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A REPRESENTACAO DA LINGUAGEM E O PROCESSO DE ALFABETIZACAO Emilia Ferreiro Do Deportamento de Pesquisas Educacionss, Centro de Pesquisas e de Estudos Avancados 4 Instituto Politecnico Nacional. México. “Treduete de Hordcio Gonzales EEE RESUMO [A autora analiza a importincia de se considerar por um lado 0 fexerta como representagio ‘da linguagem (@ no como céigo ide trantorigfo grifica de unidedes sonoras) ¢ por outro lado {2 erianga que aprende como um sujeite ativo que interage de forma produtiva com 0 objeto do seu conhecimento. Discute como $6 2 partir dessa parspectiva — e no a partir de novos métador, materiait ou teste de prontidgo ~ se poderia entre. tar sobre nows bases o problema de alfabtizagio inicial, SUMMARY ‘The author ansiyzet the importance of considering on one hand written language a a ropresentation of oral languoge (and not at 2 code for graphic transcription of zound units, and on the other hand the leafning child as an active subject {thot interacts ina productive way with the object of Knowledge. ‘She discusses how only from this perspective — and not from fnew methods, materials or reading readiness tests ~ one could fee the problem of child literacy on a new bass. —————— — Cad. Pesq., Sao Paulo (62): 7-17, fev. 1985 7 E recente @ tomada de consciéncia sobre a impor- tancia da alfabetizacZo inicial como a Gnica solugdo real Para 0 problema da alfabetizagZo remediativa (de adoles- centes e adultos) Tradicionalmente, a alfabetizagSo inicial & consi- derada em fungS0 da relacdo entre o método utilizado © o estado de “maturidade" ou de “prontido” da crian- ‘64. 05 dois polos do processo de aprendizagem (quem ensina e quem aprende) tém sido caracterizados sem que se leve em conta o terceiro elemento da relagSo: a natu: reza do objeto de conhecimento envolvendo esta apren- dizagem. Tentaremos demonstrar de que maneira este ‘objeto de conhecimento intervém no process, néo como uma entidade nica mas como uma tr/ade: temos, Por um lado, o sistema de representacSo alfabética da linguagem, com suas caracterfstices especiticas!; por ‘outro lado, as concepg5es que tanto os que aprendem {as criangas) como 0s que ensinam (0s professores) tém sobre este objeto. A ESCRITA COMO SISTEMA DE REPRESENTAGAO A escrita pode ser concebida de duas formes muito diferentes e conforme 0 modo de consideré-la 2 conseqiiéncias pedagogicas mudam drasticamente, A escrita pode ser considerada como uma representa: ‘680 da linguagem ou como um cédigo de transcrigfo gréfica das unidades sonoras. Tratemos de precisar em ue consistem as diferencas. A construgdo de qualquer sistema de representago envolve um processo de diferenciaglo dos elementos relagbes reconhecidas no objeto a ser apresentado e uma selego daqueles elementos e relagbes que sero retidos ha representagdo. Uma representago X nfo é igual & realidade R_ que representa (se assim for, néo seria uma representaco mas uma outra instancia de A). Portanto, se um sistema X é uma representago adequada de certa realidade R, reune duas condigdes aparentemente contra: ditérias; «) X possui algumas das propriedades e relagdes proprias aR; ') X exclui algumas das propriedades e relagbes préprias ar © vinculo entre X e R pode ser de tipo analégico ou totalmente arbitrério. Por exemplo, se os elementos de R so formas, distincias ¢ cores, X pode conservar essas propriedades e representar formas por formas, dis- ‘taneias por distincias e cores por cores. E 0 que acon. ‘tece no caso dos mapas modernos: a costa nfo ¢ uma linha mas a linha do mapa conserva as relagBes de proxi midade entre dois pontos quaisquer, situados nessa cos: ta; a8 diferencas de altura do relevo no se exprimem ‘necestariamente por diferencas de coloragio em R, mas podem se exprimir por diferencas de cores em X; eto, Embora um mapa seja basicamente um sistema de repre. sentago analégico, contém também elementos arbitrd- Flos; a8 fronteiras politicas podem se indicar por uma série de pontos, por uma linha continua ou por qualquer outro recurso; as cidades ndo so formas circulares nem quadredas e, no entanto, s8o estas duas formas geomé: tricas as que habitualmente representa — na escala do ‘mapa de um pais ~ as cidades?; eto. A construgio de um sistema de representagio X ‘adequado 2 R é um problema completamente diferente 8 dda construgio de sistemas de representacio alternativas (Xx, Xa, Xa...) construidos a partir de um X original Reservamos a expresso codificar para a construgio des. ses sistemas alternativos. A transcri alfabeto em codigo telegrético, a transcrigo dos digitos em cddigo binério computacional, a producéo de cédigos secretos para uso militar, etc., so todos exemplos de cconstruglo de cédigos de transcrico alternativa basea- dos em uma representacdo jd constituida (0 sistema alfa Dético para a linguagem ou 0 sistema ideogrético para os nuimeros), A diferenga essencial é a seguinte: no caso da codi- Ficag#o tanto os elementos como as relapses jf esto ‘pré-determinados; 0 novo cédigo ndo faz seno encontrar uma representaofo diferente para os mesmos elementos @ as mesmas relagSes. No caso da criapto de ume repre- sentago nem os elementos nem as relapSes estdo pré-de- terminadas. Por exemplo, na transcrigfo da escrita em ‘codigo Morse todas as configuragdes gréficas que caracte- rizam as letras se convertem em seqincias de pontos ‘tragos, mas a cada letra do primeiro sistema corresponde uma configuragio diferente de pontos e tracos, em cor- espondéncia bi-unfvoca. Ndo aparecem “letras novas”” nem se omitem distingdes anteriores. Ao contrério, a construgfo de uma primeira forma de representagdo adequada costuma ser um longo processo histérico, até se obter uma forma final de uso coletivo. ‘A invengio da escrita foi um processo histérico de ‘construpZo de um sistema de representacSo, nfo um pro- cesso de codificaggo. Uma vez construido, poder-seia pensar que o sistema de representacdo € aprendido pelos Novos usuérios como um sistema de codificagSo. Entre- tanto, no é assim. No caso dos dois sistemas envolvidos Ro inicio de escolarizagdo (0 sistema de representacdo dos ntimeros e o sistema de representagfo de linguagem) as dificuldades que as criancas enfrentam sfo dificulda- des conceituais semethantes as da construgdo do sistema por isso pode-se dizer, em ambos os casos, que a crian- a re:inventa esses sistemas. Bem entendido: nfo se trata de que as criancas reinventem as letras nem os nimeros ‘mas que, para poderem se servir desses elementos como elementos de um sistema, devem compreender seu pro: ‘08880 de construcdo e suas regras de producdo, o que co- oca 0 problema epistemolégico fundamental: qual € a natureza da relacdo entre o real e a sua representagio? No caso particular da linguagem escrita, a natureza complexa do signo lingastico torna dificil a escolha dos armetros privilegiados na representaco. A partir dos trabalhos definidores de Ferdinand de Seussure estamos habituados @ conceber o signo lingifstico camo a unigo. indissoldvel de um significante com um significado, mas ‘do avaliamos suficientemente 0 que isto pressupée para 1 Trataremos aqui exclusivemente do sistema alfabétion de [As diferencas em nimerot de habitentes dae populagSes, ou ra importéncie politica des mesma, pode se exprimir por diferencas de forma tals como quadrados ve circulot, ou ‘endo por variagdes de tamanho dentro’ da mesma forma Neste caso s8 restabelecr © analégico no interior do arbi trdri, Cad. Pesq. (52) fev. 1985 2 construcdo da escrita como sistema de representacto. E 0 caréter bifésico do signo lingiifstico, a natureza com- plexa que ele tem e a rolacdo de referéncia o que esta em jogo. Porque, 0 que 2 escrita realmente representa? Por ‘acaso representa diferencas nos significados? Ou diferen. {688 nos significados com relacdo & propriedade dos re ferentes? Representa por acaso diferencas entre signi ficantes? Ou diferencas entre os significantes com rela £0 205 significados? ‘AS escritas de tipo alfabético (tanto quanto as, escritas sildbicas) poderiam ser caracterizadas como sistemas de representago cujo intuito original — & primordial — 6 representar as diferencas entre os signi ficantes. Ao contrério, as escritas de tipo ideogréfico oderiam ser caracterizadas como sistemas de repre- sentaeSo cuja intenedo primeira — ou primordial — representar diferengas nos significados. No. entanto, também se pode afirmar que nenhum sistema de escrita ‘conseguiu representar de maneira equilibrada a natureza bifésica do signo lingUistico. Apesar de que alguns deles (como o sistema alfabético) privilegiam a representacdo de diferencas entre os significantes, e que outros (como (08 ideogréficos) privilegiam a representacio de diferencas ‘nos ssignificados, nenhum deles @ “puro”: os sistemas alfabéticos incluem — através da utilizagfo de recursos ortogréficos — componentes ideogréficos (Blanche-Ben- veniste e Chervel, 1974), tanto quanto os sistema ideo gréficos (ou logogréficos) incluem componentes fonéti- os (Cohen, 1958 e Gelb, 1976} A distingdo que estabelecemos entre sistema de codificagio e sistema de representago nfo 6 apenas terminolégica. Suas conseqUéncias para a a¢do alfabel zadora marcam uma nitida linha diviséria. Aa conce: bermos a escrita como um cédigo de transcricfo que converte as unidades sonoras em unidades gréficas, coloca-se em primeiro plano a discriminaggo perceptiva nas modalidades envolvidas (visual e auditiva). Os pro- ‘gramas de preparacéo para a leitura ¢ a escrita que deri- vam desta conceposo centram-se, assim, na exercitacdo da discriminagao, sem se questionarem jamais sobre a natureza das unidades utilizadas. A linguagem, como tal, € colocada de certa forma “entre parénteses”, ou melhor, reduzida a uma série de sons (contrastes sonoros a nivel do significante). O problema é que, a0 dissociar © significante sonoro do significado, destruimos o signo lingiiistico. O pressuposto que existe por detrds destas praticas 6 quase que transparente: se ndo hi dificuldades ara discriminar entre duas formas visuais proximas, ‘nem entre duas formas auditivas proximas, nem também para desenhé-las, no deveria existir dificuldade para ‘aprender a ler, jé que se trata de uma simples transcri¢do do sonoro para um cédigo visual Mas se se concebe a aprendizagem da I{ngua escrita ‘como e compreenséo do modo de construggo de um sistema de representacZo, o problema se coloca em ter mos completamente diferentes. Embora se saiba falar adequadamente, e se fagam todas as discriminagdes per- ‘ceptivas aparentemente necessérias, isso no resolve 0 problema central: compreender a natureza desse sistema de representagio. Isto significa, por exemplo, compreen: der por que alguns elementos essenciais da Iingua oral (a entonacio, entre outros) no sfo retidos na represen: taco; porque todas as palavras sfo tratadas como equi valentes na representacdo, apesar de pertencerem a “lasses” diferentes; porque se ignoram as semelhancas no significado e se privilegiam as semethancas sonoras; Porque se introduzem diferencas na representaco por ‘conta das semethancas conceituais, ete A conseqliencia altima desta dicotomia se exprime fem termos ainda mais draméticos: se a escrita 6 concebi da como um cédigo de transcrigo, sua aprendizagem é cconcebida como a aquisicdo de uma técnica; se a escrita & concebida como um sistema de representacio, sua aprendizagem se converte na apropriacdo de um novo ‘objeto de conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem cconceitual. AS CONCEPGOES DAS CRIANGAS A RESPEITO DO SISTEMA DE ESCRITA. Os indicadores mais claros das exploracdes que as criancas realizam para compreender a natureza da escrita sfo suas produges esponténeas, entendendo como tal {a que nio so 0 resultado de uma cépia {imediata ou posterior), Quando uma crianga escreve tal como acredita que poderia ou deveria escrever certo conjunto de palavras', esté nos oferecendo um valiossimo docu ‘mento que necessita sor interpretado para poder ser ava- liado. Essas escritas infantis tem sido consideradas, dis- plicentemente, como garatujas, “puro jogo", o resultado de fazer ‘como se” soubesse escrever. Aprender a lé-las — isto 6, a interpreté-las — & um longo aprendizado que requer uma atitude tebrica definida. Se pensarmos que a crianga aprende s6 quando & submetida a um ensino ‘temético, e que @ sua ignoréncia esté garantida até que receba tal tipo de ensino, nada poderemos enxergar. Mas se pensarmos que as oriangas sdo seres que ignoram que deve pedir permisso para comecar a aprender, talvez ‘comegemos a aceitar que podem saber embora ndo tenha sido dada a elas a autorizacdo institucional para tanto. Saber algo a respeito de certo objeto no quer dizer, nnecessariamente, saber algo socialmente aceito como “conhecimento”. “Saber” quer dizer ter construido alguma concepe30 que explica certo conjunto de fend: menos ou de objetos da realidade. Que esse “saber” coincida com o "saber" socialmente vilido € um outro problema {embora seja esse, precisamente, 0 problema do saber” escolarmente reconhecido). Uma erianga pade conhecer 0 nome (ou o valor sonoro convencional) das letras, e ndo compreender exaustivamente o sistema de escrita. Inversamente, outras eriangas realizam avangos substancials no que diz respeito 8 compreensio do sis tema, sem ter recebido informaco sobre a denominacdo. de letras particulares. Aqui mencionaremos breverente Mencionaremos aqui apenas of provestor de produgio de texto (esrital. Em razio de limitapgo do espero, no ire mos nos ocupar dos processos de Interpretagdo de textos (iota) ombora ambos. se encontrem perfeftaments rela sionados (0 que nib significa paralelismo completa) E importante sublinhar “odnjunto de palawas", Uma escrita isolada ¢ geralmente impossivel de se interpreter, E preciso ter um conjunto de expresses escritas para poder avaliar ‘ contraret @ ¢@ levar em conta na canstrugdo do repre sentacto, A representacao da linguagem e o proceso de alfabetizacao 9

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