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CAPITULOI SOBRE O CRIME DE MAUS-TRATOS CONJUGAIS 1. Resenha Historica 1.1. Nota Historica A consciéncia social da censurabilidade das condutas que integram praticas de violéncia contra as Mulheres no seio da familia é uma aquisi¢ao civilizacional muito recente. Durante milénios essas praticas eram nao apenas toleradas, como até encaradas como algo que escapava por completo a tutela do Direito e do Estado. Na verdade, o Direito sé reconhecia legitimidade ao Estado para intervir na vida familiar quando estavam em causa os direitos patrimoniais inerentes as relagdes familiares. A violéncia que, no seio da familia, fosse exercida contra as Mulheres era considerada apenas @ to s6 como um eventual excesso ou abuso do “jus corrigendi’, direito que decorria da obrigagao de obediéncia a que, por forga da lei, estavam sujeitas as mulheres casadas. Assim, para o Direito a questao que se colocava nao era a da censurabilidade da conduta, em si mesma considerada, mas sim a da aferigao do grau do exercicio dessa mesma conduta. No nosso “velho” continente ha mesmo noticia da existéncia de uma regra nao escrita, denominada “ a regra do dedo polegar” segundo a qual ao marido assistia o direito de punir a CAPITULO! SOBRE O CRIME DE MAUS-TRATOS CONJUGAIS sua mulher com uma vergasta de espessura nao superior A do seu dedo polegar. Anorma segundo a qual “O marido pode bater na mulher, corta-la de alto a baixo e aquecer os pés no seu sangue desde que a torne a coser e ela sobreviva’ nao é retirada de nenhum manual de bruxaria ou de guia de boas praticas da Inquisigéo, mas sim de um texto de direito do sec. XIV, vigente na pacifica e civilizada Flandres. No nosso pais, as Ordenagées Filipinas permitiam “apenas” o castigo moderado, a submiss4o a carcere privado e “obviamente” a morte em caso de adultério. © Cédigo Civil de 1867 impunha “naturalmente” & mulher o dever de obediéncia ao seu marido, a quem competia «dirigir a mulher» (art. 1185%). E as disposigdes do Cédigo Civil de 1966, vigentes até a reforma de 1977, nao alteraram substancialmente a situacao de subalteridade das mulheres relativamente aos seus maridos. © Cédigo Penal, entéo em vigor, ndo previa qualquer tipo de ilicito no tocante a eventuais condutas de maus-tratos conjugais, antes conferia legitimidade social ao exercicio do poder de direcgao do marido, quer ao estabelecer um diferente enquadramento juridico-penal entre 0 adultério do marido e o da mulher (arts. 4012 e 404%), quer também ao excluir a ilicitude da violagao de correspondéncia de uma mulher casada, pelo seu marido (art.612 §1°). Aluta que as mulheres sempre travaram pelo reconhecimento e consagracao da sua dignidade @ individualidade, s6 nas ultimas décadas do século passado conseguiu modificar a concepgao sobre 0 cardcter, tido até entéo como privado, das relagdes familiares de natureza nao patrimonial e consequentemente logrou impor ao Estado a necessidade de assegurar a prevengdo e punicao das condutas ofensivas da sua dignidade e integridade fisica e psiquica. 1.2. O Cédigo Penal de 1982 CAPITULO! SOBRE O CRIME DE MAUS-TRATOS CONJUGAIS E assim que s6 em 1982, com a publicagao do entéo denominado “Novo Cédigo Pen: previu e puniu pela primeira vez em Portugal o crime de maus-tratos conjugais. Esta inovagao legislativa, que nao constava alias do Ante-Projecto apresentado em 1966 pelo Prof. Eduardo Correia, circunscrevia a conduta punivel aos maus-tratos fisicos, prevendo-a no artigo 153°, sob a epigrafe “crime de maus-tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cénjuges” Este crime tinha natureza publica e era punido com uma pena de prisao de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias. A questao mais polémica suscitada por esta norma prendia-se com a questao de saber se 0 tipo criminal se bastaria com um dolo genérico ou se seria exigivel um dolo especifico traduzido numa conduta motivada por “malvadez ou egoismo”, como veio a ser unanimemente entendido pela Jurisprudéncia. 1.3. A Lei n°61/91 de 13 de Agosto Este diploma, com o fito de garantir "protecgdo adequada as vitimas de violéncia’, introduziu algumas alteracdes de relevo na disciplina juridico-penal do crime de maus-tratos, sendo todas, contudo, de caracter processual.

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