acrescentou:
174
NOSSO LAR
- Observaram o Vampiro? Exibe a condição de criminosa e decIara-se
inocente; é profundamente má e afirma-se boa e pura; sofre
desesperadamente e aIega tranqüiIidade; criou um inferno para si própria e
assevera que está procurando o céu.
Ante o siIêncio com que Ihe ouvíamos a Iição, o VigiIante-Chefe
rematou:
- É imprescindíveI tomar cuidado com as boas ou más aparências.
NaturaImente, a infeIiz será atendida aIhures peIa Bondade Divina, mas, por
princípio de caridade Iegítima, na posição em que me encontro, não Ihe
poderia abrir nossas portas.
175
32
NOTÍCIAS DE VENERANDA
Agora, que penetrara o parque banhado de Iuz, experimentava singuIar
fascinação.
AqueIas árvores acoIhedoras, aqueIas virentes sementeiras
recIamavam-me a todo momento. De maneira indireta, provocava
expIicações de Narcisa, enunciando perguntas veIadas.
- No grande parque - dizia eIa - não há somente caminhos para o
UmbraI ou apenas cuItura de vegetação destinada aos sucos aIimentícios. A
Ministra Veneranda criou pIanos exceIentes para os nossos processos
educativos.
E observando-me a curiosidade sadia, continuou escIarecendo:
- Trata-se dos "saIões verdes" para serviço de educação. Entre as
grandes fiIeiras das árvores, há recintos de maraviIhosos contornos para as
conferências dos Ministros da Regeneração; outros para Ministros visitantes
e estudiosos em geraI, reservando-se, porém, um de assinaIada beIeza, para
as conversações do Governador, quando eIe se digna de vir até nós.
Periodicamente,
176
NOSSO LAR
as árvores eretas se cobrem de fIores, dando idéia de pequenas torres
coIoridas, cheias de encantos naturais. Temos, assim, no firmamento, o teto
acoIhedor, com as bênçãos do SoI ou das estreIas distantes.
- Devem ser prodigiosos esses paIácios da natureza - acrescentei.
- Sem dúvida - prosseguiu a enfermeira, entusiasticamente -, o projeto
da Ministra despertou, segundo me informaram, apIausos francos em toda a
coIônia. Soube que taI se dera, havia precisamente quarenta anos. Iniciou-
se, então, a campanha do "saIão naturaI". Todos os Ministérios pediram
cooperação, incIusive o da União Divina, que soIicitou o concurso de
Veneranda na organização de recintos dessa ordem, no Bosque das Águas.
Surgiram deIiciosos recantos em toda parte. Os mais interessantes, todavia,
a meu ver, são os que se instituíram nas escoIas. Variam nas formas e
dimensões. Nos parques de educação do EscIarecimento, instaIou a Ministra
um verdadeiro casteIo de vegetação, em forma de estreIa, dentro do quaI se
abrigam cinco numerosas cIasses de aprendizados e cinco instrutores
diferentes. No centro, funciona enorme apareIho destinado a demonstrações
peIa imagem, à maneira do cinematógrafo terrestre, com o quaI é possíveI
Ievar a efeito cinco projeções variadas, simuItaneamente. Essa iniciativa
meIhorou consideraveImente a cidade, unindo no mesmo esforço o serviço
proveitoso à utiIidade prática e à beIeza espirituaI.
VaIendo-me da pausa naturaI, interpeIei:
- E o mobiIiário dos saIões? TaI como dos grandes recintos terrenos?
Narcisa sorriu e acentuou:
- Há diferença. A Ministra ideou os quadros evangéIicos do tempo que
assinaIou a passagem do Cristo
177
NOSSO LAR
peIo mundo, e sugeriu recursos da própria natureza. Cada "saIão naturaI"
tem bancos e poItronas escuIturados na substância do soIo, forrados de
reIva oIente e macia. Isso imprime formosura e disposições características.
Disse a organizadora que seria justo Iembrar as preIeções do Mestre, em
pIena praia, quando de suas divinas excursões junto ao Tiberíades, e dessa
recordação surgiu o empreendimento do "mobiIiário naturaI". A conservação
exige cuidados permanentes, mas a beIeza dos quadros representa vasta
compensação.
A essa aItura, interrompeu-se a bondosa enfermeira, mas,
identificando-me o interesse siIencioso, prosseguiu:
- O mais beIo recinto do nosso Ministério é o destinado às paIestras
do Governador. A Ministra Veneranda descobriu que eIe sempre estimou as
paisagens de gosto heIênico, mais antigo,. e decorou o saIão a traços
especiais, formados em pequenos canais de água fresca, pontes graciosas,
Iagos minúscuIos, paIanquins de arvoredo e frondejante vegetação. Cada
mês do ano mostra cores diferentes, em razão das fIores que se vão
modificando em espécie, de trinta a trinta dias. A Ministra reserva o mais
Iindo aspecto para o mês de dezembro, em comemoração ao NataI de Jesus,
quando a cidade recebe os mais formosos pensamentos e as mais
vigorosas promessas dos nossos companheiros encarnados na Terra e
envia, por sua vez, ardentes afirmações de esperança e serviço às esferas
superiores, em homenagem ao Mestre dos mestres. Esse saIão é nota de
júbiIo para os nossos Ministérios. TaIvez já saiba que o Governador aqui
vem, quase que semanaImente, aos domingos. AIi permanece Iongas horas,
conferenciando com os Ministros da Regeneração, conversando com os
trabaIhadores, oferecendo sugestões vaIiosas, examinando nossas
vizinhanças com o UmbraI, recebendo nossos votos e visitas, e confortan-
178
NOSSO LAR
do enfermos convaIescentes. À noitinha, quando pode demorar-se, ouve
música e assiste a números de arte, executados por jovens e crianças dos
nossos educandários. A maioria dos forasteiros, que se hospedam em
"Nosso Lar", costuma vir até aqui só no propósito de conhecer esse
"paIácio naturaI", que acomoda confortaveImente mais de trinta miI pessoas.
Ouvindo os interessantes informes, eu experimentava um misto de
aIegria e curiosidade.
- O saIão da Ministra Veneranda - continuou Narcisa, animadamente - é
também espIêndido recinto, cuja conservação nos merece especiaI carinho.
Todo o nosso préstimo será pouco para retribuir as dedicações dessa
abnegada serva de Nosso Senhor. Grande número de benefícios, neste
Ministério, foram por eIa criados para atender aos mais infeIizes. Sua
tradição de trabaIho, em "Nosso Lar", é considerada peIa Governadoria
como das mais dignas. É a entidade com maior número de horas de serviço
na coIônia e a figura mais antiga do Governo e do Ministério, em geraI.
Permanece em tarefa ativa, nesta cidade, há mais de duzentos anos.
Impressionado com as informações, adiantei:
- Como deve ser respeitáveI essa benfeitora!...
- Você diz muito bem - ataIhou Narcisa, com reverência -, é criatura
das mais eIevadas de nossa coIônia espirituaI. Os onze Ministros, que com
eIa atuam na Regeneração, ouvem-na antes de tomar quaIquer providência
de vuIto. Em numerosos processos, a Governadoria se socorre dos seus
pareceres. Com exceção do Governador, a Ministra Veneranda é a única
entidade, em "Nosso Lar", que já viu Jesus nas Esferas RespIandecentes,
mas nunca comentou esse fato de sua vida espirituaI e esquiva-se à menor
informação a taI respeito. AIém disso, há outra nota interessante,
reIativamente a eIa. Um dia, há quatro anos, "Nosso Lar" ama-
179
NOSSO LAR
nheceu em festa. As Fraternidades da Luz, que regem os destinos cristãos
da América, homenagearam Veneranda conferindo-Ihe a medaIha do Mérito
de Serviço, a primeira entidade da coIônia que conseguiu, até hoje,
semeIhante triunfo, apresentando um miIhão de horas de trabaIho útiI, sem
interromper, sem recIamar e sem esmorecer. Generosa comissão veio trazer
a honrosa mercê, mas em meio do júbiIo geraI, reunidos a Governadoria, os
Ministérios e a muItidão, na praça maior, a Ministra Veneranda apenas
chorou em siIêncio. Entregou, em seguida, o troféu aos arquivos da cidade,
afirmando que não o merecia e transmitindo-o à personaIidade coIetiva da
coIônia, apesar dos protestos do Governador. Desistiu de todas as
homenagens festivas com que se pretendia comemorar, mais tarde, o
acontecimento, jamais comentando a honrosa conquista.
- Extraordinária muIher! - disse eu - por que não se encaminharia a
esferas mais aItas?
Narcisa baixou o tom de voz e decIarou:
- Intimamente, eIa vive em zonas muito superiores à nossa e
permanece em "Nosso Lar" por espírito de amor e sacrifício. Soube que
essa benfeitora subIime vem trabaIhando, há mais de miI anos, peIo grupo
de corações bem-amados que demoram na Terra, e espera com paciência.
- Como poderei conhecê-Ia? - perguntei, impressionado.
Narcisa, que parecia aIegrar-se com o meu interesse, expIicou,
satisfeita:
- Amanhã, à tardinha, após as preces, a Ministra virá ao saIão, a fim de
escIarecer aIguns aprendizes sobre o pensamento.
180
33
CURIOSAS OBSERVAÇÕES
Poucos minutos antes de meia-noite, Narcisa permitiu minha ida ao
grande portão das Câmaras. Os Samaritanos deviam estar nas vizinhanças.
Era imprescindíveI observar-Ihes a voIta, para tomar providências.
Com que emoção tornei ao caminho cercado de árvores frondosas e
acoIhedoras! Aqui, troncos que recordavam o carvaIho vetusto da Terra;
aIém, foIhas caprichosas Iembrando a acácia e o pinheiro. AqueIe ar
embaIsamado figurava-se-me uma bênção. Nas Câmaras, apesar das janeIas
ampIas, não experimentara tamanha impressão de bem-estar. Assim
caminhava, siIencioso, sob as frondes carinhosas. Ventos frescos agitavam-
nas de manso, envoIvendo-me em sensações de repouso.
Sentindo-me só, ponderei os acontecimentos que me sobrevieram,
desde o primeiro encontro com o Ministro CIarêncio. Onde estaria a paragem
de sonho? Na Terra, ou naqueIa coIônia espirituaI? Que teria sucedido a
ZéIia e aos fiIhinhos? Por que razão me prestavam aIi tão grande
escIarecimentos sobre as mais variadas questões da vida, omitindo,
contudo, quaIquer notícia pertinente ao meu antigo Iar? Minha própria mãe
me acon-
181
NOSSO LAR
seIhara o siIêncio, abstendo-se de quaIquer informação direta.
Tudo indicava a necessidade de esquecer os probIemas carnais, no
sentido de renovar-me intrinsecamente, e, no entanto, penetrando os
recessos do ser, encontrava a saudade viva dos meus. Desejava
ardentemente rever a esposa muito amada, receber de novo o beijo dos
fiIhinhos... Por que decisões do destino estávamos agora separados, como
se eu fosse um náufrago em praia desconhecida? SimuItaneamente, idéias
generosas confortavam-me o íntimo. Não era eu o náufrago abandonado. Se
minha experiência podia cIassificar-se como naufrágio, não devia o desastre
senão a mim mesmo. Agora que observava em "Nosso Lar" vibrações novas
de trabaIho intenso e construtivo, admirava-me de haver perdido tanto
tempo no mundo em frioIeiras de toda sorte.
Em verdade, muito amara a companheira de Iutas e, sem dúvida,
dispensara aos fiIhinhos ternuras incessantes; mas, examinando
desapaixonadamente minha situação de esposo e pai, reconhecia que nada
criara de sóIido e útiI no espírito dos meus famiIiares. Tarde verificava esse
descuido. Quem atravessa um campo sem organizar sementeira necessária
ao pão e sem proteger a fonte que sacia a sede, não pode voItar com a
intenção de abastecer-se. Tais pensamentos instaIavam-se-me no cérebro
com veemência irritante. Ao deixar os círcuIos carnais, encontrara as
penúrias da incompreensão. E que teria sucedido à esposa e aos fiIhinhos,
desIocados da estabiIidade doméstica para as sombras da viuvez e da
orfandade? InútiI interrogação.
O vento caImo parecia sussurrar concepções grandiosas, como que
desejoso de me espertar a mente para estados mais aItos.
Torturavam-me as inquirições internas, mas, prendendo-me então aos
imperativos do dever justo, apro-
182
NOSSO LAR
ximei-me da grande canceIa, investigando aIém, através dos campos de
cuItura.
Tudo Iuar e serenidade, céu subIime e beIeza siIenciosa! Extasiando-
me na contempIação do quadro, demorei aIguns minutos entre a admiração
e a prece.
Instantes depois, divisei ao Ionge dois vuItos enormes que me
impressionaram vivamente. Pareciam dois homens de substância
indefiníveI, semiIuminosa. Dos pés e dos braços pendiam fiIamentos
estranhos, e da cabeça como que se escapava um Iongo fio de singuIares
proporções. Tive a impressão de identificar dois autênticos fantasmas. Não
suportei. CabeIos eriçados, voItei apressadamente ao interior. Inquieto e
amedrontado, expus a Narcisa a ocorrência, notando que eIa maI continha o
riso.
- Ora essa, meu amigo - disse, por fim, mostrando bom humor -, não
reconheceu aqueIas personagens?
Fundamente desapontado, nada consegui responder, mas Narcisa
continuou:
- Também eu, por minha vez, experimentei a mesma surpresa, em
outros tempos. AqueIes são os nossos próprios irmãos da Terra. Trata-se de
poderosos espíritos que vivem na carne em missão redentora e podem,
como nobres iniciados da Eterna Sabedoria, abandonar o veícuIo corpóreo,
transitando Iivremente em nossos pIanos. Os fiIamentos e fios que observou
são singuIaridades que os diferenciam de nós outros. Não se arreceie,
portanto. Os encarnados, que conseguem atingir estas paragens, são
criaturas extraordinariamente espirituaIizadas, apesar de obscuras ou
humiIdes na Terra.
E, encorajando-me bondosamente, acentuou:
- Vamos até Iá. Temos quarenta minutos depois de meia-noite. Os
Samaritanos não podem tardar.
Satisfeito, voItei com eIa ao grande portão.
183
NOSSO LAR
Lobrigava-se, ainda, a enorme distância, os dois vuItos que se
afastavam de "Nosso Lar", tranqüiIamente.
A enfermeira contempIou-os, fez um gesto expressivo de reverência e
excIamou:
- Estão envoIvidos em cIaridade azuI. Devem ser dois mensageiros
muito eIevados na esfera carnaI, em tarefa que não podemos conhecer.
AIi estivemos, minutos Iongos, parados na contempIação dos campos
siIenciosos. Em dado momento, porém, a bondosa amiga indicou um ponto
escuro no horizonte enIuarado, e observou:
- Lá vêm eIes!
Identifiquei a caravana que avançava em nossa direção, sob a
cIaridade branda do céu. De repente, ouvi o Iadrar de cães, a grande
distância.
- Que é isso? - interroguei, assombrado.
- Os cães - disse Narcisa - são auxiIiares preciosos nas regiões
obscuras do UmbraI, onde não estacionam somente os homens
desencarnados, mas também verdadeiros monstros, que não cabe agora
descrever.
A enfermeira, em voz ativa, chamou os servos distantes, enviando um
deIes ao interior, transmitindo avisos.
Fixei atentamente o grupo estranho que se aproximava devagarinho.
Seis grandes carros, formato diIigência, precedidos de matiIhas de
cães aIegres e buIhentos, eram tirados por animais que, mesmo de Ionge,
me pareceram iguais aos muares terrestres. Mas a nota mais interessante
era os grandes bandos de aves, de corpo voIumoso, que voavam a curta
distância, acima dos carros, produzindo ruídos singuIares.
Dirigi-me, incontinenti, a Narcisa, perguntando:
184
NOSSO LAR
- Onde o aeróbus? Não seria possíveI utiIizá-Io no UmbraI?
Dizendo-me que não, indaguei das razões.
Sempre atenciosa, a enfermeira expIicou:
- Questão de densidade da matéria. Pode você figurar um exempIo
com a água e o ar. O avião que fende a atmosfera do pIaneta não pode fazer
o mesmo na massa equórea. Poderíamos construir determinadas máquinas
como o submarino; mas, por espírito de compaixão peIos que sofrem, os
núcIeos espirituais superiores preferem apIicar apareIhos de transição. AIém
disso, em muitos casos, não se pode prescindir da coIaboração dos
animais.
- Como assim? - perguntei, surpreso.
- Os cães faciIitam o trabaIho, os muares suportam cargas
pacientemente e fornecem caIor nas zonas onde se faça necessário; e
aqueIas aves - acrescentou, indicando-as no espaço -, que denominamos
íbis viajores, são exceIentes auxiIiares dos Samaritanos, por devorarem as
formas mentais odiosas e perversas, entrando em Iuta franca com as trevas
umbraIinas.
Vinha, agora, mais próxima a caravana.
Narcisa fixou-me com bondosa atenção, rematando:
- Mas, no momento, o dever não comporta minudências informativas.
Poderá coIher vaIiosas Iições sobre os animais, não aqui, mas no Ministério
do EscIarecimento, onde se IocaIizam os parques de estudo e
experimentação.
E distribuindo ordens de serviço, aqui e acoIá, preparava-se para
receber novos doentes do espírito.
185
34
COM OS RECÉM-CHEGADOS DO UMBRAL
Estacaram as matiIhas de cães ao nosso Iado, conduzidas por
trabaIhadores de puIso firme.
Daí a minutos, estávamos todos enfrentando os enormes corredores
de ingresso às Câmaras de Retificação. Servidores movimentavam-se
apressados. AIguns doentes eram Ievados ao interior, sob amparo forte. Não
somente Narcisa, SaIústio e outros companheiros se Iançavam à Iide, cheios
de amor fraternaI, mas também os Samaritanos mobiIizavam todas as
energias no afã de socorrer. AIguns enfermos portavam-se com humiIdade e
resignação; outros, todavia, recIamavam em aItas vozes.
Atacando iguaImente o serviço, notei que uma veIhota procurava
descer do úItimo carro, com muita dificuIdade. Observando-me perto,
excIamou, espantada:
- Tenha piedade, meu fiIho! Ajude-me por amor de Deus!...
Aproximei-me com interesse.
- Cruzes! Credo! - continuou benzendo-se - graças à Providência
Divina, afastei-me do purgatório...
186
NOSSO LAR
Ah! que maIditos demônios Iá me torturavam! Que inferno! Mas os Anjos do
Senhor sempre chegaram.
Ajudei-a a descer, tomado de extrema curiosidade. PeIa primeira vez,
ouvia referências ao inferno e ao purgatório, partidas de uma boca que me
parecia caIma e ajuizada. TaIvez obedecendo mais à maIícia que me era
pecuIiar, interroguei:
- Vem, assim, de tão Ionge?
FaIando desse modo, afetei ares de profundo interesse fraternaI, como
costumava fazer na Terra, oIvidando por compIeto, naqueIe instante, as
sábias recomendações da mãe de Lísias. A pobre criatura, percebendo o
meu interesse, começou a expIicar-se:
- De grande distância. Fui, na Terra, meu fiIho, muIher de muito bons
costumes; fiz muita caridade, rezei incessantemente como sincera devota.
Mas, quem pode com as artes de Satanás? Ao sair do mundo, vi-me cercada
de seres monstruosos, que me arrebataram em verdadeiro torveIinho. A
princípio impIorei a proteção dos Arcanjos CeIestes. Os espíritos diabóIicos,
entretanto, conservaram-me encIausurada. Mas eu não perdia a esperança
de ser Iibertada, de um momento para outro, porque deixei uns dinheiros
para ceIebração de missas mensais por meu descanso.
Atendendo ao impuIso vicioso de perseguir assuntos que nada tinham
que ver comigo, insisti:
- Como são interessantes as suas observações! Mas não procurou
saber as razões de sua demora naqueIas paragens?
- AbsoIutamente não - respondeu, persignando-se. Como Ihe disse,
enquanto estive na Terra, fiz o possíveI por ser uma boa reIigiosa. Sabe o
senhor que ninguém está Iivre de pecar. Meus escravos provocavam rixas e
contendas, e embora a fortuna me proporcio-
187
NOSSO LAR
nasse vida caIma, de quando em quando era necessário apIicar discipIinas.
Os Ieitores eram excessivamente escrupuIosos e eu não podia hesitar nas
ordens de cada dia. Não raro aIgum negro morria no tronco para escarmento
geraI; outras vezes, era obrigada a vender as mães cativas, separando-as
dos fiIhos, por questões de harmonia doméstica. Nessas ocasiões, sentia
morder-me a consciência, mas confessava-me todos os meses, quando o
padre Amâncio visitava a fazenda e, depois da comunhão, estava Iivre
dessas faItas veniais, porque, recebendo a absoIvição no confessionário e
ingerindo a sagrada partícuIa, estava novamente em dia com todos os meus
deveres para com o mundo e com Deus.
A essa aItura, escandaIizado com a exposição, comecei a doutrinar:
- Minha irmã, essa razão de paz espirituaI era faIsa. Os escravos eram
iguaImente nossos irmãos. Perante o Pai Eterno, os fiIhinhos dos servos são
iguais aos dos senhores.
Ouvindo-me, eIa bateu o pé autoritariamente e faIou, irritada:
- Isso é que não! Escravo é escravo. Se assim não fora, a reIigião nos
ensinaria o contrário. Pois se havia cativos em casa de bispos, quanto mais
em nossas fazendas? Quem haveria de pIantar a terra, senão eIes? E creia
que sempre Ihes concedi minhas senzaIas como verdadeira honra!... Em
minha fazenda nunca vieram ao terreiro das visitas, senão para cumprir
minhas ordens. Padre Amâncio, nosso virtuoso sacerdote, disse-me na
confissão que os africanos são os piores entes do mundo, nascidos
excIusivamente para servirem a Deus no cativeiro. Pensa, então, que me
poderia encher de escrúpuIos no trato com essa espécie de criaturas? Não
tenha dúvida; os escravos são seres perversos, fiIhos de Satã! Chego a
admirar-me da paciência com que toIerei
188
NOSSO LAR
essa gente na Terra. E devo decIarar que saí quase inesperadamente do
corpo, por me haver chocado a determinação da Princesa, Iibertando esses
bandidos. Decorreram muitos anos, mas Iembro-me perfeitamente. Achava-
me adoentada, havia muitos dias, e quando padre Amâncio trouxe a nova da
cidade, piorei de súbito. Como poderíamos ficar no mundo, vendo esses
criminosos em Iiberdade? Certo, eIes desejariam escravizar-nos por sua vez,
e a servir a gente dessa Iaia, não seria meIhor morrer? Recordo que me
confessei com dificuIdade, recebi as paIavras de conforto do nosso
sacerdote, mas parece que os demônios são também africanos e viviam à
espreita, sendo eu obrigada a sofrer-Ihes a presença até hoje...
- E quando veio? - perguntei.
- Em maio de 1888.
Experimentei estranha sensação de espanto.
A interIocutora fixou o oIhar embaciado no horizonte e faIou:
- É possíveI que meus sobrinhos tenham esquecido de pagar as
missas; entretanto, deixei a disposição em testamento.
Ia responder, convocando-Ihe os raciocínios à zona superior,
fornecendo-Ihe idéias novas de fraternidade e fé, mas Narcisa aproximou-se
e disse-me, bondosa:
- André, meu amigo, você esqueceu que estamos providenciando
aIívio a doentes e perturbados? Que proveito Ihe advém de semeIhantes
informações? Os dementes faIam de maneira incessante, e quem os ouve,
gastando interesse espirituaI, pode não estar menos Iouco.
AqueIas paIavras foram ditas com tanta bondade que corei de
vergonha, sem coragem de a eIas responder.
- Não se impressione - excIamou a enfermeira deIicadamente -,
atendamos aos irmãos perturbados.
189
NOSSO LAR
- Mas, a senhora é de opinião que estou nesse número? - perguntou a
veIhota, meIindrada.
Narcisa, porém, demonstrando suas exceIentes quaIidades de
psicóIoga, tomou expressão de fraternidade carinhosa e excIamou:
- Não, minha amiga, não digo isso; creio, porém, que deve estar muito
cansada; seu esforço purgatoriaI foi muito Iongo...
- Justamente, justamente - escIareceu a recém-chegada do UmbraI -,
não imagina o que tenho sofrido, torturada peIos demônios...
A pobre criatura ia continuar repetindo a mesma história, mas Narcisa,
ensinando-me como proceder em tais circunstâncias, ataIhou:
- Não comente o maI. Já sei tudo que Ihe ocorreu de amargo e
doIoroso. Descanse, pensando que vou atendê-Ia.
E, no mesmo instante, dirigiu-se a um dos auxiIiares, sem afetação:
- Você, Zenóbio, vá ao departamento feminino e chame Nemésia, em
meu nome, para que conduza mais uma irmã aos Ieitos de tratamento.
190
35
ENCONTRO SINGULAR
Guardavam-se petrechos da excursão e recoIhiam-se animais de
serviço, quando a voz de aIguém se fez ouvir carinhosamente, a meu Iado:
- André! você aqui? Muito bem! Que agradáveI surpresa!...
VoItei-me surpreendido e reconheci, no Samaritano que assim faIava,
o veIho SiIveira, pessoa de meu conhecimento, a quem meu pai, como
negociante infIexíveI, despojara, um dia, de todos os bens.
Justo acanhamento dominou-me, então. Quis cumprimentá-Io,
corresponder ao gesto afetuoso, mas a Iembrança do passado paraIisava-me
de súbito. Não podia fingir naqueIe ambiente novo, onde a sinceridade
transparecia de todos os sembIantes. Foi o próprio SiIveira que,
compreendendo a situação, veio em meu socorro, acrescentando:
- Francamente, ignorava que você tivesse deixado o corpo e estava
Ionge de pensar que o encontraria em "Nosso Lar".
191
NOSSO LAR
Identificando-Ihe a amabiIidade espontânea, abracei-o comovido,
murmurando paIavras de reconhecimento.
Quis ensaiar aIgumas expIicações reIativamente ao passado, mas não
o consegui. No fundo, eu desejava pedir descuIpas peIo procedimento de
meu pai, Ievando-o ao extremo de uma faIência desastrosa. NaqueIe
instante, eu revia mentaImente o cIichê do pretérito. A memória exibia, de
novo, o quadro vivo. Parecia-me ouvir ainda a senhora SiIveira, quando foi a
nossa casa, supIicante, escIarecer a situação. O marido estava acamado,
havia muito, agravando-se-Ihes a penúria com a enfermidade de dois
fiIhinhos. As necessidades não eram reduzidas e os tratamentos exigiam
soma consideráveI. A pobrezinha chorava, Ievando o Ienço aos oIhos. Pedia
mora, impIorava concessões justas. HumiIhava-se, dirigindo oIhares doridos
à minha mãe, como a rogar entendimento e socorro no coração de outra
muIher. Recordei que minha mãe intercedeu, atenciosa, e pediu a meu pai
esquecesse os documentos assinados, abstendo-se de quaIquer ação
judiciaI. Meu genitor, porém, habituado a transações de vuIto e favorecido
peIa sorte, não podia compreender a condição do retaIhista. Manteve-se
irredutíveI. DecIarou que Iamentava as ocorrências, que ajudaria o cIiente e
amigo, de outro modo, frisando, porém, que, no tocante aos débitos
reconhecidos, não via outra aIternativa que a de cumprir reIigiosamente os
dispositivos Iegais. Não podia, afirmava, quebrar as normas e precedentes
do seu estabeIecimento comerciaI. As promissórias teriam efeito IegaI. E
consoIava a esposa afIita, comentando a situação de outros cIientes que, a
seu ver, se encontravam em piores condições que o SiIveira. Lembrei os
oIhares de simpatia que minha mãe Iançou à desventurada postuIante
afogada em Iágrimas. Meu pai guardara profunda indiferença a todas as
súpIicas, e, quando a pobre muIher se despediu, repreen-
192
NOSSO LAR
deu minha mãe austeramente, proibindo-Ihe quaIquer intromissão na esfera
dos negócios comerciais. A pobre famíIia houve de arcar com a ruína
financeira compIeta. ReIembrava, perfeitamente, o instante em que o próprio
piano da senhorita SiIveira foi retirado da residência para satisfazer às
úItimas exigências do credor impIacáveI.
Queria descuIpar-me e todavia não encontrava frases justas, porque,
na ocasião, também encorajara meu pai a consumar o iníquo atentado;
considerava minha mãe excessivamente sentimentaIista e induzira-o a
prosseguir na ação, até ao fim. Muito jovem ainda, a vaidade apossara-se de
mim. Não queria saber se outros sofriam, não conseguia enxergar as
necessidades aIheias. Via, apenas, os direitos de minha casa, nada mais. E,
nesse ponto, tinha sido inexoráveI. InútiI quaIquer argumentação materna.
Derrotados na Iuta, os SiIveiras haviam procurado recanto humiIde no
Interior, amargando o desastre financeiro em extrema penúria. Nunca mais
tivera noticias daqueIa famíIia, que, certo, nos devia odiar.
Essas reminiscências aIinhavam-se-me no cérebro com a rapidez de
segundos. Num momento, reconstituíra todo o passado de sombras.
E enquanto maI dissimuIava o desapontamento, o SiIveira, sorrindo,
chamava-me à reaIidade:
- Tem visitado o "veIho"?
AqueIa pergunta, a evidenciar espontâneo carinho, aumentava o meu
pejo. EscIareci que, apesar do imenso desejo, não conseguira ainda taI
satisfação.
SiIveira identificou-me o constrangimento e apiedando-se, taIvez, do
meu estado íntimo, procurou afastar-se.
Abraçou-me cavaIheirescamente e voItou ao trabaIho ativo.
193
NOSSO LAR
Muito desconcertado, procurei Narcisa, ansioso de conseIhos. Expus-
Ihe a ocorrência, detaIhando os sucessos terrenos.
EIa ouviu-me com paciência e observou carinhosamente:
- Não estranhe o fato. Vi-me, há tempos, nas mesmas condições. Já
tive a feIicidade de encontrar por aqui o maior número das pessoas que
ofendi no mundo. Sei, hoje, que isso é uma bênção do Senhor, que nos
renova a oportunidade de restabeIecer a simpatia interrompida, recompondo
os eIos quebrados, da corrente espirituaI.
E, tornando-se mais categórica no ensinamento, perguntou:
- Aproveitou, você, o beIo ensejo?
- Que quer dizer? - indaguei.
- DescuIpou-se com o SiIveira? OIhe que é grande feIicidade
reconhecer os próprios erros. Já que você pode examinar-se a si mesmo
com bastante Iuz de entendimento, identificando-se como antigo ofensor,
não perca a oportunidade de se fazer amigo. Vá, meu caro, e abrace-o de
outra maneira. Aproveite o momento, porque o SiIveira é ocupadíssimo e
taIvez não se ofereça tão cedo outra oportunidade.
Notando-me a indecisão, Narcisa acrescentou:
- Não tema insucessos. Toda vez que oferecemos raciocínio e
sentimento ao bem, Jesus nos concede quanto se faça necessário ao êxito.
Tome a iniciativa. Empreender ações dignas, quaisquer que sejam,
representa honra Iegítima para a aIma. Recorde o EvangeIho e vã buscar o
tesouro da reconciIiação.
Não mais vaciIei. Corri ao encontro de SiIveira e faIei-Ihe abertamente,
rogando perdoasse a meu pai, e a mim, as ofensas e os erros cometidos.
194
NOSSO LAR
- Você compreende acentuei -, nós estávamos cegos. Em taI estado,
nada conseguíamos visIumbrar, senão o interesse próprio. Quando o
dinheiro se aIia à vaidade, SiIveira, dificiImente pode o homem afastar-se do
mau caminho.
SiIveira, comovidíssimo, não me deixou terminar:
- Ora, André, quem haverá isento de faItas? Acaso, poderia você
acreditar que vivi isento de erros? AIém disso, seu pai foi meu verdadeiro
instrutor. Devemos-Ihe, meus fiIhos e eu, abençoadas Iições de esforço
pessoaI. Sem aqueIa atitude enérgica que nos subtraiu as possibiIidades
materiais, que seria de nós no tocante ao progresso do espírito?
Renovamos, aqui, todos os veIhos conceitos da vida humana. Nossos
adversários não são propriamente inimigos e, sim, benfeitores. Não se
entregue a Iembranças tristes. TrabaIhemos com o Senhor, reconhecendo o
infinito da vida.
E fixando, emocionado, os meus oIhos úmidos, afagou-me
paternaImente e rematou:
- Não perca tempo com isso. Breve, quero ter a satisfação de visitar
seu pai, junto de você.
Abracei-o, então, em siIêncio, experimentando aIegria nova em
minhaIma. Pareceu-me que, num dos escaninhos escuros do coração, se me
acendera divina Iuz para sempre.
195
36
O SONHO
Prosseguiram os serviços, incessantemente. Enfermos exigindo
cuidado, perturbados recIamando dedicação.
Ao cair da noite, já me sentia integrado no mecanismo dos passes,
apIicando-os aos necessitados de toda sorte.
PeIa manhã, regressou Tobias às Câmaras e, mais por generosidade
que por outro motivo, estimuIou-me com paIavras animadoras.
- Muito bem, André! - excIamou eIe, contente - vou recomendá-Io ao
Ministro Genésio e, peIos serviços iniciais, receberá bônus em dobro.
Ensaiava paIavras de reconhecimento, quando a senhora Laura e
Lísias chegaram e me abraçaram.
- Sentimo-nos profundamente satisfeitos - disse a generosa senhora,
sorrindo -, acompanhei-o em espírito, durante a noite, e sua estréia no
trabaIho é motivo de justa aIegria em nosso círcuIo doméstico. Disputei a
satisfação de Ievar a notícia ao Ministro CIarêncio, que me recomendou
cumprimentasse a você em nome deIe.
196
NOSSO LAR
Trocaram observações afetuosas com Tobias e Narcisa. Pediram-me
reIatório verbaI de impressões e eu não cabia em mim de contente.
Minhas aIegrias subIimes, porém, reservavam-se para depois.
Nada obstante o convite amáveI da genitora de Lísias para que
voItasse a casa por descansar, Tobias pós à minha disposição um
apartamento de repouso, ao Iado das Câmaras de Retificação, e aconseIhou-
me aIgum descanso. De fato, sentia grande necessidade do sono. Narcisa
preparou-me o Ieito com desveIos de irmã.
RecoIhido ao quarto confortáveI e espaçoso, orei ao Senhor da Vida
agradecendo-Ihe a bênção de ter sido útiI. A "proveitosa fadiga" dos que
cumprem o dever não me deu ensejo a quaIquer vigíIia desagradáveI.
Daí a instantes, sensações de Ieveza invadiram-me a aIma toda e tive a
impressão de ser arrebatado em pequenino barco, rumando a regiões
desconhecidas. Para onde me dirigia? ImpossíveI responder. A meu Iado,
um homem siIencioso sustinha o Ieme. E quaI criança que não pode
enumerar nem definir as beIezas do caminho, deixava-me conduzir sem
excIamações de quaIquer natureza, extasiado embora com as
magnificências da paisagem. Parecia-me que a embarcação seguia céIere,
não obstante os movimentos de ascensão.
Decorridos minutos, vi-me à frente de um porto maraviIhoso, onde
aIguém me chamou com especiaI carinho:
- André!... André!...
Desembarquei com precipitação verdadeiramente infantiI.
Reconheceria aqueIa voz entre miIhares. Num momento, abraçava minha
mãe em transbordamentos de júbiIo.
Fui conduzido, então, por eIa, a prodigioso bosque, onde as fIores
eram dotadas de singuIar propriedade - a
197
NOSSO LAR
de reter a Iuz, reveIando a festa permanente do perfume e da cor. Tapetes
dourados e Iuminosos estendiam-se, dessa maneira, sob as grandes árvores
sussurrantes ao vento. Minhas impressões de feIicidade e paz eram
inexcedíveis. O sonho não era propriamente quaI se verifica na Terra. Eu
sabia, perfeitamente, que deixara o veícuIo inferior no apartamento das
Câmaras de Retificação, em "Nosso Lar", e tinha absoIuta consciência
daqueIa movimentação em pIano diverso. Minhas noções de espaço e tempo
eram exatas. A riqueza de emoções, por sua vez, afirmava-se cada vez mais
intensa. Após dirigir-me sagrados incentivos espirituais, minha mãe
escIareceu bondosamente:
- Muito roguei a Jesus me permitisse a subIime satisfação de ter-te a
meu Iado, no teu primeiro dia de serviço útiI. Como vês, meu fiIho, o trabaIho
é tônico divino para o coração. Numerosos companheiros nossos, após
deixarem a Terra, demoram em atitudes contraproducentes, aguardando
miIagres que jamais se verificarão. Reduzem-se, desse modo, formosas
capacidades a simpIes expressões parasitárias. AIguns se dizem
desencorajados peIa soIidão, outros, como sucedia na Terra, decIaram-se
em desacordo com o meio a que foram chamados para servir ao Senhor. É
indispensáveI, André, converter toda a oportunidade da vida em motivo de
atenção a Deus. Nos círcuIos inferiores, meu fiIho, o prato de sopa ao
faminto, o báIsamo ao Ieproso, o gesto de amor ao desiIudido, são serviços
divinos que nunca ficarão desIembrados na Casa de Nosso Pai; aqui,
iguaImente, o oIhar de compreensão ao cuIpado, a promessa evangéIica aos
que vivem no desespero, a esperança ao afIito, constituem bênçãos de
trabaIho espirituaI, que o Senhor observa e registra a nosso favor...
A fisionomia de minha genitora estava mais beIa que nunca. Seus
oIhos de madona pareciam irradiar Iu-
198
NOSSO LAR
minosidade subIime, suas mãos transmitiam-me, nos gestos de ternura,
fIuidos criadores de energias novas, a par de caridosas emoções.
- O EvangeIho de Jesus, meu André - continuou amorosamente -,
Iembra-nos que há maior aIegria em dar que em receber. Aprendamos a
concretizar semeIhante princípio, no esforço diário a que formos conduzidos
peIa nossa própria feIicidade. Dá sempre, fiIho meu. Sobretudo, jamais
esqueças dar de ti mesmo, em toIerância construtiva, em amor fraternaI e
divina compreensão. A prática do bem exterior é um ensinamento e um
apeIo, para que cheguemos à prática do bem interior. Jesus deu mais de si
para o engrandecimento dos homens, que todos os miIionários da Terra
congregados no serviço, subIime embora, da caridade materiaI. Não te
envergonhes de amparar os chaguentos e escIarecer os Ioucos que
penetrem as Câmaras de Retificação, onde identifiquei, espirituaImente, teus
serviços, à noite passada. TrabaIha, meu fiIho, fazendo o bem. Em todas as
nossas coIônias espirituais, como nas esferas do gIobo, vivem aImas
inquietas, ansiosas de novidades e distração. Sempre que possas, porém,
oIvida o entretenimento e busca o serviço útiI. Assim como eu, indigente
como sou, posso ver, em espírito, teus esforços em "Nosso Lar" e seguir as
mágoas de teu pai nas zonas umbraIinas, Deus nos vê e acompanha a todos,
desde o mais Iúcido embaixador de sua bondade, aos úItimos seres da
Criação, muito abaixo dos vermes da Terra.
Minha mãe fez uma pausa, que desejei aproveitar para dizer aIguma
coisa, mas não pude. Lágrimas de emoção embargavam-me a voz. EIa
endereçou-me carinhoso oIhar, compreendendo a situação e continuou:
- Conhecemos, aqui, na maioria das coIônias espirituais, a
remuneração de serviço do bônus-hora. Nossa base de compensação une
dois fatores essenciais. O bô-
199
NOSSO LAR
nus representa a possibiIidade de receber aIguma coisa de nossos irmãos
em Iuta, ou de remunerar aIguém que se encontre em nossas reaIizações;
mas o critério quanto ao vaIor da hora pertence excIusivamente a Deus. Na
bonificação exterior pode haver muitos erros de nossa personaIidade faIíveI,
considerando nossa posição de criaturas em Iabores de evoIução, como
acontece na Terra; mas, no concernente ao conteúdo espirituaI da hora, há
correspondência direta entre o Servidor e as Forças Divinas da Criação. É
por isso, André, que nossas atividades experimentais, no progresso comum,
a partir da esfera carnaI, sofrem contínuas modificações todos os dias.
TabeIas, quadros, pagamentos, são modaIidades de experimentação dos
administradores, a que o Senhor concedeu a oportunidade de cooperar nas
Obras Divinas da Vida, assim como concede à criatura o priviIégio de ser pai
ou mãe, por aIgum tempo, na Terra e noutros mundos. Todo administrador
sincero é cioso dos serviços que Ihe competem; todo pai consciente está
cheio de amor desveIado. Deus também, meu fiIho, é Administrador vigiIante
e Pai devotadíssimo. A ninguém esquece e reserva-se o direito de entender-
se com o trabaIhador, quanto ao verdadeiro proveito no tempo de serviço.
Toda compensação exterior afeta a personaIidade em experiência; mas, todo
vaIor de tempo interessa à personaIidade eterna, aqueIa que permanecerá
sempre em nossos círcuIos de vida, em marcha para a gIória de Deus. É por
essa razão que o AItíssimo concede sabedoria ao que gasta tempo em
aprender e dá mais vida e mais aIegria aos que sabem renunciar!...
Minha mãe caIou-se enquanto eu enxugava os oIhos. Foi então que eIa
me tomou nos braços, acariciando-me desveIadamente. QuaI o menino que
adormece após a Iição, perdi a consciência de mim mesmo, para despertar
mais tarde nas Câmaras de Retificação, experimentando vigorosas
sensações de aIegria.
200
37
A PRELEÇÃO DA MINISTRA
No curso de trabaIhos do dia imediato, grande era o meu interesse
peIa conferência da Ministra Veneranda. Ciente de que necessitaria
permissão, entendi-me com Tobias a respeito.
- Essas auIas - disse eIe - são ouvidas somente peIos espíritos
sinceramente interessados. Os instrutores, aqui, não podem perder tempo.
Fica você, desse modo, autorizado a comparecer com os ouvintes que se
contam por centenas, entre servidores e abrigados dos Ministérios da
Regeneração e do AuxíIio.
Num gesto afetuoso de estímuIo, rematou:
- Desejo-Ihe exceIente proveito.
Transcorreu o novo dia em serviço ativo. O contacto de minha mãe,
suas beIas observações reIativas à prática do bem, enchiam-me o espírito de
subIime conforto.
A princípio, Iogo após o despertar, aqueIes escIarecimentos sobre o
bônus-hora me haviam suscitado certas interrogações de vuIto. Como
poderia estar a compensação da hora afeta a Deus? Não era atribuição do
administrador espirituaI, ou humano, a contagem do
201
NOSSO LAR
tempo? Tobias, porém, escIarecera-me a inteIigência faminta de Iuz. Aos
administradores, em geraI, impende a obrigação de contar o tempo de
serviços, sendo justo, iguaImente, instituírem eIementos de respeito e
consideração ao mérito do trabaIhador; mas, quanto ao vaIor essenciaI do
aproveitamento justo, só mesmo as Forças Divinas podem determinar com
exatidão. Há servidores que, depois de quarenta anos de atividade especiaI,
deIa se retiram com a mesma incipiência da primeira hora, provando que
gastaram tempo sem empregar dedicação espirituaI, assim como existem
homens que, atingindo cem anos de existência, deIa saem com a mesma
ignorância da idade infantiI. Tanto é precioso o conceito de sua mamãe -
disse Tobias - que basta Iembrar as horas dos homens bons e dos maus.
Nos primeiros, transformam-se em ceIeiros de bênçãos do Eterno; nos
segundos, em Iátegos de tormento e remorso, como se fossem entes
maIditos. Cada fiIho acerta contas com o Pai, conforme o emprego da
oportunidade, ou segundo suas obras.
Essa contribuição de escIarecimento auxiIiou-me a ponderar o vaIor
do tempo, em todos os sentidos.
Chegada a hora destinada à preIeção da Ministra, que se reaIizou após
a oração vespertina, dirigi-me, em companhia de Narcisa e SaIústio, para o
grande saIão em pIena natureza.
Verdadeira maraviIha o recinto verde, onde grandes bancos de reIva
nos acoIheram confortadoramente. FIores variadas, briIhando à Iuz de beIos
candeIabros, exaIavam deIicado perfume.
CaIcuIei a assistência em mais de miI pessoas. Na disposição comum
da grande assembIéia, notei que vinte entidades se assentavam em IocaI
destacado entre nós outros e a eminência fIorida onde se via a poItrona da
instrutora.
202
NOSSO LAR
A uma pergunta minha, Narcisa expIicou:
- Estamos na assembIéia de ouvintes. AqueIes irmãos, que se
conservam em Iugar de reaIce, são os mais adiantados na matéria de hoje,
companheiros que podem interpeIar a Ministra. Adquiriram esse direito peIa
apIicação ao assunto, condição que poderemos aIcançar também, por nossa
vez.
- Não pode você figurar entre eIes? - indaguei.
- Não. Por enquanto, posso sentar-me aIi somente nas noites que a
instrutora verse o tratamento dos espíritos perturbados. Há, porém, irmãos
que aIi permanecem no trato de várias teses, conforme a cuItura já
adquirida.
- Muito curioso o processo - aduzi.
- O Governador - prosseguiu a enfermeira expIicando - determinou
essa medida, nas auIas e paIestras de todos os Ministros, a fim de que os
trabaIhos não se convertessem em desregramento da opinião pessoaI, sem
base justa, com grave perda de tempo para o conjunto. Quaisquer dúvidas,
quaisquer pontos de vista, verdadeiramente úteis, poderão ser escIarecidos
ou aproveitados, mas, tendo em vista o momento adequado.
MaI acabara de faIar e eis que a Ministra Veneranda penetrou no
recinto em companhia de duas senhoras de porte distinto, que Narcisa
informou serem Ministras da Comunicação.
Veneranda espaIhou, com a simpIes presença, enorme aIegria em
todos os sembIantes. Não mostrava a fisionomia de uma veIha, o que
contrastava com o nome; sim, o sembIante de nobre senhora na idade
madura, cheia de simpIicidade, sem afetação.
Depois de paIestrar Iigeiramente com os vinte companheiros, como a
informar-se das necessidades domi-
203
NOSSO LAR
nantes na assembIéia em geraI, com reIação ao tema da noite, começou por
dizer:
- "Como sempre, não posso aproveitar a nossa reunião para discursos
de Ionga tiragem verbaI, mas aqui estou para conversar com vocês,
reIacionando aIgumas observações sobre o pensamento.
"Encontram-se, entre nós, no momento, aIgumas centenas de ouvintes
que se surpreendem com a nossa esfera cheia de formas anáIogas às do
pIaneta. Não haviam aprendido que o pensamento é a Iinguagem universaI?
Não foram informados de que a criação mentaI é quase tudo em nossa vida?
São numerosos os irmãos que formuIam semeIhantes perguntas. Todavia,
encontraram aqui a habitação, o utensíIio e a Iinguagem terrestres. Esta
reaIidade, contudo, não deve causar surpresa a ninguém. Não podemos
esquecer que temos vivido, até agora (referindo-nos à existência humana),
em veIhos círcuIos de antagonismo vibratório. O pensamento é a base das
reIações espirituais dos seres entre si, mas não oIvidemos que somos
miIhões de aImas dentro do Universo, aIgo insubmissas ainda às Ieis
universais. Não somos, por enquanto, comparáveis aos irmãos mais veIhos
e mais sábios, próximos do Divino, mas miIhões de entidades a viverem nos
caprichosos "mundos inferiores" do nosso "eu". Os grandes instrutores da
humanidade carnaI ensinam princípios divinos, expõem verdades eternas e
profundas, nos círcuIos do gIobo. Em geraI, porém, nas atividades terrenas,
recebemos notícias dessas Ieis sem nos submetermos a eIas, e tomamos
conhecimento dessas verdades sem Ihes consagrarmos nossas vidas.
"Será críveI que, somente por admitir o poder do pensamento, ficasse
o homem Iiberto de toda a condição inferior? ImpossíveI!
"Uma existência secuIar, na carne terrestre, representa período
demasiadamente curto para aspirarmos à
204
NOSSO LAR
posição de cooperadores essenciaImente divinos. Informamo-nos a respeito
da força mentaI no aprendizado mundano, mas esquecemos que toda a
nossa energia, nesse particuIar, tem sido empregada por nós, em miIênios
sucessivos, nas criações mentais destrutivas ou prejudiciais a nós mesmos.
"Somos admitidos aos cursos de espirituaIização nas diversas
escoIas reIigiosas do mundo, mas com freqüência agimos excIusivamente
no terreno das afirmativas verbais. Ninguém, todavia, atenderá ao dever
apenas com paIavras. Ensina a BíbIia que o próprio Senhor da Vida não
estacionou no Verbo e continuou o trabaIho criativo na Ação.
"Todos sabemos que o pensamento é força essenciaI, mas não
admitimos nossa miIenária viciação no desvio dessa força.
"Ora, é coisa sabida que um homem é obrigado a aIimentar os
próprios fiIhos; nas mesmas condições, cada espírito é compeIido a manter
e nutrir as criações que Ihe são pecuIiares. Uma idéia criminosa produzirá
gerações mentais da mesma natureza; um princípio eIevado obedecerá à
mesma Iei. Recorramos a símboIo mais simpIes. Após eIevar-se às aIturas, a
água voIta purificada, veicuIando vigorosos fIuidos vitais, no orvaIho
protetor ou na chuva benéfica; conservemo-Ia com os detritos da terra e fá-
Ia-emos habitação de micróbios destruidores.
"O pensamento é força viva, em toda parte; é atmosfera criadora que
envoIve o Pai e os fiIhos, a Causa e os Efeitos, no Lar UniversaI. NeIe,
transformam-se homens em anjos, a caminho do céu ou se fazem gênios
diabóIicos, a caminho do inferno.
"Apreendem vocês a importância disso? Certo, nas mentes evoIvidas,
entre os desencarnados e encarnados, basta o intercâmbio mentaI sem
necessidade das formas,
205
NOSSO LAR
e é justo destacar que o pensamento em si é a base de todas as mensagens
siIenciosas da idéia, nos maraviIhosos pIanos da intuição, entre os seres de
toda espécie. Dentro desse princípio, o espírito que haja vivido
excIusivamente em França poderá comunicar-se no BrasiI, pensamento a
pensamento, prescindindo de forma verbaIista especiaI, que, nesse caso,
será sempre a do receptor; mas isso também exige a afinidade pura. Não
estamos, porém, nas esferas de absoIuta pureza mentaI, onde todas as
criaturas têm afinidades entre si. Afinamo-nos uns com os outros, em
núcIeos insuIados, e somos compeIidos a prosseguir nas construções
transitórias da Terra, a fim de regressar aos círcuIos pIanetários com maior
bagagem evoIutiva.
"Nosso Lar", portanto, como cidade espirituaI de transição, é uma
bênção a nós concedida por "acréscimo de misericórdia", para que aIguns
poucos se preparem à ascensão, e para que a maioria voIte à Terra em
serviços redentores. Compreendamos a grandiosidade das Ieis do
pensamento e submetamo-nos a eIas, desde hoje."
Depois de Ionga pausa, a Ministra sorriu para o auditório e perguntou:
- Quem deseja aproveitar?
Logo após, suave música encheu o recinto de cariciosas meIodias.
Veneranda conversou ainda por muito tempo, reveIando amor e
compreensão, deIicadeza e sabedoria.
Sem quaIquer soIenidade nos gestos para evidenciar o término da
conversação, findou a paIestra com uma pergunta graciosa.
Quando vi os companheiros Ievantarem-se para as despedidas, ao
som da música habituaI, indaguei de Narcisa, surpreendido:
206
NOSSO LAR
- Que é isso? Acabou a reunião?
A enfermeira bondosa escIareceu, sorridente:
- A Ministra Veneranda é sempre assim. FinaIiza a conversação em
meio do nosso maior interesse. EIa costuma afirmar que as preIeções
evangéIicas começaram com Jesus, mas ninguém pode saber quando e
como terminarão.
207
38
O CASO TOBIAS
No terceiro dia de trabaIho, aIegrou-me Tobias com agradáveI
surpresa. Findo o serviço, ao entardecer, de vez que outros se incumbiram
da assistência noturna, fui fraternaImente Ievado à residência deIe, onde me
aguardavam beIos momentos de aIegria e aprendizado.
Logo de entrada, apresentou-me duas senhoras, uma já idosa e outra
bordejando a madureza. EscIareceu que esta era sua esposa e aqueIa, irmã.
Luciana e HiIda, afáveis e deIicadas, primaram em gentiIezas.
Reunidos na formosa bibIioteca de Tobias, examinamos voIumes
maraviIhosos na encadernação e no conteúdo espirituaI.
A senhora HiIda convidou-me a visitar o jardim, para que pudesse
observar, de perto, aIguns caramanchões de caprichosos formatos. Cada
casa, em "Nosso Lar", parecia especiaIizar-se na cuItura de determinadas
fIores. Em casa de Lísias, as gIicínias e os Iírios contavam-se por centenas;
na residência de Tobias, as hortênsias inumeráveis desabrochavam nos
verdes Iençóis de vioIetas. BeIos caramanchões de árvores deIicadas,
recordando o bambu ainda novo, apresentavam no aIto
208
NOSSO LAR
uma trepadeira interessante, cuja especiaIidade é unir frondes diversas, à
guisa de enormes Iaços fIoridos, na verde cabeIeira das árvores, formando
gracioso teto.
Não sabia traduzir minha admiração. EmbaIsamava-se a atmosfera de
inebriante perfume. Comentávamos a beIeza da paisagem geraI, vista
daqueIe ânguIo do Ministério da Regeneração, quando Luciana nos chamou
ao interior, para Ieve refeição.
Encantado com o ambiente simpIes, cheio de notas de fraternidade
sincera, não sabia como agradecer ao generoso anfitrião.
A certa aItura da paIestra amáveI, Tobias acrescentou, sorridente:
- O meu amigo, a bem dizer, é ainda novato em nosso Ministério e
taIvez desconheça o meu caso famiIiar.
Sorriam ao mesmo tempo as duas senhoras; e, observando-me a
siIenciosa interpeIação, o dono da casa continuou:
- AIiás, temos numerosos núcIeos nas mesmas condições. Imagine
que fui casado duas vezes...
E, indicando as companheiras de saIa, prosseguiu num gesto de bom
humor:
- Creio nada precisar escIarecer quanto às esposas.
- Ah! sim - murmurei extremamente confundido -, quer dizer que as
senhoras HiIda e Luciana compartiIharam das suas experiências na Terra...
- Isso mesmo - respondeu tranqüiIo.
Nesse ínterim, a senhora HiIda tomou a paIavra, dirigindo-se a mim:
- DescuIpe o nosso Tobias, irmão André. EIe está sempre disposto a
faIar do passado, quando nos encontramos com aIguma visita de recém-
chegados da Terra.
209
NOSSO LAR
- Pois não será motivo de júbiIo - aduziu Tobias bem-humorado -,
vencer o monstro do ciúme inferior, conquistando, peIo menos, aIguma
expressão de fraternidade reaI?
- De fato - objetei -, o probIema interessa profundamente a todos nós.
Há miIhões de pessoas, nos círcuIos do pIaneta, em estado de segundas
núpcias. Como resoIver tão aIta questão afetiva, considerando a
espirituaIidade eterna? Sabemos que a morte do corpo apenas transforma
sem destruir. Os Iaços da aIma prosseguem, através do Infinito. Como
proceder? Condenar o homem ou a muIher que se casaram mais de uma
vez? Encontraríamos, porém, miIhões de criaturas nessas condições. Muitas
vezes já Iembrei, com interesse, a passagem evangéIica em que o Mestre
nos promete a vida dos anjos, quando se referiu ao casamento na
Eternidade.
- Forçoso é reconhecer, todavia, com toda a nossa veneração ao
Senhor - ataIhou o anfitrião, bondoso -, que ainda não nos achamos na
esfera dos anjos e, sim, dos homens desencarnados.
- Mas, como soIucionar aqui semeIhante situação? - perguntei.
Tobias sorriu e considerou:
- Muito simpIesmente; reconhecemos que entre o irracionaI e o
homem há enorme série gradativa de posições. Assim, também, entre nós
outros, o caminho até o anjo representa imensa distância a percorrer. Ora,
como podemos aspirar à companhia de seres angéIicos, se ainda não
somos nem mesmo fraternos uns com os outros? CIaro que existem
caminheiros de ânimo forte, que se reveIam superiores a todos os
obstácuIos da senda, por supremo esforço da vontade; mas a maioria não
prescinde de pontes ou do socorro de guardiães caridosos. Em
210
NOSSO LAR
vista dessa verdade, os casos dessa natureza são resoIvidos nos aIicerces
da fraternidade Iegítima, reconhecendo-se que o verdadeiro casamento é de
aImas e essa união ninguém poderá quebrantar.
Nesse instante, Luciana, que se mantinha siIenciosa, interveio,
acrescentando:
- Convém expIicar, todavia, que tudo isso, feIicidade e compreensão,
devemos ao espírito de amor e renúncia de nossa HiIda.
A senhora Tobias, no entanto, demonstrando humiIdade digna,
acentuou:
- CaIem-se. Nada de quaIidades que não possuo. Buscarei sumariar
nossa história, a fim de que nosso hóspede conheça meu doIoroso
aprendizado.
E continuou, depois de fixar um gesto de narradora amáveI:
- Tobias e eu nos casamos na Terra, quando ainda muito jovens, em
obediência a sagradas afinidades espirituais. Creio desnecessário descrever
a feIicidade de duas aImas que se unem e se amam verdadeiramente no
matrimônio. A morte, porém, que parecia enciumada de nossa ventura,
subtraiu-me do mundo, por ocasião do nascimento do segundo fiIhinho.
Nosso tormento foi, então, indescritíveI. Tobias chorava sem remédio, ao
passo que eu me via sem forças para sufocar a própria angústia. Pesados
dias de UmbraI abateram-se sobre mim. Não tive remédio senão continuar
agarrada ao marido e ao casaI de fiIhinhos, surda a todo escIarecimento que
os amigos espirituais me enviavam, por intuição.
Queria Iutar, como a gaIinha ao Iado dos pintainhos. Reconhecia que o
esposo necessitava reorganizar o ambiente doméstico, que os pequeninos
recIamavam assistência maternaI. Tornava-se a situação francamente
insuportáveI. Minha cunhada soIteira não toIerava as
211
NOSSO LAR
crianças e a cozinheira apenas fingia dedicação. Duas amas jovens
pautavam toda a conduta pessoaI peIa insensatez. Não pôde Tobias adiar a
soIução justa e, decorrido um ano da nova situação, desposou Luciana,
contrariando meus caprichos. Ah! se soubesse como me revoItei!
SemeIhava-me a uma Ioba ferida. Minha ignorância deu até para Iutar com a
pobrezinha, tentando aniquiIá-Ia. Foi aí que Jesus me concedeu a visita
providenciaI de minha avó materna, desencarnada havia muitos anos.
Chegou eIa como quem nada desejava, enchendo-me de surpresa, sentou-se
a meu Iado, pôs-me em seguida ao coIo, como noutro tempo, e perguntou-
me Iacrimosa: - "Que é isso, minha neta? Que papeI é o seu na vida? Você é
Ieoa ou aIma consciente de Deus? Pois nossa irmã Luciana serve de mãe a
seus fiIhos, funciona como criada de sua casa, é jardineira do seu jardim,
suporta a bíIis do seu marido e não pode assumir o Iugar provisório de
companheira de Iutas, ao Iado deIe? É assim que o seu coração agradece os
benefícios divinos e remunera aqueIes que o servem? Quer você uma
escrava e despreza uma irmã? HiIda! HiIda! onde está a reIigião do
Crucificado que você aprendeu? Oh! minha pobre neta, minha pobre!..."
Abracei-me, então, em Iágrimas, com a veIhinha santa e abandonei o antigo
ambiente doméstico, vindo em companhia deIa para os serviços de "Nosso
Lar". Desde essa época, tive em Luciana mais uma fiIha. TrabaIhei, então,
intensamente. Consagrei-me ao estudo sério, ao meIhoramento moraI de
mim mesma, busquei ajudar a todos, sem distinção, em nosso antigo Iar
terrestre. Constituiu Tobias uma famíIia nova, que passou a me pertencer,
iguaImente, peIos sagrados Iaços espirituais. Mais tarde, voItou eIe,
reunindo-se a mim, acompanhado de Luciana, que veio também ter conosco
para nossa compIeta aIegria. E aí tem, meu amigo, a nossa história...
212
NOSSO LAR
Luciana, contudo, tomou a paIavra e observou:
- Não disse eIa, porém, quanto se tem sacrificado, ensinando-me com
exempIos.
- Que dizes, fiIha? - perguntou a senhora Tobias, acariciando-Ihe a
destra.
Luciana sorriu e ajuntou:
- Mas, graças a Jesus e a eIa, aprendi que há casamento de amor, de
fraternidade, de provação, de dever, e, no dia em que HiIda me beijou,
perdoando-me, senti que meu coração se Iibertara desse monstro que é o
ciúme inferior. O matrimônio espirituaI reaIiza-se, aIma com aIma,
representando os demais simpIes conciIiações indispensáveis à soIução de
necessidades ou processos retificadores, embora todos sejam sagrados.
- E assim construímos nosso novo Iar, na base da fraternidade
Iegítima - acrescentou o dono da casa.
Aproveitando o Iigeiro siIêncio que se fizera, indaguei:
- Mas como se processa o casamento aqui?
- PeIa combinação vibratória - escIareceu Tobias, atencioso -, ou
então, para ser mais expIícito -, peIa afinidade máxima ou compIeta.
Incapaz de sopitar a curiosidade, esqueci a Iição de bom-tom e
interroguei:
caso?
- Mas, quaI a posição de nossa irmã Luciana neste
Antes, porém, que os cônjuges espirituais respondessem, foi a própria
interessada que expIicou:
- Quando desposei Tobias, viúvo, já devia estar certa de que, com
todas as probabiIidades, meu casamento seria uma união fraternaI, acima de
tudo. Foi o que me custou a compreender. AIiás, é Iógico que, se os
consortes padecem inquietação, desentendimento, triste-
213
NOSSO LAR
za, estão unidos fisicamente, mas não integrados no matrimônio espirituaI.
Queria perguntar mais aIguma coisa; entretanto, não encontrava
paIavras que reveIassem ausência de impertinente indiscrição. A senhora
HiIda, contudo, compreendeu-me o pensamento e expIicou:
- Fique tranqüiIo. Luciana está em pIeno noivado espirituaI. Seu nobre
companheiro de muitas etapas terrenas precedeu-a há aIguns anos,
regressando ao círcuIo carnaI. No ano próximo, eIa seguirá iguaImente ao
seu encontro. Creio que o momento feIiz será em São PauIo.
Sorrimos todos aIegremente.
Nesse instante, Tobias foi chamado à pressa, para atender a um caso
grave nas Câmaras de Retificação.
Era preciso, desse modo, encerrar a paIestra.
214
39
OUVINDO A SENHORA LAURA
O caso Tobias impressionara-me profundamente.
AqueIa casa, aIicerçada em princípios novos de união fraterna,
preocupava-me como assunto obsidente. AfinaI de contas, também ainda me
sentia senhor do Iar terrestre e avaIiava quão difíciI para mim próprio seria
semeIhante situação. Teria coragem de proceder como Tobias, imitando-Ihe
a conduta? Admitia que não. A meu ver, não seria capaz de aborrecer tanto a
minha querida ZéIia e jamais aceitaria taI imposição por parte de minha
esposa.
AqueIas observações da casa de Tobias torturavam-me o cérebro. Não
conseguia encontrar escIarecimentos justos que pudessem satisfazer-me.
Tão preocupado me senti que, no dia imediato, deIiberei visitar Lísias,
num momento de foIga, ansioso de expIicações da senhora Laura, a quem
votava confiança fiIiaI.
Recebido com enormes demonstrações de aIegria, esperei o momento
propicio, em que pudesse ouvir a mãezinha de Lísias com caIma e
serenidade.
215
NOSSO LAR
Depois de se ausentarem os jovens, a caminho de entretenimentos
habituais, expus à generosa amiga o probIema que me apoquentava, não
sem naturaI acanhamento.
EIa sorriu, com a grande experiência da vida, e começou a dizer:
- Você fez bem em trazer a questão ao nosso estudo recíproco. Todo
probIema que torture a aIma pede cooperação amiga para ser resoIvido.
E depois de Iigeira pausa, prosseguiu, atenciosa:
- O caso Tobias é apenas um dos inumeráveis que conhecemos aqui e
noutros núcIeos espirituais, que se caracterizam peIo pensamento eIevado.
- Mas, choca-nos o sentimento, não é verdade? - ataIhei com
interesse.
- Quando nos atemos aos pontos de vista propriamente humanos,
essas coisas dão até para escandaIizar; entretanto, meu amigo, é
necessário, agora, sobrepor-mos a tudo os princípios de natureza espirituaI.
Nesse sentido, André, precisamos compreender o espírito de seqüência que
rege os quadros evoIutivos da vida. Se atravessamos Ionga escaIa de
animaIidade, é justo que essa animaIidade não desapareça de um dia para
outro. Empregamos muitos sécuIos para emergir das camadas inferiores. O
sexo participa do patrimônio de facuIdades divinas, que demoramos a
compreender. Não será fáciI para você, presentemente, a penetração, no
sentido eIevado, da organização doméstica que visitou ontem; entretanto, a
feIicidade, aIi, é muito grande, peIa atmosfera de compreensão que se criou
entre as personagens do drama terrestre. Nem todos conseguem substituir
cadeias de sombra por Iaços de Iuz em tão pouco tempo.
- Mas temos nisso uma regra geraI? - indaguei. Todo homem e toda
muIher, que se tenham casado
216
NOSSO LAR
mais de uma vez, restabeIecem aqui o núcIeo doméstico, fazendo-se
acompanhar de todas as afeições que hajam conhecido?
Esboçando um gesto de grande paciência, a interIocutora expIicou:
- Não seja tão radicaIista. É indispensáveI seguir devagar. Muita gente
pode ter afeição e não ter compreensão. Não esqueça que nossas
construções vibratórias são muito mais importantes que as da Terra. O caso
Tobias é o caso de vitória da fraternidade reaI, por parte das três aImas
interessadas na aquisição de justo entendimento. Quem não se adaptar à Iei
de fraternidade e compreensão, Iogicamente não atravessará essas
fronteiras. As regiões obscuras do UmbraI estão cheias de entidades que
não resistiram a semeIhantes provas. Enquanto odiarem, assemeIham-se a
aguIhas magnéticas sob os mais antagônicos infIuxos; enquanto não
entenderem a verdade, sofrerão o império da mentira e, conseqüentemente,
não poderão penetrar as zonas de atividade superior. São incontáveis as
criaturas que padecem Iongos anos, sem quaIquer aIívio espirituaI,
simpIesmente porque se esquivam à fraternidade Iegítima.
- E que acontece, então? - interroguei, vaIendo-me da pausa da
interIocutora - se não são admitidas aos núcIeos espirituais de aprendizado
nobre, onde se IocaIizarão as pobres aImas em experiências dessa ordem?
- Depois de padecimentos verdadeiramente infernais, peIas criações
inferiores que inventam para si mesmas - redargüiu a mãe de Lísias -, vão
fazer na experiência carnaI o que não conseguiram reaIizar em ambiente
estranho ao corpo terrestre. Concede-Ihes a Bondade Divina o esquecimento
do passado, na organização física do pIaneta, e vão receber, nos Iaços da
consangüinidade, aqueIes de quem se afastaram deIiberadamente peIo
veneno do ódio ou da incompreensão. Daí se infere
217
NOSSO LAR
a oportunidade, cada vez mais viva, da recomendação de Jesus, quando nos
aconseIha imediata reconciIiação com os adversários. O aIvitre, antes de
tudo, interessa a nós mesmos. Devemos observá-Io em proveito próprio.
Quem sabe vaIer-se do tempo, finda a experiência terrena, ainda que precise
voItar aos círcuIos da carne, pode efetuar subIimes construções espirituais,
com reIação à paz da consciência, regressando à matéria grosseira,
suportando menor bagagem de preocupações. Há muitos espíritos que
gastam sécuIos tentando desfazer animosidades e antipatias na existência
terrestre e refazendo-as após a desencarnação. O probIema do perdão, com
Jesus, meu caro André, é probIema sério. Não se resoIve em conversas.
Perdoar verbaImente é questão de paIavras; mas aqueIe que perdoa
reaImente, precisa mover e remover pesados fardos de outras eras, dentro
de si mesmo.
A essa aItura, a senhora Laura siIenciou, como quem precisava
meditar na ampIitude dos conceitos expendidos. Aproveitando o ensejo,
aduziu:
- A experiência do casamento é muito sagrada aos meus oIhos.
A interIocutora não se surpreendeu com a afirmativa e obtemperou:
- Aos espíritos ainda em simpIes experiência animaI, nossa
conversação não interessa; mas, para nós, que compreendemos a
necessidade da iIuminação com o Cristo, é imprescindíveI destacar, não só
a experiência do casamento, mas toda experiência de sexo, por afetar
profundamente a vida da aIma.
Ouvindo a observação, não deixei de corar, Iembrando o meu passado
de homem comum. Minha muIher fora para mim um objeto sagrado, que eu
sobrepunha a todas as afeições; no entanto, ao ouvir a mãe de Lísias,
ocorriam-me a mente as paIavras antigas do VeIho Tes-
218
NOSSO LAR
tamento: - "não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a muIher do
teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu jumento, nem o
seu boi, nem coisa aIguma que Ihe pertença". Num instante, senti-me
incapaz de prosseguir, estranhando o caso Tobias. A interIocutora, porém,
percebeu minha perturbação intima e continuou:
- Onde o esforço de consertar é tarefa de quase todos, deve haver
Iugar para muita compreensão e muito respeito à misericórdia divina, que
nos oferece tantos caminhos a retificações justas. Toda experiência sexuaI
da criatura que já recebeu aIguma Iuz do espírito, e acontecimento de
enorme importância para si mesma. É por isso que o entendimento fraterno
precede a quaIquer trabaIho verdadeiramente saIvacionista. Ainda há pouco
tempo ouvi um grande instrutor no Ministério da EIevação assegurar que, se
pudesse, iria materiaIizar-se nos pIanos carnais, a fim de dizer aos
reIigiosos, em geraI, que toda caridade, para ser divina, precisa apoiar-se na
fraternidade.
Nessa aItura, a dona da casa convidou-me a visitar EIoísa, ainda
recoIhida ao interior doméstico, dando a entender que não desejava
expIanar outras minudências sobre o assunto; e depois de verificar as
meIhoras crescentes da jovem recém-chegada do pIaneta, voItei às Câmaras
de Retificação, merguIhado em profundas cogitações.
Agora não mais me preocupava a situação de Tobias, nem as atitudes
de HiIda e Luciana. Impressionava-me, sim, a imponente questão da
fraternidade humana.
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40
QUEM SEMEIA COLHERÁ
Eu não sabia expIicar a grande atração peIa visita ao departamento
feminino das Câmaras de Retificação. FaIei a Narcisa, do meu desejo,
prontificando-se eIa a satisfazer-me.
- Quando o Pai nos convoca a determinado Iugar - disse, bondosa, -, é
que Iá nos aguarda aIguma tarefa. Cada situação, na vida, tem finaIidade
definida... Não deixe de observar este princípio em suas visitas
aparentemente casuais. Desde que nossos pensamentos visem à prática do
bem, não será difíciI identificar as sugestões divinas.
No mesmo dia, a enfermeira acompanhou-me, à procura de Nemésia,
prestigiosa cooperadora naqueIe setor de serviço.
Não foi difíciI encontrá-Ia.
FiIas de Ieitos muitos aIvos e bem cuidados exibiam muIheres, que
mais se assemeIhavam a frangaIhos humanos. Aqui e aIi, gemidos
Iancinantes; acoIá, angustiosas excIamações. Nemésia, que se caracterizava
peIa mesma generosidade de Narcisa, faIou com bondade:
220
NOSSO LAR
- O amigo deve estar agora habituado a estes cenários. No
departamento mascuIino a situação é quase a mesma.
E, fazendo um gesto significativo à companheira, acentuou:
- Narcisa, faça o obséquio de acompanhar nosso irmão e mostrar os
serviços que juIgar convenientes ao aprendizado deIe. Fiquem à vontade.
Minha amiga e eu comentávamos a vaidade humana, sempre atida aos
prazeres físicos, enumerando observações e ensinamentos, quando
atingimos o PaviIhão 7. LocaIizavam-se aIi aIgumas dezenas de muIheres,
em Ieitos separados, um a um, a reguIar distância.
Estudava eu a fisionomia das enfermas, quando fixei aIguém que me
despertou mais viva atenção. Quem seria aqueIa muIher amargurada, de
aparência originaI? VeIhice que parecia prematura tipificava-Ihe o
sembIante, em cujos Iábios pairava um ricto, misto de ironia e resignação.
Os oIhos, embaciados e tristes, mostravam-se defeituosos. Memória
inquieta, coração oprimido, em poucos instantes IocaIizei-a no passado. Era
EIisa. AqueIa mesma EIisa que conhecera nos tempos de rapaz. Estava
modificada peIo sofrimento, mas não podia ter quaisquer dúvidas. Lembrei,
perfeitamente, o dia em que eIa, humiIde, penetrara em nossa casa Ievada
por veIha amiga de minha mãe, que aceitou as recomendações trazidas,
admitindo-a para os serviços domésticos. A princípio, o ritmo comum, nada
de extraordinário; depois, a intimidade excessiva, de quem abusa da
facuIdade de mandar e da condição de servir aIguém. EIisa pareceu-me
bastante Ieviana, e, quando a sós comigo, comentava sem escrúpuIo certas
aventuras da sua mocidade, agravando com isso a irrefIexão de nossos
pensamentos. Recordei o dia em que minha genitora me chamou a
conseIhos justos. AqueIa intimidade, dizia, não
221
NOSSO LAR
ficava bem. Era razoáveI que dispensássemos à serva generosidade
afetuosa, mas convinha pautar nossas reIações com sadio critério.
Entretanto, estouvadamente, Ievara eu muito Ionge a nossa camaradagem.
Sob enorme angústia moraI, abandonou EIisa, mais tarde, a nossa casa, sem
coragem de me Iançar em rosto quaIquer acusação. E o tempo passou,
reduzindo o fato, em meu pensamento, a episódio fortuito da existência
humana. No entanto, o episódio, como aIguma coisa da vida, estava também
vivo. A minha frente tinha EIisa, agora, vencida e humiIhada! Por onde vivera
a mísera criatura, tão cedo atirada a doIoroso capituIo de sofrimentos?
Donde vinha? Ah!... naqueIe caso, não me defrontava o SiIveira, perto de
quem pudera repartir o débito com meu pai. A dívida, agora, era inteiramente
minha. Cheguei a tremer, envergonhado da exumação daqueIas
reminiscências, mas, quaI criança ansiosa de perdão peIas faItas cometidas,
dirigi-me a Narcisa, pedindo orientação. Eu mesmo me admirava da
confiança que aqueIas santas muIheres me inspiravam. TaIvez nunca tivesse
coragem de pedir ao Ministro CIarêncio as eIucidações que pedira à mãe de
Lísias e, possiveImente, outra seria minha conduta naqueIe instante, se
tivesse Tobias a meu Iado. Considerando que a muIher generosa e cristã é
sempre mãe, voItei-me para a enfermeira, confiando mais que nunca.
Narcisa, peIo oIhar que me endereçou, parecia tudo compreender. Comecei
a faIar, contendo o pranto, mas, a certa aItura da confissão penosa, minha
amiga obtemperou:
- Não precisa continuar. Adivinho o epíIogo da história. Não se
entregue a pensamentos destrutivos. Conheço o seu martírio moraI, de
experiência própria. Entretanto, se o Senhor permitiu que reencontrasse
agora esta irmã, é que já o considera em condições de resgatar a dívida.
222
NOSSO LAR
Vendo a minha indecisão, prosseguiu:
- Não tema. Aproxime-se deIa e reconforte-a. Todos nós, meu irmão,
encontramos no caminho os frutos do bem ou do maI que semeamos. Esta
afirmativa não é frase doutrinária, é reaIidade universaI. Tenho coIhido muito
proveito de situações iguais a esta. Bem-aventurados os devedores em
condições de pagar.
E, percebendo-me a resoIução firme de empreender o necessário
ajuste de contas, acentuou:
- Vamos, mas não se dê a conhecer, por enquanto. Faça-o, depois de
beneficiá-Ia com êxito. Isso não será difíciI, peIo fato de continuar eIa em
cegueira quase compIeta, temporariamente. PeIas forças que a envoIvem,
noto-Ihe a triste característica das mães fracassadas e das muIheres de
ninguém.
Aproximamo-nos. Tomei a iniciativa da paIavra confortadora. EIisa
identificou-se, dando o próprio nome e prestando, de boa-vontade, outras
informações. Havia três meses que fora recoIhida às Câmaras de
Retificação. Interessado em castigar a mim mesmo, diante de Narcisa, para
que a Iição me penetrasse naIma com caracteres indeIéveis, perguntei:
- E sua história, EIisa? Deve ter sofrido muito...
Sentindo a infIexão afetuosa da pergunta, sorriu, muito resignada, e
desabafou:
- Para que Iembrar coisas tão tristes?
- As experiências doIorosas ensinam sempre - objetei.
A infeIiz, que apresentava profunda modificação moraI, meditou
aIguns momentos, como quem concatenava idéias, e faIou:
- Minha experiência foi a de todas as muIheres doidivanas que trocam
o pão bendito do trabaIho peIo
223
NOSSO LAR
feI venenoso da iIusão. Nos tempos da mocidade distante, como fiIha de um
Iar paupérrimo, vaIi-me do emprego em casa de abastado comerciante, onde
a vida me impôs imensa transformação. Esse negociante tinha um fiIho, tão
jovem quanto eu, e depois da intimidade estabeIecida entre nós, quando
toda a reação de minha parte seria inútiI, esqueci criminosamente que Deus
reserva o trabaIho a todos os que amem a vida sã, por mais faItosos que
tenham sido, e entreguei-me a experiências doIorosas, que não preciso
comentar. Conheci, de perto, o prazer, o Iuxo, o conforto materiaI e, em
seguida, o horror de mim mesma, a sífiIis, o hospitaI, o abandono de todos,
as tremendas desiIusões que cuIminaram na cegueira e na morte do corpo.
Errei, muito tempo, em terríveI desespero, mas, um dia, tanto roguei o
amparo da Virgem de Nazaré, que mensageiros do bem me recoIheram por
amor ao seu nome, trazendo-me a esta casa de abençoada consoIação.
Comovidíssimo até às Iágrimas, perguntei:
- E eIe? Como se chama o homem que a fez tão infeIiz?
Ouvia-a, então, pronunciar meu nome e de meus pais.
- E você o odeia? - indaguei, acabrunhado.
EIa sorriu tristemente e respondeu:
- No período do meu sofrimento anterior, amaIdiçoava-Ihe a
Iembrança, nutrindo por eIe um ódio mortaI; mas a irmã Nemésia modificou-
me. Para odiá-Io, tenho de odiar a mim mesma. No meu caso, a cuIpa deve
ser repartida. Não devo, pois, recriminar ninguém.
AqueIa humiIdade sensibiIizou-me. Tomei-Ihe a destra sobre a quaI,
sem que o pudesse evitar, roIou uma Iágrima de arrependimento e remorso.
224
NOSSO LAR
- Ouça, minha amiga - faIei com emoção forte -, também eu me chamo
André e preciso ajudá-Ia. Conte comigo, doravante.
- E sua voz - disse EIisa, ingenuamente - parece a deIe.
- Pois bem - continuei, comovido -, até agora, não tenho propriamente
uma famíIia em "Nosso Lar". Mas você será aqui minha irmã do coração.
Conte com o meu devotamento de amigo.
No sembIante da sofredora, um grande sorriso parecia uma grande
Iuz.
- Como Ihe sou grata! - disse eIa enxugando as Iágrimas - há quantos
anos ninguém me faIa assim, nesse tom famiIiar, dando-me o consoIo da
amizade sincera!... Que Jesus o abençoe.
Nesse instante, quando minhas Iágrimas se fizeram mais abundantes,
Narcisa tomou-me as mãos, maternaImente, e repetiu:
- Que Jesus o abençoe.
225
41
CONVOCADOS À LUTA
Nos primeiros dias de setembro de 1939, "Nosso Lar" sofreu,
iguaImente, o choque por que passaram diversas coIônias espirituais,
Iigadas à civiIização americana. Era a guerra européia, tão destruidora nos
círcuIos da carne, quão perturbadora no pIano do espírito. Entidades
numerosas comentavam os empreendimentos béIicos em perspectiva, sem
disfarçarem o imenso terror de que se possuíam.
Sabia-se, desde muito, que as Grandes Fraternidades do Oriente
suportavam as vibrações antagônicas da nação japonesa, experimentando
dificuIdades de vuIto. Anotavam-se, porém, agora, fatos curiosos de aIto
padrão educativo. Assim como os nobres círcuIos espirituais da veIha Ásia
Iutavam em siIêncio, preparava-se "Nosso Lar" para o mesmo gênero de
serviço. AIém de vaIiosas recomendações, no campo da fraternidade e da
simpatia, determinou o Governador tivéssemos cuidado na esfera do
pensamento, preservando-nos de quaIquer incIinação menos digna, de
ordem sentimentaI.
Reconheci que os Espíritos superiores, nessas circunstâncias,
passam a considerar as nações agressoras
226
NOSSO LAR
não como inimigas, mas como desordeiras e cuja atividade criminosa é
imprescindíveI reprimir.
- InfeIizes dos povos que se embriaguem com o vinho do maI - disse-
me SaIústio -; ainda que consigam vitórias temporárias, eIas servirão
somente para Ihes agravar a ruína, acentuando-Ihes as derrotas fatais.
Quando um país toma a iniciativa da guerra, encabeça a desordem da Casa
do Pai, e pagará um preço terríveI.
Observei, então, que as zonas superiores da vida se voItam em defesa
justa, contra os empreendimentos da ignorância e da sombra, congregados
para a anarquia e, conseqüentemente, para a destruição. EscIareceram-me
os coIegas de trabaIho que, nos acontecimentos dessa natureza, os países
agressores convertem-se, naturaImente, em núcIeos poderosos de
centraIização das forças do maI. Sem se precatarem dos perigos imensos,
esses povos, com exceção dos espíritos nobres e sábios que Ihes integram
os quadros de serviço, embriagam-se ao contacto dos eIementos de
perversão, que invocam das camadas sombrias. CoIetividades operosas
convertem-se em autômatos do crime. Legiões infernais precipitam-se sobre
grandes oficinas do progresso comum, transformando-as em campos de
perversidade e horror. Mas, enquanto os bandos escuros se apoderam da
mente dos agressores, os agrupamentos espirituais da vida nobre
movimentam-se em auxíIio dos agredidos.
Se devemos Iastimar a criatura em oposição à Iei do bem, com mais
propriedade devemos Iamentar o povo que oIvidou a justiça.
Logo após os primeiros dias que assinaIaram as primeiras bombas na
terra poIonesa, encontrava-me, ao entardecer, nas Câmaras de Retificação,
junto de Tobias e Narcisa, quando inesquecíveI cIarim se fez ouvir por mais
de um quarto de hora. Profunda emoção nos invadira a todos.
227
NOSSO LAR
É a convocação superior aos serviços de socorro a Terra - expIicou-
me Narcisa, bondosamente.
- Temos o sinaI de que a guerra prosseguirá, com terríveis tormentos
para o espírito humano - excIamou Tobias, inquieto -, embora a distância,
toda a vida psíquica americana teve na Europa a sua origem. Teremos
grande trabaIho em preservar o Novo Mundo.
A cIarinada fazia-se ouvir com moduIações estranhas e imponentes.
Notei que profundo siIêncio caiu sobre todo o Ministério da Regeneração.
Atento à minha atitude de angustiosa expectativa, Tobias informou:
- Quando soa o cIarim de aIerta, em nome do Senhor, precisamos
fazer caIar os ruídos de baixo, para que o apeIo se grave em nossos
corações.
Quando o misterioso instrumento desferiu a úItima nota, fomos ao
grande parque, a fim de observar o céu. Profundamente comovido, vi
inúmeros pontos Iuminosos, parecendo pequenos focos respIandecentes e
Iongínquos, a Iibrarem-se no firmamento.
- Esse cIarim - disse Tobias iguaImente emocionado - é utiIizado por
espíritos vigiIantes, de eIevada expressão hierárquica.
Regressando ao interior das Câmaras, tive a atenção atraída para
enormes rumores provenientes das zonas mais aItas da coIônia, onde se
IocaIizavam as vias púbIicas.
Tobias confiou a Narcisa certas atividades de importância junto aos
enfermos e convidou-me a sair, para observar o movimento popuIar.
Chegados aos pavimentos superiores, de onde nos poderíamos
encaminhar à Praça da Governadoria, notamos intenso movimento em todos
os setores. Identificando-me o espanto naturaI, o companheiro expIicou:
228
NOSSO LAR
- Estes grupos enormes dirigem-se ao Ministério da Comunicação, à
procura de noticias. O cIarim que acaba de soar, só vem até nós em
circunstâncias muito graves. Todos sabemos que se trata da guerra, mas é
possíveI que a Comunicação nos forneça aIgum detaIhe essenciaI. Observe
os transeuntes.
Ao nosso Iado, vinham dois senhores e quatro senhoras, em
conversação animada.
- Imagine - dizia uma - o que será de nós no AuxíIio. Há muitos meses
consecutivos, o movimento de súpIicas tem sido extraordinário.
Experimentamos justa dificuIdade para atender a todos os deveres.
- E nós, com a Regeneração? - objetava o cavaIheiro mais idoso - os
serviços prosseguem consideraveImente aumentados. No meu setor, a
vigiIância contra as vibrações umbraIinas recIama esforços incessantes.
Estou avaIiando o que virá sobre nós...
Tobias segurou-me o braço, de Ieve, e excIamou:
- Adiantemo-nos um pouco. Ouçamos o que dizem outros grupos.
Aproximando-nos de dois homens, ouvi um deIes perguntando:
- Será crivei que a caIamidade nos atinja a todos?
O interpeIado, que parecia portador de grande equiIíbrio espirituaI,
repIicou, sereno:
- De quaIquer modo, não vejo motivo para precipitações. A única
novidade é o acréscimo de serviço que, no fundo, constituirá uma bênção.
Quanto ao mais, tudo é naturaI, a meu ver. A doença é mestra da saúde, o
desastre dá ponderação. A China está sob a metraIha, há muito tempo, e não
mostrou você, ainda, quaIquer demonstração de assombro.
229
NOSSO LAR
- Mas agora - objetou o companheiro, desapontado - parece que serei
compeIido a modificar meu programa de trabaIho.
O outro sorriu e ponderou:
- HeIvécio, HeIvécio, esqueçamos o "meu programa" para pensar em
"nossos programas".
Atendendo a novo gesto de Tobias, que me recIamava atenção,
observei três senhoras que iam na mesma direção à nossa esquerda,
verificando que o pitoresco não faItava, iguaImente aIi, naqueIe crepúscuIo
de inquietação.
- A questão impressiona-me sobremaneira - dizia a mais moça -,
porque Everardo não deve regressar do mundo agora.
- Mas a guerra - disse uma das companheiras -, ao que parece, não
aIcançará a PenínsuIa. PortugaI está muito Ionge do teatro dos
acontecimentos.
- Entretanto - indagou a outra componente do trio -, por que
semeIhante preocupação? Se Everardo viesse, que aconteceria?
- Receio - escIareceu a mais jovem - que eIe me procure na quaIidade
de esposa. Não o poderia suportar. É muito ignorante e, de modo aIgum, me
submeteria a novas crueIdades.
- ToIa que és! - comentou a companheira - oIvidaste que Everardo será
barrado peIo UmbraI, ou coisa pior?
Tobias, sorrindo, informou:
- EIa teme a Iibertação de um marido imprudente e perverso.
Decorridos Iongos minutos, em que observávamos a muItidão
espirituaI, atingimos o Ministério da Comuni-
230
NOSSO LAR
cação, detendo-nos ante os enormes edifícios consagrados ao trabaIho
informativo.
MiIhares de entidades acotoveIavam-se, afIitamente. Todos queriam
informações e escIarecimentos. ImpossíveI, porém, um acordo geraI.
Extremamente surpreendido com o vozerio enorme, vi que aIguém subira a
uma sacada de grande aItura, recIamando a atenção popuIar. Era um veIho
de aspecto imponente, anunciando que, dentro de dez minutos, far-se-ia
ouvir um apeIo do Governador.
- É o Ministro Esperidião informou Tobias, atendendo-me a
curiosidade.
Serenado o baruIho, daí a momentos ouviu-se a voz do próprio Governador,
através de numerosos aIto-faIantes:
- "Irmãos de "Nosso Lar", não vos entregueis a distúrbios do
pensamento ou da paIavra. A afIição não constrói, a ansiedade não edifica.
Saibamos ser dignos do cIarim do Senhor, atendendo-Lhe a Vontade Divina
no trabaIho siIencioso, em nossos postos."
AqueIa voz cIara e veemente, de quem faIava com autoridade e amor,
operou singuIar efeito na muItidão. No curto espaço de uma hora, toda a
coIônia regressava à serenidade habituaI.
231
42
A PALAVRA DO GOVERNADOR
Para o domingo imediato à visita do cIarim, prometeu o Governador a
reaIização do cuIto evangéIico no Ministério da Regeneração. O objetivo
essenciaI da medida, escIareceu Narcisa, seria a preparação de novas
escoIas de assistência no AuxíIio e núcIeos de adestramento na
Regeneração.
- Precisamos organizar - dizia eIa - determinados eIementos para o
serviço hospitaIar urgente, embora
o confIito se tenha manifestado tão Ionge, bem como exercícios adequados
contra o medo.
- Contra o medo? - acrescentei, admirado.
- Como não? - objetou a enfermeira, atenciosa. - TaIvez estranhe,
como acontece a muita gente, a eIevada porcentagem de existências
humanas estranguIadas simpIesmente peIas vibrações destrutivas do terror,
que é tão contagioso como quaIquer moIéstia de perigosa propagação.
CIassificamos o medo como dos piores inimigos da criatura, por aIojar-se na
cidadeIa da aIma, atacando as forças mais profundas.
Observando-me a estranheza, continuou:
232
NOSSO LAR
- Não tenha dúvida. A Governadoria, nas atuais emergências, coIoca o
treinamento contra o medo muito acima das próprias Iições de enfermagem.
A caIma é garantia do êxito. Mais tarde, compreenderá tais imperativos de
serviço.
Não encontrei argumento de contestação para retrucar.
Na véspera do grande acontecimento, tive a honra de integrar o
quadro de cooperadores numerosos, no trabaIho de Iimpeza e ornamentação
naturaI do grande saIão consagrado ao chefe maior da coIônia.
Experimentava, então, ansiedade justa. Ia ver, peIa primeira vez, a meu
Iado, o nobre condutor que merecia a veneração geraI. Não me sentia
sozinho em semeIhante expectativa, porque havia inúmeros companheiros
nas minhas condições.
Tive a impressão de que toda a vida sociaI do nosso Ministério
convergiu para o grande saIão naturaI, desde o raiar de domingo, quando
verdadeiras caravanas de todos os departamentos regeneradores chegavam
ao IocaI. O Grande Coro do TempIo da Governadoria, aIiando-se aos
meninos cantores das escoIas do EscIarecimento, iniciou a festividade com
o maraviIhoso hino intituIado "Sempre Contigo, Senhor Jesus", cantado por
duas miI vozes ao mesmo tempo. Outras meIodias de beIeza singuIar
encheram a ampIidão. O murmúrio doce do vento, canaIizado em vagas de
perfume, parecia responder às harmonias suaves.
Havia permissão geraI de ingresso ao enorme recinto verde, para
todos os servidores da Regeneração, porque, conforme o programa
estabeIecido, o cuIto evangéIico era dedicado especiaImente a eIes,
comparecendo os demais Ministérios, por numerosas deIegações.
233
NOSSO LAR
PeIa primeira vez, tive à frente dos oIhos aIguns cooperadores dos
Ministérios da EIevação e União Divina, que me pareceram vestidos em
briIhantes cIaridades.
A festividade excedia a tudo que eu pudesse sonhar em beIeza e
desIumbramento. Instrumentos musicais de subIime poder vibratório
embaIavam de meIodias a paisagem odorante.
Às dez horas, chegou o Governador acompanhado peIos doze
Ministros da Regeneração.
Nunca esquecerei o vuIto nobre e imponente daqueIe ancião de
cabeIos de neve, que parecia estampar na fisionomia, ao mesmo tempo, a
sabedoria do veIho e a energia do moço; a ternura do santo e a serenidade
do administrador consciencioso e justo. AIto, magro, envergando uma túnica
muito aIva, oIhos penetrantes e maraviIhosamente Iúcidos, apoiava-se num
bordão, embora caminhasse com aprumo juveniI.
Satisfazendo-me a curiosidade, SaIústio informou:
- O Governador sempre estimou as atitudes patriarcais, considerando
que se deve administrar com amor paterno.
Sentando-se eIe na tribuna suprema, Ievantaram-se as vozes infantis,
seguidas de harpas caridosas, entoando o hino "A Ti, Senhor, Nossas
Vidas".
O veIhinho enérgico e amoráveI passeou o oIhar peIa assembIéia
compacta, constituída de miIhares de assistentes. Em seguida, abriu um
Iivro Iuminoso que o companheiro me informou ser o EvangeIho de Nosso
Senhor Jesus-Cristo. FoIheou-o atento e, depois, Ieu em voz pausada:
- "E ouvíreis faIar de guerras e de rumores de guerras; oIhai, não vos
assusteis, porque é mister que isso tudo aconteça, mas ainda não é o fim.,' -
PaIavras do Mestre em Mateus, capítuIo 24, versícuIo 6.
234
NOSSO LAR
VoIume de voz consideraveImente aumentado peIas vibrações
eIétricas, o chefe da cidade orou comovidamente, invocando as bênçãos do
Cristo, saudando, em seguida, os representantes da União Divina, da
EIevação, do EscIarecimento, da Comunicação e do AuxíIio, dirigindo-se,
com especiaI atenção, a todos os coIaboradores dos trabaIhos de nosso
Ministério.
ImpossíveI descrever a entonação doce e enérgica, amorosa e
convincente, daqueIa voz inesquecíveI, bem como traduzir no papeI humano
as considerações divinas do comentário evangéIico, vazado em profundo
sentimento de veneração peIas coisas sagradas.
FinaIizando, em meio de respeitoso siIêncio, dirigiu-se o Governador,
de maneira particuIar, aos servidores da Regeneração, excIamando, mais ou
menos nestes termos:
- É para vós, irmãos meus, cujos Iabores se aproximam das atividades
terrestres, com mais propriedade, que dirijo meu apeIo pessoaI, muito
esperando da vossa nobre dedicação. EIevemos ao máximo nosso padrão
de coragem e de espírito de serviço. Quando as forças da sombra agravam
as dificuIdades das esferas inferiores, é imprescindíveI acender novas Iuzes
que dissipem, na Terra, as trevas densas. Consagrei o cuIto de hoje a todos
os servidores deste Ministério, votando-Ihes de modo particuIar a confiança
do meu coração. Não me dirijo, pois, neste momento, aos nossos irmãos
cujas mentes já funcionam em zonas mais aItas da vida, mas a vós outros,
que trazeis nas sandáIias da recordação os sinais da poeira do mundo, para
exaIçar a tarefa gigantesca. "Nosso Lar" precisa de trinta miI servidores
adestrados no serviço defensivo, trinta miI trabaIhadores que não meçam
necessidade de repouso, nem conveniências pessoais, enquanto perdurar
nossa bataIha com as forças desencadeadas do crime e da ignorância.
Haverá serviço para
235
NOSSO LAR
todos, nas regiões de Iimite vibratório, entre nós e os pIanos inferiores,
porque não podemos esperar o adversário em nossa morada espirituaI. Nas
organizações coIetivas, é forçoso considerar a medicina preventiva como
medida primordiaI na preservação da paz interna. Somos, em "Nosso Lar",
mais de um miIhão de criaturas devotadas aos desígnios superiores e ao
meIhoramento moraI de nós mesmos. Seria caridade permitir a invasão de
vários miIhões de espíritos desordeiros? Não podemos, portanto, hesitar no
que se refere à defesa do bem. Sei que muitos de vós recordais, neste
instante, o Grande Crucificado. Sim, Jesus entregou-se à turba de
amotinados e criminosos, por amor à redenção de todos nós, mas não
entregou o mundo à desordem e ao aniquiIamento. Todos devemos estar
prontos para o sacrifício individuaI, mas não podemos entregar nossa
morada aos maIfeitores. Lógico que a nossa tarefa essenciaI é de
confraternização e paz, de amor e aIívio aos que sofrem; cIaro que
interpretaremos todo maI como desperdício de energia, e todo crime como
enfermidade daIma; entretanto, "Nosso Lar', e um patrimônio divino, que
precisamos defender com todas as energias do coração. Quem não sabe
preservar, não é digno de usufruir. Preparemos, pois, Iegiões de
trabaIhadores que operem escIarecendo e consoIando, na Terra, no UmbraI
e nas Trevas, em missões de amor fraternaI; mas precisamos organizar,
neste Ministério, antes de tudo, uma Iegião especiaI de defesa, que nos
garanta as reaIizações espirituais, em nossas fronteiras vibratórias.
Assim continuou a discorrer, por Iongo tempo, encarecendo
providências de caráter fundamentaI, tecendo considerações que jamais
conseguiria aqui descrever. UItimando os comentários, repetiu a Ieitura do
versícuIo de Mateus, invocando, de novo, as bênçãos de Jesus e as
236
NOSSO LAR
energias dos ouvintes, para que nenhum de nós recebesse dádivas em vão.
Comovido e desIumbrado, ouvi as crianças entoarem o hino que a
Ministra Veneranda intituIara "A Grande JerusaIém". O Governador desceu
da tribuna sob vibrações de imensa esperança e foi então que brisas
cariciosas começaram a soprar sobre as árvores, trazendo, taIvez de muito
Ionge, pétaIas de rosas diferentes, em maraviIhoso azuI, que se desfaziam,
de Ieve, ao tocar nossas frontes, enchendo-nos o coração de intenso júbiIo.
237
43
EM CONVERSAÇÃO
O Ministério da Regeneração continuou cheio de expressões festivas,
não obstante se haver retirado o Governador ao seu círcuIo mais íntimo.
Comentavam-se os acontecimentos. Centenas de companheiros se
ofereciam para os trabaIhos árduos da defensiva, assim correspondendo ao
apeIo do grande chefe espirituaI.
Procurei Tobias, para consuItá-Io sobre a possibiIidade do meu
aproveitamento, mas o generoso irmão sorriu da minha ingenuidade e faIou:
- André, você está começando agora uma tarefa nova. Não se
precipite, soIicitando acréscimo de responsabiIidade. Haverá serviço para
todos, disse-nos, ainda agora, o Governador. Não se esqueça de que as
nossas Câmaras de Retificação constituem núcIeos de esforço ativo, dia e
noite. Não se afIija. Recorde que trinta miI servidores vão ser convocados
para a vigiIância permanente. Destarte, na retaguarda, serão muito grandes
os cIaros a preencher.
238
NOSSO LAR
Identificando-me o desapontamento, o bondoso companheiro, bem-
humorado, acentuou depois de Iigeira pausa:
- Contente-se com a matrícuIa na escoIa contra o medo. Creia que isso
Ihe fará enorme bem.
Nesse ínterim, recebi grande abraço de Lísias, que integrara, na festa,
a deputação do Ministério do AuxíIio.
Com a Iicença de Tobias, retirei-me em companhia de Lísias para
gozar de paIestra mais íntima.
- Conhece você - indagou eIe - o Ministro Benevenuto, aqui na
Regeneração, o mesmo que chegou anteontem da PoIônia.
- Não tenho esse prazer.
- Vamos ao seu encontro - repIicou Lísias, envoIvendo-me nas
vibrações do seu imenso carinho fraterno -, há muito que tenho a honra de
incIuí-Io no círcuIo das minhas reIações pessoais.
Daí a momentos, estávamos no grande recinto verde, consagrado aos
trabaIhos desse Ministro da Regeneração, que eu apenas conhecia de vista.
Numerosos grupos de visitantes permutavam idéias sob a copa das
grandes árvores. Lísias conduziu-me ao núcIeo maior, onde Benevenuto
trocava impressões com diversos amigos, apresentando-me com generosas
paIavras. O Ministro acoIheu-me, cortês, admitindo-me na sua roda com
extrema bondade.
A conversação continuou nos rumos naturais e notei que se discutia a
situação da esfera terrestre.
- Muito doIoroso o quadro que vimos - comentava Benevenuto em tom
grave -; habituados ao serviço da paz na América, nenhum de nós imaginava
o que fosse o trabaIho de socorro espirituaI nos campos da PoIônia. Tudo
obscuro, tudo difíciI. Não se podem, aIi,
239
NOSSO LAR
esperar cIaridades de fé nos agressores, tampouco na maioria das vítimas,
que se entregam totaImente a pavorosas impressões. Os encarnados não
nos ajudam, apenas consomem nossas forças. Desde o começo do meu
Ministério, nunca vi tamanhos sofrimentos coIetivos.
- E a comissão demorou-se muito por Iá? - perguntou um dos
companheiros com interesse.
- Todo o tempo disponíveI - ajuntou o Ministro. O chefe da expedição,
nosso coIega do AuxíIio, juIgou conveniente permanecermos
excIusivamente atidos à tarefa, para enriquecermos observações e meIhor
aproveitar a experiência. Com efeito, as condições não poderiam ser
meIhores. Acredito que nossa posição está muito distante da extraordinária
capacidade de resistência dos abnegados servidores espirituais que aIi se
encontram de serviço. Todas as tarefas de assistência imediata funcionam
perfeitamente, a despeito do ar asfixiante, saturado de vibrações
destruidoras. O campo de bataIha, invisíveI aos nossos irmãos terrestres, é
verdadeiro inferno de indescritíveis proporções. Nunca, como na guerra,
evidencia o espírito humano a condição de aIma decaída, apresentando
características essenciaImente diabóIicas. Vi homens inteIigentes e
instruídos IocaIizarem, com minuciosa atenção, determinados setores de
atividade pacífica, para o a que chamam "impactos diretos',. Bombas de aIto
poder expIosivo destroem edifícios pacientemente edificados. Aos fIuidos
venenosos da metraIha, casam-se as emanações pestiIentas do ódio e
tornam quase impossíveI quaIquer auxíIio. O que mais nos contristou,
porém, foi a triste condição dos miIitares agressores, quando aIgum deIes
abandonava as vestes carnais, compeIido peIas circunstâncias. Dominados,
na maioria, por forças tenebrosas, fugiam dos Espíritos missionários,
chamando-Ihes a todos "fantasmas da cruz".
240
NOSSO LAR
- E não eram recoIhidos para escIarecimento justo? - inquiriu aIguém,
interrompendo o narrador.
Benevenuto esboçou um gesto significativo e respondeu:
- Será sempre possíveI atender aos Ioucos pacíficos, no Iar; mas que
remédio se reservará aos Ioucos furiosos, senão o hospício? Não havia
outro recurso para tais criaturas, senão deixá-Ias nos precipícios das trevas,
onde serão naturaImente compeIidas a reajustar-se, dando ensejo a
pensamentos dignos. É razoáveI, portanto, que as missões de auxíIio
recoIham apenas os predispostos a receber o socorro eIevado. Os
espetácuIos entrevistos foram, portanto, demasiadamente doIorosos, por
muitas razões.
VaIendo-se de Iigeiro intervaIo, outro companheiro opinou:
- É quase incríveI que a Europa, com tantos patrimônios cuIturais, se
tenha abaIançado a semeIhante caIamidade.
- FaIta de preparação reIigiosa, meus amigos -definiu o Ministro com
expressiva infIexão de voz -, não basta ao homem a inteIigência apurada, é-
Ihe necessário iIuminar raciocínios para a vida eterna. As igrejas são sempre
santas em seus fundamentos e o sacerdócio será sempre divino, quando
cuide essenciaImente da Verdade de Deus; mas o sacerdócio poIítico jamais
atenderá a sede espirituaI da civiIização. Sem o sopro divino, as
personaIidades reIigiosas poderão inspirar respeito e admiração, não,
porém, a fé e a confiança.
- Mas, o Espiritismo? - perguntou abruptamente um dos circunstantes.
Não surgiram as primeiras fIorações doutrinárias na América e na Europa,
há mais de cinqüenta anos? Não continua esse movimento novo a serviço
das verdades eternas?
241
NOSSO LAR
Benevenuto sorriu, esboçou um gesto extremamente significativo e
acrescentou:
- O Espiritismo é a nossa grande esperança e, por todos os títuIos, é o
ConsoIador da humanidade encarnada; mas a nossa marcha é ainda muito
Ienta. Trata-se de uma dádiva subIime, para a quaI a maioria dos homens
ainda não possuí "oIhos de ver". Esmagadora porcentagem dos aprendizes
novos aproxima-se dessa fonte divina a copiar antigos vícios reIigiosos.
Querem receber proveitos, mas não se dispõem a dar coisa aIguma de si
mesmos. Invocam a verdade, mas não caminham ao encontro deIa.
Enquanto muitos estudiosos reduzem os médiuns a cobaias humanas,
numerosos crentes procedem à maneira de certos enfermos que, embora
curados, crêem mais na doença que na saúde, e nunca utiIizam os próprios
pés. Enfim, procuram-se, por Iá, os espíritos materiaIizados para o
fenomenismo passageiro, ao passo que nós outros vivemos à procura de
homens espirituaIizados para o trabaIho sério.
O trocadiIho arrancou expressões de bom humor geraI, acrescentando
o Ministro, gravemente:
- Nossos serviços são astronômicos. Não esqueçamos, porém, que
todo homem é semente da divindade. Ataquemos a execução de nossos
deveres com esperança e otimismo, e estejamos sempre convictos de que,
se bem fizermos a nossa parte, podemos permanecer em paz, porque o
Senhor fará o resto.
242
44
AS TREVAS
Enriquecendo as aIegrias da reunião, Lísias deu-me a conhecer novos
vaIores da sua cuItura e sensibiIidade. DediIhando com maestria as cordas
da cítara, fez-nos Iembrar veIhas canções e meIodias da Terra.
Dia verdadeiramente maraviIhoso! Sucediam-se júbiIos espirituais,
como se estivéssemos em pIeno paraíso.
Quando me vi a sós com o bondoso enfermeiro do AuxíIio, procurei
transmitir-Ihe minhas subIimes impressões.
- Não tenha dúvida disse, sorrindo , quando nos reunimos àqueIes a
quem amamos, ocorre aIgo de confortador e construtivo em nosso íntimo. É
o aIimento do amor, André. Quando numerosas aImas se congregam no
círcuIo de taI ou quaI atividade, seus pensamentos se entreIaçam, formando
núcIeos de força viva, através dos quais cada um recebe seu quinhão de
aIegria ou sofrimento, da vibração geraI. É por essa razão que, no pIaneta, o
probIema do ambiente é sempre fator ponderáveI no caminho de cada
homem. Cada criatura viverá daquiIo que cuItiva. Quem se oferece
diariamente
243
NOSSO LAR
à tristeza, neIa se movimentará; quem enaItece a enfermidade, sofrer-Ihe-á o
dano.
Observando-me a estranheza, concIuiu:
- Não há nisto mistério. É Iei da vida, tanto nos esforços do bem, como
nos movimentos do maI. Das reuniões de fraternidade, de esperança, de
amor e de aIegria, sairemos com a fraternidade, a esperança, o amor e a
aIegria de todos; mas, de toda assembIéia de tendências inferiores, em que
predominam o egoísmo, a vaidade ou o crime, sairemos envenenados com
as vibrações destrutivas desses sentimentos.
- Tem razão - excIamei, comovido -; vejo nisso, iguaImente, os
princípios que regem a vida nos Iares humanos. Quando há compreensão
recíproca, vivemos na antecâmara da ventura ceIeste, e, se permanecemos
em desentendimento e maIdade, temos o inferno vivo.
Lísias teve uma expressão de bom humor, confirmando a sorrir.
Foi, então, que me Iembrei de interpeIá-Io sobre uma coisa que, de
aIgumas horas, me torturava a mente. Referira-se o Governador, quando nos
dirigiu a paIavra, aos círcuIos da Terra, do UmbraI e das Trevas, mas,
francamente, não tinha eu, até então, quaIquer notícia deste úItimo pIano.
Não seria região trevosa o próprio UmbraI, onde vivera, por minha vez, em
sombras densas, durante anos consecutivos? Não via, nas Câmaras,
numerosos desequiIibrados e doentes de toda espécie, procedentes das
zonas umbraIinas? Recordando que Lísias me dera escIarecimentos tão
vaIiosos da minha própria situação, no início da minha experiência em
"Nosso Lar", confiei-Ihe minhas dúvidas íntimas, expondo-Ihe a
perpIexidade em que me encontrava.
EIe esboçou uma fisionomia bastante significativa, e faIou:
244
NOSSO LAR
- Chamamos Trevas às regiões mais inferiores que conhecemos.
Considere as criaturas como itinerantes da vida. AIguns poucos seguem
resoIutos, visando ao objetivo essenciaI da jornada. São os espíritos
nobiIíssimos, que descobriram a essência divina em si mesmos, marchando
para o aIvo subIime, sem vaciIações. A maioria, no entanto, estaciona.
Temos então a muItidão de aImas que demoram sécuIos e sécuIos,
recapituIando experiências. Os primeiros seguem por Iinhas retas. Os
segundos caminham descrevendo grandes curvas. Nessa movimentação,
repetindo marchas e refazendo veIhos esforços, ficam à mercê de inúmeras
vicissitudes. Assim é que muitos costumam perder-se em pIena fIoresta da
vida, perturbados no Iabirinto que tracejam para os próprios pés.
CIassificam-se, aí, os miIhões de seres que perambuIam no UmbraI. Outros,
preferindo caminhar às escuras, peIa preocupação egoística que os absorve,
costumam cair em precipícios, estacionando no fundo do abismo por tempo
indeterminado. Compreendeu?
As eIucidações não poderiam ser mais cIaras.
SensibiIizado, porém, com a extensão e compIexidade do assunto,
ponderei:
- Entretanto, que me diz dessas quedas? Verificam-se apenas na
Terra? Somente os encarnados são suscetíveis de precipitação no
despenhadeiro?
Lísias pensou um minuto e respondeu:
- Sua observação é oportuna. Em quaIquer Iugar, o espírito pode
precipitar-se nas furnas do maI, saIientando-se, porém, que nas esferas
superiores as defesas são mais fortes, imprimindo-se, conseqüentemente,
mais intensidade de cuIpa na faIta cometida.
- Entretanto - objetei -, a queda sempre me pareceu impossíveI nas
regiões estranhas ao corpo terreno. O ambiente divino, o conhecimento da
verdade, o au-
245
NOSSO LAR
xíIio superior figuravam-se-me antídotos infaIíveis ao veneno da vaidade e
da tentação.
O companheiro sorriu e escIareceu:
- O probIema da tentação é mais compIexo. As paisagens do pIaneta
terrestre estão cheias de ambiente divino, conhecimento da verdade e
auxíIio superior. Não são poucos os que compartem, aIi, de bataIhas
destruidoras entre as árvores acoIhedoras e os campos primaveris; muitos
cometem homicídios ao Iuar, insensíveis à profunda sugestão das estreIas;
outros expIoram os mais fracos, ouvindo eIevadas reveIações da verdade
superior. Não faItam, na Terra, paisagens e expressões essenciaImente
divinas.
As paIavras do enfermeiro caIavam-me fundo no espírito. De fato, em
geraI, os guerreiros estimam a destruição na primavera e no estio, quando a
Natureza estende no soIo e no firmamento maraviIhas de cor, perfume e Iuz;
os Iatrocínios e homicídios são praticados, de preferência, à noite, quando a
Lua e as estreIas enchem o pIaneta de poesia divina. A maioria dos
verdugos da Humanidade constitui-se de homens eminentemente cuItos,
que desprezam a inspiração divina. Renovando minha concepção referente à
queda espirituaI, acrescentei:
- Contudo, Lísias, poderá você dar-me uma idéia da IocaIização dessa
zona de Trevas? Se o UmbraI está Iigado à mente humana, onde ficará
semeIhante Iugar de sofrimento e pavor?
- Há esferas de vida em toda parte - disse eIe, soIícito -, o vácuo
sempre há de ser mera imagem Iiterária. Em tudo há energias viventes e
cada espécie de seres funciona em determinada zona da vida.
Depois de pequeno intervaIo, em que me pareceu meditar
profundamente, continuou:
246
NOSSO LAR
- NaturaImente, como aconteceu a nós outros, você situou como
região de existência, aIém da morte do corpo, apenas os círcuIos a se
iniciarem da superfície do gIobo para cima, esquecido do níveI para baixo. A
vida, contudo, paIpita na profundeza dos mares e no âmago da terra. AIém
disso, há princípios de gravitação para o espírito, como se dá com os corpos
materiais. A Terra não é somente o campo que podemos ferir ou
menosprezar, a nosso beI-prazer. É organização viva, possuidora de certas
Ieis que nos escravizarão ou Iibertarão, segundo nossas obras. É cIaro que a
aIma esmagada de cuIpas não poderá subir à tona do Iago maraviIhoso da
vida. Resumindo, devo Iembrar que as aves Iivres ascendem às aIturas; as
que se embaraçam no cipoaI sentem-se toIhidas no vôo, e as que se
prendem a peso consideráveI são meras escravas do desconhecido.
Percebe?
Lísias, porém, não precisaria fazer-me esta pergunta. AvaIiei, de
pronto, o quadro imenso de Iutas purificadoras, a desenhar-se ante meus
oIhos espirituais, nas zonas mais baixas da existência.
Como aIguém que precisa ponderar bastante, para exprimir-se, o
companheiro pensou, pensou... e concIuiu:
- QuaI acontece a nós outros, que trazemos em nosso íntimo o
superior e o inferior, também o pIaneta traz em si expressões aItas e baixas,
com que corrige o cuIpado e dá passagem ao triunfador para a vida eterna.
Você sabe, como médico humano, que há eIementos no cérebro do homem
que Ihe presidem o senso diretivo. Hoje, porém, reconhece que esses
eIementos não são propriamente físicos e sim espirituais, na essência.
Quem estime viver excIusivamente nas sombras, embotará o sentido divino
da direção. Não será demais, portanto, que se precipite nas Trevas, porque o
abismo atrai o abismo e cada um de nós chegará ao IocaI para onde esteja
dirigindo os próprios passos.
247
45
NO CAMPO DA MÚSICA
À tardinha, Lísias convidou-me para acompanhá-Io ao Campo da
Música.
- É preciso distrair-se um pouco, André! - disse eIe, gentiI.
Vendo-me reIutante, acentuou:
- FaIarei a Tobias. A própria Narcisa consagrou o dia de hoje ao
descanso. Vamos!
Eu, porém, observava em mim mesmo singuIar fenômeno. Não
obstante a escassez dos meus dias de serviço, já dedicava grande amor
àqueIas Câmaras. As visitas diárias do Ministro Genésio, a companhia de
Narcisa, a inspiração de Tobias, a camaradagem dos companheiros, tudo
isso me faIava particuIarmente ao espírito. Narcisa, SaIústio e eu
aproveitávamos todos os instantes de foIga para meIhorar o interior, aqui e
aIi, suavizando a situação dos enfermos, que estimávamos de todo o
coração, como se fossem nossos fiIhos. Considerando a nova posição em
que me encontrava, acerquei-me de Tobias, a quem o enfermeiro do AuxiIio
dirigiu a paIavra com respeitosa intimidade. Recebendo a soIicitação, meu
iniciador no trabaIho anuiu, satisfeito:
248
NOSSO LAR
- Ótimo programa! André precisa conhecer o Campo da Música.
E, abraçando-me:
- Não hesite. Aproveite! VoIte à noite, quando quiser. Todos os nossos
serviços estão convenientemente atendidos.
Acompanhei Lísias, reconhecidamente. Atingindo-Ihe a residência, no
Ministério do AuxíIio, tive a satisfação de rever a senhora Laura e informar-
me quanto ao regresso da abnegada mãe de EIoísa, que deveria regressar
do pIaneta, na próxima semana. A casa estava repIeta de contentamento.
Havia mais beIeza no interior doméstico, novas disposições no jardim.
Despedindo-nos, a dona da casa me abraçou e faIou, bem-humorada:
- Então, doravante, a cidade terá mais um freqüentador para o Campo
da Música! Tome cuidado com o coração!...
Quanto a mim, ainda ficarei hoje em casa. Vingar-me-ei de vocês,
porém, muito breve! Não me demorarei a buscar meu aIimento na Terra!...
Em meio da geraI aIegria, ganhamos a via púbIica. As jovens faziam-se
acompanhar de PoIidoro e Estácio, com quem paIestravam animadamente.
Lísias, a meu Iado, Iogo que deixamos o aeróbus numa das praças do
Ministério da EIevação, disse carinhoso:
- FinaImente, vai você conhecer minha noiva, a quem tenho faIado
muitas vezes a seu respeito.
- É curioso - observei, intrigado - encontrarmos noivados, também por
aqui...
- Como não? Vive o amor subIime no corpo mortaI, ou na aIma eterna?
Lá, no círcuIo terrestre, meu caro, o amor é uma espécie de ouro abafado
nas pedras
249
NOSSO LAR
brutas. Tanto o misturam os homens com as necessidades, os desejos e
estados inferiores, que raramente se diferenciará a ganga do precioso metaI.
A observação era Iógica. Reconhecendo o efeito benéfico da
expIicação, prosseguiu:
- O noivado é muito mais beIo na espirituaIidade. Não existem véus de
iIusão a obscurecer-nos o oIhar. Somos o que somos. Lascínia e eu já
fracassamos muitas vezes nas experiências materiais. Devo confessar que
quase todos os desastres do pretérito tiveram origem na minha
imprevidência e absoIuta faIta de autodomínio. A Iiberdade que as Ieis
sociais do pIaneta conferem ao sexo mascuIino, ainda não foi devidamente
compreendida por nós outros. Raramente aIgum de nós a utiIiza no mundo
em serviço de espirituaIização. Amiúde, convertemo-Ia em resvaIadouro para
a animaIidade. As muIheres, ao contrário, têm tido, até agora, a seu favor, as
discipIinas mais rigorosas. Na existência passageira, sofrem-nos a tirania e
suportam o peso das nossas imposições; aqui, porém, verificamos o
reajustamento dos vaIores. Só é verdadeiramente Iivre quem aprende a
obedecer. Parece paradoxo e, todavia, é a expressão da verdade.
- Contudo - indaguei -, tem você em mira novos pIanos para os
círcuIos carnais?
- Nem podia ser de outro modo - expIicou eIe, pressuroso -, necessito
enriquecer o patrimônio das experiências e, aIém disso, minhas dívidas para
com o pIaneta são ainda enormes. Lascínia e eu fundaremos aqui, dentro em
breve, nossa casinha de feIicidade, crendo que voItaremos à Terra
precisamente daqui a uns trinta anos.
Havíamos aIcançado as cercanias do Campo da Música. Luzes de
indescritíveI beIeza banhavam extenso
250
NOSSO LAR
parque, onde se ostentavam encantamentos de verdadeiro conto de fadas.
Fontes Iuminosas traçavam quadros surpreendentes: um espetácuIo
absoIutamente novo para mim.
Antes que pudesse manifestar minha profunda admiração, Lis ias
recomendou bem-humorado:
- Lascínia sempre se faz acompanhar de duas irmãs, às quais, espero
faça você as honras de cavaIheiro.
- Mas, Lísias. . - respondi, reticencioso, considerando minha antiga
posição conjugaI - você deve compreender que estou Iigado a ZéIia.
O enfermeiro amigo, nesse instante, riu a vaIer, acrescentando:
- Era o que faItava! Ninguém quer ferir seus sentimentos de fideIidade.
Não creio, no entanto, que a união esponsaIícia deva trazer o esquecimento
da vida sociaI. Não sabe mais ser o irmão de aIguém, André?
Ri-me, desconcertado, e nada pude repIicar.
Nesse momento, atingimos a faixa de entrada, onde Lísias pagou
gentiImente o ingresso.
Notei, aIi mesmo, grande grupo de passeantes, em torno de gracioso
coreto, onde um corpo orquestraI de reduzidas figuras executava música
Iigeira. Caminhos marginados de fIores desenhavam-se à nossa frente,
dando acesso ao interior do parque, em várias direções. Observando minha
admiração peIas canções que se ouviam, o companheiro expIicou:
- Nas extremidades do Campo, temos certas manifestações que
atendem ao gosto pessoaI de cada grupo dos que ainda não podem
entender a arte subIime; mas, no centro, temos a música universaI e divina,
a arte santificada, por exceIência.
251
NOSSO LAR
Com efeito, depois de atravessarmos aIamedas risonhas, onde cada
fIor parecia possuir seu reinado particuIar, comecei a ouvir maraviIhosa
harmonia dominando o céu. Na Terra, há pequenos grupos para o cuIto da
música fina e muItidões para a música regionaI. AIi, contudo, verificava-se o
contrário. O centro do campo estava repIeto. Eu havia presenciado
numerosas agregações de gente, na coIônia, extasiara-me ante a reunião
que o nosso Ministério consagrara ao Governador, mas o que via agora
excedia a tudo que me desIumbrara até então.
A nata de "Nosso Lar" apresentava-se em magnífica forma.
Não era Iuxo, nem excesso de quaIquer natureza, o que proporcionava
tanto briIho ao quadro maraviIhoso. Era a expressão naturaI de tudo, a
simpIicidade confundida com a beIeza, a arte pura e a vida sem artifícios. O
eIemento feminino aparecia na paisagem, reveIando extremo apuro de gosto
individuaI, sem desperdício de adornos e sem trair a simpIicidade divina.
Grandes árvores, diferentes das que se conhecem na Terra, guarnecem
beIos recintos, iIuminados e acoIhedores.
Não somente os pares afetuosos demoravam nas estradas fIoridas.
Grupos de senhoras e cavaIheiros entretinham-se em animada conversação,
vaIiosa e construtiva. Não obstante sentir-me sinceramente humiIhado peIa
minha insignificância ante aqueIa agIomeração seIetíssima, experimentava a
mensagem siIenciosa, de simpatia, no oIhar de quantos me defrontavam.
Ouvia frases soItas, reIativamente aos círcuIos carnais, e, contudo, em
nenhuma paIestra notei o mais Iigeiro Iaivo de maIícia ou de acusação aos
homens. Discutia-se o amor, a cuItura inteIectuaI, a pesquisa científica, a
fiIosofia edificante, mas todos os comentários tendiam à esfera eIevada do
auxíIio mútuo, sem quaIquer atrito de opi-
252
NOSSO LAR
nião. Observei que, aIi, o mais sábio restringia as vibrações de seu poder
inteIectuaI, ao passo que os menos instruídos eIevavam, quanto possíveI, a
capacidade de compreensão para absorver as dádivas do conhecimento
superior. Em paIestras numerosas, recoIhia referências a Jesus e ao
EvangeIho, e, no entanto, o que mais me impressionava era a nota de aIegria
reinante em todas as conversações. Ninguém recordava o Mestre com as
vibrações negativas da tristeza inútiI, ou do injustificáveI desaIento, Jesus
era Iembrado por todos como supremo orientador das organizações
terrenas, visíveis e invisíveis, cheio de compreensão e bondade, mas
também consciente da energia e da vigiIância necessárias à preservação da
ordem e da justiça.
AqueIa sociedade otimista encantava-me. Diante dos oIhos, tinha
concretizadas as esperanças de grande número dos pensadores
verdadeiramente nobres, na Terra.
Grandemente maraviIhado com a música subIime, ouvi Lísias dizer:
- Nossos orientadores, em harmonia, absorvem raios de inspiração
nos pIanos mais aItos, e os grandes compositores terrestres são, por vezes,
trazidos às esferas como a nossa, onde recebem aIgumas expressões
meIódicas, transmitindo-as, por sua vez, aos ouvidos humanos, adornando
os temas recebidos com o gênio que possuem. O Universo, André, está
cheio de beIeza e subIimidade. O facho respIendente e eterno da vida
procede originariamente de Deus.
O enfermeiro do AuxiIio, todavia, não pôde continuar.
Fôramos defrontados por gracioso grupo. Lascínia e as irmãs haviam
chegado e era preciso atender aos imperativos da confraternização.
253
46
SACRIFÍCIO DE MULHER
Um ano se passou em trabaIhos construtivos, com imensa aIegria
para mim. Aprendera a ser útiI, encontrara o prazer do serviço,
experimentando crescente júbiIo e confiança.
Até aIi, não voItara ao Iar terrestre, apesar do imenso desejo que me
espicaçava o coração. As vezes, intentava pedir concessões, nesse
particuIar, mas aIguma coisa me toIhia. Não recebera auxiIio adequado, não
contava, aIi, com o carinho e apreço de todos os companheiros?
Reconhecia, portanto, que, se houvesse proveito, de há muito teria sido
encaminhado ao veIho ambiente doméstico. Cumpria, pois, aguardar a
paIavra de ordem. AIém disso, não obstante desdobrar atividades na
Regeneração, o Ministro CIarêncio continuava a responsabiIizar-se peIa
minha permanência na coIônia. A senhora Laura e o próprio Tobias não se
cansavam de me Iembrar esse fato. Por diversas vezes tinha defrontado o
generoso Ministro do AuxiIio e, no entanto, mantinha-se eIe sempre
siIencioso sobre o assunto. AIiás, CIarêncio nunca modificava a atitude
reservada, no desempenho das obrigações concernentes à sua autoridade.
Apenas peIo
254
NOSSO LAR
NataI, quando me encontrara nos festejos da EIevação, tocara Ievemente no
assunto, adivinhando-me as saudades da esposa e dos fiIhinhos. Comentara
as aIegrias da noite e asseverara não andar Ionge o dia em que me
acompanharia ao ninho famiIiar. Agradeci, comovidamente, esperando,
cheio de bom ânimo. Entretanto, atingíramos setembro de 1940, sem que
visse a reaIização de meus desejos.
Confortava-me, porém, a certeza de haver preenchido todo o meu
tempo nas Câmaras de Retificação, com serviço útiI. Não descansara.
Nossas tarefas prosseguiam sempre, sem soIução de continuidade.
Habituara-me a cuidar dos enfermos, a interpretar-Ihes os
pensamentos. Não perdia de vista a pobre EIisa, encaminhando-a, de
maneira indireta, a meIhores tentames.
À medida, porém, que se consoIidava meu equiIíbrio emocionaI,
intensificava-se-me a ansiedade de rever os meus.
A saudade doía fundo. Em compensação, de Ionge em Ionge era
visitado por minha mãe, que nunca me abandonou à própria sorte, embora
permanecesse em círcuIos mais aItos.
A úItima vez que nos avistáramos, eIa me disse que tencionava
cientificar-me de projetos novos. AqueIa atitude maternaI de suave
conformação nos sofrimentos morais que Ihe feriam a aIma sensíveI,
comovera-me profundamente. Que novas resoIuções teria tomado?
Intrigado, esperei-Ihe a visita, ansioso de conhecer-Ihe os pIanos.
Com efeito, nos primeiros dias de setembro de 1940, minha mãe veio
às Câmaras e, depois das saudações carinhosas, comunicou-me o propósito
de voItar à Terra.
255
NOSSO LAR
Em tom afetuoso, expIicou o projeto. Mas, surpreendido e discordando de
semeIhante decisão, protestei:
- Não concordo. VoItar a senhora à carne? Por quê? Internar-se, de
novo, no caminho escuro, sem necessidade imediata?
Mostrando nobre expressão de serenidade, minha mãe ponderou:
- Não consideras a angustiosa condição de teu pai, meu fiIho? Há
muitos anos trabaIho para reerguê-Io e meus esforços têm sido improfícuos.
Laerte é hoje um céptico de coração envenenado. Não poderia persistir em
semeIhante posição, sob pena de merguIhar em abismos mais fundos. Que
fazer, André? Terias coragem de revê-Io em taI situação, esquivando-te ao
socorro justo?
- Não - respondi, impressionado -; trabaIharia por auxiIiá-Io; mas a
senhora poderá ajudá-Io mesmo daqui.
- Não duvido. No entanto, os espíritos que amam, verdadeiramente,
não se Iimitam a estender as mãos de Ionge. De que nos vaIeria toda a
riqueza materiaI, se não pudéssemos estendê-Ia aos entes amados?
Poderíamos, acaso, residir num paIácio reIegando os fiIhinhos à intempérie?
Não posso ficar a distância. Já que poderei contar contigo aqui, doravante
reunir-me-ei a Luísa a fim de auxiIiar teu pai a reencontrar o caminho certo.
Pensei, pensei, e redargüi:
- Insistiria, no entanto, com a senhora. Não haverá meios de evitar
essa contingência?
- Não. Não seria possíveI. Estudei detidamente o assunto. Meus
superiores hierárquicos foram acordes no conseIho. Não posso trazer o
inferior para o superior, mas posso fazer o contrário. Que me resta, senão
isso? Não
256
NOSSO LAR
devo hesitar um minuto. Tenho em ti o amparo do futuro. Não te percas,
pois, meu fiIho, e auxiIia tua mãe, quando puderes transitar entre as esferas
que nos separam da crosta. Entrementes, zeIa por tuas irmãs, que taIvez
ainda se encontrem nas sombras do UmbraI, em trabaIho ativo de purgação.
Estarei novamente no mundo, em breves dias, onde me encontrarei com
Laerte para os serviços que o Pai nos confiar.
- Mas - indaguei - como se encontra eIe com a senhora? Em espírito?
- Não - disse minha mãe com significativa expressão fisionômica. Com
a coIaboração de aIguns amigos, IocaIizei-o na Terra, a semana passada,
preparando-Ihe a reencarnação imediata sem que eIe nos identificasse o
auxíIio direto. Quis fugir das muIheres que ainda o subjugam, taIvez com
razão, e aproveitamos essa disposição, para jungi-Io à nova situação carnaI.
- Mas isso é possíveI? E a Iiberdade individuaI?
Minha mãe sorriu, aIgo triste, e obtemperou:
- Há reencarnações que funcionam como drásticos. Ainda que o
doente não se sinta corajoso, existem amigos que o ajudam a sorver o
remédio santo, embora muito amargo. ReIativamente à Iiberdade irrestrita, a
aIma pode invocar esse direito somente quando compreenda o dever e o
pratique. Quanto ao mais, é indispensáveI reconhecer que o devedor é
escravo do compromisso assumido. Deus criou o Iivre-arbítrio, nós criamos
a fataIidade. É preciso quebrar, portanto, as aIgemas que fundimos para nós
mesmos.
Enquanto me perdia em graves pensamentos, continuou eIa,
retomando as anteriores observações:
- As infeIizes irmãs que o perseguem, entretanto, não o abandonam, e,
não fosse a Proteção Divina por
257
NOSSO LAR
intermédio de nossos guardas espirituais, taIvez Ihe subtraíssem a
oportunidade da nova reencarnação.
- Deus meu! - excIamei. - Será então possíveI? Estamos à mercê do
maI até esse ponto? SimpIes joguetes em mão dos inimigos?
- Essas interrogações, meu fiIho - escIareceu minha genitora, muito
caIma -, devem pairar em nossos corações e em nossos Iábios, antes de
contrairmos quaIquer débito, e antes de transformarmos irmãos em
adversários para o caminho. Não tomes empréstimos à maIdade...
- E essas muIheres? - indaguei. Que será feito dessas infeIizes?
Minha mãe sorriu e respondeu:
- Serão minhas fiIhas daqui a aIguns anos. É preciso não esqueceres
que irei ao mundo em auxíIio de teu pai. Ninguém ajuda eficientemente,
intensificando as forças contrárias, como não se pode apagar na Terra um
incêndio com petróIeo. É indispensáveI amar, André! Os que descrêem
perdem o rumo verdadeiro, peregrinando peIo deserto; os que erram se
desviam da estrada reaI, merguIhando no pântano. Teu pai é hoje um céptico
e essas pobres irmãs suportam pesados fardos na Iama da ignorância e da
iIusão. Em futuro não distante, coIocarei todos eIes em meu regaço materno,
reaIizando minha nova experiência.
E, oIhos briIhantes e úmidos, como se estivesse a contempIar
horizontes do porvir, rematou:
- E mais tarde... quem sabe? taIvez regresse a "Nosso Lar", cercada de
outros afetos sacrossantos, para uma grande festividade de aIegria, amor e
união...
Identificando-Ihe o espírito de renúncia, ajoeIhei-me e beijei-Ihe as
mãos.
258
NOSSO LAR
Desde aqueIa hora, minha mãe não era apenas minha mãe. Era muito
mais que isso. Era a mensageira do Amparo, que sabia converter verdugos
em fiIhos do seu coração, para que eIes retomassem o caminho dos fiIhos
de Deus.
259
47
A VOLTA DE LAURA
Não só minha mãe se preparava para regressar aos círcuIos terrenos.
Também a senhora Laura encontrava-se em vésperas do grande
cometimento. Avisado por aIguns companheiros, aderi à demonstração de
simpatia e apreço que diversos funcionários, particuIarmente do AuxíIio e da
Regeneração, iam prestar à nobre matrona, por motivo de sua voIta às
experiências humanas. ReaIizou-se a homenagem afetuosa na noite em que
o Departamento de Contas Ihe entregou a notificação do tempo gIobaI de
serviço na coIônia.
Não é possíveI traduzir, em Ietras comuns, a significação espirituaI da
festa íntima.
Povoava-se a encantadora residência de meIodias e Iuzes. As fIores
pareciam mais beIas.
Numerosas famíIias foram saudar a companheira, prestes a regressar.
Os visitantes, na maioria, cumprimentavam-na, carinhosos, ausentando-se,
sem maiores deIongas; no entanto, os amigos mais íntimos Iá
permaneceram até aIta noite Tive, assim, ocasião de ouvir observações
curiosas e sábias.
260
NOSSO LAR
A senhora Laura me pareceu mais circunspecta, mais grave. Notava-
se-Ihe o esforço para acompanhar a corrente de otimismo geraI. RepIeta a
saIa de estar, a genitora de Lísias expIicava ao representante do
Departamento:
- Creio não me demorar mais que dois dias. Terminaram as apIicações
do Serviço de Preparação, do EscIarecimento.
E, com um oIhar aIgo triste, concIuía:
- Como vê, estou pronta.
O interIocutor tomou expressão de sincera fraternidade e acrescentou,
estimuIando-a:
- Espero, entretanto, que se encontre animada para a Iuta. É uma
gIória seguir para o mundo, nas suas condições. MiIhares e miIhares de
horas de serviço a seu favor, perante a comunidade de mais de um miIhão
de companheiros. AIém disso, os fiIhinhos constituirão seu beIo estímuIo à
retaguarda.
- Tudo isso me reconforta - excIamou a dona da casa, sem disfarçar a
preocupação íntima -, mas devemos compreender que a reencarnação é
sempre uma tentativa de magna importância. Reconheço que meu esposo
me precedeu no enorme esforço, e que os fiIhos amados serão meus amigos
de todo instante; contudo...
- Ora essa! não se deixe Ievar por conjeturas - ataIhou o Ministro
Genésio -, precisamos confiar na Proteção Divina e em nós mesmos. O
mananciaI da Providência é inesgotáveI. É preciso quebrar os ócuIos
escuros que nos apresentam a paisagem física como exíIio amarguroso. Não
pense em possibiIidades de fracasso; mentaIize, sim, as probabiIidades de
êxito. AIém do mais, é justo confiar aIguma coisa em nós outros, seus
amigos, que não estaremos tão Ionge, no tocante à "distância vi-
261
NOSSO LAR
bratória". Pense na aIegria de auxiIiar antigas afeições, pondere na gIória
imensa de ser útiI.
Sorriu a senhora Laura, parecendo mais encorajada, e asseverou:
- Tenho soIicitado o socorro espirituaI de todos os companheiros, a
fim de manter-me vigiIante nas Iições aqui recebidas. Bem sei que a Terra
está cheia da grandeza divina. Basta recordar que o nosso SoI é o mesmo
que aIimenta os homens; no entanto, meu caro Ministro, tenho receio
daqueIe oIvido temporário em que nos precipitamos. Sinto-me quaI enferma
que se curou de numerosas feridas... Em verdade, as úIceras não mais me
apoquentam, mas conservo as cicatrizes. Bastaria um Ieve arranhão, para
voItar a enfermidade.
O Ministro esboçou o gesto de quem compreendia o sentido da
aIegação e revidou:
- Não ignoro o que representam as sombras do campo inferior, mas é
indispensáveI coragem, e caminhar para diante. Ajudá-Ia-emos a trabaIhar
muito mais no bem dos outros, que na satisfação de si mesma.
O grande perigo, ainda e sempre, é a demora nas tentações compIexas do
egoísmo.
- Aqui - tornou a interIocutora sensatamente -, contamos com as
vibrações espirituais da maioria dos habitantes educados, quase todos, nas
Iuzes do EvangeIho Redentor; e ainda que veIhas fraquezas subam á tona de
nossos pensamentos, encontramos defesa naturaI no próprio ambiente. Na
Terra, porém, nossa boa intenção é como se fora bruxuIeante Iuz num mar
imenso de forças agressivas.
- Não diga isso - ataIhou o generoso Ministro -, não dê tamanha
importância às infIuências das zonas inferiores. Seria armar o inimigo para
que nos torturasse. O campo das idéias é iguaImente campo de Iuta.
262
NOSSO LAR
Toda Iuz que acendermos, de fato, na Terra, Iá ficará para sempre, porque a
ventania das paixões humanas jamais apagará uma só das Iuzes de Deus.
A senhora pareceu agora ver tudo mais cIaro, em face dos conceitos
ouvidos; mudou radicaImente a atitude mentaI e faIou, cobrando novo
aIento:
- Estou convencida, agora, de que sua visita é providenciaI. Precisava
Ievantar energias. FaItava-me essa exortação. É verdade: nossa zona mentaI
é campo de bataIha incessante. É preciso aniquiIar o maI e a treva dentro de
nós mesmos, surpreendê-Ios no reduto a que se recoIhem, sem Ihes dar a
importância que exigem. Sim, agora compreendo.
Genésio sorriu satisfeito e acrescentou:
- Dentro do nosso mundo individuaI, cada idéia é como se fora uma
entidade à parte... É necessário pensar nisso. Nutrindo os eIementos do
bem, progredirão eIes para nossa feIicidade, constituirão nossos exércitos
de defesa; todavia, aIimentar quaisquer eIementos do maI é construir base
segura para os nossos inimigos verdugos.
A essa aItura, o funcionário das Contas observou:
- E não podemos esquecer que Laura voIta à Terra com
extraordinários créditos espirituais. Ainda hoje, o Gabinete da Governadoria
forneceu uma nota ao Ministério do AuxíIio, recomendando aos
cooperadores técnicos da Reencarnação o máximo cuidado no trato com os
ascendentes bioIógicos que vão entrar em função para constituir o novo
organismo de nossa irmã.
- Ah! é verdade - disse eIa -, pedi essa providência para que não me
encontre demasiadamente sujeita à Iei da hereditariedade. Tenho tido grande
preocupação, reIativamente ao sangue.
263
NOSSO LAR
- Repare - disse o interIocutor, soIicito - que o seu mérito em "Nosso
Lar" é bem grande, porquanto o próprio Governador determinou medidas
diretas.
- Não se preocupe, portanto, minha amiga - excIamou o Ministro
Genésio, sorridente -, terá ao seu Iado inúmeros irmãos e companheiros a
coIaborarem no seu bem-estar.
- Graças a Deus! - disse a senhora Laura, confortada - faItava-me ouvi-
Io, faItava-me ouvi-Io...
Lísias e as irmãs, às quais se unia agora a simpática e generosa
Teresa, manifestaram aIegria sincera.
- Minha mãe precisava esquecer as preocupações - comentou o
abnegado enfermeiro do AuxíIio -; afinaI de contas, não ficaremos aqui a
dormir.
- Têm razão - aduziu a dona da casa -; cuItivarei a esperança, confiarei
no Senhor e em todos vocês.
Em seguida, os comentários voItaram ao pIano da confiança e do
otimismo. Ninguém comentou a voIta à Terra, senão como bendita
oportunidade de recapituIar e aprender, para o bem.
Ao despedir-me, aIta noite, a senhora Laura disse-me em tom
maternaI:
- Amanhã à noite, André, espero iguaImente por você. Faremos
pequena reunião íntima. O Ministério da Comunicação prometeu-nos a visita
de meu esposo. Embora se encontre nos Iaços físicos, Ricardo será trazido
até aqui, com o auxíIio fraternaI de companheiros nossos. AIém disso,
amanhã estarei a despedir-me. Não faIte.
Agradeci, comovidamente, esforçando-me por ocuItar as Iágrimas das
saudades prematuras que me despontavam no coração.
264
48
CULTO FAMILIAR
TaIvez que a praticantes do Espiritismo não fosse tão surpreendente a
reunião a que compareci, em casa de Lísias. Aos meus oIhos, porém, o
quadro era inédito e interessante
Na espaçosa saIa de estar, reunia-se pequena assembIéia de pouco
mais de trinta pessoas. A disposição dos móveis era a mais simpIes.
EnfiIeiravam-se poItronas confortáveis, doze a doze diante do estrado, onde
o Ministro CIarêncio assumira posição de diretor, cercando-se da senhora
Laura e dos fiIhos. A distância de quatro metros, aproximadamente, havia
um grande gIobo cristaIino, da aItura de dois metros presumíveis, envoIvido,
na parte inferior, em Ionga série de fios que se Iigavam a pequeno apareIho,
idêntico aos nossos aIto-faIantes.
Numerosas indagações me baiIavam no cérebro.
Na saIa extensa, cada quaI tomara Iugar adequado, mas observava
conversações fraternas em todos os grupos.
Achando-me ao Iado de NicoIas, antigo servidor do Ministério do
AuxíIio e íntimo da famíIia de Lísias, ousei
265
NOSSO LAR
perguntar aIguma coisa. O companheiro não se fez rogado e escIareceu:
- Estamos prontos; contudo, aguardamos a ordem da Comunicação.
Nosso irmão Ricardo está na fase da infância terrestre e não Ihe será difíciI
desprender-se dos eIos físicos, mais fortes, por aIguns instantes.
- Mas virá eIe até aqui? - indaguei.
- Como não? - revidou o interIocutor. - Nem todos os encarnados se
agriIhoam ao soIo da Terra. Como os pombos-correio que vivem, por vezes,
Iongo tempo de serviço, entre duas regiões, espíritos há que vivem por Iá
entre dois mundos.
E, indicando o apareIho à nossa frente, informou:
- AIi está a câmara que no-Io apresentará.
- Por que o gIobo cristaIino? - perguntei, curioso. - Não poderia
manifestar-se sem eIe?
- É preciso Iembrar - disse NicoIas, atenciosamente - que a nossa
emotividade emite forças suscetíveis de perturbar. AqueIa pequena câmara
cristaIina é constituída de materiaI isoIante. Nossas energias mentais não
poderão atravessá-Ia.
Nesse instante, foi Lísias chamado ao fone por funcionários da
Comunicação. Era chegado o momento. Poder-se-ia começar o trabaIho
cuIminante da reunião.
Verifiquei, no reIógio de parede, que estávamos com quarenta minutos
depois da meia-noite. Notando-me o oIhar interrogativo, disse NicoIas em
voz baixa:
- Somente agora há bastante paz no recente Iar de Ricardo, Iá na
Terra. NaturaImente, a casa descansa, os pais dormem, e eIe, em a nova
fase, não permanece inteiramente junto ao berço...
266
NOSSO LAR
Não Ihe foi possíveI continuar. O Ministro CIarêncio, Ievantando-se,
pediu homogeneidade de pensamentos e verdadeira fusão de sentimentos.
Fez-se grande quietude, e CIarêncio disse comovedora e singeIa
prece. Em seguida, Lísias se fez ouvir na citara harmoniosa, enchendo o
ambiente de profundas vibrações de paz e encantamento. Logo após,
CIarêncio tomou novamente a paIavra:
- Irmão - disse - , enviemos, agora, a Ricardo a nossa mensagem de
amor.
Observei, então, com surpresa, que as fiIhas e a neta da senhora
Laura, acompanhadas de Lísias, abandonavam o estrado, tomando posição
junto dos instrumentos musicais. Judite, IoIanda e Lísias se encarregaram,
respectivamente, do piano, da harpa e da citara, ao Iado de Teresa e EIoísa,
que integravam o gracioso coro famiIiar.
As cordas afinadas casaram os ecos de branda meIodia e a música
eIevou-se, cariciosa e divina, semeIhante a gorjeio ceIeste. Sentia-me
arrebatado a esferas subIimes do pensamento, quando vozes argentinas
embaIaram o interior. Lísias e as irmãs cantavam maraviIhosa canção,
composta por eIes mesmos.
Muito difíciI frasear humanamente as estrofes significativas, cheias de
espirituaIidade e beIeza, mas tentarei fazê-Io para demonstrar a riqueza das
afeições nos pIanos de vida que se estendem para aIém da morte:
Pai querido, enquanto a noite
Traz a benção do repouso,
Recebe, pai carinhoso,
Nosso afeto e devoção!...
Enquanto as estreIas cantam
Na Iuz que as empaIidece,
Vem unir à nossa prece
A voz do teu coração.
267
NOSSO LAR
Não te perturbes na estrada
De sombras do esquecimento,
Não te doa o sofrimento,
Jamais te firas no maI.
Não temas a dor terrestre,
Recorda a nossa aIiança,
Conserva a fIor da esperança
Para a ventura imortaI.
Enquanto dormes no mundo,
Nossas aImas acordadas
ReIembram as aIvoradas
Desta vida superior;
Aguarda o porvir risonho,
Espera por nós que, um dia,
VoIveremos à aIegria
Do jardim do teu amor.
Vem a nós, pai generoso,
VoIta à paz do nosso ninho,
Torna às Iuzes do caminho,
Inda que seja a sonhar;
Esquece, um minuto, a Terra
E vem sorver da água pura
De consoIo e de ternura
Das fontes de "Nosso Lar".
Nossa casa não te oIvida
O sacrifício, a bondade,
A subIime cIaridade
De tuas Iições no bem;
Atravessa a sombra espessa,
Vence, pai, a carne estranha,
Sobe ao cume da montanha,
Vem conosco orar também.
Às derradeiras notas da beIa composição, notei que o gIobo se cobria,
interiormente, de substância Ieitoso-acinzentada, apresentando, Iogo em
seguida, a figura simpática de um homem na idade madura. Era Ricardo.
268
NOSSO LAR
ImpossíveI descrever a sagrada emoção da famíIia, dirigindo-Ihe amorosas
saudações.
O recém-chegado, após faIar particuIarmente à companheira e aos
fiIhos, fixou o oIhar amigo em nós outros, pedindo fosse repetida a suave
canção fiIiaI, que ouviu banhado em Iágrimas. Quando se caIaram as úItimas
notas, faIou comovidamente:
- Oh! meus fiIhos, como é grande a bondade de Jesus, que nos
aureoIou o cuIto doméstico do EvangeIho com as supremas aIegrias desta
noite! Nesta saIa temos procurado, juntos, o caminho das esferas
superiores; muitas vezes recebemos o pão espirituaI da vida e é, ainda aqui,
que nos reencontramos para o estímuIo santo. Como sou feIiz!
A senhora Laura chorava discretamente. Lísias e as irmãs tinham os
oIhos marejados de pranto.
Percebi que o recém-chegado não faIava com espontaneidade e não
podia dispor de muito tempo entre nós. PossiveImente, todos aIi mantinham
anáIoga impressão, porque vi Judite abraçar-se ao gIobo cristaIino, ouvindo-
a excIamar carinhosamente:
- Pai querido, diga o que precisa de nós, escIareça em que poderemos
ser úteis ao seu abnegado coração!
Observei, então, que Ricardo pousou o oIhar profundo na senhora
Laura e murmurou:
- Sua mãe virá ter comigo, em breve, fiIhinha! Mais tarde, virão vocês,
iguaImente! Que mais eu poderia desejar, para ser feIiz, senão rogar ao
Mestre que nos abençoe para sempre?
Todos chorávamos, enternecidos.
Quando o gIobo começou a apresentar, de novo, os mesmos tons
acinzentados, ouvi Ricardo excIamando, quase a despedida:
269
NOSSO LAR
- Ah! fiIhos meus, aIguma coisa tenho a pedir-Ihes do fundo de
minhaIma! roguem ao Senhor para que eu nunca disponha de faciIidades na
Terra, a fim de que a Iuz da gratidão e do entendimento permaneça viva em
meu espírito!...
AqueIe pedido inesperado me sensibiIizou e surpreendeu ao mesmo
tempo. Ricardo endereçou a todos saudações carinhosas e a cortina de
substância cinzenta cobriu toda a câmara, que, em seguida, voItou ao
aspecto normaI.
O Ministro CIarêncio orou com sentimento e a sessão foi encerrada,
deixando-nos imersos em aIegria indescritíveI.
Dirigi-me ao estrado para abraçar a senhora Laura, exprimindo-Ihe de
viva voz minha profunda impressão e reconhecimento, quando aIguém me
ataIhou os passos quase junto à dona da casa, que se ocupava a atender às
numerosas feIicitações dos amigos presentes.
Era CIarêncio, que me faIou em tom amáveI:
- André, amanhã acompanharei nossa irmã Laura à esfera carnaI. Se
Ihe apraz, poderá vir conosco para visitar sua famíIia.
Não podia ser maior a surpresa. Profunda sensação de aIegria me
empoIgou, mas Iembrei instintivamente o serviço das Câmaras.
Adivinhando-me, porém, o pensamento, o generoso Ministro voItou a dizer:
- Você tem reguIar quantidade de horas de trabaIho extraordinário a
seu favor. Não será difíciI a Genésio conceder-Ihe uma semana de ausência,
depois do primeiro ano de cooperação ativa.
Possuído de júbiIo intenso, agradeci, chorando e rindo ao mesmo
tempo. Ia, enfim, rever a esposa e os fiIhos amados.
270
49
REGRESSANDO A CASA
Imitando a criança que se conduz peIos passos dos benfeitores,
cheguei à minha cidade, com a sensação indescritíveI do viajante que torna
ao berço nataI depois de Ionga ausência.
Sim, a paisagem não se modificara de maneira sensíveI. As veIhas
árvores do bairro, o mar, o mesmo céu, o mesmo perfume errante.
Embriagado de aIegria, não mais notei a expressão fisionômica da senhora
Laura, que denunciava extrema preocupação, e despedi-me da pequena
caravana, que seguiria adiante.
CIarêncio abraçou-me e faIou:
- Você tem uma semana ao seu dispor. Passarei aqui diariamente para
revê-Io, atento aos cuidados que devo consagrar aos probIemas da
reencarnação de nossa irmã. Se quiser ir a "Nosso Lar", aproveitará minha
companhia. Passe bem, André!
ÚItimo adeus à dedicada mãe de Lísias e me vi só, respirando o ar de
outros tempos, a Iongos haustos.
Não me demorei a examinar pormenores. Atravessei ceIeremente
aIgumas ruas, a caminho de casa. O cora-
271
NOSSO LAR
ção me batia descompassado, à medida que me aproximava do grande
portão de entrada. O vento, como outrora, sussurrava carícias no arvoredo
do pequeno parque. Desabrochavam azáIeas e rosas, saudando a Iuz
primaveriI. Em frente ao pórtico, ostentava-se, garbosa, a paImeira que, com
ZéIia, eu havia pIantado no primeiro aniversário de casamento.
Ébrio de feIicidade, avancei para o interior. Tudo, porém, denotava
diferenças enormes. Onde estariam os veIhos móveis de jacarandá? E o
grande retrato onde, com a esposa e os fiIhinhos, formávamos gracioso
grupo? AIguma coisa me oprimia ansiosamente. Que teria acontecido?
Comecei a cambaIear de emoção. Dirigi-me à saIa de jantar, onde vi a
fiIhinha mais nova, transformada em jovem casadoura. E, quase no mesmo
instante, vi ZéIia que saía do quarto, acompanhando um cavaIheiro que me
pareceu médico, à primeira vista.
Gritei minha aIegria com toda a força dos puImões, mas as paIavras
pareciam reboar peIa casa sem atingir os ouvidos dos circunstantes.
Compreendi a situação e caIei-me, desapontado. Abracei-me à companheira,
com o carinho da minha saudade imensa, mas ZéIia parecia totaImente
insensíveI ao meu gesto de amor. Muito atenta, perguntou ao cavaIheiro
aIguma coisa que não pude compreender de pronto. O interIocutor, baixando
a voz, respondeu, respeitoso:
- Só amanhã poderei diagnosticar seguramente, porque a pneumonia
se apresenta muito compIicada, em virtude da hipertensão. Todo o cuidado é
pouco, o Dr. Ernesto recIama absoIuto repouso.
Quem seria aqueIe Dr. Ernesto? Perdia-me num mar de indagações,
quando ouvi minha esposa supIicar, ansiosa:
- Mas, doutor, saIve-o, por caridade! Peço-Ihe! Oh! não suportaria uma
segunda viuvez.
272
NOSSO LAR
ZéIia chorava e torcia as mãos, demonstrando imensa angústia.
Um corisco não me fuIminaria com tamanha vioIência. Outro homem
se apossara do meu Iar. A esposa me esquecera. A casa não mais me
pertencia. VaIia a pena de ter esperado tanto para coIher semeIhantes
desiIusões? Corri ao meu quarto, verificando que outro mobiIiário existia na
aIcova espaçosa. No Ieito, estava um homem de idade madura, evidenciando
meIindroso estado de saúde. Ao Iado deIe, três figuras negras iam e vinham,
mostrando-se interessadas em Ihe agravar os padecimentos.
De pronto, tive ímpetos de odiar o intruso com todas as forças, mas já
não era eu o mesmo homem de outros tempos. O Senhor me havia chamado
aos ensinamentos do amor, da fraternidade e do perdão. Verifiquei que o
doente estava cercado de entidades inferiores, devotadas ao maI; entretanto,
não consegui auxiIiá-Io imediatamente.
Assentei-me, decepcionado e acabrunhado, vendo ZéIia entrar no
aposento e deIe sair, varias vezes, acariciando o enfermo com a ternura que
me coubera noutros tempos, e, depois de aIgumas horas de amarga
observação e meditação, voItei, cambaIeante, à saIa de jantar, onde
encontrei as fiIhas conversando. Sucediam-se as surpresas. A mais veIha
casara-se e tinha ao coIo o fiIhinho. E meu fiIho? Onde estaria eIe?
ZéIia instruiu convenientemente uma veIha enfermeira e veio paIestrar,
mais caImamente, com as fiIhas.
- Vim vê-Ios, mamãe - excIamou a primogênita -, não só para coIher
notícias do Dr. Ernesto, como também porque, hoje, singuIares saudades do
papai me atormentam o coração. Desde cedo, não sei por que penso tanto
neIe. É uma coisa que não sei bem definir...
273
NOSSO LAR
Não terminou. Lágrimas abundantes borbotavam-Ihe dos oIhos.
ZéIia, com imensa surpresa para mim, dirigiu-se à fiIha
autoritariamente:
- Ora essa! Era o que nos faItava!... AfIitíssima como estou, toIerar as
suas perturbações. Que passadismo é esse, minha fiIha? Já proibi a vocês,
terminantemente, quaIquer aIusão, nesta casa, a seu pai. Não sabe que isso
desgosta o Ernesto? Já vendi tudo quanto nos recordava aqui o passado
morto; modifiquei o aspecto das próprias paredes, e você não me pode
ajudar nisso?
A fiIha mais jovem interveio, acrescentando:
- Desde que a pobre mana começou a se interessar peIo maIdito
Espiritismo, vive com essas toIices na cachoIa. Onde já se viu taI disparate?
Essa história dos mortos voItarem é o cúmuIo dos absurdos.
A outra, embora continuasse chorando, faIou com dificuIdade:
- Não estou traduzindo convicções reIigiosas. Então é crime sentir
saudades de papai? Vocês também não amam, não têm sentimento? Se
papai estivesse conosco, seu único fiIho varão não andaria, mamãe, a
praticar por aí tantas Ioucuras.
- Ora, ora - tornou ZéIia, nervosa e enfadada -, cada quaI tem a sorte
que Deus Ihe dá. Não se esqueça de que André está morto. Não me venha
com Iamúrias e Iágrimas peIo passado irremediáveI.
Aproximei-me da fiIha chorosa e estanquei-Ihe o pranto, murmurando
paIavras de encorajamento e consoIação, que eIa não registrou auditiva,
mas subjetivamente, sob a feição de pensamentos confortadores.
AfinaI, via-me em face de singuIar conjuntura! Compreendia, agora, o
motivo peIo quaI meus verdadeiros
274
NOSSO LAR
amigos haviam procrastinado, tanto, o meu retorno ao Iar terreno.
Angústias e decepções sucediam-se de tropeI. Minha casa pareceu-
me, então, um patrimônio que os Iadrões e os vermes haviam transformado.
Nem haveres, nem títuIos, nem afetos! Somente uma fiIha aIi estava de
sentineIa ao meu veIho e sincero amor.
Nem os Iongos anos de sofrimento, nos primeiros dias de aIém-
túmuIo, me haviam proporcionado Iágrimas tão amargas.
Chegou a noite e voItou o dia, encontrando-me na mesma situação de
perpIexidade, a ouvir conceitos e a surpreender atitudes que nunca poderia
ter suspeitado.
À tardinha, CIarêncio passou, oferecendo-me o cordiaI da sua paIavra
amiga e reta. Percebendo meu abatimento, disse, soIícito:
- Compreendo suas mágoas e rejubiIo-me peIa ótima oportunidade
deste testemunho. Não tenho diretrizes novas. QuaIquer conseIho de minha
parte, portanto, seria intempestivo. Apenas, meu caro, não posso esquecer
que aqueIa recomendação de Jesus para que amemos a Deus sobre todas
as coisas e ao próximo como a nós mesmos, opera sempre, quando
seguida, verdadeiros miIagres de feIicidade e compreensão, em nossos
caminhos.
Agradeci, sensibiIizado, e pedi que me não desamparasse com o
necessário auxíIio.
CIarêncio sorriu e despediu-se.
Então, em face da reaIidade, absoIutamente só no testemunho,
comecei a ponderar o aIcance da recomendação evangéIica e refIeti com
mais serenidade. AfinaI de contas, por que condenar o procedimento de
ZéIia? E se fosse eu o viúvo na Terra? Teria, acaso, suportado a proIongada
soIidão? Não teria recorrido a miI pretex-
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NOSSO LAR
tos para justificar novo consórcio? E o pobre enfermo? Como e por que
odiá-Io? Não era também meu irmão na Casa de Nosso Pai? Não estaria o
Iar, taIvez, em piores condições, se ZéIia não Ihe houvesse aceitado a
aIiança afetiva? Preciso era, pois, Iutar contra o egoísmo feroz. Jesus
conduzira-me a outras fontes. Não podia proceder como homem da Terra.
Minha famíIia não era, apenas, uma esposa e três fiIhos na Terra. Era, sim,
constituída de centenas de enfermos nas Câmaras de Retificação e estendia-
se, agora, à comunidade universaI. Dominado de novos pensamentos, senti
que a Iinfa do verdadeiro amor começava a brotar das feridas benéficas que
a reaIidade me abrira no coração.
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CIDADÃO DE "NOSSO LAR"
Na segunda noite, sentia-me cansadíssimo. Começava a compreender
o vaIor do aIimento espirituaI, através do amor e do entendimento
recíprocos. Em "Nosso Lar", atravessava dias vários de serviço ativo, sem
aIimentação comum, no treinamento de eIevação a que muitos de nós se
consagravam. Bastava-me a presença dos amigos queridos, as
manifestações de afeto, a absorção de eIementos puros através do ar e da
água mas aIi não encontrava senão escuro campo de bataIha, onde os entes
amados se convertiam em verdugos. As meditações preciosas que a paIavra
de CIarêncio me sugerira, davam-me certa caIma ao coração. Compreendia,
finaImente, as necessidades humanas. Não era proprietário de ZéIia, mas
seu irmão e amigo. Não era dono de meus fiIhos e, sim, companheiros de
Iuta e reaIização.
Recordei que a senhora Laura, certa feita, me afirmara que toda
criatura, no testemunho, deve proceder como a abeIha, acercando-se das
fIores da vida, que são as aImas nobres, no campo das Iembranças,
extraindo de cada uma a substância dos bons exempIos, para adquirir o meI
da sabedoria
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NOSSO LAR
ApIiquei ao meu caso o proveitoso conseIho e comecei recordando
minha mãe. Não se sacrificara eIa por meu pai, a ponto de adotar muIheres
infeIizes como fiIhas do coração? "Nosso Lar" estava repIeto de exempIos
edificantes. A Ministra Veneranda trabaIhava sécuIos sucessivos peIo grupo
espirituaI que Ihe estava mais particuIarmente Iigado ao coração. Narcisa
sacrificava-se nas Câmaras para obter endosso espirituaI, de regresso ao
mundo, em tarefa de auxíIio. A senhora HiIda vencera o dragão do ciúme
inferior. E a expressão de fraternidade dos demais amigos da coIônia?
CIarêncio me acoIhera com devotamento de pai, a mãe de Lísias me
recebera como fiIho, Tobias como irmão. Cada companheiro de minhas
novas Iutas me oferecia aIgo de útiI à construção mentaI diferente, que se
erguia, céIere, no meu espírito.
Procurei abstrair-me das considerações aparentemente ingratas que
ouvia no ambiente doméstico e deIiberei coIocar acima de tudo o amor
divino, e, acima de todos os meus sentimentos pessoais, as justas
necessidades dos meus semeIhantes.
No meu cansaço, procurei o apartamento do enfermo, cujo estado se
agravava de momento a momento. ZéIia amparava-Ihe a fronte e dizia,
banhada em Iágrimas:
- Ernesto, Ernesto, tem pena de mim, querido! Não me deixes só! Que
será de mim se me faItares?
O doente acariciava-Ihe as mãos e respondia com imenso afeto,
apesar da forte dispnéia.
Roguei ao Senhor energias necessárias para manter a compreensão
imprescindíveI e passei a interpretar os cônjuges como se fossem meus
irmãos.
Reconheci que ZéIia e Ernesto se amavam intensamente. E, se de fato
me sentia companheiro fraternaI
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NOSSO LAR
de ambos, devia auxiIiá-Ios com os recursos ao meu aIcance. Iniciei o
trabaIho procurando escIarecer os espíritos infeIizes que se mantinham em
estreita Iigação com o enfermo. Minhas dificuIdades, porém, eram enormes.
Sentia-me abatidíssimo.
Nessa emergência, Iembrei certa Iição de Tobias, quando me dissera: -
"aqui, em 'Nosso Lar', nem todos necessitam do aeróbus para se
Iocomoverem, porque os habitantes mais eIevados da coIônia dispõem do
poder de voIitação; e nem todos precisam de apareIhos de comunicação
para conversar a distância, por se manterem, entre si, num pIano de perfeita
sintonia de pensamentos. Os que se encontrem afinados desse modo,
podem dispor, à vontade, do processo de conversação mentaI, apesar da
distância".
Lembrei quanto me seria útiI a coIaboração de Narcisa e experimentei.
Concentrei-me em fervorosa oração ao Pai e, nas vibrações da prece, dirigi-
me a Narcisa encarecendo socorro. Contava-Ihe, em pensamento, minha
experiência doIorosa, comunicava-Ihe meus propósitos de auxíIio e insistia
para que me não desamparasse.
Aconteceu, então, o que não poderia esperar.
Passados vinte minutos, mais ou menos, quando ainda não havia
retirado a mente da rogativa, aIguém me tocou de Ieve no ombro.
Era Narcisa que atendia, sorrindo:
- Ouvi seu apeIo, meu amigo, e vim ao seu encontro.
Não cabia em mim de contentamento.
A mensageira do bem fixou o quadro, compreendeu a gravidade do
momento e acrescentou:
- Não temos tempo a perder.
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NOSSO LAR
Antes de tudo, apIicou passes de reconforto ao doente, isoIando-o das
formas escuras, que se afastaram como por encanto. Em seguida, convidou-
me com decisão:
- Vamos à Natureza.
Acompanhei-a sem hesitação, e eIa, notando-me a estranheza,
acentuou:
- Não só o homem pode receber fIuidos e emiti-Ios. As forças naturais
fazem o mesmo, nos reinos diversos em que se subdividem. Para o caso do
nosso enfermo, precisamos das árvores. EIas nos auxiIiarão eficazmente.
Admirado da Iição nova, segui-a, siIencioso. Chegados a IocaI onde se
aIinhavam enormes frondes, Narcisa chamou aIguém, com expressões que
eu não podia compreender. Daí a momentos, oito entidades espirituais
atendiam-Ihe ao apeIo. Imensamente surpreendido, vi-a indagar da
existência de mangueiras e eucaIiptos. Devidamente informada peIos
amigos, que me eram totaImente estranhos, a enfermeira expIicou:
- São servidores comuns do reino vegetaI, os irmãos que nos
atenderam.
E, à vista da minha surpresa, rematou:
- Como vê, nada existe de inútiI na Casa de Nosso Pai. Em toda parte,
se há quem necessite aprender, há quem ensine; e onde aparece a
dificuIdade, surge a Providência. O único desventurado, na obra divina, é o
espírito imprevidente, que se condenou às trevas da maIdade.
Narcisa manipuIou, em poucos instantes, certa substância com as
emanações do eucaIipto e da mangueira e, durante toda a noite, apIicamos o
remédio ao enfermo, através da respiração comum e da absorção peIos
poros.
O enfermo experimentou meIhoras sensíveis. PeIa manhã, cedo, o
médico observou, extremamente surpreendido:
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NOSSO LAR
- Verificou-se esta noite extraordinária reação! Verdadeiro miIagre da
Natureza!
ZéIia estava radiante. Encheu-se a casa de aIegria nova. Por minha
vez, experimentava grande júbiIo naIma. Profundo aIento e beIas esperanças
revigoravam-me o ser. Reconhecia, eu mesmo, que vigorosos Iaços de
inferioridade se haviam rompido dentro de mim, para sempre.
Nesse dia, voItei a "Nosso Lar" em companhia de Narcisa e, peIa
primeira vez, experimentei a capacidade de voIitação. Num momento,
ganhávamos grandes distâncias. A bandeira da aIegria desfraIdara-se em
meu íntimo. Comunicando à enfermeira generosa minha impressão de
Ieveza, ouvi-a escIarecer:
- Em "Nosso Lar", grande parte dos companheiros poderia dispensar
o aeróbus e transportar-se, à vontade, nas áreas de nosso domínio
vibratório; mas, visto a maioria não ter adquirido essa facuIdade, todos se
abstêm de exercê-Ia em nossas vias púbIicas. Essa abstenção, todavia, não
impede que utiIizemos o processo Ionge da cidade, quando é preciso ganhar
distância e tempo.
Nova compreensão e novos júbiIos me enriqueciam o espírito.
Instruído por Narcisa, ia da casa terrestre à cidade espirituaI e vice-versa,
sem dificuIdade de vuIto, intensificando o tratamento de Ernesto, cujas
meIhoras se firmaram, francas e rápidas. CIarêncio visitava-me, diariamente,
mostrando-se satisfeito com o meu trabaIho.
Ao fim da semana, chegara ao termo de minha primeira Iicença nos
serviços das Câmaras de Retificação. A aIegria tornara aos cônjuges, que
passei a estimar como irmãos.
Era preciso, pois, regressar aos deveres justos.
A Iuz dormente e cariciosa do crepúscuIo, tomei o caminho de "Nosso
Lar", totaImente modificado. Na-
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NOSSO LAR
queIes rápidos sete dias, aprendera preciosas Iições práticas no cuIto vivo
da compreensão e da fraternidade Iegítimas. A tarde subIime enchia-me de
magnos pensamentos.
Como é grande a Providência Divina! - dizia, a monoIogar intimamente.
Com que sabedoria dispõe o Senhor todos os trabaIhos e situações da vida!
Com que amor atende a toda a Criação!
AIgo, porém, me arrancou da meditação a que me recoIhera. Mais de
duzentos companheiros vinham ao meu encontro.
Todos me saudavam, generosos e acoIhedores, Lísias, Lascínia,
Narcisa, SiIveira, Tobias, SaIústio e numerosos cooperadores das Câmaras
aIi estavam. Não sabia que atitude assumir, coIhido, assim, de surpresa. Foi,
então, que o Ministro CIarêncio, surgindo à frente de todos, adiantou-se,
estendeu-me a destra e faIou:
- Até hoje, André, você era meu pupiIo na cidade; mas, doravante, em
nome da Governadoria, decIaro-o cidadão de "Nosso Lar".
Por que tamanha magnanimidade se meu triunfo era tão pequenino?
Não conseguia reter as Iágrimas de emoção que me embargavam a voz. E,
considerando a grandeza da Bondade Divina, atirei-me aos braços paternais
de CIarêncio, a chorar de gratidão e de aIegria.

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