Quem mexeu no meu texto?: Questões contemporâneas de edição, preparação e revisão textual
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Quem mexeu no meu texto? - Luciana Salazar Salgado
mantida.
Texto 1
O Revisor de Textos, um coescriba
Antes de mais nada, breves notas sobre o mundo do livro
e seus artífices
Um rápido apanhado dos números consolidados na indústria livreira e da circulação de artigos acadêmicos indexados permite afirmar que, no Brasil, desde meados dos anos 1990 e mais intensamente nos anos 2000, as publicações sobre livro se multiplicaram. Não raro, como ramificações de um assunto tão vasto, também ganham terreno temas a princípio bem diversos, como letramento e marketing de produtos culturais, por exemplo. Em diversos campos, o livro e tudo o que tem a ver com ele entrou em pauta, e sua produção foi incrementada.
É possível dizer que isso aconteceu também, em alguma medida, no ilustrado século XVIII ocidental, ou antes, quando o formato códex ganhou circulação na Europa, modificando as condições de acesso aos textos escritos e seus usos. Le Goff (1973, p.95-96) registra que, ainda na primeira metade do século XIII,
O formato do livro modifica-se (…) o livro é frequentemente consultado e transportado de um lado para outro. O seu formato torna-se mais pequeno, mais maneável.
A minúscula gótica, mais rápida, substitui a antiga letra. (…).Também ela corresponde a um progresso técnico: o abandono do caniço a favor da pena de ave, geralmente de pato, que permite uma maior facilidade e rapidez no trabalho.
A ornamentação dos livros diminui: as maiúsculas e miniaturas fazem-se em série. (…) A esses significativos pormenores acrescentam-se a abundância crescente das abreviaturas – é preciso produzir com rapidez –, os progressos da paginação, da sistematização, dos índices, a inclusão de uma lista de abreviaturas, o recurso, sempre que possível, à ordem alfabética na apresentação das matérias. (…) Testemunho notável da aceleração da velocidade de circulação da cultura escrita e de sua difusão, uma primeira revolução se realizou: o livro já não é um objecto de luxo, tornou-se instrumento. Instrumento, o livro tornou-se produto industrial e mercadoria. (…) A indústria intelectual tem as suas indústrias conexas e derivadas. Alguns desses produtores e comerciantes são já grandes personagens. Ao lado dos artesãos cuja actividade se reduzia à revenda de algumas obras de ocasião, outros alargam-se até ao papel de editor internacional.
Mas essa efervescência terá se formulado em conjuntura distinta da que vemos agora, quando uma espécie de nova vertigem tecnológica põe lenha na fogueira acesa noutros tempos: os livros, tal como os conhecemos, podem deixar de existir? Ao que tudo indica, seguem sendo objetos instigantes (e aqui valem os números das bienais, das livrarias, dos grandes conglomerados editoriais, e também a circulação dos acervos de sebos, das pequenas editoras de tradição, assim como das muitas nascentes, e também as trocas de livros artesanais em feiras organizadas por grupos de artistas e artesãos, etc.). Fato constatável é que são escritos e circulam em diferentes suportes, para preocupação de uns, que veem nessa atual difusão o perigo do barateamento de um nobre artefato; para contentamento de outros, que entendem a farta produção e a múltipla distribuição como formas de viabilizar o acesso nas largas escalas que caracterizam o século XXI.
Registre-se, a esse respeito, que muitos dos estudos sobre propriedade intelectual abordam, hoje, aspectos da reelaboração dos textos, uma discussão também de outrora que renasce na vertigem tecnológica atual, quando novos meios materiais impõem perguntas como: o texto de um livro impresso é o mesmo texto se for divulgado em pdf? E em e-book? Se a massa de texto antes impressa for redistribuída para leitura na tela, quem fizer essa redistribuição terá feito um novo texto? Terá interferido no texto? Que direitos terá sobre essa nova forma de dar o texto a ler? E se o texto virar um game?
Fala-se muito em coletivos criativos notadamente nas artes plásticas e na música, mas toda produção cultural tem, talvez mais intensamente agora do que noutros tempos, que se haver com essas questões. Provavelmente porque houve um acirramento da noção de propriedade como algo individual e privativo, ao mesmo tempo em que a internet
mudou o mercado de criação e cultivo da cultura em geral, e essa mudança por sua vez ameaça as indústrias de conteúdo estabelecidas. Para as indústrias que criaram e distribuíram conteúdo no século XX, a Internet é, portanto, o que a rádio FM foi para a rádio AM, ou o que o caminhão foi para a indústria das estradas de ferro do século XIX: o início do fim, ou pelo menos uma transformação substancial. Tecnologias digitais, combinadas com a Internet, poderiam criar um mercado muito mais competitivo e vibrante para a construção e cultivo da cultura. Esse mercado poderia incluir uma gama muito maior e mais diversa de criadores. Esses criadores poderiam produzir e distribuir uma gama muito maior e mais vibrante de produtos culturais (LESSIG, 2005, p. 36).
Essas discussões, como se vê, estão diretamente ligadas às representações de autoria. Juridicamente, há diversas perspectivas a considerar, por conta do próprio desenvolvimento das formulações jurídicas: como julgar uma apropriação indébita numa cultura remix (ou, pelo menos, colaborativa)? Em que medida a autoria depende ou prescinde de mediações e de intermediários? Nos termos do historiador Roger Chartier (2001, p. 39), lembremos que o autor é sempre dependente e reprimido:
Dependente: ele não é o mestre do sentido, e suas intenções expressas na produção do texto não se impõem necessariamente nem para aqueles que fazem desses textos um livro (livreiros-editores ou operários da impressão), nem para aqueles que dele se apropriam para a leitura. Reprimido: ele se submete às múltiplas determinações que organizam o espaço social da produção literária, ou que, mais comumente, delimitam as categorias e as experiências que são as próprias matrizes da escrita.
Levando em conta essas considerações, a reflexão que se segue trata a figura de autor na perspectiva dessa dinâmica; as questões de autoria se delineiam à medida que se delineia o lugar que é posto à luz aqui: antes de qualquer outra coisa, é um lugar de alteridade explicitada, e só se constitui como um lugar na relação com um outro que é sempre um autor. Trata-se do lugar de leitor profissional que dá tratamento aos textos que se destinam à publicação; trata-se do revisor de textos, conforme a designação mais corrente no mercado editorial.
Os ritos genéticos editoriais
Estudar as práticas de tratamento de textos em vigor no mercado editorial implica contemplar tanto as práticas generalizadas nas casas editoras quanto outras, menos oficiais embora igualmente generalizadas. Herança de uma longa tradição, as formas atuais de tratamento dos textos que se preparam para ir a público, ainda que tenham os traços deste nosso tempo, remontam a práticas copistas anteriores até mesmo ao códex, na medida em que revelam o quanto o original de um autor, no longo processo que o transforma em publicação, movimenta-se, passando por diferentes olhares e cuidados.
No Brasil, no que diz respeito à regulação das práticas no mercado editorial, dentre outras ações que visam converter as iniciativas que envolvem o livro e a leitura em política de Estado, promulgou-se um importante marco legal em 30 de outubro de 2003 – a Lei n. 10.753, que institui a Política Nacional do Livro, num momento efervescente da produção editorial no país. Essa Lei menciona ineditamente a cadeia criativa do livro, além de contemplar a cadeia produtiva (que reúne editores, livreiros, distribuidores, gráficas e fabricantes de papel) e os mediadores da leitura (que são os escritores e outros profissionais do livro, educadores, bibliotecários e ongs), e também definir atribuições do Poder Público (os governos federal e estadual, as prefeituras e o Sistema S). Com isso, parece promover um deslocamento interessante dos programas de fomento à leitura havidos até então: põe em relevo a criação e a produção dos livros e não apenas as estratégias de distribuição e circulação, como há muito se fazia; os incentivos à leitura aparecem, então, diretamente ligados a como as publicações são criadas, planejadas, feitas e distribuídas.
Quando falamos, aqui, em ritos genéticos editoriais, estamos justamente nos referindo ao tratamento editorial de textos como parte da cadeia criativa do livro. Trata-se de pensar na criação como partilha, co-construída[1].
A seguir, examinam-se dois exemplos em que, no texto autoral, a linearização de discursos é submetida a práticas sistemáticas de trabalho linguístico, as quais, por sua vez, estão sujeitas a uma série de coerções institucionais. No processo editorial por que passam os textos autorais, observa-se claramente como essas coerções aparecem o tempo todo na etapa de tratamento de textos, na qual se pode constatar uma alteridade fundante estabelecida entre autor e editor de texto – que são, afinal, escribas interlocutores, coescribas instituídos no trabalho sobre o texto, na sua tessitura.
Importa notar que a alteridade que o editor de textos explicita, ao formular uma leitura que se vai registrando em anotações pontuais no corpo de um original
, não impõe ao autor um texto que não é seu, não o destitui de sua função nem de seus traços idiossincráticos, mas lhe oferece um percurso em seu próprio texto, deslocando sua primeira formulação. Com isso, joga luz sobre a condição dinâmica do texto, sobre a teia discursiva em que ele se amarra, sobre seu caráter de textualização, isto é, de trabalho em processo. A leitura anotada
que o editor de textos faz propicia um distanciamento do autor em relação a seu texto-primeiro e, então, que ele possa ser um outro desse outro de si mostrado, amadurecendo a versão que irá a público.
Textualização como processo de produção dos sentidos
Os textos têm sido definidos em toda teoria textual, desde a Antiguidade, tanto por sua condição de totalidade quanto por sua condição de abertura. Em seu duplo funcionamento, os textos são unidades e são também inacabáveis, são composições com possibilidades de recomposição (ADAM, 1999). Trata-se de entendê-los como textualização, ou seja, em seus movimentos de tessitura, balizados sempre por condicionantes sociais e históricas.
Vejamos um exemplo dessa movimentação dos sentidos no curso de uma interlocução editorial. Segue-se um processo de textualização do qual foram selecionadas algumas passagens. Sobre a versão final
do autor, o editor de textos registra correções, reformulações e comentários. (as intervenções do coescriba estão em negrito).
Exemplo I – sétimo parágrafo de um texto de aproximadamente 3 laudas (de 1200 caracteres), sobre a importância do acesso à informação, nos termos mais correntes dos estudos em Administração de Empresas, publicado em 2002. Destinado a uma revista de circulação universitária, foi escrito por um autor frequentemente chamado a publicar artigos de divulgação.
Original
O processo de formação da cidadania também é o crescente acesso das pessoas ao mundo da informação. Ainda que a Internet seja restrita aproximadamente a 23 milhões de pessoas, com a fusão da TV ao computador esse cenário pode mudar radicalmente.
Nova textualização
Um outro elemento do processo de formação da cidadania que merece relevo é o crescente acesso do cidadão comum à informação. Ainda que, no Brasil, a navegação na Internet esteja restrita a aproximadamente 23 milhões[4] de pessoas, com a fusão da TV ao computador esse cenário pode mudar radicalmente.
[4] A forma e o conteúdo…