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peleg MARL Zot! Evin Sane Oak F FR OS Eeavena Nexto 2 GRAMSCI Poder, Politica e Partido i . Pedigio EDITORA EXPRESSAO POPULAR ‘Sao Paulo, 2005 Gramsct = Popen, Potitiea £ Pantioe dominante ¢ a énfase na necessidade da construgio da uma ideologia altermativa, separando suas andlises da cultura das, anilises da luta de classes ¢ da estratégia de luta pelo poder. No entanto, as distintas dimensdes da obra de Gramsci sio insepardveis, articuladas em uma interpretagio e em um projeto estratégico, que compéem uma contribuicio decisiva para a esquerda, o socialismo e o marxismo, Ble passou a fazer parte da lista dos maiores expoentes do pensamento revolucionério. Esta antologia pretende colocar 3 disposicio dos militantes € estudiosos um conjunto de textos que se centram nos temas enunciados no titulo da selegio ~ politica, poder e partido. A obra de Gramsci representa um instrumento essencial para a formagio e a capacitagao-para quem luta pela construgio de ‘uma hegemonia alternativa e a construgio de uma sociedade socialista — ideais pelos quais lutou, elaborou teoricamente € viveu Antonio Gramsci. Emir Sader, maio de 2005. PARTE I NOTAS SOBRE MAQUIAVEL 1~Elementos da politica E preciso dizer que os primeiros elementos a serem es- quecidos sio, justamente, os mais elementares. No entanto, como eles se repetem intimeras vezes, tornam-se os pilares da politica e de qualquer aco coletiva. O primeiro elemento é que governados ¢ governantes, \dirigentes ¢ dirigidogexistem realmente. Toda ciénciae arte da politica se baseiam nesse fato primordial, irredutivel (em determinadas condigées gerais). As origens desse fato sio uum problema a parte, que deve ser estudado separadamente (no mfnimo se poderia e se deveria estudar como atenuar € até fazer desaparecer esse fato, mudando certas condigées, identificdveis como operantes nesse sentido). Entretanto, permanece o fato de que existem dirigentes ¢ dirigidos, vernantes e governacios. A partir disso, é preciso ver como (estabelecidos certos cbjetivos) dirigir do modo mais eficaz ¢, portanto, como preparar da melhor maneira possivel os dirigentes (esta é, precisamente, a primeira parte da ciéncia o- - Gramsci - Poven, Potitica & FanTiDO ¢daarte da politica). Por outro lado, é preciso distinguir as Jinhas de menor resisténcia, ou linhas racionais, para obter a obediéncia de dirigidos € governados. Na formagio de dirigentes, a seguinte premissa € fundamental: queremos que _ governados e governantes existam sempre ou queremos criar condigées para que a necessidade dessa divisio desapareca? Partirenos do principio de que a perpétua divisio do género humano € inevitével ou acreditaremos que ela seja apenas um fato histérico que responde a determinadas condigées? E preciso, todavia, ter sempre em mente que a divisio entre go- vernados e governantes, embora (em iiltima andlise) remonte a uma divisio em grupos sociais, existe, sendo as coisas como io, mesmo dentro do mesmo grupo e mesmo que esse grupo seja socialmente homoggneo. De uma certa forma, podemos dizer que essa divisio € uma criagio da divisio do trabalho; € um fato técnico. E sobre essa coexisténcia de motivos que especulam aqueles que, em tudo, veem apenas “técnica”, ne- -cessidade “técnica” etc., para ndo ter de enfrentar o problema fundamental. Tendo em vista que até no mesmo grupo existe a divi- sio entre governados e governantes, € preciso fixar alguns principios irrevogaveis. E justamente nesse terreno, em que ocorrem os “erros” mais graves, que se manifestam as incapa- cidades mais criminosas e mais dificeis de corrigir. Acredita-se que, uma vez aceitos os princfpios do préprio grupo, nio s6 a obediéncia ser4 automitica ¢ vird sem nenhuma demons- tracio de “necessidade” e racionalidade, como também seré indiscutfvel (alguns pensam e ~ o que é pior — agem acredi- tando que a obediéncia “vird” sem ser solicitada, sem que 0 caminho a seguir seja indicado). Assim, é dificil extirpar dos dirigentes o “cadornismo”,’ isto é, a conviecio de que uma coisa sera feita s6 porque um dirigente acha justo e racional que seja feita: se nada acontece, joga-se a culpa em quem “deveria ter feito” etc. No entanto, 0 senso comum mostra que a maior parte dos desastres coletivos (politicos) acontece porque danos initeis no foram evitados ¢ 0 sacrificio e a vida das pessoas nao foram levados em consideragio. Todo mundo jé ouviu oficiai do front contarem como os soldados arriscam a vida quando é necessério ¢ como se rebelam quando se sentem negligenciados. Por exemplo: uma companhia era capaz de jejuar por muitos dias se soubesse que 0s viveres no podiam chegar por motivo de forga maior, mas se amotinaria se uma s6 refeigio nao fosse servida por desleixo ou burocracia ete. | Esse principio se estende a todas as agGes que exigem sacrificio. Por isso, é muito importante, depois de qualquer derrota, investigar, antes de tudo, a responsabilidade dos diri- gentes, no sentido estrito. Por exemplo: um front é constituido de varias sees ¢ cada secao tem seu dirigente. E possfvel que os dirigentes de uma seco sejam mais responsabilizados por uma derrota que os dirigentes de uma outra secio, mas é questio de mais ou menos e nio de eximir algum dirigente da responsabilidade, jamais. ‘Uma vez colocado o principio de que existem dirigidos e dirigentes, governados e governantes, é verdade que os “par- tidos” tém sido até agora o modo mais adequado de elaborar a capacidade de dirigir e os préprios dirigentes (os “partidos” Referente a0 general Luigi Cadorma chefe do Estado-Maior das Forgas Armadas italianas até a derrota de Caporeto (1917), da qual ele €considerado o principal responsivel. Cadornismo representa, eto, o autoritarismo e a iresponsabilidade de.dirigentes que nfo consideram importante a adesio de seus comandados.¢ me~ ‘uosprezam o trabalho politico necessirio para que 2 importincia de uma 2¢30seja ‘compreendida e acita por eles. 3 Guawscr - PoveR, PoLitica t Parti00 podem se apresentar com os mais diversos nomes, incluindo 0 de antipartido ou de “negacio dos partidos”. Na realidade, até ~ os chamados “individualistas” so homens de partido, apenas gostariam de ser “chefe de partido” pela graca de Deus ou da » imbecilidade de quem os segue), Desenvolvimento do conceito geral cantido na expressio “espirito estatal”), Essa expressio tem um significado bem preciso, historicamente determinado. Um problema, porém, se coloca: existe algo semelhante ao que se costuma chamar de “espirito estatal” em todo movimento sério, que nao seja 4 expressio arbitraria de individualismos mais ou menos justificados? Para comecar, 0 “espirito estatal” pressupde a “continuidade”, quer na diregio do passado ou da tradicio, quer na direcio do futuro, isto é, pressupde que‘cada ato seja o momento de um processo complexo que jé se iniciou ¢ que vai continuar. A responsabilidade por esse processo, de ser ator desse proceso, de ser solidério com forcas materialmente “desconhecidas”, mas que, todavia, so sentidas como operan- tes ea as e levadas em conta como se fossem “materiais” ¢ presentes fisicamente, se chama justamente, em certos casos, “espfrito estatal”. E evidente que uma tal conscigncia da “du- ragio” nio deve ser abstrata e sim concreva, isto é, nio deve, em certo sentido, ultrapassar determinados limites. Digamos que os limites minimos sio uma geragio precedente ¢ uma geragio futura, o que nao € dizer pouco, pois as geragdes no se contam 30 anos antes ¢ 30 anos depois desse momento, mas organicamente, no sentido histérico, 0 que ao menos para 0 passado € ficil de compreender: sentimo-nos solidérios com os homens que hoje sio velhissimos e representam para nés © “pasado” que ainda vive entre nés, que € preciso conhecer, com o qual é preciso acertar as contas, que é um dos elementos Ewin Sacen do presente e uma das premissas do futuro. E com as criangas, com as geragées que nascem e crescem, por quem somos responsaveis, (Diferente € 0 “culto” da “tradigao”, que tem um valor tendencioso, que implica uma escolha ¢ objetivo determinados, ou seja, que esta na base de uma ideologia.) No entanto, podemos dizer que, mesmo se 0 tio falado “espfrito estatal” existe em todo o mundo, é preciso, de vez em quando, combater suas deformagoes e seus desvios. “O gesto pelo gesto”, a luta pela luta ete. ¢, especialmen- te, 0 individualismo mesquinho e pequeno, que é somente a satisfagdo caprichosa de impulsos momentaneos etc. (Na realidade, o problema é sempre o “apoliticismo” italiano, que assume essas formas pitorescas e bizarras.) O individualismo € apenas apoliticismo animalesco; o sectarismo € apoliticismo ¢, se observarmos bem, o sectarismo é, na verdade, uma forma de “clientela” pessoal, pois the falta o espitito de partido que 0 clemento fundamental do “espfrito estatal”. Demonstrar que o espirito de partido é 0 elemento fundamental do espfrito estatal é uma das teses mais importantes a defender e, vice- versa, 0 “individualismo” é um elemento de carter animal, “admirado pelos estranhos” como os atos dos habitantes de um jardim zoolégico. 2-0 partido politico Quando é que um partido se torna “necessério” histori- camente? Quando as condigées para o seu “triunfo”, para sua inelutével transformagao em Estado, esto ao menos em via de formagio e permitem prever normalmente os seus desen- volvimentos ulteriores. Mas quando se pode dizer, em tais condigSes, que um partido nao pode ser destrufdo por meios normais? Para responder a essa questio € necessario desen- volver um raciocinio: para que um partido exista € necesséria a convergéncia de trés elementos fundamentais (isto é, trés grupos de elementos) 1. um elemento difuso de homens comuns, médios, cuja participagio € dada pela disciplina e pela fidelidade e nao pelo espirito criativo e altamente organizativo. Sem esse grupo, 0 partido nio existiria, 6 verdade, mas é também verdade que © partido nio existiria “somente” com eles. Eles constituem uma fora na medida em que houver quem os centralize, organize, discipline. Na auséncia dessa forga de coesio, eles se anulariam e se dispersariam em uma poeira impotente. Nao € questio de negar que cada um desses elementos pos- sa se transformar em uma das forgas coesivas, mas estamos falando precisamente do momento em que eles nio o sio € nio esto em condigées de sé-lo, ou, se o forem, o serio somente em um circulo restrito, politicamente ineficiente ¢ sem consequéncia; 2. o elemento principal de coesio que centraliza no plano nal, que torna eficiente e potente um conjunto de forgas que, sozinhas, valem zero ou pouco mais. Esse elemento € dotado de forca altamente coesiva, centralizadora e discipli- nadora ¢ até — talvez por isso mesmo = “inventiva” (se en- tendermos a inventividade em uma certa diregdo, segundo naci as linhas de forca, perspectivas € mesmo certas premissas). E verdade que, sozinho, ele também nao formaria um par- tido, mas teria mais condig6es de formé-lo que o primeiro elemento considerado. Fala-se de capities sem exército, mas na verdade é mais ficil formar um exército do que formar capities. Tanto isso € verdade que, mesmo um exército jé for- mado pode ser destruido se Ihe faltam os capitaes, enquanto a existéncia de um grupo de capities harménico, coeso entre si, com objetivos comuns, pode rapidamgnte formar um exército, mesmo onde nio existe nada; 3. um elemento médio, que articule o primeiro com o se- gundo, que os coloque em,contato nao s6 “fisico”, mas moral e intelectual. Na realidade, para cada partido existem “proporgées definidas” entre esses trés elementos ¢ 0 maximo de eficiéncia é atingido quando tais “proporgdes definidas” se realizam. Depois dessas consideragées, podemos dizer que um partido nao pode ser destruido por meios normais quando 0 segundo elemento ~ cujo nascimento € ligado & existéncia de condigées materiais objetivas ~ existe necessariamente (¢, se esse segundo elemento nio existir, todo raciocinio € vazio), mesmo em um estado dispérso ¢ errante. Entio os outros dois nao podem deixar de se formar, isto é, 0 primeiro elemento que necessariamente cria o terceiro como sua continuagio e meio de expressio. E preciso, para que isso acontega, que se forme a conviccao férrea de que uma determinada solugio dos problemas é neces- sfria. Sem essa convicgio, o segundo elemento, cuja destruigio € mais ficil por seu pequeno ntimero, nao se formaré. Mas é necessério que esse segundo elemento, se for destrufdo, te- nha deixado como heranga um fermento que permita que ele se refaca. E onde esse fermento poder4 subsistir e se formar melhor do que no primeiro e no terceiro elementos, que sio da mesma,natureza que o segundo? A atividade que o segundo elemento vai dedicar 4 constituigio desse fermento é, entio, fundamental: 0 critério de julgamento desse segundo elemento deve ser procurado, primeiro, naquilo que ele realmente faze, depois, naquilo que prepara para enfrentar a hipétese de sua propria destruigio. E dificil dizer qual dessas duas atividades é mais importante, pois, na luta, se deve sempre prever a derrota, ” | Gaamscr- Popen, Powlsica © Partipo € a preparacio dos proprios sucessores é to importante quanto aquilo que se faz para obter a vitéria, 3~Industriais e proprietarios de terras Um problema se coloca: tém os grandes industriais um partido politico proprio e permanente? A resposta, me parece, deve ser negativa. Os grandes industriais se servem, segun- do a ocasio, de todos os partidos existentes, mas nao tm partido proprio. No entanto, eles nao sio de modo algum “agnésticos” ou “apoliticos”: seu interesse é um determinado equilfbrio que eles mantém reforcando, segundo a ocasio, este ou.aquele partido do variado xadrez politico com os meios de que dispdem (com excecio, € claro, do partido antagonista, que nao deve ser favorecido nem mesmo com objetivos titicos). E verdade, porém, que, se isso acontece na vida “normal”, nos casos extremos, que no fim das contas sio os que contam (como a guerra na vida nacional), 0 partido dos grandes industriais é 0 partido dos proprietarios rurais que, eles sim, tém um partido proprio permanente. Um exemplo disso pode ser visto na Inglaterra, onde 0 Partido Conservador engoliu o Partido Liberal, que aparecia tradi- cionalmente como o partido dos industriais. A situagio inglesa, com suas grandes Trade Unions, explica isso. E verdade que, na Inglaterra, nao ha formalmente um partido de grande representatividade que seja antagonista 20s industriais; mas existem as organizacdes operarias de massa. J4 foi observado que essas organizagoes, nos mo- mentos decisivos, transformam de alto a baixo a sua propria constituigao, despedacando as barreiras burocraticas (por ‘Unides por proiso que formam os sindicatoe opersrios inglese. (N. doT) Ewin Sapen exemplo, em 1919 e em 1926). Por outro lado, existem in- teresses permanentes ligando estreitamente os proprietérios de terras e os industriais (especialmente neste momento em que o protecionismo se tornou geral, industrial e agrario). E inegavel que os proprietarios rurais sio “politicaente” mais bem organizados que os industriais, mais atraentes para os intelectuais, mais “permanentes” em suas diretivas etc. O des- tino dos partidos “industriais”, como o “liberal-radical” inglés © 0 radical frances (que, no entanto, sempre se diferenciou do primeiro), é interessante (assim como o partido “radical italiano”, de saudosa meméria): o que representavam eles? Um vinculo entre classes mais ou menos grandes e néo uma ‘anica grande classe: vém daf os seus aparecimentos e desapa- recimentos. A classe pequena fornece a tropa de “manobra” ¢ acaba se transformando completamente, pois est sempre em condigdes diferentes no interior desse compromisso, Hoje, ela fornece a tropa dos “partidos demagégicos” e pode-se compreender por qué. Em geral, podemos dizer que, nessa hisiéria dos partidos, a comparacio entre os varios paises € das mais instrutivas € decisivas para encontrar as causas de transformagio, mesmo nas polémicas entre partidos dos pafses “tradicionalistas”, onde estio representadas “amostras” de todo 0 “catélogo” histérico, Um critério bisico de julgamento, seja para as concepgdes de mundo, seja sobretudo para os comportamentos praticos, € 0 seguinte: a concep¢io do mundo ou o ato pratico podem ser concebidos “isolados”, “independentes”, tendo sobre si toda a responsabilidade da vida coletiva; ou isso é impossivel ¢, entio, 0 ato pritico ¢ a concepgio de mundo podem ser percebidos como “integracio”, aperfeigoamento, contrapeso PARTE I PASSADO E PRESENTE 19 — As grandes ideias Corolério: todo grande homem politico nao pode deixar de ser também um grande administrador; todo grande es- trategista, um grande titico; todo grande doutrinador, um grande organizador. Este pode ser, antes ao contririo, um critério de avaliagio: os tedricos, os criadores de planos, sio julgados pela suas qualidades de administrador, ¢ ad- ministrar significa prever os atos e as operagdes, até aquelas “moleculares” (¢ as mais complexas, é claro) necessarias para realizar o plano. Naturalmente, o contrario também € justo: é preciso saber remontar ao princfpio correspondente a cada ato necessirio. Criticamente, esse processo é de suma impor- tincia, Julgar por aquilo que se faz e nao por aquilo que se diz. Constituigdes estatais > leis > regulamentos: sio os regulamentos € a sua aplicagdo (feita em virtude de circu- lares) que indicam a real estrutura politica e juridica de um pafs e de um Estado. 20- A tendéncia a diminuir 0 adversario Essa tendéncia é, por si s6, um documento da inferioridade de quem é possuido por ela, Na verdade, tende-se a diminuir raivosamente o adversirio para poder acreditar na séguranga da vit6ria. Essa tendéncia traz, obscuramente, em si um julgamento da propria incapacidade e debilidade (que quer tomar coragem) € se pode também reconhecer nela um inicio de autocritica (que se envergonha de si propria, que tem medo de se manifestar expli- citamente e com coeréncia sistemitica). Acredita-se nia “vontade de crer” como condigio da vit6ria, o que nao seria errado se no fosse concebido mecanicamente e nao se transformasse em au- toengano (quando contém uma confusio indevida etre massa e chefes e abaixa a fungao do chefe a0 plano do mais atrasado ¢ desorganizado dos seguidores: no momento da acio, o chefe pode tentar infundir em seus partidarios a persuasio de que o adversario serd certamente vencido, mas ele proprio deve fazer um julgamento exato e calcular todas as possibilidades, mesmo as mais pessimistas). Um elemento dessa tendéncia & de natureza opicea: 6, na verdade, proprio dos débeis abandonar-se 3 fanta~ sia, sonhar de olhos abertos que os proprios desejos sio realidade, que tudo se desenvolve segundo os seus desejos. Por isso, se vé, de um lado, a incapacidade, a estupidez, a barbirie, a covardia ete. ¢, de outro, os mais altos dotes do cardter ¢ da inteligéncia: aluta nio pode ser diibia ea vit6ria jé parece estar nas mos. No -entanto, a luta continua um sonho e vencida em sonhos. Um outro aspecto dessa tendéncia € ver as coisas oléograficamente, nos momentos culminantes ¢ altamente épicos. Na realidade, no importa de onde se comeca, as dificuldades tormam-se subi- tamente graves porque nunca se pensou concretamente nelas e, como € sempre necessario comecar pelas pequenas coisas (além do mais, as grandes coisas sio um conjunto de pequenas coisas), a “pequena coisa” é desdenhada; melhor continuar a sonhar e adiar a aco para 0 momento da “grande coisa”. A funcio de sentinela € pesada, entediante, fatigante; por que “desperdigar” assim a personalidade humana e nio a conserva para a grande hora do herofsmo? E assim por diante. Nao se pensa que, se 0 adversirio te domina e tuo diminuis, reconheces que foste do- minado por alguém que consideras inferior; mas, ento, como ser que conseguiu te dominar? Como serd que te venceu e foi superior a ti mesmo naquele instante decisivo que devia dar a medida da tua superioridade e da inferioridade dele? Mas € claro que 0 diabo “deu uma méozinha”. Ora, aprende entio a trazer a miozinha do diabo para o teu lado. Uma referéncia literdria: no capitulo XIV da segunda parte do D. Quixote, 0 cavaleiro dos Espelhos afirmh ter vencido D. Quixote: Y héchole conjesar que es mds hermosa mi Casildea que su Dulcinea; y en solo este vencimiento hago cuenta que he vencido todos los caballeros del mundo, por que el tal Don Quijote que digo los ha vencido 4 todos; y habiéndole yo vencido 4 él, su gloria, su fama y su honra se ha transferido y pasado d mi persona, ‘Y tanto el vencedor es mds honrado, Cuanto més el vencido es reputado; asi, ue ya corren por mi cuenta y son mias las innumerables hazafias del ya referido Dom Quijote." 21 - Otimismo e pessimismo E interessante observar que 0 otimismo é, na maioria das vezes, apenas uma maneira de defender a prdpria preguica, as irresponsabilidades, a vontade de nio fazer nada. E também uma forma de fatalismo ¢ de mecanicismo, Conta-se com fatores 5 Em espanol no original. (N. do"T) 19 Gramsci - Popes, Poultica Pantip0 estranhos & prépria vontade e operosidade, que sio exaltadas, ¢ di-se a impressio de queimar de um sacto entusiasmo. E 0 entusiasmo € somente adoracio exterior de fetiches. Reagio necesséria, que deve ter por ponto de partida a inteligéncia. O tinico entusiasmo justificivel é aquele gue acompanha a vontade inteligente, a operosidade inteligente, a riqueza inventiva em iniciativas concretas que modificam a realidade existente. 22- Espontaneidade e direcao consciente Diversas definicSes podem ser dadas 4 expresso “espon- taneidade”, porque o fendmeno que ela reflete € multilateral. Entretanto, é preciso destacar que a espontaneidade “pura” nao existe na historia: ela coincidiria com a mécanicidade “pura’. No movimento “mais espontineo”, os elementos de “direcio consciente” sio simplesmente incontroléveis, nio dei- xaram documento averiguivel. Pode-se dizer que o elemento “espontaneidade” é, por isso, caracterfstico da “histéria das classes subalternas” e, mesmo, dos elementos mais marginais € periféricos dessas classes, que nao atingiram a consciéncia da classe “para si” e que, por isso, nem mesmo suspeitam que sua hist6ria possa ter alguma importincia e que deixar tragos documentados dela tenha algum valor, Existe, entio, uma “multiplicidade” de elementos de “directo consciente” nesses movimentos, mas nenhum deles é predomi- ante ou ultrapassa o nfvel da “ciéncia popular” de um determi nado estrato social, do “senso comum”, ou seja, da concepgio do mundo tradicional desse estrato determinado. E exatamente esse 0 elemento que de Man, empiricamente, contrapde ao marxismo, Henri de Man (1885-1953): membro da ala esquerda do Partido Socitisa bel, adept da passagem pacifea a0 socialism, (No T) 10 Eure Sanen sem se dar conta (aparentemente) de que esté caindo na mesma posicio daqueles que, tendo descrito o folclore, a feiticaria etc ¢ demonstrado que essas formas de ver tém uma raiz histori- camente forte ¢ estio tenazmente enraizadas na psicologia de determinados estratos populares, acreditaram ter “superado” a cigncia moderna e tomaram por “ciéncia moderna” os arti- " guinhos dos jornais cientificos populares e as publicagoes em fascfculos. Esse € um verdadeiro caso de teratologia intelectual, da qual existem outros exemplos: exatamente os admiradores do folclore, que defendem sua conservacio: os “fetichistas” ligados a Maeterlinck,® que acreditam que se deva retomar o fio da alquimia e da feiticaria, quebrado pela violencia, para recolocar a ciéncia sobre um rumo mais fecundo de descobertas etc. To= davia, de Man tem um mérito incidental: demonstra a necessi- dade de estudar ¢ elaborar os elementos da psicologia popular, historicamente e nao sociologicamente, de modo ativo (para transformé-los, educando-os, em uma mentalidade moderna) ¢ nao descritivamente como ele faz. No entanto, essa necessidade era pelo menos implicita (¢ talvez até explicitamente declarada) na doutrina de Ilich,** coisa que de Man ignora completamente. © fato de que em cada movimento “espontineo” exista um elemento primitivo de diregio consciente, de disciplina, é de- monstrado indiretamente pela existéncia de correntes ¢ grupos que sustentam a espontaneidade como método. A propésito, € preciso fazer uma distingio entre elementos puramente “ideol6gicos” e elementos de agio prética, entre estudiosos que sustentam a espontaneidade como “método” imanente ¢ obje- tivo da transformagio hist6rica e politiqueiros que a sustentam Maurice Maeterlinck (1862-1949), escrito belga (N. do) % Lenin, (N.doT)

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