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SAMIZDAT

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11
dezembro
2008

ficina

O Conde
Lucanor
um clássico da Literatura
medieval espanhola
Nesta edição: Coelho Neto, Ricardo Palma, Camões e mais...
SAMIZDAT 11
dezembro de 2008

Edição, Capa e Diagramação: Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada


Henry Alfred Bugalho a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Todas as imagens publicadas são de domínio público ou
Autores royalty free.
Carlos Alberto Barros As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira
Dênis Moura ­responsabilidades de seus autores ou tradutores.
Giselle Natsu Sato
Guilherme Rodrigues
Henry Alfred Bugalho
Editorial
Joaquim Bispo
José Espírito Santo Em janeiro, a Revista SAMIZDAT completerá um ano de
Marcia Szajnbok existência.
Maria de Fátima Santos Como um projeto completamente anárquico, com
Maristela Scheuer Deves ­contribuições espontâneas, cada um selecionando o conteú-
Pedro Faria
do que acredita ser interessante, com o mínimo de edição,
conseguiu obter um nível de coerência e coesão é algo que
Volmar Camargo Junior
provavelmente transcendeu as expectativas dos autores que
Zulmar Lopes compõem a equipe da revista.
Não há uma orientação ideológica que delimite nosso pro-
Textos de: jeto. As únicas intenções são: mostrar nosso trabalho literá-
Camões rio e trazer ao leitor um conteúdo de qualidade. Felizmente,
conseguimos nos acercar de outros produtores culturais que
Coelho Neto
compreendem a natureza deste projeto e que contribuem
Don Juan Manuel com ele da maneira que podem, seja através das entrevistas,
Ricardo Palma seja através daqueles leitores que propagam a SAMIZDAT em
seus sites ou blogs.
Às vésperas de cruzarmos o limiar de um ano de teimosia,
nosso agradecimento será para nossos leitores: nossa grande
Imagem da capa: motivação nesta longa e sinuosa estrada da Literatura.
REMBRANDT, Homem de
­Harmenszoon van Rijn usando um
elmo dourado
Henry Alfred Bugalho

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Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

ENTREVISTA
Carlos Henrique Iotti 8

MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho 12
Volmar Camargo Junior 13

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
O homo absurdus de Camus 14
Henry Alfred Bugalho

Jane Eyre, de Charlotte Brönte 17


Guilherme Rodrigues

Orgulho e Preconceito, de Jane Austen 18


Guilherme Rodrigues

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


O Duplo 20
Coelho Neto

Sonetos 24
Camões

CONTOS
O Sabão Milagroso 26
Volmar Camargo Junior

O Aniversário de J.S.B. 28
Henry Alfred Bugalho
Paulette na cidade 32
Joaquim Bispo
Conspiração ZHAARP 35
Dênis Moura

Para que nos serve 36


Maria de Fátima Santos

A Surpresa 38
Guilherme Rodrigues
Para lá do Muro 40
José Espírito Santo
No Elevador 42
Zulmar Lopes
Dezessete 44
Pedro Faria
Descobertas 48
Marcia Szajnbok
Gosto Refinado 47
Pedro Faria
Alice por trás do espelho 52
Giselle Natsu Sato

TRADUÇÃO
O Conde Lucanor 54
Don Juan Manuel
A Festa de São Simão Esgaratujo 68
Ricardo Palma

TEORIA LITERÁRIA
Enchendo Lingüística: Ficção sob Pressão 61
Volmar Camargo Junior
A Tese na Literatura 70
Henry Alfred Bugalho

CRÔNICA
Erótico ou Pornográfico: eis a questão 74
Giselle Natsu Sato
A Vida Continua 76
Joaquim Bispo

Nossa história abandonada 78


Maristela Scheuer Deves

POESIA
Laboratório Poético - Indriso 80
Volmar Camargo Junior
Urbanidade 81
Carlos Alberto Barros

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 83

SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-
nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-
dado.
Escreva-nos para:
revistasamizdat@hotmail.com
Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiram,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprirmir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exenplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

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E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substitua
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido Ao serem obrigados a bur-
pelo mercado. larem a indústria cultural, os Enfim, “Samizdat” porque a
autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- o ­diálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Entrevista

CARLOS HENRIQUE IOTTI


Carlos Henrique Iotti, 44
anos, gaúcho de Caxias do Sul, é
colaborador dos jornais ­Pioneiro
(www.pioneiro.com) e Zero Hora
(www.zerohora.com), e tem
vários livros publicados, princi-
palmente de tiras com o perso-
nagem Radicci.
Radicci, seu personagem mais
famoso, foi criado em 1983, re-
presentando um ítalo brasileiro
(ou gringo, como ele mesmo diz)
de temperamento forte, amante
do vinho e do ócio. Casado com
Genoveva, é pai de Guilhermino.
O personagem Nono completa a
típica família de descendentes de
italianos.
Iotti tem ainda outros perso- Como você começou a digerível. É muito melhor
nagens menos conhecidos, como desenhar? Seu trabalho ler uma charge do que
a dupla de criação Deus e o Dia- foi desde o início direcio- um editorial, por exemplo.
bo, que competem entre si numa nado para o humor? Sem esquecer que o edito-
espécie de agência de criação e rial tem um mérito maior,
propaganda. quando bem escrito. Então
Carlos H. Iotti: Sou for- me aventurei como jornalis-
Além de atuar como char- mado em Jornalismo pela ta na área do cartunismo.
gista e cartunista, inclusive com UFRGS e foi ainda na
trabalhos na Itália, Iotti também faculdade que criei o meu
tem programas na rádio e na TV primeiro personagem. Era Como funciona o proces-
(este último, Iotti Repórter, pela um guerrilheiro trapalhão so de criação de suas per-
RBS). chamado Ernesto Che da sonagens? O Radicci, por
Além de uma série de livros Silva, uma espécie de sátira exemplo, de onde veio a
ao movimento estudantil inspiração?
com as melhores charges, Iotti
da época. De lá para cá
está lançando um DVD com o
outros personagens foram
show onde interpreta seu perso- criados (como Frederico e O Radicci foi criado em
nagem. Fellini, que conta a história 1983 para ser a síntese do
de amor e ódio entre um nosso colono. Uma carica-
menino e seu gato -, Deus e tura do tipo italiano que
Mais sobre o Iotti e seus aportou em 1875 e seus
o Diabo, que são uma dupla
personagens na página oficial do descendentes. Uma carica-
de criação publicitária,
­Radicci: http://www.radicci.com. Adão Hussein e o Radicci tura dos hábitos, dos costu-
br e a Genoveva) e aí de cara mes e da fala dessa gente.
percebi que normalmente Se é que é possível fazer
tudo que é trabalhado com uma caricatura disso.
humor fica mais leve, mais

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Ele é uma HQ regional. É e estava todo bronzeadão. com dupla cidadania, etc.
muito conhecida no Sul Para realçar minha cor, co- O convite partiu mais para
do país, mas é uma tira loquei um terno branco, bo- lidar com questões relativas
regional. Eu acredito que o nito. Entrei no salão e disse: à cultura, a intercambiar as
público se identifica com “Alôôôô, guRRizada!”. Bem, coisas entre Brasil e Itália
a família Radicci, pois ela tudo ficou no mais absoluto e obtive 14 mil votos. Fui
fala do cotidiano, do dia a silêncio. Eu só ouvia o bater o brasileiro mais votado e
dia do colono. Que pode de asas de uma mariposa sou suplente de senador na
acontecer ali com o colono, que estava rondando a lu- Itália agora.
mas que pode acontecer minária. E, no meio daquele
em outros lares, em outras vazio sonoro, alguém cochi-
formações. chou: “Bah, esse daí que é Há alguma técnica à qual
o Radicci?”. O pessoal fica você recorre para causar
um pouco decepcionado, o riso? Conte-nos o seu
Como é a tua relação com sabe, porque espera que eu segredo.
o Radicci? Tem gente que seja gordo e bonachão. Em
te confunde com ele? cada lugar que eu vou é a
Iotti: Sou um tanto tímido,
mesma reação.
tenho de embarcar na onda
Iotti: Às vezes há uma dos personagens e aí vou
confusão entre criador e O que você lê? me soltando. Na verdade
criatura e aí as pessoas não há nenhuma grande
esperam que eu me com- técnica assim.
porte como o Radicci. Não Iotti: Leio de tudo. De bula
fazem a distinção entre o de remédio a romance.
Iotti e o intérprete do Ra- Gosto muito de autores Escrever sob prazos é um
dicci. Isso sempre gera fatos como Tabajara Ruas, Ernest estímulo ou um obstáculo
engraçados, que até rendem Hemingway, livros com a para você?
repertório pras piadas mes- temática de mar e guerra
mo. Um dia, encontrei um também vejo de tudo.
Iotti: Ter prazo é sempre
colono ali do Desvio Rizzo
um estímulo. Jornalista que
(distrito de Caxias). Ele me
E que história foi essa de não tiver prazo não escreve
olhou embasbacado e disse:
senador romano? (risos).
- Oh, tu que é o Radicci?
- Sim, sou eu!
Iotti: Me convidaram a fa- Iotti, dê uma definição
- Ma Dio! Até meio negro zer parte de um movimento acadêmica para quem
tu é! - Eu fiquei rindo, fazer não-partidário, associativo, não conhece o “sotacón”.
o quê? o que foi me convencedo Quem são os falantes
Um dia fui a Ibiçá. Acho no sentido de ver que sim, dessa variante lingüística?
que toda a cidade estava talvez fosse possível aju- É português, é italiano, é
reunida no salão paroquial. dar de alguma forma os gauchês...?
Eu tinha voltado da praia descendentes, as pessoas

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Iotti: É uma variante que tiras futuras? e não apenas um produto
mistura o italiano e o por- comercial. Qual é a tua
tuguês – utilizando a foné- opinião em relação a isso?
tica do colono, transpondo Iotti: Na verdade foi um E como você vê o espaço
isso para a grafia sem editor que ficou com receio do cartunista nesse meio?
nenhum filtro. de publicar em virtude de Você se considera um
uns leitores bem religiosos. artista?
A maioria das pessoas cos-
Quando ingressou na tuma me dar um retorno
faculdade, sua intenção bacana, mas polêmica sem- Os quadrinhos aos poucos
já era atuar como ilustra- pre é bom, instiga a fazer foram galgando um lugar
dor ou você tinha outras mais coisas. muito legal, de espaço, de
aspirações? visibilidade, de patamar
artístico também. Há sem-
Qual considera o seu pre quadrinhos muito legais
Iotti: O desenho foi um melhor desempenho: a e gente que tem um traço
caminho natural. Eu sim- imagem ou o texto? Qual que eu admiro muito. Eu
plesmente não parei de custa mais a apurar? gosto muito dos desenhistas
desenhar, locais. O Santiago e o Edgar
como de Vasques são chargistas
modo geral Se você quiser Iotti: De-
que eu conheço e admiro.
as pessoas ser um chargista pende, tem
Também tem o Jaguar, que
fazem quan- realmente, vai dias que a
é carioca, que foi editor
do “crescem”. imagem é
do Pasquim, um marco
precisar de muita melhor do
no jornalismo brasileiro.
persistência. que o texto e
Gosto ainda do Ziraldo e
A sua «du- vice-versa.
do Angeli, que é o criador
pla da
do Chiclete com Banana
criação» foi
Há quem e atualmente está fazendo
objeto de
diga que os quadrinhos as charges na Folha de São
protestos por parte de al-
Paulo. A maioria do pessoal
guns leitores. Como é que já se aproximam de um
patamar de arte, como que lida com quadrinhos
você lida com os protes-
uma forma de literatura está lutando muito ainda
tos? Influenciam as suas

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10
para conseguir o seu lugar quem quer escrever hu-
ao sol e ser reconhecido. mor?
Precisa existir uma valo-
rização bem maior dentro
dessa área. De todo modo, Iotti: Nunca desistam no
sempre tem surgido gente primeiro “não”. Vocês vão
nova e a Internet é um meio receber vários deles durante
muito bacana de divulga- a sua trajetória. Não tem
ção desses trabalhos. Vira espaço, não tem chance,
e mexe descubro alguma não tem condições… Se
coisa diferente. desistir no primeiro “não”,
não vai adiante. Tem que
ser chato, tem que lutar. É
No seu site tem uns con- um começo terrível, é uma
tos narrados em “sotacón”. verdadeira tragédia, porque
Além disso, você escreves o mercado é muito peque-
ficção em português? Já no, limitado. Ou a pessoa
pensou, ou até já tentou, abre o próprio mercado
transpor as histórias do à base de muita perserve-
Radicci em forma de mi- rança, ou acaba indo para
crocontos? outro caminho, vai ser
desenhista de publicidade
ou algo parecido. Se você
Iotti: Na verdade o que faço quiser ser um chargista
são quase pequenas crôni- realmente, vai precisar de
cas neste estilo do sotacón. muita persistência.
De quando em vez aplico
de escrever como o Radic-
ci e acaba sendo divertido
também.

Que dica, que recado, que


recomendação você dá a

Coordenadora da entrevista:
Maristela Deves

Perguntas feitas por:


Volmar Camargo Junior
Carlos Alberto Barros
Joaquim Bispo
Henry Alfred Bugalho
Maristela Deves

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Microcontos

As viravoltas da vida
Henry Alfred Bugalho

Na época da escola, todo mundo tirava sarro da


“­girafa”, que corria para o banheiro chorar sozinha.
Ano passado, ela foi a modelo mais bem paga do
mundo.

Sexo virtual
Henry Alfred Bugalho

— Ai, gozei! E você?


Mal sabia ele que o computador dela havia pifado.

Medalhista de Ouro
Henry Alfred Bugalho

Na modalidade “xixi à distância”, ninguém derrotava


o Marquinhos.

http://www1.pictures.gi.zimbio.com/2003+Victoria+Secret+Fashion+Show+vvTHm88Qpynl.jpg

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Pequenos
Desencontros
Platão? Que
Platão?

http://www.pedagogy.ca/Sanzio_01_Plato_Aristotle.jpg
Volmar Camargo Junior

— Ouvi dizer que todas as coisas do mun-


do, um dia, existiram no mundo das idéias.
Então, como podemos saber se na verdade,
o mundo das idéias não é aqui? Às vezes,
eu penso que sou apenas um personagem
na imaginação de um escritor desocupado
e...
[Estas foram as primeiras e as últimas pa-
lavras de um personagem que não entrou
em nenhuma das minhas histórias. Não Primeiro amor
tenho paciência para esses atrevimentos.]
Volmar Camargo Junior

Voyeurismo
Orlando reconheceu na rua a menina por
quem havia se apaixonado nos tempos
do primário, e correu para dar-lhe um
abraço. Thereza, abordada por um desco-
Volmar Camargo Junior nhecido com tamanha intimidade, achou
que seria descortês dizer-lhe que foi um
Todos os dias, o menino espiava pelo bu- engano, mas evitou o contato físico. Sol-
raco no muro do vizinho, e do outro lado dado Juarez, à paisana, viu na cena um
via um gramado e, à distância, uma caba- princípio de assalto, e com dois golpes
na na árvore. Tocado pelo remorso, o pai fulminantes nocauteou e imobilizou o
esmerou-se para fazer um bela plataforma suspeito. Um cinegrafista amador filmou
de madeira, sustentada pelos galhos da com a câmera do telefone celular a ação
mangueira que havia em seu próprio pátio. do policial responsável pela captura de
Feliz da vida, o menino correu até seu baú Orlando Silva da Silva, estelionatário, que
de brinquedos, tirando de lá o binóculo estava foragido havia meses. Nem depois
que ganhara no Natal. Finalmente teria de a foto do dito cujo sair nas manchetes
uma vista privilegiada da tão amada caba- dos noticiários Thereza associou aquela
ninha do quintal ao lado. cara à do gorducho que lhe deu um beijo
babado na quarta-série. Naquela época, ela
só tinha olhos para o Roberto Carlos.

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Recomendações de Leitura

O homo absurdus

de Camus
Henry Alfred Bugalho

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Albert Camus é um dos supremo exercício da liber- quase mecanicamente, cum-
grandes autores do século dade. O homem é livre, e prindo o protocolo. Logo
XX, e sua obra é um símbo- tirar a própria vida é um ato após o sepultamento, retorna
lo da crise epistemológica, de liberdade. ao marasmo da sua existên-
ética e ontológica do Homem cia, que é quebrado quan-
contemporâneo. As duas primeiras obras do Mersault assassina, sem
de Camus abordam tais nenhuma razão óbvia, um
É impos- problemas. árabe na praia;
sível negar Quando o Homem Por um lado,
a influência temos uma - Na segunda parte, assisti-
compreende-se em obra ficcio- mos ao julgamente do pro-
que Nietzsche
exerceu sobre sua absurdez, ele nal austera, tagonista. Ele é condenado
o pensamen- deixa de buscar o com uma à morte e, nos dias antes de
to e arte do sentido, e passa a linguagem sua execução, Mersault ana-
século XX. criá-lo. comedida e lisa vários conceitos morais
A ruptura um enredo e sociais, sem identificar-se
irremediá- atômico: “O com eles, renegando-os. É a
vel entre mundo de fato e o Estrangeiro”; por outro lado, parte filosófica.
mundo inteligível, a relati- há uma obra filosófica, com
vização de todas as noções uma linguagem que pare- O protagonista move-se
morais, a certeza de que não ce se aproximar do estilo num universo ausente de
existem certezas e o fim de sartreano, dividida em vários sentido, realiza atos também
todo e qualquer sentido pai- ensaios, na qual tais questões desprovidos de sentido, não
rou sobre as filosofias da Eu- são apresentadas explícita- tem remoso, e só passa a
ropa continenal - de Husserl, mente: O Mito de Sísifo. fazer uma revisão de seus
de Heidegger, de Sartre, de conceitos diante da presença
Merleau-Ponty, de Foucault Temos de pensar nestas inevitável da morte.
- , sobre todas as formas de duas obras em paralelo, pois
expressão artística - o mo- uma esclarece a outra. Em O Mito de Sísifo pos-
dernismo, o surrealismo, o suímos a explicitação teó-
concretismo, o pós-modernis- Em O Estrangeiro, o prota- rica da prática literária de
mo - e também assombrou a gonista é um sujeito chama- Camus. Nesta coleção de
Literatura. do Mersault. ensaios, a tese
A obra é di- básica pode
Camus é um filho desta vida em duas ser resumida
geração esvaziada de sentido. partes: da seguinte
Dois temas são fundamentais maneira: “o
para esta geração: o sentido - Na pri- Homem vive
da existência e a morte. Am- meira delas, por causa da
bas questões se interligam: se Mersault esperança do
não existe um sentido para acompanha amanhã, mas
a vida, por que viver? O que o velório e cada dia que
me impede de me matar? o enterro passa não o
de sua pró- aproxima do
Para Sartre, o gênio in- pria mãe. O futuro, e sim
telectual da época, cometer protagonista da morte.
suicídio não era um ato é indiferente Mas o Ho-
imoral, aliás era um ato de ao fato, age mem prefere

www.samizdat-pt.blogspot.com 15
ignorar a presença da morte uma rocha até o topo dum
e vive uma vida de fingimen- penhasco, por toda a eterni-
to, considerando o mundo dade. Toda vez que a rocha
como familiar, quando, na era carregada até o cimo, ela
verdade, o mundo é hostil, rolava morro abaixo. Sísifo
inóspito, absurdo e não for- deveria, então, perfazer esta
nece respostas.” tarefa inglória e sem sentido
por toda sua existência. Para
A saída para este abismo Camus, somos como Sísifo,
- representado pelo absurdo realizando projetos e tarefas
da existência - não é o suicí- sem sentido e que sempre re-
dio, por ela ser a negação da dundam em nada, ou condu-
existência, mas sim a revolta. zindo-nos para a morte.
Quando o Homem compre-
ende-se em sua absurdez, ele A obra deste autor francês,
deixa de buscar o sentido, e laureado pelo Prêmio Nobel O Estrangeiro
passa a criá-lo. em 1957, é profunda, apesar
da superficial leveza, e causa Autor: Albert Camus
A metáfora para este homo o mal-estar de toda quebra
Editora: Record
absurdus, para Camus, é o de paradigmas.
mito de Sísifo, aquele que, Publicação: 2001
na mitologia grega, desa-
fiou os deuses olímpicos e
foi condenado a empurrar

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16
Recomendações de Leitura

Jane Eyre,
de Charlotte Brönte
Guilherme Rodrigues ­ orrer. O tempo se passou,
m
ela, uma mulher à frente de
seu tempo, foi aprendendo as
Jane Eyre é um romance lições até se tornar profes-
gótico escrito pela escritora sora de Lowood School. No
inglesa Charlotte Brontë e entanto, com a partida de sua
publicado pela primeira vez amiga e aliada, a senhorita
em 1847. Temple, que havia se casado,
procurou um novo trabalho.
Jane Eyre, a personagem- Então, Jane mudou-se para
protagonista, órfã de pai e Thornfield Hall, a casa do
mãe, vive terríveis dias na senhor Edward, para cuidar
casa de seu tio após seu fa- da pequena Adele. Seu vín-
lecimento. Passa a ser criada culo como professora foi se
pela senhora Reed, esposa ampliando e logo conseguiu
do falecido, uma pessoa com suas habilidades em
cruel que a deixava presa línguas e pintura, também
num quarto escuro para mexer com o senhor Edward.
amedrontá-la e afastá-la de
seu filho John. O qual sem- Tudo do melhor que um
pre batia na pobre e indefesa romance gótico poderia ter.
Jane. Certo dia, ela resolveu, O cenário sombrio, o mis-
então mandá-la para Lowood terioso, o terror e a névoa
School cuja escola era des- envolvem o leitor para um
tinada para crianças órfãs. mundo fantástico e sobrena-
Esta instituição, administrada tural.
pelo clérigo Brocklehurst, ho- O livro pode ser consi-
mem religioso, mas de gestos derado uma autobiografia
desumanos e cruéis com seus de Charlotte Brontë, pois há
subalternos. Ele, influencia- muitas semelhanças entre
do pela senhora Reed, dizia ela e Jane Eyre. Eram órfãs,
ser ela uma menina rebelde, viveram em orfanatos, foram
mentirosa e que não merecia professoras e mulheres inde-
a confiança de ninguém. No pendentes.
entanto, Jane encontrou uma Jane Eyre mostra que já
aliada na escola, a senhorita naquela época a mulher,
Temple, a quem tinha amiza-
de e a defendia dos impro-
muito desprezada e encar- O livro pode ser
regada de cuidar das tarefas
périos do administrador de considerado uma
domésticas apenas, podia ser
Lowood School. Jane fez ami- independente e demonstrar autobiografia de
zades com suas colegas, mas, sua capacidade perante a Charlotte Brontë, pois
infelizmente, a escola não sociedade. há muitas semelhanças
era um lugar feliz e algumas
de suas amigas vieram a entre ela e Jane Eyre.

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Recomendações de Leitura

Orgulho e
Preconceito,
de Jane Austen

Guilherme Rodrigues

Orgulho e Preconceito é o romance mais


popular da escritora inglesa Jane Austen.
Foi publicado pela primeira vez em 1813
e chegou a se chamar Primeiras Impressões.
embora nunca impresso com este título. A
História nos é apresentada de uma manei-
ra inteligente e cômica e com um estilo
sarcástico em que as personagens nos são
reveladas aos poucos.
da trama, Darcy e Elizabeth revelam o
Na Inglaterra rural do século XVII a amor que um sente pelo outro.
chegada ao local do milionário sr. Darcy,
uma pessoa muito bonita e fria, cria gran- Jane, a filha mais velha dos Bennet, é
de expectativa dentro da família Bennet. uma jovem muito bonita com uma perso-
A sr.ª Bennet, até então desconsolada com nalidade cativante. O sr. Bingley, o amigo
as filhas ainda não casadas, tem esperança de Darcy, apaixona-se por ela.
de que uma delas irá conquistar o jovem Lydia, a filha mais nova, mimada pela
aristocrata. mãe, é vaidosa e frágil que nunca pensa
O romance conta sobre as filhas de nas conseqüências dos seus atos, foge com
uma família campestre, sobretudo o ódio o jovem Wikham, que nada vale, e coloca
e amor entre Elizabeth e o sr. Darcy. Ela o nome desta família em perigo.
cria preconceitos sobre ele, que a insultou A história se mantém atual mesmo nos
no baile, e nos comentários maldosos dos dias de hoje que mostra o preconceito por
amigos. Um não declara amor pelo ou- diferentes classes sociais e o amor juvenil
tro de princípio, eles relutam. No entanto, e leviano; e a influência e manipulação das
enquanto ela se ocupa com os romances famílias para conseguirem uma situação
e escândalos das suas irmãs, se encontra melhor, preocupados com os olhares da
novamente na companhia dele. Progres- sociedade.
sivamente as suas opiniões em relação a
este jovem começam a mudar. Darcy é
um homem orgulhoso por ser o mais rico
das redondezas, e se sente superior àquelas
pessoas do campo, considerando-as boê-
mias e preconceituosas. Com o desenrolar

18 SAMIZDAT dezembro de 2008


18
ficina

A Oficina Editora é uma utopia, um não-


lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como umas
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão c­ ultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
http://oficinaeditora.org/ a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

www.samizdat-pt.blogspot.com 19
Autor em Língua Portuguesa

O DUPLO
Coelho Neto em andar contando essa remoques e deixei-o com
história por aí. os tais mocinhos, que lhe
- Temos, então, um caso aplaudem os versos quando
- Que tem?
de desdobramento da per- ele lhes paga a cerveja ou
sonalidade do meu querido - Ora! Que tem... Há o chá, aí por essas casas.
amigo? dias, em casa do Leivas, Não ando a pregar dou-
pouco faltou para que eu trinas: não sou sectário,
- Quem te disse ?
rompesse com o Malveiro, não freqüento sessões nem
- Laura. a propósito do que se deu leio, sequer, as tais obras de
Benito Soares ficou um comigo, e que lhe contaram propaganda que pretendem
momento encarado no não sei onde, entendeu que revelar o que se passa no
coronel. Por fim, meneando me devia tomar à sua conta, Além da morte. Sou religio-
com a cabeça, desabafou expondo-me à risota de uns so à velha moda, observan-
contrariando: petimetres ridículos que o do a doutrina que aprendi,
cercam. Fiz-lhe sentir que ainda que não ande beata-
- Laura... Laura faz mal
não me agradavam os seus

20 SAMIZDAT dezembro de 2008


20
mente pelas igrejas de círio bradam contra os que xando o Borges, dirigi-me,
e ripanço. Cumpro rigoro- os apregoam. A verdade, sem mais empeços, para a
samente os Mandamentos porém, é que nos achamos Galeria, onde comprei os
e os marcos que limitam a diante de uma porta de jornais.
minha Crença são os qua- bronze que nos veda um O meu bonde apareceu
tro evangelistas; fora de tais grande mistério, ou melhor logo e logo foi assaltado.
“termos” não dou um passo - Mistério. Não consegui uma ponta
- nem para diante, seguin- Mas já é muito havermos e fiquei entalado no banco
do os reformadores, que chegado à porta. Sente-se da frente, entre um obeso
pregam o novo Credo, nem que além dos túmulos, que cavalheiro ruivo e uma ma-
para trás acercando-me de são limiares de outro mun- trona anafada, dessas que se
altares pagãos ou adorando do, há alguma coisa que... esparralham.
ídolos grosseiros. Onde me ninguém sabe o que é.
deixaram meus pais, que O bonde partiu e, opri-
foram os meus iniciadores, A porta mantém-se mido pelas duas enxúndias,
aí ficarei até morrer. fechada, deixando apenas dificilmente consegui abrir
passar um rastinho de luz um dos jornais. Pus-me a
Contei a Laura a tal no qual flutuam indícios, ler, ou antes: a olhar a pá-
história como contaria um revelações vagas, como áto- gina porque, em verdade, a
acidente qualquer de rua, mos nos raios de sol. Mas minha atenção vagueava, aí
sem cuidar que ela fizesse deixemos as dissertações por longe. Os olhos passe-
do caso assunto de palestra para mais tarde. Vamos ao avam pelas palavras, sem
nos salões que freqüenta. teu caso. Foi, então, um des- que o espírito lhe colhesse
O resultado disso é o dobramento da tua persona- o sentido, como deve acon-
que se está dando comigo, lidade...? tecer com os aviadores que
aborrecendo-me, irritando- - Não sei que foi. Digo-te vêem, de muito alto, todo o
me, porque desconfio de to- apenas que passei os mi- panorama de uma cidade
dos os olhares e, se alguém nutos mais angustiosos da em mancha, sem distinguir
sorri à minha passagem, minha vida. os bairros, as ruas, os edifí-
imaginando que comenta cios, apenas o alvejamento
o meu caso, fico logo pelos Saindo do Alvear, subi das casas, a placa cintilante
cabelos. vagarosamente a Avenida do mar, o relevo dos mon-
até a Tabacaria Londres, tes. Sentia-me atraído por
- Mas, afinal, como foi? onde comprei charutos e
Comigo podes abrir-te sem alguma coisa. Voltei página
estive um instante a con- do jornal - a mesma confu-
receio. Sabes que, além de versar com o Borges sobre
discreto, não sou dos que são, o mesmo empastamen-
coisas da vida. O Borges to. Foi então, que levantei a
zombam do sobrenatural. anda com a mania dos
Os fatos ai estão: produ- cabeça, olhando em frente e
Marcos; possuí não sei vi, meu amigo, vi...!
zem-se, reproduzem-se e, se quantos milhões, e espera
ninguém os explica, muitos que a Alemanha recompo- - Viste...?
dão deles testemunho e nha as finanças para atur- - A mim mesmo, a mim!
provas e eles, efetivamente, dir-nos, a nós e ao mundo, Eu, eu em pessoa sentado
manifestam-se visível, sensi- com a vida maravilhosa que defronte de mim, no ban-
velmente. tem toda em plano. O que co da frente, que dá costas
Os cépticos encolhem os me está parecendo é que o à plataforma. Era eu, eu!
ombros sorrindo, os adver- pobre está com o juízo em como refletido em um
sários, à falta de argumen- pior estado de que as finan- espelho, e certo estremeci
tos com que os destruam, ças germânicas. Enfim, dei- vivamente, incomodando os

www.samizdat-pt.blogspot.com 21
meus companheiros laterais, raciocinava. Sim, mas o debate-se agoniadamente
porque ambos voltaram-se corpo não esfria de repente conseguindo elevar-se à
encarando-se de má som- e tais pensamentos e tais tona e gritar a socorro.
bra. raciocínios podiam ser ain- E tudo isso, meu ami-
Pasmado, sem poder da restos de energia d’alma go, não durou, talvez, um
desfitar os olhos daquele que me houvessem ficado minuto e eu guardo de
reflexo, que era, em tudo, nas células, como fica nas tais instantes a impressão
eu: nas feições, na atitude, polias o movimento ainda penosa de um século de
no trajo, não parecido, mas depois do motor parado. sofrimento.
reproduzido em exterioriza- Sentia-me rígido, petri- Eis o meu caso, o caso
ção, pensei de mim comigo: ficado e tinha a sensação que tantos aborrecimentos
“Se tal se dá é que o meu de frio, como se me fosse me tem trazido pela taga-
espírito, alma, ou lá o que congelando, a começar relice de Laura, a quem o
seja, exalou-se de mim, pelos pés. E o outro sempre contei, e que o repete por
deixando-me apenas o cor- encarado em mim. aí, a todo o mundo.
po, como a borboleta deixa Fiz um esforço supremo E crença que D. Juan de
o casulo em que se opera a como se quisesse levantar o Maraña, encontrando-se,
metamorfose. Assim, pois, o bonde com todos os pas- certa noite, com um sai-
que ali se achava, no bon- sageiros que ele continha mento, perguntou a um dos
de, era uma massa inerte, e, arremessando os braços, que conduziam o esquife: ‘~
sustida pelos dois corpanzis pus-me de pé. Quem era o morto?” E logo
que ladeavam. E, em menos A matrona levantou a lhe foi respondido:
de um segundo, vi todo o cabeça com atrevimento e
horror da cena, que seria - É D. Juan de Maraña.
olhou-me com tal carranca Querendo o fidalgo verifi-
cômica, se não fosse trágica, que eu pensei que me fosse
que se daria com a retirada car o que lhe dizia o farri-
agatafunhar ou, com a força coco e outros sinistramente
de um daqueles gordos. dos braços, que eram duas repetiam, afastou o sudário
Desamparado, o meu coxas, atirar-me do bonde e viu. Efetivamente: o de-
corpo vazio tombaria. Dar- abaixo e o ruivo roncou funto era ele. E tal visão
se-ia, então, o alarma: todos ameaçadoramente, apru- foi que o levou ao arre-
os passageiros de pé, a mando a cabeçorra quadra- pendimento. Pois comigo
verificação da minha morte, da de ulano com entono de a coisa foi num bonde. Eu
o reconhecimento do meu desafio. vi-me, como te estou vendo;
cadáver pelo condutor e a Mas que me importavam a mim, entendes? a mim!
minha entrada fúnebre em ameaças A minha alegria Como explicas tal coisa?
casa”. era grande e tornou-se - Essas coisas, meu amigo,
Que angústia, meu ami- maior quando, ao procurar não se explicam: registam-
go! E o outro lá estava em com os olhos o meu outro se, são observações, fatos,
frente a olhar-me, como se “eu”, não o vi mais. elementos para a Ciência
gozasse com o meu sofri- Teria descido? Não ! Não do Futuro, que será, talvez,
mento. Lembrei-me, então, descera. Tornara a mim, Ciência da Verdade.
de fazer um movimento atraído pela vontade, na
com os braços, com as ânsia de viver, no desespero
mãos; o receio, porém, de em que me vi, só compará-
ser a minha vontade aten- vel ao de alguém que, indo
dida pelos nervos fez-me ao fundo, sem saber nadar,
hesitar. Mas eu pensava,

22 SAMIZDAT dezembro de 2008


22
Henrique Maximiano conhecido por sua boemia e
Coelho Neto (Caxias, 21 de seu célebre anedotário. Tor-
fevereiro de 1864 — Rio de nou-se companheiro assíduo
Janeiro, 28 de novembro de de José do Patrocínio, na cam-
1934) foi um escritor, político panha abolicionista. Ingressou
e professor brasileiro. no jornal Gazeta da Tarde,
passando depois para a folha
Nascido em épocas antes Cidade do Rio, onde chegou a
na vila de Caxias interior do exercer o cargo de secretário.
Maranhão. Foram seus pais Desta época datam seus pri-
Antônio da Fonseca Coelho, meiros volumes publicados.
português, e Ana Silvestre Co- Em 1890, contraiu matri-
elho, de sangue índio. Tinha mônio com Maria Gabriela
seis anos quando seus pais Brandão, filha do educador
se transferiram para o Rio. Alberto Olympio Brandão.
Fez os seus preparatórios no Tiveram 14 filhos.
Externato do Colégio Pedro Foi nomeado para o cargo
II. Tentou o curso de Medici- de secretário do Governo do
na, logo desistindo. Em 1883 Estado do Rio de Janeiro e, no
matriculou-se na Faculdade de ano seguinte, diretor dos Ne-
Direito do Largo de São Fran- gócios do Estado. Em 1892, foi
cisco, morando na pensão em nomeado professor de História
que vivia Raul Pompéia, que da Arte na Escola Nacional de
também frequentava a Acade- Belas Artes e, mais tarde, pro-
mia de São Paulo à época. Seu fessor de Literatura do Colégio
espírito irrequieto encontrou Pedro II. Autor de numero-
ali ótimo ambiente para deste- sos livros, artigos, crônicas e
midas expansões, e logo ele se folhetins, em 1910, foi nome-
viu envolvido num movimen- ado professor de História do Cultivou praticamente
to dos estudantes contra um Teatro e Literatura Dramática todos os gêneros literários e
professor. Antevendo represá- da Escola de Arte Dramática, foi, por muitos anos, o escri-
lias, transferiu-se para a facul- sendo logo depois diretor do tor mais lido do Brasil, tendo,
dade de Recife, onde comple- estabelecimento. provavelmente a sua maior
tou o primeiro ano de Direito, Eleito deputado federal pelo consagração ao ser nomeado,
tendo sido aluno do jurista e Maranhão, em 1909, e reeleito em votação aberta ao público
poeta Tobias Barreto. Regres- em 1917. Foi também secre- promovida pela revista O Ma-
sando a São Paulo, dedicou-se tário-geral da Liga de Defesa lho, o "Príncipe dos Prosadores
ardentemente à campanha Nacional e membro do Con- Brasileiros", em 1928.
abolicionista e republicana, selho Consultivo do Theatro Foi provavelmente o pro-
atitute que rendeu-lhe novos Municipal do Rio de Janeiro. sador brasileiro mais lido nas
atritos com o corpo docente Além de exercer os car- primeiras décadas do século
da Faculdade do Largo de São gos públicos, Coelho Neto XX, tendo sofrido sua pessoa
Francisco. Em 1885 desistiu, manteve e multiplicou a sua e sua obra furiosos ataques
por fim, de suas pretensões atividade em revistas e jornais do Modernismo posterior à
jurídicas, e transferiu-se para de todos os feitios, no Rio e Semana de Arte Moderna de
o Rio de Janeiro. em outras cidades. Além de 1922, o que provavelmente
Fez parte do grupo de assinar trabalhos com seu colaborou no injusto esqueci-
boêmios que abrangia figuras próprio nome, escrevia sob mento que o mercado edito-
da monta de Olavo Bilac, Luís inúmeros pseudônimos, entre rial e os leitores brasileiros
Murat, Guimaraens Passos e eles Anselmo Ribas, Caliban, tem-lhe reservado. Para o
Paula Ney. A história dessa Ariel, Amador Santelmo, Blan- cinema, escreveu o que seria o
geração apareceria depois em co Canabarro, Charles Rouget, primeiro filme brasileiro em
seus romance A Conquista e Democ, N. Puck, Tartarin, Fur- série, Os mistérios do Rio de
Fogo Fátuo, dedicado este ao Fur, Manés. Janeiro, do qual só foi termi-
amigo Francisco de Paula Ney, Em 1923, converteu-se ao nado e lançado o primeiro
jornalista e brilhante orador Espiritismo. episódio.

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Autor em Língua Portuguesa
XIX
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
SONETOS
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste. Camões

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,


Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te


Alguma cousa a dor que me ficou XXVII
Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Males, que contra mim vos conjurastes,
Quanto há-de durar tão duro intento?
Roga a Deus, que teus anos encurtou, Se dura, por que dure meu tormento,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Baste-vos quanto já me atormentastes.
Quão cedo de meus olhos te levou.

Mas se assim porfiais, porque cuidastes


LXXXI Derribar o meu alto pensamento,
Amor é um fogo que arde sem se ver;
Mais pode a causa dele, em que o sustento,
É ferida que dói, e não se sente;
Que vós, que dela mesma o ser tomastes.
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
E pois vossa tenção com minha morte
É de acabar o mal destes amores,
É um não querer mais que bem querer;
Dai já fim a tormento tão comprido.
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
Assim de ambos contente será a sorte:
É um cuidar que ganha em se perder;
Em vós por acabar-me, vencedores,
Em mim porque acabei de vós vencido.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

24 SAMIZDAT dezembro de 2008


24
Luís Vaz de Camões (c. 1524 seus estudos. onde continuou
— 10 de Junho de 1580) é fre- Ligado à casa do Conde de os seus escritos.
quentemente considerado como o Linhares, D. Francisco de Noro- Viveu numa
maior poeta de língua portuguesa nha, e talvez preceptor do filho gruta, hoje com
e dos maiores da Humanidade. D. António, segue para Ceuta em o seu nome, e aí
O seu génio é comparável ao 1549 e por lá fica até 1551. Era terá escrito boa
de Virgílio, Dante, Cervantes ou uma aventura comum na carreira parte d'Os Lusí-
Shakespeare. Das suas obras, a militar dos jovens, recordada na adas. Naufragou
epopéia Os Lusíadas é a mais elegia Aquela que de amor desco- na foz do rio
significativa. medido. Num cerco, teve um dos Mekong, onde
Desconhece-se a data e o olhos vazados por uma seta pela conservou de
local onde terá nascido Camões. fúria rara de Marte. Ainda assim, forma heróica
Admite-se que nasceu entre 1517 manteve as suas potencialidades o manuscrito
e 1525. A sua família é de origem de combate. da obra, então
galega que se fixou na cidade de De regresso a Lisboa, não já adiantada (cf.
Chaves e mais tarde terá ido para tarda em retomar a vida boémia. Lus., X, 128). No
Coimbra e para Lisboa, lugares São-lhe atribuídos vários amores, desastre teria
que reivindicam ser o local de seu não só por damas da corte mas morrido a sua
nascimento. Frequentemente fala- até pela própria irmã do Rei D. companheira
se também em Alenquer, mas isto Manuel I. Teria caído em des- chinesa Dina-
deve-se a uma má interpretação graça, a ponto de ser desterrado mene, celebrada
de um dos seus sonetos, onde Ca- para Constância. Não há, porém, em série de sonetos. É possível
mões escreveu "[…] / Criou-me o menor fundamento documental que datem igualmente dessa
Portugal na verde e cara / pátria de que tal fato tenha ocorrido. No época ou tenham nascido dessa
minha Alenquer […]". Esta frase dia de Corpus Christi de 1552 dolorosa experiência as redondi-
isolada e a escrita do soneto na entra em rixa, e fere um certo lhas "Sôbolos rios".
primeira pessoa levam as pessoas Gonçalo Borges. Preso, é libertado Regressou a Goa antes de
a pensarem que é Camões a falar por carta régia de perdão de 7 Agosto de 1560 e pediu a protec-
de si. Mas a leitura atenta e com- de Março de 1553, embarcando ção do Vice-rei D. Constantino de
pleta do soneto permite concluir para a Índia na armada de Fernão Bragança num longo poema em
que os factos aí presentes não se Álvares Cabral, a 24 desse mesmo oitavas. Aprisionado por dívidas,
associam à vida de Camões. Ca- mês. dirigiu súplicas em verso ao novo
mões escreveu o soneto como se Chegado a Goa, Camões toma Vice-rei, D. Francisco Coutinho,
fosse um indivíduo, provavelmen- parte na expedição do vice-rei D. conde do Redondo, para ser
te um conhecido seu, que já teria Afonso de Noronha contra o rei liberto.
morrido com menos de 25 anos de Chembe, conhecido como o De regresso ao reino, em 1568
de idade, longe da pátria, tendo "rei da pimenta". A esta primeira fez escala na ilha de Moçambique,
como sepultura o mar. expedição refere-se a elegia "O onde, passados dois anos, Diogo
O pai de Camões foi Simão Poeta Simónides falando". Depois do Couto o encontrou, como
Vaz de Camões e sua mãe Ana Camões fixou-se em Goa onde relata na sua obra, acrescentando
de Sá e Macedo. Por via paterna, escreveu grande parte da sua que o poeta estava "tão pobre que
Camões seria trineto do trovador obra épica. Considerou a cidade vivia de amigos" (Década 8.ª da
galego Vasco Pires de Camões, e como uma "madrasta de todos os Ásia). Trabalhava então na revisão
por via materna, aparentado com homens honestos" e ali estudou de Os Lusíadas e na composi-
o navegador Vasco da Gama. os costumes de cristãos e hindus, ção de "um Parnaso de Luís de
Entre 1542 e 1545, viveu em e a geografia e a história locais. Camões, com poesia, filosofia e
Lisboa, trocando os estudos pelo Tomou parte em mais expedi- outras ciências", obra roubada.
ambiente da corte de D. João III, ções militares. Entre Fevereiro e Diogo do Couto pagou-lhe o resto
conquistando fama de poeta e Novembro de 1554 integrou a da viagem até Lisboa, onde Ca-
feitio altivo. Armada de D. Fernando de Mene- mões aportou em 1570. Em 1580,
Viveu algum tempo em ses, constituída por mais de 1000 em Lisboa, assistiu à partida do
Coimbra onde teria freqüentado homens e 30 embarcações, ao exército português para o norte
o curso de Humanidades, talvez Golfo Pérsico, aí sentindo a amar- de África.
no Mosteiro de Santa Cruz, onde gura expressa na canção "Junto de Faleceu numa casa de Santana,
tinha um tio padre, D. Bento um seco, fero e estéril monte". No em Lisboa, sendo enterrado numa
de Camões. Não há registos da regresso foi nomeado "provedor- campa rasa numa das igrejas das
passagem do poeta por Coimbra. mor dos defuntos nas partes da proximidades. Os seus restos
Em todo o caso, a cultura refinada China" pelo Governador Francisco encontram-se atualmente no Mos-
dos seus escritos torna a única Barreto, para quem escreveria o teiro dos Jerónimos.
universidade de Portugal do tem- "Auto do Filodemo".
po como o lugar mais provável de Em 1556 partiu para Macau,

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Contos
Lavadeiras (detalhe)
Cândido Portinari
óleo sobre tela
1944

O Sabão
Milagroso
26 SAMIZDAT dezembro de 2008
26
Volmar Camargo Junior A fábrica estava tendo do suas técnicas-lavadeiras
v.camargo.junior@gmail.com êxito, mandando carrega- terminaram com quase
mentos para os quatro can- quinhentos quilos de rou-
No tempo em não tos do Rio Grande, quando pa suja sem diminuir um
existia nem água encana- o proprietário da fábrica, milímetro. E, ainda mais
da, instalou-se na cidade Doutor Jorge Gusmão, En- estranho, ficava tudo impe-
uma fábrica de sabão. Era genheiro Químico, (cha- cavelmente limpo, sem nem
uma coisa de outro mun- mado às escondidas “Jorge precisar deixar quarando.
do, porque desde sempre Sabão”) tomou conhecimen-
só se usava daquele sabão to que as vendas estavam Formou-se o rebuli-
brabo feito em casa. Os diminuindo drasticamente ço. Doutor Jorge Gusmão
ingredientes eram coisas na cidade-sede da fábrica. investiu do próprio dinhei-
comuns, como banha de Percorrendo Pereirópolis ro para adquirir todas as
porco, soda, cinzas, essas ele mesmo, de vendinha barras do sabão milagroso
coisas. O sabão da fábri- em vendinha, e mesmo da concorrente. Vendeu
ca, coisa fina, tinha um no “mercadão” do finado o carro alemão, os ternos
componente que até então Malaquias, encontrou cai- italianos, o cavalo árabe e
ninguém havia sentido xas empoeiradas do sabão as botas de Uruguaiana.
falta: perfume. Depois que perfumado, encalhadas nas Comprou para Dona Ma-
as primeiras barras apare- prateleiras e nos depósitos. ricota uma fazendinha na
ceram — tanto no Mercado “Agora, só querem saber do França, garantindo-lhe uma
Público quanto no Bolichão sabão milagroso da Dona formidável aposentadoria
do Ataliba, as donas-de- Maricota” diziam os co- que, em dinheiro de hoje,
casa abandonaram com- merciantes. daria uns bons cinco mil
pletamente o sabãozinho por mês.
caseiro. Em pouco tempo, Doutor Jorge Gusmão,
Engenheiro Químico, quis O sabão perfumado
ninguém mais sabia a voltou a ser um sucesso.
receita. conhecer o produto da
concorrência. Doutor Jorge Gusmão, En-
Bom, dizer ninguém é genheiro Químico, teve que
um exagero. Uma pessoa A primeira coisa que inventar muitas variedades
ainda sabia. notou era que o sabão da para poder manter a con-
Dona Maricota não tinha corrente bem longe.
Dona Maricota era uma cheiro algum. A textura
mestiça de gringa com era muito parecida a de Dona Maricota, todavia,
bugre, gorducha, que a uma... pedra-sabão. Subme- nem lembrava mais de Pe-
essa época já estava meio teu-o a todos os testes quí- reirópolis. A última notícia
senil. Era do tipo de gente micos possíveis para saber que se teve dela é que os
para quem o século XIX de que era feito – e para vinicultores da Borgonha
não tinha acabado, nem o sua grata surpresa, não andavam arrancando os
século XX tinha começa- tinha nenhum dos compo- cabelos por causa de uma
do, nem sabia nada dessa nentes importados do seu. certa velhinha que apren-
coisa de séculos. Pois Dona O problema foi quando deu a fabricar champanha.
Maricota não se importava submeteram o tal “sabão Dizem que as garrafas que
com o perfume do sabão milagroso” ao teste defi- ela vendia, por mais que
da fábrica – e insistia em nitivo: o tanque de roupa se bebesse, não esvaziavam
teimar com as comadres suja. Doutor Jorge Gusmão, nunca.
que sabão perfumado não Engenheiro Químico, não
servia para lavar roupa. conseguia acreditar quan-

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Contos

O Aniversário
de J.S.B. Henry Alfred Bugalho
henrybugalho@gmail.com

28 SAMIZDAT dezembro de 2008


28
Em 1999, a revista
Der Spiegel publicou
um ­artigo intitulado “Era
Bach o melhor?”; conse-
qüência duma exuma-
ção feita no cemitério
de Leipzig. Foi quando a
seguinte história veio à
tona.

Durante as comemo-
rações do aniversário de
sessenta anos de Johann
Sebastian Bach, um con-
curso foi organizado para
determinar quem era
o melhor organista da
Europa.

Na verdade, o intuito
era apenas confirmar o
que todos — concorren-
tes, jurados e até o pró-
prio homenageado — já
sabiam: Bach era o maior
dos virtuosi.

Músicos de todos os
países, de todas as ci-
dades e paróquias se
congregaram em Leipzig
para o festival, com dura-
ção de três dias.

Os moradores deco-
raram as casas e as ruas,
mais cheias de vida do
que nunca, invadidas pela
multidão de pessoas e
idiomas, artistas e curio-
sos.

Cada um dos concor-


rentes poderia praticar
por algumas horas no
magnífico órgão da Igreja
de São Nicolau e se pre-
http://www.flickr.com/photos/giefferre/2878541901/sizes/o/

www.samizdat-pt.blogspot.com 29
parar para o embate. No verá ser dado a ele. tificação, encontraram a
entanto, Bach não conse- ossada dum homem, pé
Os organizadores des-
guiu conter a ansiedade esquerdo amputado.
cobriram que o jovem se
e, durante os ensaios, se
chamava Wolfram Benja- Pesquisadores estuda-
escondeu num canto da
min, organista em Ham- ram os restos mortais,
igreja para ouvir e cons-
burgo, na casa dos trinta vasculharam documentos
tatar a perícia dos desa-
anos, genial e arrogante. da congregação, manus-
fiantes.
Nem mesmo a ausência critos e concluíram: aque-
Após todos terem dei- do pé esquerdo — am- le era Wolfram Benjamin,
tado os dedos no teclado putado por causa dum assassinado com um
do órgão, um dos orga- tumor — reduzia sua golpe de objeto rombudo
nizadores da celebração desenvoltura nas peda- no crânio.
indagou Bach: leiras. Além de brilhante
O escândalo se ins-
intérprete, era um com-
— E então? São bons taurou no mundo da
positor incomparável. A
músicos? música, vários críticos,
constatação de que Bach
musicólogos e especialis-
— Todos, sem exceção. não mentia os levou ao
tas se posicionaram em
Aqui estão os melhores desespero, o festival seria
lados distintos da disputa,
do mundo. arruinado.
alguns defendiam a ge-
O organizador limpou A data do aniversário nialidade de Bach, outros,
com um lenço o suor chegou e, um a um, os a interrompida carreira
que lhe escorria pelas competidores se apre- dum prodígio.
têmporas: sentaram. Bach assistia a
O governo de Ham-
tudo em silêncio, sentado
— E dará tudo certo? burgo exigiu retratação
na primeira fila.
Imagino que nenhum de- por parte do de Leipzig,
les se equipare a você. Mas em nenhum dos além da redação duma
três dias Wolfram Benja- nota pública expondo os
— Eu não teria tanta min tocou. Ele simples- fatos e afirmando que o
certeza... — Bach gaguejou mente não compareceu organista hamburguense
— Há um jovem com um ao desafio. teria morrido por causa
talento extraordinário, dum único crime — ser
muito mais hábil do que A última apresentação melhor do que Bach.
eu. foi de Johann Sebastian
Bach. Leipzig não cedeu, ale-
— Impossível! Sua ins- gou desconhecimento do
piração é divina, Sr. Bach. O clamor se ergueu, de assunto e, segundo dizem,
boca em boca, pelas ruas ocultou evidências, des-
— Se minha inspira- de Leipzig: Bach havia truiu documentos histó-
ção é divina, então é a vencido. ricos, tudo para apagar
própria mão de Deus
Isto até 1994, quando quaisquer vestígios da
que toca através daquele
foram necessárias refor- presença de Benjamin
rapaz. Se quisermos ser
mas no cemitério da igre- durante o aniversário de
justos, o título de melhor
ja. Numa cova sem iden- J. S. Bach.
organista do mundo de-

30 SAMIZDAT dezembro de 2008


30
O artigo de Der Spie-
gel, poucos anos depois,
reacendeu o debate. Os
defensores de Benjamin
requisitaram ao Kremlin
o envio das partituras e
do caderno de notas do
organista. Alegaram que,
durante a ocupação sovi-
ética, os russos apreende-
ram tais documentos nas
dependências da igreja,
mas os diretores do
Kremlin negaram pos-
suir qualquer informação
sobre isto.

E a contenda pros-
segue, com acusações,
mentiras e evidências
duvidosas.

Talvez, um dia, encon-


tremos o busto Wolfram
Benjamin nas galerias
da História e a epígrafe:
“o melhor organista do
mundo”; ou talvez sua
imagem mais uma vez se
desvaneça, restando ape-
nas a imorredoura glória
de J. S. B.

http://content.answers.com/main/content/img/getty/0/6/2661706.jpg

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Contos

Paulette na
cidade Joaquim Bispo

32 SAMIZDAT dezembro de 2008


32
Paulette, a Castanha, não nhar dinheiro.
queria acabar comida por
– Então vamos as três!
um esquilo. Nem a sua am-
bição era ficar lá pela terra Por volta do meio-dia,
e um dia gerar um grande num cruzamento, encontra-
castanheiro. ram outras duas.
– Maior e mais majestoso – Olá! Quem são vocês e
que o papá – chilreavam de para onde é que vão? – dis-
entusiasmo as irmãs. se a Castanha da Índia, que
já tinha aprendido a senha.
Antes de tomar qualquer
A mais encorpada respon-
decisão, queria saber o que
deu:
havia para lá da curva do
caminho. Um dia, de ma- – Eu sou uma Noz e esta
nhãzinha, disse adeus às minha amiga é uma Amên-
duas irmãs, que se man- doa e vamos para a cidade
tinham no aconchego do estudar. Estamos fartas de
ouriço familiar, e partiu ser casca-grossas.
em direcção a Sul. A meio
da manhã, encontrou outra – Então vamos todas de
Castanha como ela, mas companhia! – Era a vez da
mais anafada. Avelã concluir.

– Olá! Quem és tu e para E lá foram divertidas e


onde vais? – perguntou tagarelando a tarde inteira.
­Paulette. Ao anoitecer, encontraram
uma Castanha Pilada toda
– Sou uma Castanha da encarquilhada, que lhes
Índia e vou para a cidade. ofereceu guarida. Aceitaram
Uma prima arranjou-me agradecidas, que a noite
trabalho – respondeu a ou- está cheia de roedores. Mas
tra radiosa nas suas boche- apenas começou a haver
chas luzidias. luz, partiram e chegaram à
cidade ainda de manhã.
– Então vamos as duas!
Deram uma volta a apre-
Mais à frente encontra-
ciar os prédios enormes e
ram uma espécie de casta-
o formigueiro dos carros.
nha pequenina e redondi-
Depois encontraram um
nha.
jornal de anúncios grátis.
– Olá! Quem és tu e para
– Olha este – disse a
onde vais? – perguntou a
Amêndoa. – «Precisa-se
Castanha?
amêndoa para fábrica de
– Sou uma Avelã e vou doces conventuais». Vou
para a cidade. Quero ga- responder! Se for um part-

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time, posso ganhar uns assomara à casca fechou-se olhos lúbricos e esmigalha-
dinheirinhos e ter tempo logo a seguir. – Mas não é vam com mãos papudas o
para estudar. trabalho para vocês. Não resto de casca e de pelícu-
têm este cheiro! la que as castanhas ainda
– Olha, este é para mim!
mantinham. E depois – oh
– entusiasmou-se a Avelã – Da Amêndoa e da Avelã,
horror! – de uma só denta-
«Chocolataria procura avelã nem sinal. A Castanha da
da comiam-nas. Inteiras.
grada. Paga bem». Se ganhar Índia teve que voltar ao tra-
muito dinheiro, compro um balho. A Noz e a Castanha Escapou-se-lhes um «Oh!»
pulverizador à minha mãe. esperaram ainda umas duas involuntário. O homem das
horas, e como as outras não castanhas viu-as e baixou-
– Hum, não sei o que
vinham, foram responder se para as apanhar. Estava
este é – disse a Castanha
ao anúncio para a Paulette. quase a agarrar Paulette
carregando o sobrolho –
quando a Noz, ginasticada
«Castanhas nacionais e es- Era numa rua estreita e
e enraivecida pela repulsa,
trangeiras. Quentes e boas!». o local de trabalho, envolto
saltou. Apontou uma cabe-
É capaz de ser uma empre- em fumo, não passava des-
çada aos dentes do homem.
sa de trabalho temporário. percebido. Aproximaram-se,
O lábio superior deste
Mas não há mais nada! sem dizer nada, e ficaram à
interpôs-se e ficou esmaga-
espreita, para descobrir qual
Combinaram que cada do entre os próprios dentes
era o ramo do patrão. Este,
uma iria responder ao seu e a cabeça dura da Noz.
de bigodinho e cabelo com
anúncio e que voltariam a O homem gritou agarrado
gel, pegava nas castanhas,
juntar-se de tarde, excepto ao lábio a sangrar. Várias
dava-lhes um golpe na
Paulette que ficou à espera cabeças de homens se vol-
casca e atirava-as para um
de saber se havia vagas no taram. A Castanha e a Noz
pote esburacado que tinha
trabalho da Castanha da sentiram aquelas dezenas
sobre brasas.
Índia. À hora aprazada che- de olhos sobre si. Um medo
gou a Noz muito zangada. Só então, horrorizadas, imenso apoderou-se delas.
Tinha ido responder a um se aperceberam do cheiro Fugiram dali tão depressa
anúncio para Segurança e a castanhas assadas que quanto conseguiram, sem
tinham-lhe dito que era um enchia o ar, e as viram olhar para trás. Ao virar
estágio não remunerado. amontoadas num grande uma esquina, quase foram
tabuleiro. Estavam irreco- esmagadas por um carro.
– Lá na terra nunca me Atiraram-se para o lado às
nhecíveis. A casca golpeada
fizeram uma proposta tão cegas e caíram numa sar-
encanecera como noiva
desavergonhada! jeta. No escuro húmido e
adiada e abrira-se pela
acção do calor, deixando ver fétido, olharam em volta
– Eu cá, estou contente
o delicado véu interior, que tentando enxergar o que
com o trabalho – disse a
se separara do corpo ex- quer que fosse. Só três pares
Castanha da Índia. – Fiquei
pondo o miolo dourado das de olhos brilhantes guin-
a trabalhar em casa duma
castanhas. «Que degradante! chavam.
velhota simpática e o que
tenho que fazer é só ficar Porquê estas atrocidades,
numa gaveta de roupa a porquê?» – perguntavam-se.
afugentar as traças. – O Observaram então como os
sorriso de orgulho que lhe homens se aproximavam de

34 SAMIZDAT dezembro de 2008


34
Dênis Moura

Conspiração ZHAARP
“Em 2068, por todos os segue: ela. Devemos firmar agora o
lugares do mundo, de um lado, - Vejam esta constela- compromisso de que nossas
sessenta famílias controlando ção de satélites ao redor da Industrias nunca mais pro-
toda a riqueza do planeta Terra. A maioria deles estão duzirão eletrônicos. Tiremos
enquanto seus aparatos de equipados com canhões assim a ferramenta com que
poder reagem violentamente Zhaarp que disparados em os baderneiros se mobilizam
ao que chamam de desordem direção a todas as cidades e retomaremos o controle do
das massas. Do outro, mi- da Terra, inutilizarão todos mundo, a tranqüilidade dos
lhões de pessoas invadem no os equipamentos eletrônicos. nossos negócios.
mesmo instante os gabinetes Será o fim da Internet e com Todos aplaudem exultan-
corporativos e governamentais. ela todas as mobilizações que tes. Pequenos hologramas
São os braços de três bilhões atentam contra a liberdade em frente de cada magnata
de sobreviventes que se orga- dos empreendimentos. coletam suas assinaturas
nizam mundialmente através biométricas. Cada corpo-
da Grande Rede e deliberam - Mas sem Internet como
ficarão nossos negócios? Se ração recebe uma parte a
regras para regular a desor- ser cumprida no plano. O
dem esgotadora de pessoas e voltarmos à era do papel, dos
contratos através de correios, grande holograma central se
natureza que perdurou por transforma em um imenso
mais de cinco séculos.” nossos lucros cessarão. Diz
um gordo senhor. cronômetro em contagem
- Não deixaremos que esta regressiva mostrando o tem-
anarquia continue a assolar o - Muito simples, senhor po inicial de seis horas, seis
mundo. - Diz um bigodudo Carl Johnson. A partir de minutos e seis segundos.
senhor no meio da imensa amanhã passará a funcionar
mesa de sessenta lugares a mundial rede fotônica, úni-
ocupados. ca imune aos pulsos Zhaarp. (Capítulo 4 do Romance
Todas as nossas operações “RETORNO AO BIG BANG
- De hoje não passará, passarão a utilizá-la. Dife- MICROCÓSMICO”)
senhor Karl Mittali. Apre- rente da Internet baseada em
sento-lhes o plano que nossas eletrônicos e totalmente des-
corporações deverão seguir. controlada, a rede fotônica http://bigbangmicrocosmico.
Todos olham ansiosos (que utiliza somente raios lu- blogspot.com/
para o grande holograma minosos) será centralizada e
que surgiu no auto da mesa. apenas os conteúdos que nos
Walton Lee Rockefeller pros- interessam trafegarão por

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Contos

Para que nos serve


Maria de Fátima Santos

http://www.flickr.com/photos/99174985@N00/313017494/sizes/l/

36 SAMIZDAT dezembro de 2008


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Eu me pergunto há muito: Olha-me como se fosse ele mento, esquartejava, lá em
para que nos serve. o morto, e eu penso de novo baixo, avantajado, mas ainda
para que nos serve e fico-me levemente belo, as carnes do
De um qualquer modo, a morrendo devagar, ao ritmo porco criado a bolota e a
gente solta-se disto. Assim do sol que se distende em cuidado.
como hoje, um dia usa a faca amarelos, lilazes e vermelhos,
que trouxe na liga, ano e ano, por detrás do morro onde jo- Guardei a faca comigo
e desfere o golpe. guei à bola e pastei as cabras desde essa tarde e, vendo o
do avô Gilberto e estudei bácoro grunhir, como pela
- Zás! - diz o moço a noite aqueles dois num por
quem Deus não deu entendi- para muitos exames, sentado
numa pedra. detrás que lhes deu no jeito,
mento mais que o perceber perguntei-me: para que nos
que sangue é o que corre do Um sol deslizando para serve.
buraco seja ele degolando dentro do rio onde me lavei
ave ou arrebentando veia de várias mágoas. E até hoje me pergunto,
com um fino golpe mesmo como agora, no preciso mo-
por debaixo, no pescoço de Um fio escarlate corre mento, ou um pouco antes,
gente. sobre o ombro que trago de me apartar disto.
desnudado.
- Zás! - e fica olhando o - Zás! - diz o parvo mal eu
gorgolejar com ar aparvalha- O dia terminando e eu me morro.
do, que a baba no canto da nesta loucura de querer
soltar-me. E retira a faca de prata e
boca escorre e completa o
osso. E afasta-se rolando dois
quadro de um perfeito tonto.
Eu a querer responder ao dedos sobre a jugular, como
O moço põe um pé mais para que nos serve e o fio me viu fazendo.
atrasado do que o outro, deslizando quente sobre o
que um quase morto assusta meu corpo.
para carago e se vier alguém
ainda vai pensar que fui eu Depois, ele pegará a faca
que peguei na ponta afia- de cabo prateado e osso que Hão-de vir buscar-me o
da da faca pequenina, com eu retirei da gaveta da cómo- corpo.
um cabo a brilhar de prata da da minha avó Benvinda
no dia em que havia lá por De mim, que cuidei
e osso, e a enfiei de um só
casa a confusão habitual da responder ao para que nos
golpe no pescoço deste des-
matança do porco. serve, dirão, num dizer de
graçado.
descuido:
O sangue escorre e ele Eram seis da tarde, então,
revira os olhos que nem sei como o são agora quando me
se me está olhando e nem sei envio deste mundo.
- Coitado!
se o acuda, se o largue. Abri a gaveta onde ela
- Chamem-lhe parvo... guardava, preciosas, duas
– penso eu, o que se está ligas negras com um friso
morrendo, nos últimos laivos de rendas e uma saia rodada
que tenho de pensar. com folhos, junto com um
colete.
- Zás! - balbucia o tonto
enquanto o ar da vida se me Tudo vermelhos que um
foge. dia tinham ataviado o pe-
queno corpo que, ao mo-

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Contos
http://www.flickr.com/photos/quintanaroo/524318451/sizes/l/

A Surpresa
Guilherme Rodrigues Depois daquele dia, mar- e filha. Crianças pequenas.
camos de nos encontrarmos, O menino, que era dois anos
na semana seguinte, na sorve- mais velho que a menina,
teria “Bola de Neve”, a melhor estava com a cara inteiri-
da cidade. nha lambuzada de sorvete e
mergulhava seu boneco nele.
Fazia um tempo fresco e A mãe gritando. A menina
ensolarado, eu já aguardava chorava e dizia querer pastel,
no local. Cheguei dez mi- não sorvete. E a mãe gritan-
nutos mais cedo, como de do. Enquanto o pai tomava o
costume. Nesse tempo come- seu sorvete sossegadamente
cei a observar ao meu redor. e olhava o movimento na
Uns onze metros à frente, rua. E a mãe gritando. No
uma família, pai, mãe, filho lado interno, no canto, ti-

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38
nha uma mulher gorda que – Talvez... Sempre morou me lembro daquela época
estava na sua terceira tigela. aqui? com nostalgia. Nem me lem-
Tomava desesperadamente e bro como você era, seu jeito,
completamente lambuzada, – Nasci aqui. Vivi até os seu temperamento... Mas jor-
mãos, rosto, barriga e até a seis anos. Fiz alguns amigos nalismo combina com você.
ponta do nariz. Era cômico. nesse tempo, mas acabei per-
Na mesa encostada à parede, dendo contato. Depois minha Que Máximo!
duas amigas conversavam família se mudou para ficar
sobre os garotos da escola e mais unida. E voltei faz um Acabamos por estender o
se deliciavam com enormes mês e meio. Retornei às ori- encontro até o jantar. Jovem
copos de milk-shake. gens. A cidade mudou tanto estudante que sabe cozinhar,
todos estes anos. e bem!
Fernando apareceu e
me assustei. Nem pude ver – Que ótimo... – disse, di- Fechamos a porta.
a cara do homem quando minuindo a intensidade, com
tomou o sorvete com sal que cara de assustado ou que não
um garotinho tinha posto. entendeu nada – Eu era um
de seus amigos. Lembro-me Continua! Não perca no
– Olá! Achei que não vies- do seu rosto, seus olhos... próximo mês!
se mais. Seus cabelos...

Ele sorriu puramente e – Não pode ser! – disse


me beijou a bochecha. Tive a perplexa– Bem achei já ter
impressão de já ter visto esse visto seu sorriso doce. Nunca
sorriso tão doce. me esqueci.

Logo pedimos sorvete. Eu, – Quanta felicidade te


Montanha Negra, ele, Céu reencontrar! E só agora nos
Estrelado. demos conta disso!

– Nos dias de hoje é difícil Os sorvetes tinham che-


conhecer pessoas como nos gado. E trocamos colheradas
conhecemos. Num bar no como velhos amigos.
centro da cidade não é o
melhor lugar. Seria normal – Como foi a sua vida lá?
numa festa, na faculdade,
com os amigos... – Minha família toda é
de lá. Senti muita saudade
– É o mundo moderno... daqui e aos poucos a famí-
Mas você forçou. lia e os novos amigos foram
amenizando essa carencia.
Dei de ombros. Mas nunca me esqueci deste
lugar. Tanto que deu certo de
– Você não teria me visto. voltar. Agora faço jornalismo.

Ele pensou e enfim, disse: – Naturalmente. Sempre

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Contos
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Para lá do Muro
José Espírito Santo

A cada ser a sua arte. A da barata sionista das nossas modestas em volta da lareira aquecía-
é resistir, contornar, construções. Tão perto... tão mos os ossos e alimentáva-
encontrar novos caminhos rodean- à bica! No topo um longo mos a alma com tudo o que
do os obstáculos. Só corredor feito calha servia de conseguíamos escutar.
não a virem de cabeça para baixo auto-estrada por onde desli- Parece que alguns lou-
Anónimo zavam velozes e silenciosos os cos tentaram escalá-lo ou
pequenos “robot”. contorná-lo. De alguma
A enorme massa branca Cresci brincando em forma vencer aquela barreira,
e sólida estava ali desde que redor deste monstro marco esgotá-la, encontrar-lhe um
me conheço. Fria e imponen- de fronteira, habituando-me fim. Foi assim com o homem
te com seus sessenta metros gradualmente à sua presença. que chegou um dia vindo do
de altura, numa vizinhança Meus pais e avós referiam o horizonte feito de pó para
próxima, em frente a minha artefacto nas suas histórias de logo partir duas horas após
janela, travando com sucesso nossos serões dos domingos chegar à nossa cidadela. Com
silencioso o ímpeto expan- de inverno quando, reunidos o seu ar cansado e a longa

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40
barba branca, deixou a voz de crentes inicia jornada e aproveitar a multidão em dia
fraca confidenciar que já an- vai colar-se junto ao enor- da excursão anual de tolos,
dava naquela demanda desde me paredão. Cada qual tem partir com eles e não regres-
os vinte anos. E assim comeu, primeiro de encontrar um sar, ficando junto ao muro
bebeu, descansou um pouco, espaço para si (apagando se como lapa na rocha, bem
ganhou fôlego e logo proferiu necessário escritos antigos) encostado, fora de ângulo de
“não há tempo a perder que e escreve os seus desejos, as visão dos guardas ciberné-
a vida é curta” e foi-se em suas aspirações para o ano ticos. Depois, com a ajuda
busca do fim da coisa, da ex- vindouro. E o “senhor do do equipamento sofisticado,
tremidade de cauda de bicho muro”, o “magnífico que tudo escalar cerca de cinquenta
feito cobra, cobra feito muro, pode”, em toda a sua bondade e cinco metros e ficar espe-
muro feito obstáculo e om- não tardará a satisfazer tal rando o sinal. Ao notar que
nipresença, qual navegador ensejo conferindo a cada um “a costa estava livre” a minha
incansável, Gil Eanes com o o seu cada qual. companheira fecharia a janela
seu cabo Bojador para dobrar! Talvez seja perfeccionis- e eu subiria rapidamente o
As tentativas de subida ta, detalhista, até um pouco que restava.
não colheram melhor sor- chato mas sempre me co- Finalmente o dia chegou e
te. Depressa colocaram em nheci muito observador. O eu estava preparado. Escalei, a
evidência o propósito dos meu olho treinado e mente janela fechou-se e então subi
nossos companheiros metáli- atenta depressa me revelaram os últimos metros. Triunfante,
cos. Ao invés do frio cortante as diferenças, a revolução cheguei ao topo e olhei para
na chegada ao cume de um silenciosa que ocorria no o lado. Nem sinal de “robot”.
qualquer Everest, os alpinistas topo fronteiriço. E a diferença Respirei fundo. Observei. Foi
desgraçados encontravam o estava no tempo, no aumento com estranheza que minha
calor de um raio quente ful- de tempo entre cada chegada vista encontrou o outro
minante ficando reduzidos a e cada paragem em frente eu, qual imagem minha no
menos nada naquela fracção a minha janela. O minuto e espelho que também subia,
de segundo. meio entre chegadas no fim que respirava fundo, que me
Só o mistério sobreviveu a de mês passado tinha-se alon- fitava. Ficamos examinando
todos estes fracassos. Mistério gado. No início da semana as nossas caras incrédulas,
mal recebido, mal acolhido, – estamos na segunda sema- incrédulos por um momento.
tornando-se adubo eficaz na do mês, já íamos em dois Olhámos para o horizonte de
para crescimento rápido da minutos. Nesse dia decidi: se edifícios em cada lado, para
especulação e crença igno- as coisas continuassem da as janelas em frente, para as
rante. Logo apareceram para mesma forma, ao fim de três Patrícias que acenavam. Então,
a festa os hábitos e rotinas meses teria todo o tempo que decidimos preservar nossa
pouco racionais, os dogmas, necessitava – trezentos segun- sanidade mental e descemos.
os pecados, as remissões e dos, cinco longos minutos. O que vimos, nunca contá-
auto flagelações, o poder dos Ninguém excepto Patrícia mos a ninguém. Hoje pensa-
poucos em função da dor- sabia das minhas intenções. mos certamente eu e ele (ou
mência dos muitos. Minha vizinha e confidente deveria dizer eu e eu) como
desde sempre, ela daria uma para desvendarmos um mis-
O dia de leitura e escrita tério encontrámos outro bem
é um desses hábitos que não ajuda essencial no projecto.
Nesses meses muni-me de maior e fugimos voltando
apela muito em prol de nosso rapidamente à realidade de
bom senso e sanidade mental. tudo o que era necessário e
preparei-me com rigor e afin- nossa toca.
Todos os anos naquele dia –
o último, a massa humana co. A estratégia era simples –

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Contos

NO ELEVADOR
Zulmar Lopes

Voltar para casa o de- humilhações e o desprezo late. Bastava o cheiro para
primia. A expectativa de, iam minando, dia após dia, nauseá-lo.
após um dia de trabalho o que ele e a esposa ainda Sua angústia diária tinha
ouvindo os berros ani- fingiam ser um casamento. início dentro do elevador
malescos de seu Djalma - Bancário! – exclamava do prédio onde morava.
tratando-o como um reles a esposa carregando no Acompanhava o lento pas-
vassalo; abrir a porta de desprezo, boca marrom sar da cabine pelo andares
casa e topar com a megera, de chocolate – Não pas- até chegar àquele palco seu
estendida no sofá, devoran- sas de um medíocre e vil tormento. “Lar, doce lar”,
do bombons e metida em bancário! E pensar que eu resmungava em tom irôni-
um enorme robe cor-de- podia estar casada com o co.
rosa era um desajuste para Deputado! Que triste sina a
qualquer mortal. Fosse só Naquele final de tarde
minha! tudo parecia caminhar
isto, ele até que poderia
tolerar, mas as cobranças, No decorrer dos anos, para a mesma rotina de
passou a ter nojo de choco- achincalhes promovidos

42 SAMIZDAT dezembro de 2008


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pela megera. Apertou o bo- desapontado pela ausência esperando o elevador, eles
tão de chamada do eleva- da sua admirada, ela surgiu aguardavam a oportuni-
dor e esperou que ele che- no hall social. Chorava. As dade de subirem sozinhos.
gasse até o térreo. Quando lágrimas inundavam seu Caso um ou outro estivesse
fechou a porta ouviu uma rosto, umedecendo os olhos com o seu companhei-
súplica. redondos. Não havia ainda ro, fingiam indiferença e
- Sobe? prestado atenção na beleza desconhecimento, um tanto
dos seus olhos castanhos. desapontados pela oportu-
Era uma voz adocica- Na verdade, o tempo da nidade perdida. Amavam-
da, mansa, suave, em tudo viagem era demasiadamen- se dentro da cabina, respi-
contrastante com o tom te curto para se prender a ração ofegante, um misto
estridente e marcial de sua detalhes. de prazer e medo de que os
esposa. Curioso e gentil, se- respectivos cônjuges pudes-
gurou a porta do elevador. - Posso ajudá-la, moça?
sem estar do outro lado da
Ela sorriu para ele em sinal Sacudiu negativamente a porta, no andar seguinte.
de agradecimento. Tratava- cabeça. Arrumavam-se rapidamen-
se não de uma mulher Ele ofereceu um lenço, te ante a aproximação do
exuberante, mas alguém prontamente aceito. O ele- andar onde ela morava. Era
que estava elegantemente vador chegou. automático, sem prelimi-
vestida e denotava alguma nares, sem nomes, curiosi-
sofisticação. Seus gestos - Sou feia?
http://www.flickr.com/photos/gideon/26472155/sizes/o/

dades sobre a vida de cada


eram refinados e um leve - Não.. imagina...
um. Nada os atrapalhava
perfume agradável exala- - Pareço uma pessoa naqueles breves momentos
va de sua pele. Saltou no sem atrativos? Me visto de paixão. Somente o ato
décimo andar, sacudindo como uma freira? de amor os consumia.
a cabeça em sinal de boa
noite. - Claro que não! Um dia, um blecaute
- Ele acha que sim – dis- tomou conta do Rio de
Desde aquela data, a Janeiro. A cidade foi in-
curta viagem de elevador se soluçando – que fazer
amor comigo é como beber vadida por um breu no
tornou-se o melhor mo- começo da noite. Tudo
mento do seu dia. A pre- água. Algo sem gosto, sem
graça. parou, inclusive o elevador
sença daquela mulher e onde os amantes estavam.
os quase monossilábicos - Ele deve ter dito isto
Os bombeiros, ao abrirem
cumprimentos pareciam da boca pra fora – disse
a cabina, parada entre dois
amenizar todo o peso do ele enquanto entravam no
andares, os encontraram ri-
cotidiano desprezível de elevador.
sonhos, nus e gargalhantes,
sua existência. Ansiava por Assim que a porta fe- suas roupas espalhadas por
aqueles minutos, chegava a chou, ela inesperadamente todo o elevador. Ela agora
fazer uma horinha no hall o agarrou, beijando-o com sabia que ele se chamava
social do prédio esperando volúpia. Entre o correr dos Mauro. Ela, Andréa. Tive-
que ela chegasse, forçando andares, amaram-se de pé, ram tempo.
a coincidência do encon- vestidos. Parcos minutos
tro. Entristecia-se caso ela de prazer até o elevador
não aparecesse e renovava alcançar o décimo andar.
a suas esperanças para o
Os encontros passaram a
dia seguinte.
ser diários. Quando ha-
Numa tarde, enquan- via uma ou mais pessoas
to esperava o elevador já

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Contos

DEZESSETE
Pedro Faria

44 SAMIZDAT dezembro de 2008


44
Ele precisava dar uma O que lhe despertou para
volta. a realidade foi a gota de san-
Saiu de casa com o passo gue no assento a seu lado.
apressado, e subiu no primei- Ele balançou a cabeça. Ti-
ro ônibus que parou. nha saído de casa justamente
Queria matar, destruir. para esfriar a cabeça, para
Estava irritado com tudo. deixar a violência contida
Achava que se alguém o dentro de seu quarto, numa
olhasse nos olhos naquele bolha. Mas ao que parecia,
momento, ele partiria para a bolha o havia seguido, e
cima para brigar. grudara em seu coração.

Com a intenção de se Puxou a cordinha, e saltou


acalmar, ele fechou os olhos no ponto. Colocou as mãos
e tentou se lembrar de coisas nos bolsos da jaqueta e olhou
boas. Porém, em cada ima- ao redor.
gem que lhe aparecia estava Não conseguiu conter
ela, e isso o fazia fechar com uma risada ao ver onde
mais força seus punhos, até estava.
que suas unhas mal apara- Tinha pegado justamen-
das lhe cortassem superfi- te o único ônibus que lhe
cialmente a pele áspera das deixava à porta da casa dela
mãos. e, como o bordão de alguma
Para ele, ela havia morri- piada cósmica sem graça, era
do. Ele cansara de despejar lá onde havia saltado.
seu carinho e amor sobre ela, Naquele momento, ele não
e não obter nada em retorno. conseguiu mais se segurar. A
Ele queria apenas o amor bolha de raiva tremia em seu
dela, um tom de satisfação peito, sua respiração tinha
na voz dela quando conver- acelerado.
sassem. Um pingo de feli-
cidade, de carinho, em seus Ele marchou até a casa
olhos, quando ela o visse. dela. Bateu vigorosamente na
porta.
Ele queria se sentir dese-
jado. E com ela, nunca tinha Quando ela abriu a porta,
conseguido. ele achou que iria desmaiar.
Era esse o efeito que ela
O ônibus seguia seu ca- fazia sobre ele: Perto dela, ele
minho enquanto ele olhava não era nada, era como um
para fora: As pessoas, que fragmento de um gigantesco
não passavam de borrões cenário construído para a
para ele, cuja existência não diversão dela, no qual ela era
lhe acrescentava em nada. Ele o centro de todas as ações, e
sentia ódio por elas, um ódio todos os diálogos eram sobre
que vem do ciúme, da inve- ela.
ja, da vaidade. Ele precisava
machucar alguém, ferir uma O olhar dela quando o viu
pessoa, fazê-la sentir como foi de confusão. Isso não foi
ele se sentia. o bastante para detê-lo.
Ele investiu para ela,
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fazendo-a cair sentada numa sionando o corpo dela contra dela.
poltrona. a poltrona, ele começou o vai Seu suor escorria sobre
Ela começou a gritar. e vem dentro dela. Ela cho- o corpo dela, e ele achava
rava, implorava para que pa- que ia desmaiar. Notou que
Após fechar a porta, ele se rasse, mas ele não se impor-
aproximou dela. estava muito fácil penetrá-
tava. Estava adorando aquilo. la. Mesmo que o corpo dela
“Não, agora você vai ficar Estava finalmente tomando o tivesse se ajustado, estava
sentada aí e me ouvir! Eu fiz que sabia ser seu de direito. muito fácil.
tudo para você, tudo mesmo. Sangue pingava no chão.
Ouvi seus lamentos, tratei de Olhou para baixo, e gritou.
suas feridas, enxuguei suas A posição estava ficando As nádegas dele lhe envol-
lágrimas. E você, nada!” desconfortável para ele. En- viam a barriga. Ele estava en-
tão, ele a segurou por baixo, trando nela, como ele sempre
Ele estava errático. Seus para levantar seu corpo na
olhos desfocados, como se quis. Estava se tornando parte
poltrona. dela, para sempre. Achou que
estivesse drogado.
Quando a mão dele tocou deveria estar feliz.
Ela tentou se levantar e no meio das coxas dela, uma
fugir, mas ele a segurou de Mas não estava. A úni-
surpresa: Ela estava enchar- ca coisa que sentia era um
bruços na poltrona. cada, seu mel lambuzando os medo paralisante.
“Eu vou fazer o que tenho dedos dele.
que fazer. Eu vim fazer a “Isso, agora sim, mais forte!
A puta estava gostando! Somos apenas eu e você ago-
cobrança”.
Esquecendo qualquer des- ra, amor.”
Havia uma estante atrás conforto que pudesse estar
da poltrona. Ele puxou seu Ele gritou, e algo o atingiu
sentindo, ele continuou mais no rosto.
cinto e prendeu as mãos forte.
acima da cabeça, amarrando Olhando bem, ele viu que
o cinto na estante. Aí, ela riu. era o chão. Estava caído em
Com seu joelho nas costas Ele parou. A risada dela seu quarto, o suor do pesade-
dela, ele tirou suas calças e não era apenas fora de lugar, lo lhe ensopava a camisa.
a cueca. Toda aquela briga o era horrível. Seu sangue con- Esfregando o rosto, ele
havia deixado excitado. gelou. se levantou. As imagens do
Arrancou a bermuda dela, “É só isso? Vamos, mais sonho iam e vinham em sua
e a calcinha. As nádegas dela forte! Vamos lá! Vai me dizer mente, e ele estava tonto com
estavam quentes, e ela cho- que já entrou tudo? É só isso a queda. A última coisa que
rava. mesmo? lembrava era de ter ido dei-
Você me enoja! Precisa tar com raiva.
Ele queria que ela não
gostasse. me pegar desprevenida, me Aí ele se lembrou dela, e
amarrar, para fazer o que deu um soco na parede.
Enfiou as mãos entre as não teria coragem. Você é
pernas dela. Ela chutava e Estava cansado dela em
um fraco. sua cabeça.
gritava.
Mais! Você começou agora Levantou-se. Daria um
Ele ignorou a vagina dela. você vai terminar.
Não, ali seria fácil demais. passeio.
Mais forte! Mais, mais!” Isso o acalmaria.
Então ele a penetrou no
orifício entre suas nádegas, Ele continuou se movendo, Sim.
de uma vez só. O grito dela a risada dela ecoando em sua
mente, suas palavras flutuan- Uma caminhada. Talvez
foi horrível. uma volta num ônibus.
do pela sala, ditas com uma
Com as duas mãos pres- voz gutural, que não era a E tudo ficaria bem.

46 SAMIZDAT dezembro de 2008


46
GOSTO REFINADO

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Pedro Faria

Eu sempre tive uma fanta- Congelei de medo, porém mum. Ele segurava com as
sia com as pernas dela. Não sabia que não tinha como duas mãos a perna esquerda
com os seios, com a boca ou ela ter me visto, e, além disso, dela, decepada na altura da
com a bunda. eu não tinha feito nenhum cintura, um machado san-
barulho. grento deitado no tapete
Além do mais, era sempre junto à cama. Ele a tinha
o mesmo sonho: O facão, Eu sabia que se desistisse lambuzado com algo, e esta-
o sangue, o pote de molho agora, eu nunca ficaria livre va arrancando com os dentes,
barbecue... dos sonhos. grandes pedaços da parte
Fico duro só de pensar. Então me dirigi de encon- carnuda da coxa.
tro ao som. A situação seria cômica; e
Acordei ontem de manhã
depois da, não sei, milésima Com o ouvido encostado de fato foi, por alguns se-
vez que sonhei com aquelas na porta, eu consegui ouvi- gundos, nós três nos olhando
pernas grossas dela. Tinha la, berrando e chorando, e com expressões de surpresa
sujado meus lençóis, e deci- gritando com uma voz mais estampadas em nossos rostos,
di que não agüentava mais. aguda do que eu pensei ser nossos olhos arregalados. Até
Esperei chegar a noite (só possível para um ser huma- que os gritos dela voltaram,
a antecipação me obrigou no. lavando a graça embora.
“liberar a tensão” cinco vezes Uma expressão de fúria
durante o dia), pus uma toca Assustado, chutei a porta
com força suficiente para tomou conta de minha face,
preta, peguei o facão que e eu o encurralei, meu facão
guardo com minhas ferra- arrancá-la das dobradiças, e
o que eu vi, eu nunca esque- em seu pescoço.
mentas no galpão e marchei
até a casa dela. cerei enquanto viver: “Mas o que é isso?”, gritei.

Todas as luzes estavam Ela estava deitada na cama, Seu olhar era o de um
apagadas, menos a do quarto o choro interrompido, subs- homem morto.
dela no segundo andar. Subi tituído por um olhar que era
na árvore e abri a janela do misto de dor e surpresa. “Você está usando mostar-
outro quarto. da?!”
Havia um homem de pé
Entrei, e assim que saí ao lado dela, um homem que E nós dois caímos na
para o corredor, ouvi um eu reconheci como sendo risada.
grito vindo de seu quarto. um vizinho nosso em co-

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Contos

DESCOBERTAS
Marcia Szajnbok

48 SAMIZDAT dezembro de 2008


48
Na primeira vez que
subiu aquela escadaria, de
mãos dadas com a mãe,
João sentiu medo. O lugar
lembrava uma casa mal-
assombrada, dessas que
aparecem nos filmes: pouca
luminosidade, portas altas,
a escada de madeira produ-
zindo estranhos ruídos sob
os pés. Depois de meses de-
sempregada, Bete finalmente
conseguira um trabalho:
faxineira numa escola de
música. Maestro Manfredo,
o dono do conservatório,
concordara com que Bete
levasse consigo o filho pe-
queno, desde que o menino
não atrapalhasse as aulas.
Foi assim que João chegou
ao universo da música: as-
sustado pelos fantasmas que
a velha casa evocava, pelo
tal do Maestro, que imagi-
nava ser um velho narigudo
cheio de verrugas e muito
bravo, e pela mãe – esta,
um perigo bem real quando
se zangava com ele. João
tinha apenas cinco anos,
e aparentava ainda menos
com sua baixa estatura e
magreza, as pernas finas, e
os dentes grandes e brancos
aparecendo demasiadamen-
te no contraste com a pele
escura.
À medida que os dias
passavam, entretanto, João
ia ficando mais à vontade.
Descobrira um modo de
passear despercebido pela
escola: tirava os sapatos, an-
dava de meias. Como todo
o chão era de madeira, o
garoto patinava nas tábuas
largas e, assim silencioso,

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percorria todas as salas de ritmo: Ouviu vozes no corredor
aula como que invisível. - La-á-Dó-Lá-Si-í-Dó-Ré- e passos que se aproxima-
No que devia ter sido ou- Si-Sol... João repetia men- vam. Apavorado, João cor-
trora um porão, havia um talmente essa linguagem reu a se esconder atrás da
pequeno anfiteatro, onde estranha e monossilábica. cortina de uma das janelas.
os alunos tinham aulas de Mesmo sem ter nenhuma Respirava devagar para que
canto com o Maestro. idéia do significado daquele ninguém notasse sua pre-
amontoado de sons, achava sença. E então, ouviu. Era
- Meninos, cantemos! O um som límpido, suave, um
coração que canta não co- bonito o grupo todo decla-
mando aquela ladainha em som que parecia falar-lhe,
nhece tristeza! – era sempre lindo. Pôs um só olho para
com esse bordão e a batuta uníssono.
fora e viu que, diante do
levantada, que ele dava iní- No entanto, o melhor es- móvel estranho, uma me-
cio às sessões de cantoria. tava no andar de cima. Era nina mexia na grande boca
Encolhido em alguma preciso vencer a escadaria aberta e, a seu lado, uma se-
cadeira da última fila, João rangente, mas sempre valia nhora lhe corrigia os erros.
ouvia. Visto assim de longe, à pena. Eram três salas, No final da aula, a professo-
o Maestro nem parecia tão duas menores e uma gran- ra indagou à aluna, se tinha
mau. Várias vezes em cada de, onde aconteciam as au- gostado de tocar num piano
aula, ele interrompia, os las de instrumentos: violão, de cauda. Era isso, então!
alunos recomeçavam. E João violino, violoncelo, flauta e Um piano de cauda!
ouvia. A partir de certo piano. Na sala maior, João
encontrou um tesouro. Depois que elas saíram,
momento, seria capaz de João se aproximou nova-
cantar junto, mas só o fazia Certa vez viu a porta mente. Encheu-se de cora-
em pensamento, a voz da aberta, ninguém lá dentro, gem, e encostou um dedi-
mãe com o indicador esti- e entrou. Achou curioso nho numa das teclas. Bem
cado em seu nariz, repetia- que, numa sala tão ampla, de leve e tão devagar, que
lhe na memória: - Nem um houvesse um só móvel no não se produziu nenhum
pio, entendeu bem? Nem centro. Ele era engraçado. som. Desde então, sem-
um pio, senão você entra na Enxergou ali uma cabeça pre que podia, o garoto se
piaba! João não sabia o que disforme: a boca ampla, punha em seu esconderijo
era uma piaba, mas pelo dentes brancos e pretos atrás da cortina e acompa-
tom de sua mãe, não devia num sorriso estático, a par- nhava as aulas no piano de
ser coisa boa. te de trás com um formato cauda. Do mesmo modo
No primeiro andar, havia irregular, como um crânio que acompanhava o solfejo
a secretaria e duas salas de com a tampa aberta. Não e o canto orfeônico, aqui
aula com carteiras e lousas. resistiu. Puxou para perto também ia aprendendo as
Ali os alunos aprendiam daquela abertura o banco músicas pela repetição. A
história da música, análi- que ficava diante da boca, diferença é que o piano
se, folclore, teoria musical, e espiou lá para dentro. não cantava, e por isso foi
solfejo, harmonia. Esse voca- Várias tramas de fios so- desenvolvendo um tipo de
bulário iniciático tornou-se brepostos uns aos outros, memória diferente, pura-
familiar para o menino. pinos metálicos, tiras de mente musical, a seqüência
O que ele mais gostava de feltro vermelho recobrin- melódica sem palavras, des-
acompanhar eram as aulas do pedaços de madeira de vinculada de significados.
de solfejo: as mãos ritma- diferentes formatos. Era um E quando se via sozinho na
das batendo nas mesinhas, quebra-cabeças incompre- sala, chegava perto e acari-
a fala acompanhando o ensível. ciava as teclas, maravilhado.

50 SAMIZDAT dezembro de 2008


50
Um dia, inadvertidamen- toque de novo. músicas são invenções de
te, apertou uma das teclas João tocou, apesar do alguém... mas esta aqui faz
com mais força do que o tremor que lhe agitava a parte de uma coleção de
habitual. O som produzi- mão. Sem saber o nome das invenções bem difíceis de
do assustou-o, e não pôde notas que apertava, repetiu se inventar! E os dois riram
conter uma gargalhada. a seqüência: Dó-Ré-Mi- muito.
Mas, cativado, repetiu o Fa-Re-Mi-Do-Sol. E parou. As lições se repetiram
toque. O que ouviu lhe Maestro Manfredo, então, por algum tempo, mas João
soou de algum modo fami- segurou gentilmente o indi- não se tornou concertista.
liar. Tateando, foi apertando cador do garoto e guiou-o Seu estudo de piano termi-
outras teclas, até que obteve até a próxima nota da série, nou quando a mãe conse-
um par, e os dois sons em outro Dó, uma oitava aci- guiu outro emprego, dois
seqüência evocaram um ma. Olharam-se nos olhos, anos depois. Ao se despedir
trecho melódico. A partir o menino esboçou um do Maestro, ele abriu uma
daí, esqueceu a regra ma- sorriso tímido, e encontrou gaveta cheia de partituras
terna do nenhum - pio e a continuação da melodia: antigas. Remexeu, procu-
despreocupou-se completa- Si-Dó-Ré-Sol-Lá-Si-Dó-Lá- rou, até que tirou de lá
mente. Depois do par, achou Si-Sol-Ré... E as horas foram umas folhinhas amareladas,
o terceiro som, e depois o passando. João aprendeu cheirando a guardado, onde
quarto, e assim sucessiva- que o banco podia subir até estava escrito “Johann Sebas-
mente ia recompondo, por que estivesse numa altura tian Bach: Inventio 1 C-Dur
tentativa e erro, um pedaço confortável, que aqueles BWV 772”. Preparando-se
de melodia muitas vezes sons se chamavam notas, para fazer uma dedicatória,
ouvida na clandestinidade que cada uma tinha o seu perguntou ao garoto:
de seu posto atrás da corti- nome, e que poderia apertar
na. Por instantes, o mundo - Como é mesmo seu
cada nota com um dos de- nome todo? João... ?
se resumiu àquela sala: o dos, fazendo a mão deslizar
menino, o piano, a música. ao invés de pular sobre o - João Sebastião Ribeiro,
Como se, para lá das pa- teclado. E descobriu, prin- respondeu o menino.
redes, nada mais existisse. cipalmente, que Maestro Maestro Manfredo, então,
Por estar assim, tão absorto, Manfredo não era um velho abraçou-o afetuosamente
demorou um pouco para cheio de verrugas e muito e abriu um sorriso largo,
compreender que vinha da bravo, e sim um professor que João nunca tinha visto
porta da sala a voz que lhe paciente que, acima de tudo, naquele rosto. Seu significa-
interrogava: divertia-se muito ensinando do, só compreendeu muitos
- O senhor pode me crianças. anos depois. Mas, aquela
explicar o que é que está - Você sabe como se cha- imagem e o calor daque-
fazendo aí? ma essa música que esta- le abraço guardou para
João, paralisado, não con- mos tocando? perguntou-lhe sempre, bem junto com a
seguia responder. Parado na às tantas o Maestro. João partitura, a dedicatória, e o
soleira, as mãos postas na não sabia. Achou muito es- amor pela música, sobretu-
cintura e o cenho carica- tranho quando lhe foi dito do pela música de Bach.
tamente franzido, estava o que aquela era uma Inven-
temido Maestro. ção a Duas Vozes. Como
- Toque de novo, pediu se lesse seus pensamentos,
ao menino. A música que Maestro Manfredo comple-
você estava dedilhando, tou: - É claro que todas as

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Contos
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Giselle Natsu Sato

Alice por trás


do espelho
Alice. Desde o nascimen- doavam... uma cachacinha e oferecia o
to, estava marcada: parto corpo gasto. Quando voltava
A menina cresceu, lenta e
complicado, icterícia e pul- para casa, enxotava os filhos:
desajeitada. Nunca chorava e
mão fraco:- É uma menina, - Tô cansada de sustentar
falava muito pouco. Passava
a senhora quer pegar um tantas bocas. Vão tentar a
os dias quieta, olhando as
pouquinho? sorte no asfalto. Vão embo-
paredes descascadas. Dessa
ra...
- Não. Tô com fome. forma, apanhava menos que
Enfermeira, eu quero comida. os irmãos. Eram surras diá- Um dia, Alice desceu a
Entendeu? rias e sem motivo. favela. Caminhou pelas ruas
sem rumo. As pessoas des-
- O bebê precisa ser ama- Foi crescendo feito bicho.
viavam, olhando sérias e des-
mentado. Ela é tão fraquinha, Sem escola, faminta, dispu-
confiadas. Ela não entendia.
precisa de cuidados... tando as migalhas e restos.
Andou a manhã inteira até
Com treze anos, aparentava
- Cê acha, mesmo? Dá chegar ao centro da cidade.
oito. A mãe não sabia quem
mamadeira pra ela. Quer prá
era o pai das crianças. Quan- Passou por uma grande
você?
do o filho mais velho sumiu, loja de brinquedos. Parou
- A senhora não trouxe deu graças aos céus e amal- diante da vitrine, admirando
nada pra criança vestir? diçoou os quatro restantes. as bonecas, os castelos e as
fadas. Tudo era lindo e di-
- Vocês não doam enxo- A mulher passava o dia
ferente. Desejou poder tocar
val pros pobres? Pelo menos, inteiro na birosca. Filava
alguma coisa, uma peque-

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nina, apenas uma daquelas desaparecido. Daniel, que a Em segundos, a correnteza
maravilhas, bastaria... mãe colocava no sinal ven- forte, tragou o corpinho,
dendo balas e chicletes. Alice arrastando-o para longe...
Então, viu seu reflexo.
gritou bem alto o nome do Alguns gritavam, apontan-
Nunca tinha parado para
irmão : - Alice, vem com a do a pequena que não se
olhar para si. A aparência
gente, não posso parar! debatia. Ninguém saiu do
desgrenhada, roupas puídas e
lugar, assistiram Alice sumir
encardidas. Sentiu vergonha - Pra onde vai?
lentamente...
e encolheu os ombros. Pro-
- Por aí, está tudo inunda-
curou andar pelos cantos das Enquanto deslizava nas
do. Anda logo, vem...
calçadas. Abaixou a cabeça, águas turvas, Alice recordou
lembrando a mãe chaman- - Não. Tenho medo. a vitrine onde se viu pela
do-a de lesada e ‘’fraca das primeira vez. Pensou nas coi-
idéias’’. - Vem Lice, eu te ajudo. sas bonitas e viu a si mesma
no meio de todas aquelas
Grossos pingos começa- - Não.
riquezas.
ram a cair, anunciando a
- Eu volto pra te buscar.
chuva forte. Discretamente, Rodeada de bonecas, o
Vá pra igreja. Lá é bem alto.
catou restos de comida no mundo além do reflexo...
lixo em frente à lanchone- Em poucos minutos, a Alice por trás do espelho.
te. O atendente ofereceu os confusão estava formada. Nem sentiu quando a morte
salgados murchos do fim do Trabalhadores recém saídos apagou seus sonhos.
dia: - Pegue e saia daqui, o dos escritórios tentavam
patrão não gosta que fique entrar nos estabelecimentos
na frente da loja. abertos. A multidão, deses-
perada, buscava abrigo ou
Comeu um pastel e guar-
tentava voltar aos edifícios
dou o resto na sacola plásti-
comerciais. Quem estava do
ca. O temporal formou rios
lado de dentro, não saía nem
de lama e sujeira. Os bueiros
deixava abrir as portas.
entupidos transbordavam
detritos e esgoto . As pessoas O bando desapareceu pe-
comentavam que era uma las vielas. A água não parava
enchente. Alice não entendia de subir e o povo acuado.
nada. Duas horas mais tarde, já
não havia para onde correr.
Foi quando viu o bando de
Todos disputavam o espaço
crianças. Vinham correndo
nos degraus mais altos da
pelo meio da rua, gritando
catedral. A escadaria estava
palavrões e ameaçando o
tomada por gente de todo
povo. Quase trinta delas,
tipo.
aparentando, no máximo
dez anos. Seguiam um garo- Alguém empurrou Alice
to mais forte que parecia o para fora do patamar. A me-
líder. nina caiu na água imunda,
batendo na altura do peito.
Alice reconheceu o irmão

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Tradução

O Conde Lucanor
Don Juan Manuel
tradução: Henry Alfred Bugalho

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Conto VII caminho, começou a pen- sejam realidade algum dia,
sar que venderia o mel e procura sempre que se
que, com o que lhe dessem, tratem de coisas razoáveis
O que aconteceu a uma mu- compraria um bocado de e não fantasias, ou imagi-
lher chamada senhora Truha- ovos, dos quais nasceriam nações duvidosas e vãs. E
na galinhas e que logo, com quando quiserdes iniciar al-
o dinheiro que lhe dessem gum negócio, não arrisqueis
pelas galinhas, compraria algo mui caro, cuja perda
Certa vez, Conde Lucanor ovelhas, e assim iria com- vos possa causar desgosto,
conversava com Patronio prando e vendendo, sempre com o intuito de obter um
deste modo: com lucro, até que se visse proveito baseado apenas na
— Patronio, um homem mais rica do que todas as imaginação.
me propôs algo e também suas vizinhas.
O que Patronio contou
me disse a forma como Logo pensou que, sendo agradou muito o conde, que
consegui-lo. Assegurou que tão rica, poderia arranjar agiu de acordo com a his-
tem tantas vantagens que, se um bom casamento a seus tória e, assim, se saiu muito
com a ajuda de Deus tudo filhos e filhas, e que iria bem.
ocorrer bem, seria para acompanhada pela rua por
mim de grande utilidade e genros e noras, e pensou E como Don Juan gos-
proveito, pois os benefícios também que todos comen- tou deste conto, escreveu-o
se unem uns aos outros, tariam sua boa sorte, pois neste livro e compôs estes
de tal forma que, no final, havia conseguido tantos versos:
seriam muito grandes. bens, mesmo que houvesse
Então, contou a Patronio nascido muito pobre.
Em realidades certas podeis confiar,
tudo que sabia. Após ouvi- Assim, pensando nisto,
lo, Patronio respondeu o começou a rir com muita Mas das fantasias deveis vos afastar.
conde: alegria por causa de sua
— Senhor Conde Lu- boa sorte, e rindo, rindo,
canor, sempre ouvi dizer deu um tapinha na pró-
que o prudente se atém às pria testa, o jarro caiu no
realidades e desdenha as chão e se rompeu em mil
fantasias, pois muitas vezes pedaços. Senhora Truhana,
a quem vive destas costuma quando viu o jarro quebra-
ocorrer o mesmo que se do e o mel derramado pelo
sucedeu à senhora Truhana. chão, começou a chorar e a
se lamentar amargamente,
O conde perguntou o porque havia perdido todas
que havia acontecido a ela. as riquezas que esperava
obter com o jarro, se este
— Senhor conde, disse não houvesse se quebrado.
Patronio, havia uma mulher Assim, porque pôs toda sua
que se chamava senhora confiança em fantasias, não
Truhana, que era mais po- pôde fazer nada do que tan-
bre do que rica, e que, indo to esperava e desejava.
um dia ao mercado, levava
um jarro de mel sobre a ca- Se quereis, senhor conde,
beça. Enquanto seguia pelo aquilo que dizeis e pensais

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Conto XIII fazia isto, o vento, que batia sos interesses. Mas se vos
em cheio em seus olhos, prejudica voluntariamente,
o fazia chorar. Ao ver isto, rompei com ele para que
O que aconteceu a um homem uma das perdizes, que es- vossos bens e vossa fama
que caçava perdizes tava presa na malha, come- não se vejam lesionados ou
çou a dizer a suas compa- prejudicados.
nheiras:
Outra vez, o Conde O conde viu que este
Lucanor conversava com — Olhem, amigas, o que era um bom conselho que
Patronio, seu conselheiro, e acontece a este homem! Patronio lhe dava, seguiu-o
lhe disse: Ainda que nos mate, olhem e tudo ficou bem.
como ele se condói por
— Patronio, alguns nobres nossa morte e, por isto, E vendo don Juan que
muito poderosos e outros chora! o conto era bom, ordenou
nem tanto, às vezes, cau- pô-lo neste livro e fez estes
sam danos a minhas terras Mas outra perdiz que versos:
ou a meus vassalos, mas, avoava por ali, mais velha e
quando nos encontramos, mais sábia do que a outra
A quem te faz mal, mesmo
eles me pedem desculpas, que havia caído na rede,
que seja para ti pesar,
dizendo-me que fizeram-no respondeu-lhe:
Busca sempre um modo para
obrigados pela necessida-
— Amiga, dou graças a poder dele se afastar.
de, muito a contragosto e
Deus porque me salvei da
sem poderem evitar. Como
rede e agora peço a Ele que
eu gostaria de saber o que
salves a mim e a todas mi-
devo fazer em tais circuns-
nhas amigas dum homem
tâncias, suplico-vos que me
que busca nossa morte,
deis vossa opinião sobre
mesmo que dê a entender
este assunto.
com lágrimas que muito se
— Senhor Conde Lucar- condói.
no, disse Patronio, o que
Vós, senhor Conde Luca-
haveis me contado, e sobre
nor, evitai sempre aqueles
o qual me pedis conselho,
que vos causam dano, mes-
parece-se muito com o que
mo que dêem a entender
ocorreu a um homem que
que sentem muito; mas se
caçava perdizes.
algum vos prejudica, sem
O conde lhe pediu que buscar vossa desonra, e se
contasse a história. o dano não for muito grave
para vós, se se trata duma
— Senhor conde, disse pessoa à qual deveis favores,
Patronio, havia um homem e que além disto foi forçado
que estendeu suas redes a isto pelas circunstâncias,
para caçar perdizes e, quan- eu vos aconselho que não
do já apanhado bastantes, o se importeis demais, mas
caçador voltou para junto deveis procurar que tal não
da rede onde estavam suas se repita tão freqüentemen-
presas. Na medida em que te que chegue a macular
as recolhia, tirava-as da vosso bom nome ou vos-
rede e as matava e,enquanto

56 SAMIZDAT dezembro de 2008


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Aos oito anos, perdeu os pais, sogra de Don Juan por seu tercei-
por isto, desde muito jovem, pôde ro casamento, fez com que o rei
dispor do amplo patrimônio de sua devolvesse a Don Juan seus bens
família. Aos doze anos, iniciando e honrarias em 1337, pondo fim à
uma atividade que o acompanharia inimizade, que se consolidou defini-
por toda a vida, participou na guerra tivamente com a autorização para o
para repelir o ataque dos mouros de casamento de Constanza e, até 1340,
Granada contra a Múrcia. quando ambos se aliaram contra os
Casou-se três vezes, escolhen- muçulmanos na batalha de Salado,
do suas esposas por conveniência tomando-lhes a cidade de Algeciras.
política e econômica e, quando teve Após estes acontecimentos, o
filhos, esforçou-se para desposá-los infante Don Juan Manuel deixou a
com pessoas pertencentes à realeza. vida política e se retirou para a Múr-
Don Juan Manuel se converteu cia, onde passou seus últimos anos
em um dos homens mais ricos e entregue à literatura. Orgulhoso de
poderosos de sua época e, além de suas obras, decidiu reuni-las todas
manter ele próprio um exército de num único volume, que desapareceu
mil cavaleiros, chegou a cunhar sua queimado num incêndio.
moeda própria por um tempo, assim
como faziam os reis.
O autor de “O Conde Lucanor”
dividiu seus esforços, durante toda
sua vida, entre suas atividades como
escritor e nobre cavaleiro. Ao seu
redor, houve certas críticas sobre
sua vocação literária, pois se pen-
sava que um nobre de tão alto pres-
tígio não deveria se dedicar a tais
Don Juan Manuel (1282-1348) atividades. O prazer que encontrava
nasceu no Castelo de Escalona, na na escrita e a utilidade que via nela
província de Toledo. Por ser filho para os outros o levaram a seguir
do Infante Don Manuel de Castela com sua atividade literária.
(Senhor de Escalona e de Peñafiel)
e de Dona Beatriz de Saboya, era Don Juan Manuel teve disputas
sobrinho do rei Alfonso X, o Sábio, constantes com seu rei. Na época, o
e neto de Fernando III, o Santo. trono de Castela esteve ocupado por
Herdou de seu pai o grande Senho- dois monarcas que até chegaram a
rio de Villena, recebendo os títulos traçar planos para matá-lo: Fernan-
de Príncipe, Senhor e Duque de do IV e Alfonso XI. No entanto, o
Villena. último buscou a fidelidade de Don
Juan Manuel ao pedir a mão de sua
Foi educado como um nobre, filha, Constanza. Finalmente, o rei
adestrado em artes como equitação, rejeitou o matrimônio já arranjado
caça e esgrima, aprendeu latim, e encarcerou a jovem no Castelo de
História, Direito e Teologia. Lite- Toro.
rariamente, sua formação incluiu a
leitura de diversos poemas clericais A luta entre o rei e Don Juan Ma-
(Livro de Alexandre, Livro de Apo- nuel se prolongou por uma década,
lônio...), os tratados de Raimundo e houve pelo menos duas ocasiões
Lúlio, a obra de Alfonso X (espe- em que este quase chegou a cair nas
cialmente, a História da Espanha), mãos do primeiro. O rei também se
vários livros doutrinais e coleções opôs ao transporte de Constanza a
de frases, provérbios e ditos de sá- Portugal para se casar com o infante
bios, traduzidos de línguas orientais, Don Pedro de Portugal.
ou do latim, para o castelhano (Cali- A necessidade de paz interna
la e Dimna, Sendebar...), etc. para enfrentar o rei de Marrocos e
a mediação de Dona Juana Núñez,

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Tradução

A Festa de São
Simão Esgaratujo
Ricardo Palma
tradução: Henry Alfred Bugalho

58 SAMIZDAT dezembro de 2008


58
Faustino Guerra cumpria a peruanos. repetisse. Por fim, Seu Fausti-
condição de soldado raso du- Apenas em Lampa não no fez sinal que iria falar.
rante a batalha de Ayacucho. houve manifestação alguma — Meus filhos — ele lhes
Assegurada a independência, de regozijo. Para os lampea- disse — tenho certeza de que
obteve licença definitiva e nos este foi um dia de tra- se recordam do rigor com
recolheu-se à província de balho, como qualquer outro que os tratei ontem, contra
seu nascimento, onde con- do ano, e os meninos foram, meu hábito. Tranqüilizem-se,
seguiu ser nomeado profes- como de costume, à escola. que só faço estas coisas uma
sor da escola do vilarejo de vez por ano. E vocês sabem
Lampa. Já havia passado do
meio-dia quando Seu Fasti- por quê? Sinceramente, filhos,
Certamente, o bom no mandou fechar a porta digam-me se souberem.
F­ austino não era um homem pra rua, dirigiu-se ao curral — Não, senhor professor
de letras; mas para desem- da casa, fê-los ficar em fila — responderam em coro os
penhar seu cargo e deixar e, chamando dois índios meninos.
os pais de família contentes, robustos que lhe serviam,
bastava-lhe saber ler media- — Pois vocês hão de saber
ordenou-lhes que agarrassem que ontem foi o dia do santo
namente, ter uma caligrafia os meninos. Do primeiro ao
regular e ensinar de cor a do libertador da pátria, e não
último, todos levaram uma tendo nenhuma outra manei-
doutrina cristã aos meninos. dezena de chicotadas, com as ra para festejar isto, já que
A escola estava situada na bermudas arriadas, aplicadas os lampeanos têm sido tão
rua Ancha, numa casa que, pela mão do professor. ingratos para com aquele que
na época, era propriedade do A gritaria foi ensurdece- os tornou gente, eu recorri ao
Estado e que hoje pertence à dora e houve pranto coletivo chicote. Assim, enquanto vo-
família Montesinos. por mais de hora. cês viverem, terão gravado na
Contra o costume geral Quando chegou o mo- memória a lembrança do dia
dos mestres daqueles tempos, mento de fechar a escola e de São Simão. Agora estudem
Seu Faustino pouco utilizava mandar os meninos para a sua lição e viva a pátria!
o látego, o que fez com que casa de seus pais, disse-lhes E a verdade é que os
fosse batizado com o apelido Seu Faustino: poucos que ainda vivem
de São Simão Esgaratujo. Ele daquele grupo de meninos se
o ostentava mais como um — Falem, pícaros godos,
como vocês contarão o que reúnem em Lampa em 28 de
sinal de autoridade do que outubro e celebram com um
como instrumento de castigo, acabou de acontecer! Cou-
reio vivo ao primeiro que banquete, no qual brindam
e era necessário que a falta por Bolívar, por Seu Faustino
cometida fosse muito grave eu descobrir que saiu a me
caluniar. Guerra e por São Simão Esga-
para que o professor apli- ratujo, o mais milagroso dos
casse um par de açoitadas, “Terá ficado louco?", santos em matéria de refres-
do tipo que nem tira sangue, perguntavam-se os pequenos; car a memória e esquentar as
nem deixa roxo. mas não contaram a suas partes posteriores.
Em 28 de outubro de famílias o ocorrido, se bem
1826, dia de São Simão e que as escoriações das chi-
Judas para ser mais exato, batadas os haviam deixado (1871)
grandes festejos foram cele- acabrunhados. Fonte: Tradições Peruanas,
brados nas principais cidades — Que bicho mordeu o http://www.cervantesvirtual.
do Peru. As autoridades esta- professor, que era tão manso com/
http://www.flickr.com/photos/govmilliken/1527337292/sizes/l/

vam empenhadas e manda- de temperamento, para distri-


ram oficialmente que o povo buir tão furioso açoitamento?
se alegrasse. Bolívar estava, Já descobriremos.
então, em todo seu apogeu,
No dia seguinte, os meni-
mesmo que seus planos de
nos chegaram à escola, não
vitaliciedade começassem a
sem recear que a sessão se
eliminar o afeto dos bons

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Ricardo Palma era filho de Pedro todo o mundo
Palma Castañeda e de dona hispanófono,
Guillermina Soriano Carrillo; que o acolhe
neto paterno de Juan de Dios como um dos
Palma e de Manuela Castañeda. escritores clás-
Nasceu em Lima em 7 de feve- sicos de prosa
reiro de 1833. Desde jovem teve mais acessível
envolvimento com a política junto do continente
a ala dos liberais, a qual o incitou americano. Foi
a participar em um malfada- membro corres-
do levante contra o presidente pondente de La
Ramón Castilla, que levou a seu Real Academia
desterro ao Chile por três anos. Española, La
A política o conduziu aos cargos Real Academia
de cônsul do Peru, senador por de la Historia e
Loreto e funcionário do Ministé- de la Academia
rio de Guerra e Marinha. Mas foi Peruana de la
nas Letras a atividade em que se Lengua, assim
destacou. Desde jovem começou a como mem-
escrever poesias e peças teatrais, bro honorário
inclusive a realizar colaborações da Hispanic
em jornais do país. Teve grande Society de Nova
presença na imprensa satírica, na York. Em 1881,
qual foi um prolífico colunista e participou da
um dos baluartes da sátira política defesa de Mira-
peruana do século XIX. Começou flores durante
colaborando na folha satírica El a batalha de
Burro, para ser posteriormente Miraflores de
um dos principais redatores de La 15 de janeiros
Campana. Mais adiante, fundou a de 1881, no Forte Nº 2, sob o
revista La Broma. comando do coronel Ramón Ri-
beyro, quando as tropas invasoras
Também foi um colaborador assí- incendiaram a cidade, incluindo
duo de publicações sérias como El sua casa. Em 1883, foi nomeado
Mercurio, El Correo, La Patria, diretor e restaurador da Biblioteca
El Liberal, Revista del Pacífico e Nacional do Peru.
Revista de Sud América. Também
atuou com correspondente de Casou-se com Cristina Roman
periódicos estrangeiros durante a Olivier, com quem teve vários
Guerra do Pacífico. filhos. Seu filho, Clemente Palma,
foi um escritor de destaque, autor
Em 1872, foi publicada a primeira de contos fantásticos, geralmente
série de sua principal obra: “Tra- de terror, sob influência de Edgar
dições Peruana”. Allan Poe, e sua filha, Angélica
Palma, foi uma das fundadoras
Ao longo de sua vida, publicou
do movimento feminista peruano.
artigos históricos, trabalhos de
Morreu no distrito limenho de
investigação como Anais da Inqui-
Miraflores, em 1919.
sição de Lima e inclusive estudos
lexicográficos sobre a variedade
peruana do espanhol.

O êxito conquistado por suas


Tradições e sua incansável capaci-
dade intelectual o converteram em
uma figura reconhecida em vida,
não apenas em seu país, como em

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60
Teoria Literária

Volmar Camargo Junior

Enchendo Lingüística:
Ficção sob pressão
Durante o mês de outu- quisaram sobre a vida e os da normalidade. Ao menos,

http://www.flickr.com/photos/thecaucas/2262788821/sizes/l/
bro, no tópico “Enchendo métodos de trabalho e os da normalidade que com-
Lingüística” da comunidade hábitos de escrita de escri- partilham os escritores.
da Oficina de Escritores, tores conhecidos, aclama- O resultado dessa pes-
discutimos assunto da dos, considerados literatos quisa foi tão interessante
dificuldade de escrever sob ou best-sellers. que me senti na obrigação
alguma forma de pressão: Nessa pesquisa, pudemos de dividi-lo com o leitor
de um prazo, de um tema, comparar os hábitos dos da SAMIZDAT. Como foi
de um gênero. “grandes” com os nossos, produzido a várias mãos,
Escrever sob pressão, confirmarmos se organiza- brasileiras e lusitanas, esse
assim como executar qual- ção e método influenciam texto pode apresentar al-
quer outra atividade, pode ou não a atividade dos gumas diferenças de grafia
ser tanto um estímulo escritores. E também, para entre um trecho e outro
quanto um agente promotor avaliarmos se nossas manias da biografia dos autores.
de mal-estar — do descon- e nossas crises de desespero Por hora, ainda não temos
forto ao pânico. Os ofici- (quando temos que produ- a reforma ortográfica a nos
neiros que participaram da zir contos dentro de um pressionar, mas essa tam-
discussão, todos confiden- tema, um gênero e dispo- bém não tarda.
ciaram como se relacionam mos de poucos dias para Boa leitura
com essas pressões. Como entregá-los ao organizador
uma tarefa, os colegas pes- da atividade...) estão dentro

www.samizdat-pt.blogspot.com 61
Jorge Luis Borges (1899 - 1986) é um au-
tor que sempre se considerou um preguiçoso.
Numa biografia que li dele, ele afirmava que não
escrevia romances porque tinha preguiça, demo-
rava muito tempo para serem escritos.
http://accel96.mettre-put-idata.over-blog.com/0/00/35/40/portraits2/jorge-luis-borges.jpg

Uma citação que demonstra esta concepção


(inclusive a preguiça) pode ser encontrada no
prólogo de “Ficções”:

“Desvarío laborioso y empobrecedor el de


componer vastos libros; el de explayar en quinien-
tas páginas una idea. cuya perfecta exposición
oral cabe en pocos minutos. Mejor procedimiento
es simular que esos libros ya existen y ofrecer un
resumen, un comentario. (...) Más razonable,más
inepto, más haragán, he preferido la escritura de
notas sobre libros imaginarios.”

Graciliano Ramos (1892 – 1953) era muito meticuloso em


sua escrita. Ele costumava cortar todas as arestas e só considera-
va seus livros prontos quando estivesse completamente livres de
excessos. Durante os anos em que ficou preso, Gracialiano Ra-
mos escreveu num diário tudo que lhe ocorria. No entanto, tais
notas se extraviaram, o que para o autor foi um bom sinal, pois
livrou “Memórias do Cárcere” de informações desnecessárias:

“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de


Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada,
molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o
pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensa-
boam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma
molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje
ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem
até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo
isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal,
para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A pa-
lavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra
foi feita para dizer.”

http://www.passado.com.br/ntc/fotos/graciliano_ramos.jpg

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Mark Twain (1835 – 1910) era um escritor obcecado pela
escrita. Escrevia muito e escrevia sempre.

“É um hábito meu manter em processo de construção quatro ou


cinco livros duma só vez, e a cada verão adicionar uma fileira de
tijolos em dois ou três deles, mas eu não posso prever qual destes
dois ou três vingará. Demora uns sete anos para concluir um livro
através deste método, mas mesmo assim é um bom método: permite
que o público descanse.”

(http://www.w2mw.com/marktwain.htm)

http://lifememory.com/upload/marktwain/images/459009eeec08e50f873c73142db6d33a.jpg
Guimarães Rosa (1908 – 1967) talvez seja o mais importan-
te escritor brasileiro desde Machado de Assis. Com uma escrita
própria e poderosa, ele criou alguns mitos literários. Dividia o
tempo entre o ofício diplomático e a escrita. Morreu poucos
dias após ter tomado posse duma cadeira na ABL. Dizem que
era um forte candidato ao Nobel.

“Quando escrevo, não penso na literatura: penso em capturar


coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à
minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se
confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade ín-
tima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica,
mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em
relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de
http://www.vermelho.org.br/museu/principios/figu86/rosa1.jpg

bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola


ou Moçambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro
tanto às esferas populares com às eruditas, tanto à cidade como
ao campo. Se certas palvras belíssimas como’gramado’,’aloprar’,
pertencem à gíria brasileira, ou como’ malga’, ‘azinhaga’,‘azenha’ só
correm em Portugal - será essa razão suficiente para que eu as não
empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as pala-
vras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso
é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sempre com o
maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para
mim, é como um acto religioso. E prova está em que tenho montes
de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei
muitas boaidas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis
preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse
ouvido - até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um
pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que
me impus não pode ser só realizada por mim.”

www.samizdat-pt.blogspot.com 63
http://bibesjcp.no.sapo.pt/jcp.jpg

José Cardoso Pires (1925 – 1998), escritor


com uma vintena de obras publicadas e uma
dúzia de prémios literários, dedicava-se exclusi-
vamente à escrita nos últimos anos de vida.

Numa sua entrevista de há vinte anos, ele


dizia que escrevia uma página por dia, todos os
dias.

A ideia é simples e tem muita força, tanto


que eu a ainda a lembro. Pensei, então, que
escrever uma página num dia era coisa acessí-
vel e que, por esse método, ao fim de meio ano
podia ter um romance completo.

Clarice Lispector (1920-1977), em uma


entrevista para a TV Cultura (janeiro de 1977,
publicada na Revista Shalom), quando questio-
nada sobre a periodicidade de sua produção
literária, Clarice Lispector disse:

“Eu não sou uma profissional, eu só escrevo


quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço
questão de continuar sendo amadora. Profissional
é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo
de escrever. Ou então com o outro, em relação
ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma
profissional... para manter minha liberdade.
Tenho períodos de produzir intensamente e tenho
períodos-hiatos em que a vida fica intolerável.”

Segundo a autora, a questão da liberdade


de escrever quando se quer e assim produzir
material legítimo, isento de pressões mercado-
lógicas.
A obrigação é vista como algo que inibe a
beleza dos textos e torna o escritor um ope-
rário que teria em mãos, ao invés de peças de
ferro, caneta e papel (máquina de escrever/PC).
Isso significa que o ato de escrever com quali-
dade está ligado muito mais a um passatempo
sem compromissos do que a um ofício regular,
linear e imposto.

http://viniciussanfelice.files.wordpress.com/2008/08/clarice.jpg

64 SAMIZDAT dezembro de 2008


64
José Rodrigues dos Santos (1964) é um jornalista e escritor
português best-seller. Tem, publicados, seis romances e alguns
ensaios. Faz questão de frisar que os seus livros são baseados
em informação científica actualizada, o que o obriga a extensas
pesquisas e a consultas a especialistas das matérias aborda-
das. Publica, em média, um romance por ano, com uma média
superior a 500 páginas, cada, e uma média de vendas superior a
100.000 exemplares, cada. Wow!
O curioso é que a actividade principal dele é jornalismo; é,
há muitos anos, um dos três principais pivots do principal jor-
nal da emissora estatal de televisão, e já foi o director de infor-
mação da estação, durante vários anos.
Um colega comum, intrigado com uma tão extraordinária
gestão do tempo, que a sua, como para a maioria de nós, mal
dá para se manter lavado e escanhoado, em certa oportunidade,
perguntou-lhe:
– Zé, quando é que tu arranjas tempo para escrever livros?
A resposta foi de uma simplicidade desarmante:
http://fotoseimagens.blogs.sapo.pt/arquivo/820b775dbc084030.jpg

– De manhã.

António Lobo Antunes (1942) é o escritor português vivo


mais conhecido, a seguir a ­Saramago.
Publicou uma vintena de romances, desde 1979, tendo sido
distinguido com vários prémios nacionais e internacionais. Mé-
dico psiquiatra, dedica-se em exclusivo à escrita, actualmente,

“Fico parvo quando vejo escritores que escrevem 30 ou 40 páginas


por dia. Quando escrevo uma, é uma sorte.”
(Jornal de Notícias, 20.01.2008)

“Quando estou a escrever não existe nada a não ser o livro. Isso é
muito bom.”

“...ao acabar-se um dia de trabalho, no dia seguinte o livro inflecte. Às vezes dá-me vontade de continuar
a escrever por mais horas. O que eu faço, então, é parar, se possível, a meio de uma frase. Se possível, a meio
de uma palavra. Para tentar não torcer muito o rumo ao livro, para usar a sua expressão.”

“Tinha contado fazer esta página em quatro ou cinco dias e fi-la em dois. Isto para mim é uma coisa
muito rara.”

“Tenho que me impor uma data para começar. Fui ver ao calendário: 25 de Fevereiro. Não sei porquê.
Não é uma data que tenha, para mim, nada de especial. Calhava a uma segunda-feira. Normalmente, o que
eu fazia antigamente era esperar que houvesse um mês em que o dia um fosse a uma segunda-feira, para
começar. Era uma forma de atrasar o começo do livro.”

“Foi sempre a mesma coisa. Eu não escrevia por estar motivado. Escrevia porque tinha que escrever. Não
era uma questão de destino, nem de obrigação.”
(Revista Ler – nº 69 - Maio de 2008. http://www.ala.nletras.com/entrevistas/LER0508.htm)

www.samizdat-pt.blogspot.com 65
Fernando Pessoa (1888 – 1935), sobre o próprio processo de escrita:

“Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –,


custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro!
Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V.
quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe
que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia
escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular
(não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e
abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um
vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu
soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma parti-
da ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada,
e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade.
Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que final-
mente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda
alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre
que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja
natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca
poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E
o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde
logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera
em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim
que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei
noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva
Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de
Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a
reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e
subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o
Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque
nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis,
http://www.fpessoa.com.ar/imagens/pessoan.

surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever,


sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode
com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade.
Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e
as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o
menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece
que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre
Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou
jpg

nada na matéria.”
(trecho duma carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro)

66 SAMIZDAT dezembro de 2008


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Kafka (1883 – 1934) era um autor atormentado pelo pas-
sado, pela opressora presença paterna e por uma constituição
física doentia. A escrita para ele era um exercício de abnegação
e martírio. Mesmo após a rotina dioturna no escritório, Kafka
atravessava a noite escrevendo.

http://bressonianas.zip.net/images/FranzKafka.jpg
“É fácil reconhecer a concentração de todas minhas forças na
escrita. Quando ficou claro ao meu organismo que a escrita era a
mais produtiva direção para o meu ser, tudo se apressou em tal di-
reção e esvaziou toda as outras habilidades que eram direcionadas
para as alegrias do sexo, da alimentação, da bebida, da reflexão
filosófica e, acima de tudo, da música. Atrofiei-me em todas estas di-
reções. Isto foi necessário porque a totalidade das minhas forças era
tão tênue que apenas coletivamente elas poderiam servir, mesmo
que a meio caminho, ao propósito da escrita.”
(Diários, 1912)

Marguerite Duras (1914 – 1996):

“A escrita é o desconhecido. Antes de escrever não sabemos


nada acerca do que vamos escrever. Com toda a lucidez.
É o desconhecido de nós mesmos, da nossa cabeça, do nosso
corpo. Não é sequer uma reflexão, escrever é uma espécie de facul-
http://troll-urbano.weblog.com.pt/arquivo/duras.jpg

dade que temos ao lado da nossa pessoa, paralelamente a ela, de


uma outra pessoa que aparece e que avança, invisível, dotada de
pensamento, de cólera, e que, por vezes, pelos seus próprios factos,
está em perigo de perder a vida.
Se soubéssemos alguma coisa do que vamos escrever, antes de o
fazer, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não valeria a pena.
Escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos se escrevêsse-
mos - só o sabemos depois - antes, é a interrogação mais perigosa
que nos podemos fazer. Mas é também a mais corrente.”
(“Écrire”)

José Saramago:
http://verblogando.files.wordpress.com/2008/04/josesaramago.jpg

“Nunca andei à procura de ideias para os meus livros. As ideias


vêm ter comigo, algumas não servem, outras talvez, outras são como
um amor à primeira vista.
Não sistematizo, não faço planos, não escrevo 30 páginas para
as converter depois em 300. Os meus livros crescem naturalmente,
tal como uma árvore cresce. Quando a árvore atinge o tamanho
próprio, deixa de crescer. É muito simples, como vê.”

(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI16184-15220-
,00-DEI+A+PROCURA+DE+IDEIAS.html)

www.samizdat-pt.blogspot.com 67
Honoré de Balzac (1799 – 1850) era tão
doido que chegava a escrever por dias a fio.
Sua rotina diária era absurda, como escrever
por quinze horas ininterruptas, regadas a muito
café. Além disso, Balzac sofria de um irrepa-
rável perfeccionismo. Diz-se que fazia pré-
impressões dos livros – ao ponto de ele próprio
adquirir uma pequena gráfica - ocupando
apenas o espaço central da página. Assim, fazia
inúmeras correções, e tornava a imprimir. No
caso do Balzac, cuja obra é monumental, sofria
a pressão de si mesmo.

(http://en.wikipedia.org/wiki/Balzac)

O nipo-brasileiro Ryoki Inoue entrou para


o Guiness Book por ser o escritor mais prolí-
fico do mundo: segundo ele, produz hoje uma
média de três romances por ano, mas chegou a
produzir três por dia para cumprir as exigên-
cias das editoras. Para citar um exemplo:

http://www.gruposummus.com.br/images/imprensa/Ryoki2.jpg
“Ao ver Ryoki no Guinness Book, Matt Moffett,
jornalista americano do Wall Street Journal, teve
sua curiosidade despertada para o processo de
criação do escritor, querendo ver pessoalmente
para crer, como alguém poderia produzir his-
tórias de sucesso em tão pouco tempo. Assim,
lançou um desafio ao escritor e aportou em São
José dos Campos (onde Ryoki morava na época),
no final de janeiro de 1996. Uma semana depois,
Moffett contou como nasceu o livro de Ryoki
Inoue - Seqüestro Fast Food, elaborado em uma
noite, mais precisamente das 23h30 às 4h - num
dos jornais mais famosos do mundo.”
(http://www.ryoki.com.br/biografia.htm)

Pesquisa realizada por:


Henry Alfred Bugalho
http://www.flickr.com/photos/intherough/2871369963/sizes/o/

Joaquim Bispo
Léo Borges
Maria de Fátima Santos
Volmar Camargo Junior

68 SAMIZDAT dezembro de 2008


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ficina

No mês de novembro, foi lançado o A­ udiobook com


­contos de membros da Oficina da E-TL.

O CD foi produzido por Alian Moroz.

Conteúdo

1 - "Vovô Caneco", de Alian Moroz

2 - "O Menino Binário", de Carlos Barros

3 - "Coleção de Botões", de Giselle Sato

4 - "Noite Estrelada", de Guilherme Rodrigues

5 - "A Vingança de Bento Julião", de Henry Alfred


­Bugalho

6 - "Os Ratos", de Joaquim Bispo

7 - "Esmeralda, Jade e Rubi", de José Espírito Santo

8 - "Fissuras Íntimas", de Leo Borges

9 - "A Palhinha", de Maria de Fátima Santos

10 - "A Última Revolta de Jesus Cristo", de Rogers


Silva

11 - "Com Carinho, Isolda", de Volmar Camargo Junior

As faixas do audiobook podem ser baixadas


­gratuitamente no enredeço abaixo:

http://oficinaeditora.org/2008/11/29/audiobook-da-oficina/

www.samizdat-pt.blogspot.com 69
Teoria Literária

A Tese na literatu
Henry Alfred Bugalho
henrybugalho@gmail.com

70 SAMIZDAT dezembro de 2008


70
Todo texto defende uma
tese.

ura Quando afirmamos isto,


não nos referimos apenas a
textos acadêmicos, ou teóri-
cos, mas a todo e qualquer
texto, incluindo o texto
literário.

Antes de tudo, devemos


“A opção entre um texto
explicar o que se entende
panfletário ou um com por “tese”. Thesis é uma pala-
tese implícita nunca é vra grega derivada do verbo
descompromissada. A tithemi, cujo sentido nada
abordagem dependerá do mais é do que “colocar em
público para o qual a obra se algum lugar, apresentar algo”.
destina, da proposta do autor Este é praticamente o mes-
e também da própria tese mo sentido da palavra latina
propositio, ou proposição,
defendida.”
em português.

A tese, ou a proposição, é
Charles Thévenin: La
aquilo que é posto diante dos
prise de la Bastille, 1793
olhos do leitor, aquilo que o
Paris, Musée Carnavalet autor deseja apresentar.
(P.572)
Numa carta de amor entre
namorados, a tese é provar
os sentimentos amorosos
dum para o outro; num texto
teórico universitário, a tese é
a demonstração e comprova-
ção duma hipótese; em qual-
quer texto, existe uma tese,
uma idéia a ser defendida,
mesmo que ela esteja diluída
e pareça ser inexistente.

Na Literatura, a tese costu-


ma transparecer de duas ma-
neiras mais comuns: explici-
tamente, quando a proposta
do texto é convencer o leitor
a aceitar a tese, ou implicita-

www.samizdat-pt.blogspot.com 71
mente, quando o texto esti- tina. Victor Hugo se opu- mos um personagem sofren-
mula o leitor a concluir, por nha à pena capital e tanto do por causa da expectativa
si só, qual é a tese. nesta obra como em outras, da execução.
ele defenderá este ideal. No
Já no caso duma obra na
entanto, o que diferencia “O
qual a tese esteja implícita,
A Literatura Panfletária Último Dia dum Condenado
o autor geralmente tenta
à Morte” de “Os Miseráveis” é
falsear a tese defendida, ou
exatamente a opção do autor
apresenta uma tese contrá-
em, na primeira obra, tornar
A narrativa literária que ria que será, no decorrer da
a tese evidente, isto é, o repú-
defende explicitamente uma narrativa, refutada.
dio à pena de morte.
tese e que utiliza todos os
recursos necessários para Podemos utilizar outra
Como dissemos anterior-
persuadir o leitor de sua obra de Hugo como exemplo:
mente, esta escolha do autor
veracidade é conhecida por em “Os Miseráveis” a tese ini-
delimita o leitor que acolherá
“panfletária”. cial parece ser a de que “um
o texto, alguns concordarão
criminoso nunca se recupera,
com ela, outros discordarão
A literatura panfletária nunca mais pode ser reinse-
e, aquele que estiver indeciso,
não possui orientação po- rido na sociedade”.
poderá ser convencido pelos
lítica específica, pode tanto
argumentos, ou se constran- Como Hugo introduz esta
defender ideais esquerdis-
gerá por causa da tentativa falsa tese?
tas quanto de direita, pode
do autor em manipulá-lo.
ser tão reacionária quanto
Jean Valjean é libertado da
revolucionária, tão anárquica
prisão, mas como ele é um
quanto conservadora.
ex-condenado, ele é obrigado
A Tese Implícita
O “panfleto” não diz res- a carregar um passaporte
peito às idéias que estão pre- amarelo, o que faz com que
sentes numa obra literária, ele seja estigmatizado pela
Uma narrativa literária
mas ao modo como elas são sociedade. Nem teto para
também pode apresentar a
apresentadas. O texto panfle- dormir ele consegue encon-
sua tese sem evidenciá-la.
tário não esconde a que veio, trar.
não mascara seus objetivos. Na verdade, a Literatu-
No entanto, um bispo o
ra panfletária aborda uma
A Literatura panfletária abriga em sua casa. Naquela
tese sob a mesma ótica dum
atrai os correligionários da mesma noite, Jean Valjean
texto teórico. A tese precisa
tese defendida, ao mesmo resolve roubar a casa de seu
ser demonstrada, para tanto,
tempo em que repele quem anfitrião, ou seja, a tese pare-
apresenta-se casos nos quais
a ela se opõem. Não aceita cia ser: “Jean Valjean (e, por
ela pode ser aplicada. A
meio termo. extensão, todos os demais
ficção situa então a tese num
ex-condenados) sempre será
Um exemplo é “O Últi- caso ficcional, que através do
um criminoso”.
mo Dia dum Condenado enredo visa comprovar a tese
à Morte” de Victor Hugo. que a motiva. Retornando ao Mas o protagonista é
Nesta obra, acompanhamos exemplo da obra de Hugo, capturado e reconduzido à
um prisioneiro pouco antes para provarmos que a pena presença do bispo, que, ao
de sua execução na guilho- de morte é cruel, apresenta- invés de acusar Jean e enviá-

72 SAMIZDAT dezembro de 2008


72
lo novamente para a prisão, acredita ser extraordinário. cuja tese esteja disfarçada.
mente para a polícia, dizendo No entanto, quando ele assas-
Entretanto, a História da
que os bens roubados eram, sina sua senhoria, ele começa
Literatura costuma destacar
na verdade, presentes seus a constatar que talvez es-
os autores que conseguem
para Jean. tivesse equivocado, que ele
defender suas idéias sem
também faz parte dos ho-
Esta atitude do bispo é dogmatismo, sem proselitis-
mens ordinários. Em Dostoie-
um ato de perdão que Jean mo. Via de regra, uma obra
vsky, quase sempre a tese é a
jamais poderia imaginar. de Arte é aquela capaz de to-
antítese do que ele apresenta
Daquele ponto em diante, ele car, de algum modo, todas as
no início de suas obras.
decide que será um homem pessoas, concordem elas ou
correto. Todo o restante do não com a tese apresentada.
enredo trata de luta de Jean
Tese Explícita ou Implí- E, para muitos leitores,
para apagar seu passado e
cita? desvendar os mistérios,
provar que ele está mudado.
desencavar os porões duma
obra literária para desvelar
Todo texto defende uma seu sentido é uma grande
Victor Hugo compreende
tese. Contudo, a abordagem recompensa. Prêmio comu-
que esta é a maneira mais
desta tese faz parte do plane- mente recusado por obras
eficaz para abordar tal tese.
jamento duma obra literária. panfletárias.
Através dos atos de Jean
O autor deve saber, de ante-
Valjean, o autor acaba condu-
mão, qual será a tese defendi-
zindo o leitor à conclusão de
da, e como ele fará para que
que um homem pode mudar,
o leitor a perceba.
que um criminoso pode se
recuperar. A opção entre um texto
panfletário ou um com tese
Através da negação, atra-
implícita nunca é descom-
vés de caminhos tortuosos, o
promissada. A abordagem
autor pode conduzir o leitor
dependerá do público para
até a tese defendida.
o qual a obra se destina, da
Outro bom exemplo é a proposta do autor e também
obra-prima de Dostoievesky, da própria tese defendida.
“Crime e Castigo”. Nela
Não é tão simples estabe-
acompanhamos o perso-
lecermos uma hierarquia de
nagem Raskolnikov, um
valores e considerarmos as
estudante russo que elabora
obras panfletárias como pio-
uma teoria: “as pessoas estão
res do que aquelas com tese
divididas em duas categorias:
implícita. Na verdade, para
as ordinárias, para quais as
alguns leitores, apenas uma
leis e normas morais valem, e
obra com objetivo explícito
as extraordinárias, que estão
é compreendida; nem todos
acima do bem e do mal”.
possuem o refinamento para
Raskolnikov acredita fazer
ler as entrelinhas dum texto
parte da segunda categoria,

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Crônica

Giselle Natsu Sato

Erótico ou Pornográfico:
eis a questão

http://www.flickr.com/photos/ericasimone/302258138/sizes/o/

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74
O próximo SAMIZDAT Paixão, amor e desejo. A que define o que é erótico:
especial, apresentará o tema necessidade fundamental de quem o produz ou quem
erótico. Quando o assunto é algum contato. O erotismo observa?
sexo, alguns termos são as- sugere a presença, ainda
sociados automaticamente. que virtual de compartilhar Definitivamente, erotismo
o prazer. Mesmo em pensa- e pornografia caminham
Pornografia e erotismo mento, não foge da idéia de lado a lado. Estão presentes
surgem como correntes registrar um parceiro. em nossas vidas, entram
antagônicas. Para entender, em nossas casas através dos
montei um mosaico e com Há textos conceituando canais de comunicação. São
muito cuidado, tentei encai- essas duas palavras à parti- usados em propagandas,
xar as peças. O assunto é cipação ativa. Como se na mexem com o imaginário e
delicado, fascinante e polê- pornografia, o estímulo à estão disponíveis.
mico. participação fosse direto e
de forma objetiva. No eró- Sem hipocrisia e falsos
Pornografia tem origem tico esse convite é subli- moralismos, acredito que
grega, significa inscrita da minar, o que condiz com o somos responsáveis por
prostituição. Atualmente é conceito de que o porno- nossas escolhas. E limites.
a representação, por quais- gráfico expõe e o erótico
quer meios, destinada a faz desejar.
instigar a libido. O aspecto
moral é bastante pesado. A literatura erótica tra-
Está associada, aos maiores duz a inspiração em for-
problemas sociais do mun- ma de desejo. O sexo está
do moderno. inserido na narrativa, po-
dendo ou não ser o assunto
Crimes contra menores, principal. A imaginação em
estímulo de violência e possibilidades múltiplas,
abusos sexuais. Neste ponto, conduz ao mundo íntimo.
fica bem claro a diferen- Velado, oculto e silencioso.
ça moral e legal das duas
vertentes. O que não ocorre nos
textos pornográficos. O
Porém, ao falar de erotis- contexto deste tipo de leitu-
mo as coisas mudam. Usa- ra é o sexo explícito. Sem a
mos um tom mais brando, menor preocupação em ser
sofisticado e com ares de vulgar ou obsceno. É cru,
superioridade. Erotismo é realista e sem meio-termo.
referente a amor, paixão e Tem urgência e o ‘tesão’’ é
desejo ardente. Prazer pelo imediato!
prazer.
O erotismo é algo que
Apesar da intensidade, pode não ser pornográfi-
é associado a um concei- co, porém a pornografia é
to suave e permissivo. No necessariamente erótica.
mundo das artes, a linha Temos outro ponto que
entre pornografia e erotis- ainda hoje, e por muito
mo é muito tênue. Como tempo, tornará esses concei-
diferenciar a pornografia e tos nebulosos e pessoais. O
o erotismo?

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Crônica

A vida continua
Joaquim Bispo

Os cemitérios de Lisboa outros, discretos, a exaltar Uma deambulação por


são lindíssimos. Têm ave- a humildade devida ao um silencioso cemitério
nidas bordejadas de «pala- novo estado. Alguns são lisboeta é, quase de certeza,
cetes» e esculturas, muitas autênticas esculturas arqui- mais tranquilizante e cultu-
flores e algum silêncio. tecturais. É nos cemitérios, ralmente mais estimulante
Ostentam uma arquitectura também, que existe, tal- que um passeio por muitos
que, ao longo dos tempos, vez, a maior concentração dos jardins da cidade.
tem reflectido a arquitec- de escultura por hectare.
tura dos vivos. E melhor Alguma, de grande qua- Estes cemitérios têm rit-
preservada que a da cidade lidade. Além de chorosos mos próprios. Cada talhão
dos vivos. É que, nessa cida- anjos, escondendo a face, de enterramento passa por
de dos mortos, não é neces- encontram-se, também, uma fase de alvoroço, de
sário deitar jazigos abaixo muitas alegorias da dor e abertura de covas e mon-
para construir agências de da perda, adequadamente tões de coroas de flores,
bancos e de companhias de acompanhadas de fustes de que progride, durante umas
seguros. Ali, não abundam colunas partidos ou troncos poucos semanas ou me-
os clientes financeiros. de árvore decepados preco- ses, em linhas paralelas ao
cemente. Lápides verticais longo do talhão. Aos pou-
Vêem-se jazigos de todos ostentam delicados rendi- cos, as linhas revoltas vão
os estilos: neo-gótico, neo- lhados florais em alto-rele- evoluindo para um aspecto
manuelino, neo-clássico, vo ou símbolos adequados arrumado, pincelado de
casa portuguesa. Uns, impo- à profissão e ao estatuto do lajes de mármore e floreiras
nentes, a reflectir a impor- finado. multicoloridas. Chega um
tância do defunto em vida, momento em que todo o ta-

76 SAMIZDAT dezembro de 2008


76
lhão se arrumou e mantém uma paisagem desoladora «obrigação» e o ritual. Por
um aspecto muito estável semeada de crateras rectan- entre o bulício respeitoso
durante cinco anos, com os gulares por entre as campas dos que levam um rumo
mármores alinhados, entre- intactas cujos ocupantes se determinado, é possível
meados por um ou outro atrasaram a atingir a de- ouvir pelas alamedas:
monte de terra dos defuntos composição total. Passado
de menos posses, cada um algum tempo, tudo reco- – Anda cá, o 1622 deve
com a sua floreira. Às vezes, meça e o talhão recobra a ser para aqui!
com uma ou outra placa de «vida» florida – se de vida – O João não disse onde
mármore com inscrições do podemos falar –, para mais é? Ele já cá veio uma vez!
tipo: «Grand-maman – Je ne um ciclo de enterramentos.
t’oublierais jamais». – Sim, mas já foi há mui-
Aos Domingos, os ciga- to tempo!
Muitas vezes, esses ta- nos instalam-se todo o dia
lhões, de meio hectare de no cemitério a honrar os Há pessoas de todas as
área, estão circunscritos seus mortos. Pintaram de idades encavalitadas nas
por um muro quadriláte- branco a moldura da gaveta escadas metálicas que os
ro de gavetas de cimento onde está o caixão do fa- cemitérios disponibilizam
embutidas nas quais, mais miliar falecido e o chão do para aceder às posições
tarde, serão depositados os passeio por baixo da gaveta. mais elevadas. Nessa oca-
pequenos caixões contendo Mantêm-se por ali a limpar sião, são sobretudo os mu-
apenas os ossos lavados e a gaveta, o caixão, o pano ros repletos de gavetas que
desinfectados dos corpos que o tapa e depois ficam registam uma primavera
que tenham atingido o simplesmente sentados, de fora de época.
estado necessário ao levan- porta da gaveta aberta com
Pode ler-se, aqui e ali,
tamento. várias fotografias do de-
nas portinhas: «O tempo
funto expostas e jarrinhas
Estar sozinho num desses passa – A saudade aumen-
de flores sobre naperons
talhões a observar a ex- ta». Ou outra mentirinha
brancos.
tensão florida agitada pela parecida, crida com toda a
aragem e a ouvir o concer- Os outros vão menos ao sinceridade. O tempo passa
to da vibração das centenas cemitério. E tanto menos e tudo faz passar, felizmen-
de pequenas floreiras me- quanto o inexorável apaga- te. Ninguém conseguiria
tálicas, faz-nos sentir num mento da dor que a pas- viver, sempre, com a dor do
universo distinto do nosso. sagem do tempo provoca. primeiro dia; ninguém con-
São várzeas artificiais, «pra- As floreiras deixam de ter seguiria aguentar, ano após
dos» de flores naturais de flores naturais e ficam-se ano, as saudades sentidas no
caules cortados, e de flores pelas de plástico que «du- primeiro.
de plástico, inseridas em ram mais tempo». Mesmo
floreiras, numa densidade essas são, às vezes, levadas
e numa multiplicidade de pelo vento. No fim do Ve-
cores que nem a Natureza rão, a maioria das floreiras
produz. está vazia.

Depois, passados os Perto do Dia de Finados


cinco anos da curtimenta, – 2 de Novembro –, os ce-
os talhões começam a ser mitérios enchem-se, numa
escalavrados pelos levanta- romaria de mãos carrega-
mentos avulsos, que deixam das de flores. Cumpre-se a

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Crônica

Nossa história
abandonada
Maristela Scheuer Deves

http://www.flickr.com/photos/billselak/1667312476/sizes/l/

78 SAMIZDAT dezembro de 2008


78
Lendo uma reportagem, adorava ir ao banheiro na rias; as bijouterias antigas;
tempos atrás, fiquei pen- casa da vovó, onde além do as estranhas fotos mostran-
sando como é estranho que modelo adulto havia um do noivas vestidas de negro.
nós, muitas vezes, simples- para crianças...
mente apaguemos da mente Hoje nada disso existe
fatos marcantes do nosso Em vez de videogame, a mais. Nem as brincadeiras,
passado – do nosso, mesmo, brincadeira era mesmo na nem os banheiros ou chu-
não o de nossos pais ou rua, no pátio, na mata atrás veiros improvisados, nem
avós. No embalo das novas da casa do vovô, no telhado os museus de faz-de-conta,
tecnologias, nem sabemos da casa vizinha, de onde nem os avós. Até da me-
mais manusear uma máqui- passávamos o dia pulando mória eles somem, às vezes.
na de escrever, sobre a qual e subindo, com a falta de Mas, quando lembro, dá
nos debruçamos horas e medo dos pequenos. A TV uma saudade...
horas para aprender datilo- também era companhia,
grafia. E com o advento do mas os desenhos e pro-
ar-condicionado, ainda sabe- gramas pareciam Ter mais
ríamos fazer um leque para sentido. Sítio do Pica-Pau
espantar o calor, como nos Amarelo, Clubinho Gaúcha
tempos de criança? Zero Hora... Bons sonhos
eles inspiraram!
A vida doméstica foi o
que mais mudou desde os Outras brincadeiras
meus primeiros anos – e que me fascinavam ti-
olhe que tenho só 33. Hoje, nham, também, a ver com
me parece impossível que, o passado – dessa vez, dos
na infância, eu tenha bebi- meus antepassados. Adora-
do água puxada com balde va fuçar no girau da casa
de um poço junto de casa. do vovô Jacó, descobrindo
Ou, mais estranho ainda, livros e objetos antigos. E
que os banhos não eram todos aqueles quadros nas
de chuveiro elétrico, mas paredes da velha casa em
sim de chuveiro de lata, estilo enxaimel? E o grande
uma espécie de balde com relógio sobre duas portas
chuveirinho adaptado no fechadas, atrás das quais,
qual despejávamos água segundo a vovó Leduína, se
aquecida. As torneiras só escondia o “Christkind”? Na
vieram bem depois. No casa dos outros avós, Gui-
lugar de vaso sanitário, até lherme e Linda, a atração
os meus quatro, cinco anos, era o galpão, onde estavam
usávamos os “toaletes” de as quinquilharias – o baú
madeira, construídos em dos bisavós e tataravós, que
cima de poços-negros. E eu deu origem a várias histó-

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Poesia

LABORATÓRIO POÉTICO
INDRISO Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

O ser definitivo O pior dos deuses


O tempo é o menos óbvios dos deuses
O ser definitivo
Ilude-nos com isso de passado e futuro
Tal homem e bicho
E ri de nossos medos.
Será finito.

A esperança é a única entre os deuses


Etéreo, incorpóreo
Capaz de sofrer conosco
Crescerá como quiser
Mas ri de nossos medos.
E quando quiser, morrerá.

De todos eles, ainda pior é o amor.


Será como os sonhos

Faz o tempo e a esperança parecerem amadores.


Partindo sem ser lembrado.

O sangue negro
As almas são negras
As dores são negras
Negros amores são.

Os sangues são negros


Os filhos dos homens são negros
Negras são todas as mães O poço
Encontrei há tempos um poço

http://www.flickr.com/photos/thomashobbs/94336626/sizes/o/
Da mesma negra massa somos Onde havia de mim idêntico,
Mesmo que inverso, um outro.
Todos negros irmãos.

Do fundo, com rancor autêntico,


Encarou-me aquele eu imerso
Impondo que fosse em seu encontro.

Entre a borda e a água ficou suspenso

O olhar que lá deixei cair dentro.

80 SAMIZDAT dezembro de 2008


80
URBANIDADE
Carlos Alberto Barros

Se a cidade eu escrevesse,
Desse jeito, não faria.
Mudaria suas vias,
Para a morte não achá-las.
Não mais sangue: vinho tinto
Nos seus cantos, suas valas.
Em suas praças, seus recintos,
Só o amor como interesse.

Se a cidade eu rabiscasse,
Muita coisa censurava:
Empregada feita escrava;
Mãe sem ter onde parir;
O menino andando roto;
Dia-a-dia sem porvir...
O acordar seria outro:
Sol sorrindo em cada face!

Se a cidade eu colorisse,
Transformava todo prédio.
E na casa entregue ao tédio,
Pintaria multicores.
Edifício arranha-céu,
De minhas mãos, teria flores,
Feito um grande carrossel,
Pr’a acolher as meninices.

Se a cidade, um dia, eu fosse,


Com seus bares, padarias,
Um desejo só teria:
De, com zelo, ser gerido.
E quem quer que nessa gana
Descrevesse o colorido,
Não deixasse a face urbana
Mascarar-me a alma doce.

www.samizdat-pt.blogspot.com 81
ficina

A Oficina Editora é uma utopia, um não-


lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como umas
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão c­ ultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
http://oficinaeditora.org/ a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

82 SAMIZDAT dezembro de 2008


82
IZ
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M
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B R E O S AU TO R E S D A
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SAMIZDAT
SOBRE OS AUT
ORES DA

SAMIZDAT
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
s
erto Barro s-
Carlos Alb e nordestino
s, desenhi
, fi l h o d or m a d o ,
Paulistano plástico f
d e s e m p r e , artista o fi s s i o nal como
ta des a v ida pr
Come ç o u s u u seu ras-
escritor. t ã o , já deixo
, de s d e e n Culturais,
educador e l a s e Centros -
tro por ON
G’s , E s c o e pedagógi
a b a l h o s a rtísticos u ê n c i a
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para p u b l i
il.com
ador@hotma
carloseduc pot.com
nome.blogs
http://des

Dênis Moura é paulistano de pia, cearence de


mar e poeta de amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto
o ciberespaço, mais com bits de imaginação que com
telescópios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e a
http://bonfireblaze.files.wordpress.com/2007/12/grafiti_wall.jpg

igualdade, com um giz na mão e uma pistola na outra. É


Tecnólogo a sonhar com Telemática social, com a demo-
cracia participativa eletrônica, onde o povo eleja menos
e decida mais. Publica estes dias sua primeira obra, um
Romance de Ficção Científica, e deixa engavetadas suas
apunhaladas poesias. É feito de bits, links e teia pra que
não desmaterialize, o clique, o blogue e o leia!

www.samizdat-pt.blogspot.com 83
83
Giselle Sato
Giselle Sato é autora de Meninas Malvadas, A pequena
bailarina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca. Estudou
Belas Artes, Psicologia e foi comissária de bordo. Gosta
de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que
chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um
eficiente panorama da sociedade em que vivemos.

gisellenatsusato@gmail.com

Guilherme Rodrigues
Estudante Letras na
Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde
sempre morou. Nutre
grande paixão por Línguas,
Literatura e Lingüística,
áreas em que se dedica
cada vez mais.

o
Henry Alfred Bugalh
a pela UFPR, com
É formado em Filosofi ra e
pecialista em Literatu
ênfase em Estética. Es as
atro romances e de du
História. Autor de qu
.
coletâneas de contos
Nova York, com sua
Mora, atualmente, em
sua cachorrinha.
esposa Denise e Bia,
.com
henrybugalho@gmail
www.maosdevaca.com

Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão,
xadrezista e pintor amador,
licenciado recente em His-
tória da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita,
em Lisboa.

José Espírito Santo


ra e pós
Informático com licenciatu
de Ciências da
graduação na Faculdade
bo a, tra balha há largos
Universidade de Lis
sultoria, sendo
anos em formação e con
Dados, Sistemas
especialista em Bases de
e Middleware de
de Gestão Transaccional
la escrita surgiu
“Messaging ”. A paixão pe
ano de 2007
recentemente, tendo no
ços” (contos) e
produzido os livros “Esbo
(poesia). Vive
“Onde termina esta praia” erca, uma pequena cidade
um pouco a norte de
em Po rtu gal em Alv
84 com a família
SAMIZDAT dezembro de 2008
84 Lis bo a. jjsanto@gmail.com
.blogspot.com/
http://www.riodeescrita
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Facul-
dade de Medicina da Univer-
sidade de São Paulo, trabalha
como psiquiatra e psicanalista.
Apaixonada por literatura e lín-
guas estrangeiras, lê sempre que Pedro Faria
pode e brinca de escrever de vez Estuda Matemática na Univer-
em quando. Paulistana convicta, sidade Estadual do Rio de Janeiro,
lo.
vive desde sempre em São Pau músico amador e escritor quando
dá na telha. Nascido e criado no
marciasz@hotmail.com Rio.

punksterbass@hotmail.com
Maria de Fátima Santos
http://civilizadoselvagem.blogspot.com/
Nasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde
viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licencia-
da em Física tem sido professora de Física e Química.
Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pe-
quenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama
“meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.
blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na
escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar
que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Maristela Scheuer Deves

Volmar Camargo Ju
nior é gaúcho. Form
em Letras pela Unive ado
rsidade de Cruz Alta,
leciona por sua próp nã o
ria vontade. Entrou na
em 2004, e desde en ECT
tão já morou em meia
de “Pereirópolis” pelo dúzia
Rio Grande. Atualm
vive com a esposa Na en te
tascha em Canela, na
Gaúcha. Dividem o ap Serra
artamento com Marie,
uma gata voluntario
sa e cínica.

v.camargo.junior@gm
http://recantodasletra ail.com
s.uol.com.br/autores/v
cj

Zulmar Lopes -
ca. Formado em jorna
Zulmar Lopes é cario lha
de Gama Filho, traba
lismo pela Universida ov in cia na e
prensa. Alma pr
como assessor de im m en-
contra-se provisoria
coração suburbano, en irro
olita Copacabana, ba
te exilado na cosmop es
personagens e situaçõ
fonte de inspiração de ra fu gir
ntos. Escreve pa
que compõem seus co
do marasmo. www.samizdat-pt.blogspot.com 85
Também nesta edição,
textos de

Carlos Alberto Barros Marcia Szajnbok

Dênis Moura Maria de Fátima Santos

Giselle Natsu Sato Maristela Scheuer Deves

Guilherme Rodrigues Pedro Faria

Henry Alfred Bugalho Volmar Camargo Junior

Joaquim Bispo Zulmar Lopes

José Espírito Santo

86 SAMIZDAT dezembro de 2008


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