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Ana Cristina Sousa Martins

O TEMPO E O SUJEITO em
A Ordem Natural das Coisas
de António Lobo Antunes

Dissertação de Mestrado em Linguística Portuguesa

Descritiva apresentado à Faculdade de Letras da

Universidade do Porto

1998

1
Para a realização deste trabalho foi fundamental o contributo de algumas pessoas a
quem gostaria de expressar o meu agradecimento. Agradeço:

à Professora Fernanda Irene Fonseca, pela sua disponibilidade e interesse;

à Sónia, que passou dois anos a caminhar para os Correios, ou: a amiga de sempre;

à Belita, que não se cansou de caçar gralhas;

ao Mário e à Sofia, que dão sentido a tudo isto.

2
1.1. A verdade da ficção.......13 4.3 Acto narrativo e autognose
1.2 Marcas idiossincráticas do .................................................103
discurso de A Ordem Natural das 4.3 Um romance da vida real
Coisas........................................16 .................................................113
1.3 Entre a narrativa de 1ª 4.4 Figuração disfórica do EU
pessoa e a narrativa \“épica\....19 .................................................105
1.4 Traçar dois percursos de Capítulo 1. Dois níveis
análise.......................................28 enunciativos, dois tipos de ficção
2.1. Fenómeno geral da deixis ...................................................13
...................................................33 Capítulo 2. Transposição e
2.2 Mostração do ausente....36 deixis indicial fictiva.................33
2.3 Dois modos enunciativos40 Capítulo 4. Em busca de uma
2.4 Deixis \“am phantasma\.41 identidade..................................99
2.5 Carácter atípico do Conclusão............................116
segundo caso de mostração \“am Introdução...............................4
Phantasma\................................42
2.6 Operacionalização.........49
3.1 Uma textura discursiva
particular...................................53
3.2 Contiguidade de planos
temporais...................................58
3.2.1 Os lexemas verbais......61
3.2.1. Os articuladores.........58
3.2.2 -Ausência de instruções
de transposição.........................63
3.3 Simultaneidade de planos
temporais...................................65
3.3.1 Dois sistemas de
deícticos co-activados...............67
3.3.2 Marcos de referência
ambivalentes..............................69
3.3.4 Discurso indirecto livre
...................................................71
3.3.5 Comentar os próprios
efeitos discursivos.....................73
3.4. Algumas considerações
sobre o aspecto verbal...............76
3.4.1 Aspecto\...........................
uma categoria primordial..................................79
3.5 Operacionalização.........86
4.1. Cognição e criação na
linguagem..................................99
4.2 Falar do passado..........101

3
Introdução

São já passados alguns anos desde que pela primeira vez tive oportunidade de me

deter no estudo da exploração do acto enunciativo enquanto fenómeno de assunção da

linguagem pelo sujeito falante, evento primordial na auto-referenciação do locutor por

oposição à realidade circundante e como processo potenciador da formulação e

presentificação de universos ausentes. Então, pude reconhecer que o quadro analítico

oferecido pela Teoria da Enunciação conduz necessariamente o estudioso dos problemas da

língua ao encontro de uma actuação humana antecedente ao agir, pela palavra, sobre o outro.

Trata-se do processo de representação constitutiva do próprio sujeito. Este, ao verbalizar um

contínuo de consciência ( e de inconsciência) submete a sua experiência vivencial, estendida

no curso temporal, à análise da categorização e modelização que a língua lhe oferece e,

paralelamente, produz uma conjuntura de realidade com os recursos enunciativos que lhe são

dados a explorar.

Estas duas dimensões inerentes à acção discursiva estão no âmago de qualquer

análise textual. E foi um romance que ecoou na minha memória de leitora comum ao

confrontar-me com a constatação do poder figurativo e criativo que o acto de fala encerra. É

4
ele A Ordem Natural das Coisas de António Lobo Antunes. Cumpre-se agora o desejo que na

altura senti de explorar esta obra. 1

Neste romance, o mundo apresentado ao leitor, composto de mundos fechados

pertencentes aos locutores / personagens — falantes cujas palavras se suspendem,

inconsequentes, no silêncio do seu isolamento — é caótico, amargo, desconcertante. A

inverosimilhança da produção de monólogos interiores dados a ler, reconhecidamente

circunscrita à esfera da ficcionalização literária, esbate-se não só em face do surpreendente

realismo das existências desfiguradas, cruamente esboçadas em cada monólogo, mas também

diante da autenticidade das modalidades enunciativas activadas. Cada locutor, cujo discurso

preenche capítulos inteiros alternadamente sequencializados, entrecruza desordenadamente a

auto-evidencação da sua realidade actual com a invocação de um passado que, distante ou

não, se impõe e concorre com o presente. Este caótico arrumar de parcelas vivenciais é-nos

familiar quando nos colocamos na posição dos locutores- personagens, ou seja, sujeitos

cognoscentes à procura de uma unidade integradora de todas as componentes da sua

personalidade. Mas acabamos também por integrar no quadro dos registos discursivos comuns

aquelas modalidades invocativas que permitem aos parceiros de um acto conversacional

situarem-se simultaneamente quer no espaço e tempo da sua enunciação actual, quer num

espaço e tempo ausentes, mas mostrados como presentes e, por isso, disponíveis no elenco

das coisas em curso de experienciação.

É, pois, a técnica discursiva levada a cabo por todos os personagens o objecto de

análise deste trabalho que se irá dividir entre a abordagem dos recursos da língua activados na

evocação / construção de mundos e o apuramento das motivações / efeitos destas actuações

discursivas. Este projecto exigirá um tratamento radicado nas virtualidades do sistema

referencial deíctico e nos diferentes modos de enunciação. Encontrar-se-á balizado, portanto,

por dois autores incontornáveis no quadro da linguística enunciativo-pragmática: K. Bühler e

E. Benveniste. A constatação de que, mediante um instrumentário formalizado no sistema

5
linguístico de uma qualquer língua natural, um qualquer locutor poder desenraizar-se, a si e ao

seu interlocutor, da situação em que se fala e transportar-se para um espaço ausente é factor

essencial para uma percepção cabal do funcionamento do sistema verbal. Por outro lado, a

perspectivação dos tempos verbais como marcas distintivas de dois modos de referência,

permitiu efectuar o deslize frutífero do estudo do sistema deíctico para a instituição de uma

tipologia enunciativa: comentário e narração. Estão lançados os fundamentos para a

compreensão do acto de transposição fictiva enquanto processo de apreensão cognitiva da

realidade e, especificamente, como pedra angular no esquema cognitvo activado na cativação

do Tempo, realidade que mais desassossega o Homem.

Sem a particular preocupação em desmontar sistematicamente as peças deste

complexo teórico atinente às questões de tempo e narração, interessa-me sobretudo fazê-las

funcionar neste estudo que me proponho levar a cabo. Acresce o intuito de que a análise

textual venha por seu turno acarretar uma problematização pertinente e frutífera ao nível

teórico.

Apresentar o cerne desta exposição deverá, neste espaço, fazer-se acompanhar da

referência a temas satélites que o escoram, a saber, a índole do discurso ficcional e a função

cognitiva da linguagem, a abrir e a encerrar este estudo, respectivamente.

Porquê a opção por um texto literário em detrimento das mais variadas manifestações

discursivas às quais preside a evocação de um mundo ausente? Depois de formular esta

interrogação, deverei fazer eco da questão oposta: porque não um texto literário?

É longo o rol de autores, quer da área dos estudos linguísticos, quer da área dos

estudos literário, que sublinham o óbvio: antes da palavra ser literária ela é, em primeiro

lugar, língua. Destaco aqueles que pela lucidez das suas observações, me deixaram

convencida da pertinência da reflexão sobre as relações entre linguística e literatura.2

6
Weinrich (1964) dimensiona a linguística textual no quadro da intersecção entre

linguística e literatura ao reconhecer que só aí poderão estar radicadas as potencialidades

hermenêuticas da análise discursiva.

Coseriu (1977), ao reconhecer a linguagem poética como a linguagem, frisa que todas

as possibilidades actualizadas pelo discurso literário estão já previstas no sistema da língua.

Então “Los textos literarios deben valer como modelos para la linguistica del texto, puesto

que representan, precisamente, el tipo de textos funcionalmente más rico(...)”.3

G. Reyes, na sua obra Polifonía Textual (1984), concebe a literatura enquanto acto de

citação, (num sentido amplo) dos discursos datáveis, irrepetíveis, intersubjectivos e

interaccionais: “os actos naturais”. Sob esta perspectiva, o texto literário é o “resultado de un

acto de lenguaje que asume todas las perplejidades del uso del lenguaje como instrumento de

conocimiento, expresión, juego, poder ( sobre la realidad, sobre los otros) (...)” 4 O discurso

literário é, por excelência, o uso frutífero da linguagem: “Como cita, el lenguaje literario es

lenguaje mostrado en su acto de funcionar como lenguaje en discurso, y no sólo representa

mundos posibles sino, también, lenguajes posibles.”5

Exemplo de uma teorizadora da literatura que assume o posto de uma estudiosa dos

problemas da língua enraizando o estudo da ficção literária na análise do funcionamento da

linguagem é K. Hamburger. Em Logik der Dichtung (1957) a autora faz funcionar essa

conjugação inadiável entre linguística e literatura. “ (...) the «mode of being» of literature is a

part of the general system of both the realm of consciousness and language (...)”6

Um dos estudiosos que ignorou de modo exemplar essa fronteira artificial entre

aquilo que é literatura e o que não é literatura foi K. Bühler. Na sua obra Sprachtheorie

(1934), (já distanciada no tempo mas fulcral para quem estuda o funcionamento da

linguagem) é a palavra mostrativa que engendra a apreensão do mundo, porque, exige, em

primeiro lugar, a assunção do sujeito e das suas coordenadas de espaço e tempo,

7
independentemente do contexto institucional e retórico em que o acto de mostração se

inscreve.

A necessidade de insistir na solidariedade entre a análise linguística e a análise

literária só vem denunciar o seu ainda vigente apartamento. Esta confluência de vozes é

sintoma de um fosso traçado durante décadas por duas posições extremas: de um lado, a

atitude prescritivista que ditava a hegemonia do discurso escrito, cujos modelos eram os

textos literários (a prová-lo estão as citações de obras literárias que pululam nas gramáticas e

dicionários mais conceituados ); do outro lado, o exagero oposto, de raízes estruturalistas, que

exclui do campo da análise linguística o discurso estético.

Na verdade, o pudor de roçar as fronteiras do campo dos estudos literários e a opção

por reservar à linguística a língua dita corrente tolhem a possibilidade de explorar a plenitude

funcional da linguagem7 e veda o corpus da análise linguística ao potencial expressivo

ilimitado da comunicação literária. A literatura é um sistema discursivo que reapropria,

amplifica, experimenta os modos de funcionamento e as propriedades do discurso corrente.

Por outro lado, importa ter a noção clara de que a abordagem linguística deve visar

precisamente a singularidade do texto literário enquanto tal e não a sua desfiguração que o

força a apresentar-se enquanto texto comum.

Depois da visão panorâmica do enquadramento teórico, do corpus seleccionado para

análise, dos percursos possíveis de abordagem textual e após a defesa da legitimidade da

opção por um texto literário como ponto de partida para um trabalho em linguística, passo a

apresentar o plano desta exposição.

Os quatro capítulos em que divido esta dissertação apresentam dimensão desigual

pelo facto de, apesar de congregados na mesma orientação temática, participarem com pesos

diferentes na edificação do centro estrutural deste estudo, a saber, a dissecação das

virtualidades enunciativas activadas no processo de representação produtiva do tempo e do

8
próprio sujeito que o pensa e enuncia. Vejamos o modo como a articulação entre capítulos se

irá efectuar.

No primeiro capítulo deste trabalho, começarei por reflectir acerca da essencialidade

do discurso ficcional, literário ou não literário, sendo que para tal, recorrerei brevemente a

nomes como Searle, K. Hamburger e G. Reyes.

Procuro aí a fundamentação para o facto de podermos conceber como produtos de

ficção quer os referentes / objectos designados pelo acto enunciativo fictivo, quer a própria

enunciação configuradora. Aqui, admitimos todas as manipulações, distorções, abusos dos

actos de discurso “sério”, material em exploração pelo discurso ficcional.

A partir daqui, poderei vazar os processos enunciativos que marcam a idiossincrasia

do discurso ficcional de A Ordem Natural das Coisas nos princípios gerais da teoria da

ficcionalização:

— a referência múltipla e indeterminada do “agora” de cada capítulo, já que a

ausência de datação desmorona qualquer pretensão de verosimilhança;

— o recurso recorrente aos monólogos interiores, alguns inatribuíveis às personagens

que formalmente são responsáveis por eles;

— a monotonia estilística que perpassa todos esses monólogos;

— a omnisciência dos locutores.

Este primeiro capítulo é, enfim, o espaço destinado à dissociação — apenas

funcional, analítica — de dois níveis ficcionais / enunciativos: de um lado, o nível da

expressão endógena ao romance, da responsabilidades dos locutores / personagens, indivíduos

captados a configurarem a sua vida pretérita através da transposição fictiva das coordenadas

enunciativas; do outro, o nível da configuração exógena ou comunicação literária que tem por

agentes uma voz enunciadora e o leitor. A explicitação destes dois níveis parece-me funcional

porque abre duas dimensões de análise distintas: a primeira, que toma o discurso dos

locutores como matéria de dissecação; a segunda, que procurará alcançar uma interpretação

9
do discurso do romance. É, naturalmente, no primeiro nível mencionado que situarei o grosso

desta dissertação.

Depois de deixar assente o âmbito enunciativo-ficcional em que integro o meu estudo,

dedico o segundo capítulo à apresentação, comprovação e operacionalização do carácter

exclusivo de um tipo de referenciação fictiva; exactamente, o segundo tipo de mostração “am

Phantasma” preconizado por K. Bühler — o locutor transfere-se para um quadro representado

ausente e é aí que o ponto origem de referenciação harmónica se encontra.

O percurso a traçar até atingir esse fim deverá compor-se das seguintes etapas:

— breve exposição do fenómeno geral da deixis;

— destaque da deixis “ am Phantasma”, depois do seu enquadramento no esquema

de indicação espacial, tal qual foi apresentado pelo estudioso alemão;

O reconhecimento da especificidade do segundo caso de mostração “am Phantasma”,

que designarei justificadamente por deixis indicial fictiva, poder-se-á fundamentar quer na

teorização do próprio autor, quer no seu carácter a-narrativo, como também no papel que

desempenha numa cognição particular do mundo.

A abordagem textual far-se-á, então, através da aplicação de dois veios fulcrais de

análise do discurso activado nos moldes da deixis indicial fictiva. São eles o reconhecimento

de que este discurso faz emergir um sujeito enunciador em atitude de locução tensa e a

observação de que nesse mesmo discurso o Presente e formas aspectuais concorrentes

referenciam uma imobilidade temporal, porque remetem para uma temporalidade inactual.

A orientação da minha exposição no terceiro capítulo deverá conduzir à

demonstração — articulando o nível macroestrutural com o nível local do discurso das

personagens — da vigência de:

— processos que tornam contíguos planos temporais descontínuos;

— sobreposição de planos temporais ( dupla referenciação temporal deíctica);

10
— mundos possíveis que emergem de um efeito de atemporalidade decorrente da

simultaneidade / homogeneidade temporal;

— idealização do máximo domínio de uma consciência temporal e seu fundamento

deíctico.

Para tal, dividirei este capítulo em três momentos.

Destinarei o primeiro momento à análise dos articuladores diegético-temporais

catalisadores das transposições deícticas. Darei espaço à abordagem de alguns verbos e

expressões evocativas, na medida em que elas dão conta desse fenómeno de transposição

fictiva que se impõe ao locutor quase involuntariamente. Não dispensarei a focagem, ainda

que breve, do discurso indirecto livre no alcance do objectivo enunciado à cabeça da

descrição deste capítulo. A tónica será colocada na opção discursiva de activar, num mesmo

segmento, simultaneamente, deícticos do subsistema actual e deícticos do subsistema inactual.

Interessará alargar o âmbito da abordagem da miscigenação dos deícticos do subsistema

actual e os do inactual. A observação da transposição de planos temporais sem qualquer

indicador instrucional dará entrada a uma primeira chamada de atenção para a idiossincrasia

do Imperfeito. Já neste primeiro momento, deverei considerar de modo introdutório e global o

papel definitivo desempenhado pelas formas nominais do verbo e pelo Imperfeito na

construção de um tipo de enunciação que potencia uma flutuação e suspensão temporal,

geradoras da ilusão do domínio do Tempo e construção de existências alternativas.

A função deste primeiro momento é apresentar uma sinopse dos conteúdos

fundamentais que irão ser desdobrados em vários exercícios de análise textual, destinados ao

terceiro momento deste mesmo capítulo.

O segundo momento intercala a exposição de uma base teórica que, ainda que breve,

forneça os instrumentos de análise necessários no âmbito da referência temporal, aspecto,

modalidade e textualidade.

11
Depois da análise das estratégias enunciativas potenciadoras dos efeitos de recriação

de novas coordenadas enunciativas, homogeneização temporal e ilusão de domínio do tempo,

impõe-se o apuramento da sua funcionalidade cognitiva, o que redunda numa tentativa de

interpretação do romance à luz da exploração dos recursos enunciativos da língua. Trata-se do

quarto capítulo.

Pretendo igualmente que este último capítulo constitua um espaço de confluência e

de retoma de isotopias.

O tópico da a-narratividade das enunciações constitutivas de cada capítulo deverá

ser aprofundado quando forem detectados os efeitos da idiossincrasia destes extensos

monólogos.

Por outro lado, o tópico relativo à hegemonia das formas permansivas que marca as

dez elocuções constitutivas do romance em análise terá de entrar na elaboração de um

enquadramento justificativo da revelação dos mundos invocados pelos locutores: estes

revivem quadros simultâneos, são protagonistas de uma vivência tão intemporal como a

própria morte.

Por último, a circularidade desta dissertação estará assinalada quando retomar a

divisão de níveis enunciativo-ficcionais e, brevemente, situar a minha reflexão no nível da

comunicação exógena ao romance em questão, já que só aí poderei encontrar a

intencionalidade comunicativa global desse macrotexto.

12
Capítulo 1. Dois níveis enunciativos, dois tipos de ficção

“Quando olho os volumes do dicionário de


Morais, e me lembro que é daquele cemitério de
palavras mortas que quotidianamente tenho de
arrancar versos vivos, figuras vivas, diálogos
vivos, chego a ter pena de mim. Que estranha
penitência a dum escritor!”

(Miguel Torga, Diário VIII)

1.1. A verdade da ficção

A orientação reflexiva sobre a evolução do objecto da linguística terá de tender para

a consideração desta ciência como não podendo deixar de albergar, no seio da problemática da

língua enquanto uso, as diversas manifestações do discurso literário.

No entanto, uma abordagem linguística do texto literário vê-se a braços com um

fenómeno que, activado tacitamente aquando da leitura de qualquer conto ou da recepção oral

de qualquer lenda ou mito, se escapa a uma análise automatizada: a entrada no mundo

ficcional. Talvez este “paradoxo da ficção narrativa”8 muito provavelmente tenha contribuído

para que um estranho pudor tornasse a linguística incólume à produção literária. Tratava-se de

ultrapassar uma perplexidade: as afirmações que são feitas no texto de ficção são, como todas

as afirmações, dadas como verdadeiras; no entanto, o leitor ou ouvinte sabe que elas não
13
correspondem a nada efectivamente, que não têm existência no mundo real; ainda assim, o

receptor, não ingénuo, não é dominado pelo sentimento de estar a ser enganado. Apenas o

leitor quixotesco é que não sabe que assiste a actos de fala, sujeitos enunciadores, eventos,

espaços e tempos que nunca existiram. O receptor aceita que se diga o falso. Este estado de

coisas é óbvio, mas nem por isso, e nem sempre, compreendido na sua essencialidade.

Sublinho e partilho da surpresa sincera de Searle que me abrirá caminhos de análise:

“ It is after all an odd, peculiar, and amazing fact about human language that it allows the

possibility of fiction at all.”9 Pois se não existem propriedades semânticas ou pragmáticas

inerentes ao discurso de ficção, passíveis de uma sistematização e que, à partida, o

identifiquem como tal, onde residem as virtualidades de um texto deste cariz que nos dá

acesso a um mundo ficcional assim que iniciamos a leitura? O que é que potencia, de modo

automático e sem que o leitor tome plena consciência disso, a realização deste “acto de fé”10

em que o mundo ficcional passa por ser tomado como verdadeiro, mesmo quando o texto

provoca constantemente o desmoronamento da ilusão de realidade ao ostentar-se enquanto

discurso de ficção?

Aquando da leitura de A Ordem Natural das Coisas, e apenas enquanto ela está em

curso, acreditamos nos eventos e pessoas que surgem configuradas no universo do romance,

que emerge como mundo autónomo, dotado de uma realidade paralela. A ficção é real

enquanto dura. Mais do que fazer-nos mergulhar num universo paralelo, o discurso ficcional

aprisiona-nos e então entristecemo-nos com a doença e abandono de Iolanda, aureolada pelo

perfume das dálias, sofremos com o encarceramento de Jorge ou soltamos um sorriso

condescendente em face da vocação de Artur para profeta, por exemplo. Tanto damos por

existente, dentro do universo do romance, o mineiro visionário (L3)11 que fura a alcatifa da

sala de uma casita na Quinta do Jacinto, como Solange, a negra invocada por aquele, dos

tempos de Joanesburgo, como ainda o evento, igualmente relatado por L3: como pássaros,

14
mineiro e ex-pide voam tranquilamente sobre a tarde de Alcântara. É de ressalvar, no entanto,

que são ficções de índole diferente, como veremos em parágrafos posteriores.

A ficção é um fenómeno fascinante, é certo, mas bastante corrente para poder ser

tomado como um mistério inefável. A dificuldade de tocar a sua essência está no facto de o

material de que se constitui a ficção e a literatura ser a linguagem. Os nossos actos de discurso

corrente oferecem potencialidades já incrustadas no sistema da língua e disponíveis para

determinada actualização. As palavras num texto ficcional mantêm o mesmo sentido que têm

no discurso quotidiano. O dispositivo da enunciação não é inventado de novo, caso contrário

o leitor teria de aprender, de cada vez que iniciasse a leitura de um novo romance, novas

regras linguísticas para apreender a mensagem. Por outro lado, estamos longe da consideração

de critérios estéticos como definidores desta ou daquela manifestação ficcional.

Donde deriva, então, o estatuto ontológico particular do discurso literário de ficção?

Searle aponta como objectivo principal para levar a cabo esta busca a consideração

de um conjunto de convenções, invocadas ou criadas de novo pelo enunciador,

compartilhadas com o leitor, que estipulam o facto de a enunciação ficcional se libertar das

regras semânticas e pragmáticas do discurso “sério” e que permitem a um enunciador imitar a

realização de actos enunciativos — e, como tal, realizá-los efectivamente — sem a intenção

de mentir. Tais actos enunciativos são eventos reais; o que não é real é o seu enquadramento

no mundo das enunciações sérias: “ The author pretends to perform illocutionary acts by way

of actually uttering ( writing ) sentences. In the terminology of Speech Acts, the illocutionary

act is pretended, but the utterance act is real.”12

A contribuição de Searle vem mostrar como é enganoso procurar alguma

característica textual que determine este ou aquele discurso como discurso de ficção,

independentemente do seu grau de verosimilhança relativamente ao discurso sério.

Hamburger13, já do lado da teorização sobre ficção literária, caracteriza o discurso

ficcional como uma não enunciação. Na ficção não poderemos descortinar a fórmula “ eu

15
enuncio algo” e, consequentemente, todo o dispositivo deíctico ( no qual a autora destaca os

tempos verbais) deixa de apresentar as propriedades semânticas e pragmáticas de uma

enunciação de realidade, da responsabilidade de um “eu- origem”, passando a radicar numa

origem fictiva de 3ª pessoa. A ficção é o único espaço epistemológico em que a subjectividade

de uma terceira pessoa pode ser representada. Aqui radica, para Hamburger, a convenção

primordial.

Reyes14 define ficção como um fenómeno de transposição da actividade linguística

para um contexto ausente que tem de ser explicitado e representado pelo e no enunciado. Tal

transposição faz participar amplamente o discurso de ficção do processo de citação: existe

então um enunciador que não enuncia, mas como que cita actos de discurso que têm lugar

num contexto reconstituível pela imaginação, sendo que este processo se enquadra em

convenções compartilhadas. O enunciador não é responsável pelo que diz e suscita um

contexto imaginário para uma comunicação ausente cuja autenticidade é válida noutro plano

da realidade. O ponto de convergência com as propostas de Hamburger está na consideração

de que o objecto assertado não se inscreve no universo experiencial de referências em tensão

no acto discursivo do sujeito enunciador.

Não me alongo na referenciação de outros teorizadores, porque vemos já que pelo

menos estas propostas confluem para o esclarecimento da razão pela qual a verdade da ficção

só pode ter adequação interna : ela está no seu estatuto enunciativo . Veremos de seguida o

alcance desta ilação.

1.2. Marcas idiossincráticas do discurso de A Ordem Natural das Coisas

16
O mundo de ficção, a partir do momento em que está convencionado como tal,

admite todas as possibilidades ( ou todas as impossibilidades). Para entender um discurso de

ficção, o leitor tem de imaginar referentes que só existem quando nomeados.

Porém, o leitor tem primordialmente de imaginar o próprio acto enunciativo que

produz esses referentes e circunstâncias de enunciação. Se objectos de enunciação tidos como

irreais no mundo não ficcional são reais no universo de ficção, então também as

manipulações, explorações de virtualidades e distorções das convenções dos actos

enunciativos reais serão plausíveis neste contexto.

A ficção não é graduável, mas absoluta. A partir do momento em que não detectamos

no discurso nenhum tipo de comprometimento do enunciador em relação ao seu enunciado,

nem as coordenadas enunciativas lhe dizem respeito, deparamo-nos face a um discurso de

ficção que se pode colar à realidade ou que a despreza do modo mais audaz. Nunca saímos do

campo da ficção. Mais: nunca deixamos de estar aprisionados ao universo de ficção. Os

factores de quebra de ilusão de realidade, a ausência de um suporte de verosimilhança, não só

ao nível objectual, mas também ao nível enunciativo, não tolhe a incursão do leitor no mundo

ficcional. Pelo contrário, é preciso que o leitor tome o mundo com que se depara, através da

leitura, como ficcional para que esse mundo o possa cativar: “ Es la conciencia de la ficción lo

que hace operante, cierta, a la ficción.”15

Posso destacar alguns processos de exploração libertária que vincam a idiossincrasia

do discurso do romance em análise.

Damos conta, em primeiro lugar, que cada personagem fala de si e do seu passado,

elege um interlocutor efectivo ou imaginado, a propósito de coisa nenhuma, sem qualquer

móbil, diria, gratuitamente. As locuções não surgem encabeçadas por nenhuma data ou local,

inviabilizando a ilusão de um registo diarístico ou epistolar. Os locutores situam-se num

“agora” de marcação temporal móvel, que referencia momentos sucessivos e múltiplos.

17
Na continuidade desta constatação, verificamos também que o discurso de ficção faz-

nos assistir a monólogos interiores, a correntes de pensamentos mudos, a fragmentos de

raciocínios quebrados:

“(...) o barulho principia no instante em que as pessoas se calam e ouvimos os pensamentos


moverem-se dentro delas como peças, que tentam ajustar-se, de um motor avariado.”(p.277).

A própria noção de locutor e elocução se deteriora se nos detivermos nos capítulos em

que estão em cena as personagens Jorge, Maria Antónia, e Julieta. Aqueles, por debilidade

física e psicológia, esta última por uma incapacidade de expressão verbal correcta, tornam-se

locutores apenas ao nível formal, pelo recurso à 1ª pessoa16, mas epistemologicamente, tais

enunciações não lhes poderão ser atribuídas. Isto porque entre o discurso que é formalmente

produzido pela sua voz e as condições mentais que vão sendo descritas ao longo desse

discurso detectamos uma incompatibilidade intransponível, facto que, em primeira análise,

nos conduz à hipótese de estes personagens falarem através de uma voz que não lhes pertence.

Ao avançarmos na leitura do romance, começamos a notar que cada locução não

apresenta um estilo enunciativo idiossincrático; pelo contrário, embatemos numa monotonia

estilística que perpassa todas as enunciações. Não perscrutamos qualquer variação diafásica

ou diastrática, tal como seria de esperar quando viramos a página e deixamos de ouvir um

militar nos calabouços da Pide e, dando entrada num novo capítulo, passamos a escutar uma

adolescente na década de noventa, fechada no seu isolamento. Perpassam todas as falas os

mesmos mecanismos enunciativos de invocar o passado, as mesmas sequências ininterruptas

de quadros e imagens sobrepostos, as mesmas metáforas surpreendentes e, enfim, ao nível

ideológico, o mesmo humor dorido.

É impossível não observar que os locutores aparecem, por vezes, dotados de uma
supervisão que extravasa o foco interno ao universo descrito, o único a que naturalmente
poderiam ter acesso: L5 alcança duas situações a ocorrerem ao mesmo tempo em espaços
diferentes :

18
“(...) o do bócio aplicou um primeiro chuto na cadeira e um segundo que me rasgou a virilha,
a posição da lâmpada alterou-se a mesa voou ao meu encontro e retrocedeu e em lugar de
dor senti uma paz estranha ao mesmo tempo que a minha irmã Anita, no patamar, perguntava
Às três Luis Filipe, podemos vir incomodar-te às três, e o Director-Geral respondia Às três,
sim...”(p. 140, 141).

O mesmo locutor relata a sua própria morte e configura-a como um evento passado,

o que anula o carácter de realidade deste locutor e da sua locução. L6, por seu turno, sem

instrução prévia, introduz no seu discurso fragmentos das falas de outra personagem:

“(...) e nessa noite o Senhor Esteves foi ao teu quarto sem acender a luz, cochichando Não
tenhas medo, garota, não tenhas medo que não te faço mal
e estendeu-se sobre mim a tossir...”(p.205)

“ (...) como se o do cigarro se estendesse ao seu lado a soprar-lhe no ouvido a sua urgência,
como se o do cigarro, de joelhos nas raízes e nas folhas, desabotoasse as calças para ela
medir, com os seus próprios dedos, o meu desejo de ti, meu amor (...) (p.116)

Facto semelhante ocorre na locução de L7 e L8.

São casos de opções enunciativas / ficcionais como os que acima foram descritos e

exemplificados que costumam ser abrigados no seio da arte ( no sentido clássico do termo) de

composição romanesca ( neste caso, do romance moderno), no âmbito da criação estética ou

ainda, no campo das marcas estilísticas do autor. Em todo o caso, estes procedimentos rumam

em direcção a uma ou várias intenções comunicativas que têm como pólos do circuito uma

voz enunciadora e o leitor e, como macrosigno o próprio romance.

1.3. Entre a narrativa de 1ª pessoa e a narrativa “épica”

19
Retomo, com mais detença, a teorização de Hamburger, a que já fiz referência. Não

tenciono apenas comentar criticamente as propostas da autora, mas apropriar-me delas,

explorá-las, manipular os dados que me oferecem para aplicá-las à minha análise.

Hamburger fundamenta-se na dissociação dos dois tipos de linguagem — literária e não

literária — para criar um hiato inelutável entre a narrativa de 1ª pessoa e a narrativa de 3ª

pessoa, que designa por narrativa “épica”. Enquanto que o discurso não literário é o discurso

do pensamento e da comunicação, em que um sujeito versa sobre um objecto num dado tempo

e lugar históricos, o discurso literário é o espaço de construção de realidades ficcionais, é ele

próprio um mundo no qual a vida humana toma lugar. Neste âmbito, não há efectivamente uso

de linguagem, ela não constitui um meio para cumprir qualquer função descritiva ou

expressiva. Uma obra literária não emprega a linguagem. Aí, a experiência configurada não se

constitui pela linguagem mas de linguagem. Mediante esta opção, a autora apura os critérios

da linguagem criativa em comparação com a linguagem não criativa, do ponto de vista da sua

estrutura enunciativa. Interessa-lhe apurar as diferenças de carácter estritamente funcional

entre a linguagem literária e a linguagem da comunicação.

Desta comparação emerge o conceito de fingimento, em antinomia com o conceito

de ficção, demasiadamente ambíguo e frágil para a consolidação da minha análise. Porém,

esta simples constatação, que tratarei de comprovar, oferecer-me-á percursos válidos de

trabalho.

Vejamos o problema com o pormenor indispensável.

A narrativa de ficção, ou seja, de 3ª pessoa, afirma-se primeiramente mediante uma

caracterização negativa:

— não é uma enunciação

e consequentemente

— não segue a fórmula “ eu enuncio X “;

— não observa as circunstâncias de produção discursiva;

20
— a linguagem não denuncia um propósito comunicacional, pelo menos em sentido

estrito.

A fulcralidade da narração “épica”, da ficção, situa-se, pois, no facto de não

associarmos os estados descritos ou os eventos narrados a um suposto sujeito enunciador

produtor do discurso com que nos deparamos. Se efectivamente não é detectável um sujeito

de enunciação, os morfemas verbais deixam de assumir a função de designar o tempo, já que

as coordenadas temporais deixam de poder ser calculadas em relação a um “eu” responsável

por uma enunciação que tenha tido assento num tempo e num lugar. A distância entre o ponto

no tempo em que os eventos narrados tiveram lugar e o momento no qual eles se tornam

narrados não tem qualquer significado.

Verdadeiramente, não existe nenhuma entidade personificável responsável pelo dito

do discurso de ficção. O conceito de “narrador” enquanto pessoa de papel que relata pessoas,

paisagens, eventos e estados de coisas é um suporte epistemológico que disfarça e distorce a

realidade fundamental: o produto que é o mundo de ficção não deriva de uma pessoa, ainda

que possa ser concebida como ficcional, mas de um acto criador representacional formativo.

Se concebermos a existência de um narrador, então dizemos que ele fala acerca de pessoas e

coisas. Porém, o mundo narrado só existe em virtude da narração. E o narrador, quando existe,

ou seja, na narrativa de 1ª pessoa, nunca se assume como criador do que relata, mas mais

como encenador de um mundo que passa por ser pré-existente ao relato. Ao mundo narrado

preside uma função narrativa que, no curso do relato, vai criando aquilo que pretende

representar. Ao constatarmos a ausência de um narrador ou enunciador, percebemos que as

personagens da narrativa épica são representadas não como objectos de enunciação, mas

enquanto sujeitos-fictivos originários de um sistema de coordenadas determinado em função

de cada um deles. Os procedimentos de ficcionalização denunciam este estado de coisas:

— a co-ocorrência de tempos do passado, destituídos da sua função de relativização

temporal, com advérbios e locuções adverbiais temporais e espaciais referentes ao

21
“aqui” e “agora” fictivos da personagem, e não do “então” de um suposto enunciador

ou leitor;

— o recurso a verbos de acção interna, ou seja, verbos designativos de processos

mentais ou afectivos;

— o discurso indirecto livre, o discurso directo ou o monólogo.

O facto de a narrativa de 3ª pessoa constituir uma realidade paralela e autónoma

relativamente à realidade empírica quer dizer que o mundo que aí é narrado não existe

independentemente do acto de narração. Este mundo deverá aparecer como realidade ainda

que remeta para um estado de coisas de feição bastante irreal. Ora, esta forma de realidade

não poderá ser objecto de um relato; pelo contrário, ela é criada pelo relato. Conceber o acto

narrativo como uma função através da qual pessoas, coisas, eventos são criados é a pedra de

toque para o esclarecimento da narrativa épica. “ Between the narrating and the narrated there

exists not a subject-object relation, i. e., a statement structure, but rather a functional

correspondence.”17

Esta função reveste-se de faces cambiantes: os diversos modos de representação

coordenam-se num projecto de formação modelar da narrativa. Nesta altura a narração estrita

combina-se com o monólogo, o diálogo ou o discurso indirecto livre, organizando-se numa

continuidade de conteúdo concorrente para uma configuração geral e consequente da

narrativa.

A partir do momento em que detectamos um enunciador de 1ª pessoa responsável por

um relato narrativo, o discurso passa a imitar uma enunciação de realidade. O espaço

atribuído à narrativa autobiográfica — fora do campo da ficção, dentro do da literatura —

radica nas propriedades essenciais de 1ª pessoa. O “eu” da enunciação é um sujeito autêntico

e, como tal, toda a enunciação é uma enunciação de realidade. A transferência deste

pressuposto para a área da linguagem criativa resulta nisto: o sujeito que diz “eu”, no romance

autobiográfico, faz-se existir pela linguagem; é de criação auto-reflexiva; o acto de apontar

22
para si próprio e para o mundo circundante faz existir o locutor, o interlocutor e as

circunstâncias de enunciação. Ao depararmo-nos com um acto designativo, a pressuposição de

existência não falha. O locutor e o interlocutor, se o houver, fazem-se existir pelo acto de auto

e hetero-referenciação. Todavia, esta existência não promove uma experiência de não

realidade ou de realidade paralela, mas, pelo contrário, quer passar por ser real, fingir-se

genuina. E este factor está simplesmente sustentado pelo facto de aqui ocorrer a forma de uma

enunciação de realidade, ou seja, a estrutura relacional sujeito-objecto: o narrador fala acerca

de pessoas e eventos actuais ou pretéritos enquanto objectos pertencentes ao seu campo de

experiência, não podendo libertar-se dele e, logicamente, os verbos finitos conservam a sua

função de referenciação temporal.

Deste modo, a narrativa de 1ª pessoa simula sempre, em maior ou menor grau, uma

biografia autêntica, um documento histórico. O mundo narrado apresenta-se como se tivesse

mesmo acontecido e a sua realidade é tributária, de modo graduável, da realidade empírica;

ela é calculada em função da realidade. Eis a essencialidade do fingimento na enunciação.

A aplicação primeira desta diferenciação de estruturas da linguagem conduz, de

imediato, à descrição do romance de Lobo Antunes enquanto uma narrativa de 1ª pessoa: a

estrutura geral das enunciações que constituem a obra é uma estrutura relacional sujeito-

objecto; tomamos conhecimento de uma constelação de personagens e quadros vivenciais que

vêm à luz porque pertencem ao campo de experiência do narrador; as coordenadas

enunciativas são as dos sujeitos de “genuinidade fingida” e, deste modo, os tempos do

passado configuram experiências pretéritas. A representação do mundo do romance oferece

inevitavelmente experiências temporais. Os locutores obedecem aos impulsos da memória e

descrevem fragmentariamente diversos e múltiplos momentos pontuais do curso da sua vida.

Julgo ser esta uma constatação simples, ainda que insuficiente. Isto porque

ostensivamente sobressaem do discurso do romance estratégias enunciativas que

comprometem uma classificação tão cómoda como esta é. De tal modo que deixamos de saber

23
delinear a fronteira entre a noção de narrador e o conceito de função narrativa, entre uma

estrutura enunciativa relacional e uma estrutura funcional formativa modelar.

Vejamos quais são essas estratégias.

O recurso a verbos de acção interna aplicados a uma 3ª pessoa não é pontual:

“...e a minha madrinha, indiferente à tempestade, pegava na agulha de crochet e sonhava18


com americanas extravagantes, vestidas de sandálias e panamá como para uma expedição
aos trópicos...” (p.15)

“... e já arrependida de haveres abandonado o senhor Esteves...”(p.25)

O “ Eu- origo” do locutor / narrador desaparece e momentaneamente, no seu lugar, emergem


“eu-origens fictivos” de 3ª pessoa:

“(..) calado apenas, calado, envelhecido, inerte, tão inerte que nem se dá conta do comboio
de Cascais que pula por cima dos jardinzecos da Quinta do Jacinto e lhe cruza o corpo,
levando, na fieira de janelas das carruagens, a mudez sem sonhos de que é feito.” (p.78)

Mais frequente é a presença destes verbos conjugados na 1ª pessoa. À partida não


haveria nada a sublinhar já que as atitudes mentais e afectivas asssumem o molde de eventos
passados pertencentes ao campo de experiência pessoal do locutor. Todavia, como é
facilmente reconhecível, este procedimento faz deslizar o estatuto objectual do “ EU-pretérito
“ para a esfera da ficcionalização, passando o “ EU- pretérito “ a ter a dimensão de um “ EU-
origem “ fictivo, tal qual uma 3ª pessoa. O “ Eu-passado “ assume proeminência e adquire um
estatuto independente do “ EU-actual “ responsável pelo relato. Aquele engrena com as outras
pessoas fictivas uma continuidade global criada pelo discurso. Apresento alguns exemplos de
verbos de acção interna, ou construções equivalentes, na 1ª pessoa:

“...e o Minho era um presépio de barro na minha memória...”(p.92)

“....e intrigava-me que não houvesse bolhinhas de ar desprendendo-se da tua boca...”( p.199)

“ ... e eu imaginava os russos a desembarcarem em Leixões...” (p.82)

“ ... e imaginei que se tirasse o casaco e desabotoasse a camisa um par de asinhas se lhe
começaria a agitar nas omoplatas e ele subiria tarde fora, a caminho das nuvens, erguendo-
se a custo como um avião de museu.”(p.250)
24
Os momentos em que mais fortemente é evidenciado o facto de o sujeito narrador
recriar situações e episódios de um passado mais ou menos longínquo, donde resulta uma
ficcionalização do eu-passado e das personagens envolvidas num determinado quadro,
correspondem às passagens em que ocorre a associação de dois sistemas de coordenadas: o
sistema do “eu-origem” fictivo de 1º pessoa , ou do “eu-passado” e o sistema relativo ao “eu-
narrador, responsável pelo discurso. Afinal, estamos muito próximos de um procedimento de
ficcionalização já aqui apresentado19: a co-ocorrência dos deícticos do sistema da ficção, do “
hoje”, “ontem”, “amanhã”, “aqui” e “agora” das figuras fictivas com os tempos do passado.
Assim:

“... e vestiram-me um bibe e estou acocorada num degrau a ver as galinhas que debicam no
que devia ter sido uma horta...”(p.274)

“... A Anita e a Teresinha miravam-me, a raposa soluçava de fome na gaiola farejando o tacho
vazio e agora tínhamos vinte anos e o nosso pai, doente, rodeado de vaporizadores que o
impregnavam de um odor de eucalipto, exigia da cama Ninguém pode saber de
nada...”(p.150)

O facto de não termos nenhuma contradição semântica na combinação de tempos

gramaticais como é o caso do Presente com o Pretérito Perfeito ou da junção do deíctico

“agora” com o Imperfeito exige o seguinte comentário: estes excertos e outros semelhantes

não podem ser apresentados como conducentes à conclusão relativa à atemporalidade dos

tempos verbais, já que, para todos os efeitos, esta é uma narração de 1ª pessoa; interessa antes

sublinhar estes fenómenos porque indubitavelmente eles denunciam já não um propósito de

configurar um “eu-origem” textual como um “eu” real, mas, pelo contrário, fazem emergir do

texto romanesco um “eu-origem” fictivo, já que explicitamente se assumem como elementos

instrucionais da ficção narrativa. Os sistemas de referência activados nos exemplos fornecidos

são inaptos a remeter para um “eu” de uma enunciação de realidade fingida. Em inúmeros

momentos do romance o “eu” recordado desprende-se do “eu” enunciador, ganha autonomia e

impõe-se enquanto um ser fictivo.

25
O que é ainda mais espantoso é a ficcionalização dos próprios “eu-tu” actuais, da

responsabilidade da voz de 1ª pessoa:

“(...) sem contar o amigo escritor e eu a observarmos isto, cada qual com o seu refrigerante e
o seu pires de tremoços, num restaurante ao pé da Faculdade de Medicina” (p.25”)

O eixo subjectivo do acto de fala é conduzido para fora do próprio acto de fala. O

marco de referência original perde de alguma forma o estatuto de centro de radiação

mimética das coordenadas enunciativas, já que ele próprio apresenta sinais de mundo

transposto. Desta vez, a sobrevisão do locutor é mais alargada e eleva-se acima do próprio

acto de enunciação. O locutor distancia-se enquanto sujeito que diz “EU”, do “EU” narrado /

descrito, daqui resultando a sua objectualização. Não há desfasamento temporal entre o “EU”

que diz e o “EU” que é dito. Quando este caso se verifica, o discurso parece radicar em

coordenadas que são “ nenhum eu”, “ nenhum agora”, “nenhum aqui”.

É nestas alturas, ainda que breves, que a noção de narrador se torna indiferenciável

da de função narrativa.

Os longos segmentos de discurso directo incorporados pelos locutores nos seus

relatos facultam igualmente esta indiferenciação de géneros narrativos. É o caso da elocução

de L7 no capítulo primeiro do Livro Quarto. A apresentação deste tipo de discurso demonstra

que a 1ª pessoa narrativa cumpre a função de representação temporal e ficcional de

personagens constituintes de um universo recriado. Só que, no caso do diálogo, essa mesma 1ª

pessoa passa a ser uma das personagens desse mundo arquitectado mediante nexos lógicos ou

afectivos. Por seu turno, a 1ª pessoa encontra-se cristalizada no passado e distinta do eu-

enunciador que pertence à vida actual em curso — este, sim, criação do fingimento, tal qual o

definiu K. Hamburger. O “eu” figurado como personagem pertence ao mundo da vida

passada que, momentaneamente, relega para segundo plano o sujeito de enunciação e o seu

próprio acto enunciativo.

26
Todos os procedimentos até aqui descritos cabem dentro de uma margem de

flutuação teórica que Hambuger soube salvaguardar. Ao focar a idiossincrasia do diálogo no

romance de memórias, a autora reconheceu a susceptibilidade do conceito de fingimento,

admitindo que aquele modo de representação do discurso das personagens não decorre de uma

reprodução de um discurso remido da memória, mas antes de uma criação literária:” It

fictionalizes the persons, just as in the genuine epic fiction.”20 O narrador deixa de ter

consciência de si próprio enquanto ponto de referência, enquanto sujeito de enunciação e

alheia-se da emergência de um universo de pessoas, coisas e eventos. Este é um fenómeno

integrado na variabilidade do romance de 1ª pessoa que poderá ser intensificada até

desembocar na suspensão da forma de enunciação de 1ª pessoa, nos casos em que o mundo

narrado ultrapassa largamente o campo de experiência do sujeito enunciador.

A autora insiste, porém, na distinção entre fingimento e ficção, já que ela está

fundada na estrutura da linguagem e sem a qual não é possível compreender a função

estrutural do sujeito de enunciação o que, consequentemente, inviabiliza a possibilidade de

abarcar a fenomenologia da literatura.

A solidez da diferenciação entre fingimento e ficção é de uma precaridade visível,

pelo menos na sua aplicação a este romance. Se posso constatar que estou em face de uma

narrativa de 1ª pessoa, também posso facilmente demonstrar que o universo descrito é fruto da

ficção. Os procedimentos narrativos destacados já neste capítulo — o facto de cada elocução

não revelar idiossincrasia; a omnisciência momentânea dos locutores; o poder de as

personagens (L5 e L10) derrotarem a sua debilidade física e psicológica para discorrerem

sobre o seu mundo actual e passado, bem como os últimos momentos da sua vida e o próprio

momento da sua morte — trazem à superfície um acto enunciativo primordial que manieta

todas estas vozes e que, enfim, as faz existir. A pluralidade de vozes reduz-se a um

denominador comum. Detectamos uma “função narrativa”: os locutores só existem em função

27
do acto narrativo que é levado a cabo. Só que esse acto narrativo não é efectivamente da sua

responsabilidade.

1.4. Traçar dois percursos de análise

Poderia parecer que este reconhecimento da fusão entre as noções de “função

narrativa” e de “narrador de 1ª pessoa” — noções tão radicalmente dissociadas por K.

Hamburger — tem por móbil a ostentação da fragilidade da sua polarização. De facto não é

assim. É na operatividade desses conceitos que sedimento a minha proposta explicativa do

estatuto enunciativo desta obra: a estrutura enunciativa do discurso de cada capítulo é a de

uma enunciação de realidade , inquestionavelmente. Mas ao plano de cada enunciação

antepõe-se um outro plano onde se opera a sua produção e que é parcialmente correspondente,

ao plano da “função narrativa”. Segundo esta interpretação, a “função narrativa”, assim

particularmente activada, serve-se apenas do monólogo ( não esquecendo a aparente excepção

que constitui a locução de L2), ou seja, não é flutuante, mas uniforme.

É possível agora apurar dois níveis enunciativos: de um lado, o nível dos locutores e

seus interlocutores efectivos ou imaginados; do outro, o nível da função narrativa que

consolida o circuito comunicativo entre uma voz enunciadora ( não assimilável ao autor, não

assimilável a L10) e o leitor virtual, entidades que, mesmo quando não evocadas

explicitamente, são implicadas pelo texto pelo simples facto de ele existir. Esta voz

enunciadora, que pode activar as diversas formas de representação ficcional, recorre apenas a

uma sequência monótona de monólogos.

28
O primeiro nível patenteia o plano da configuração de mundos pelos locutores—

personagens, i.e., das diversas representações das suas existências actuais ou pretéritas; o

segundo nível corresponde ao plano que coloca estes locutores em cena.

Verdadeiramente, a história ( ou o conteúdo) do romance não nos é dada pelos

locutores: a história é que se compõe dos locutores, por um lado, e das pessoas, eventos e

paisagens por eles invocadas, por outro. Sem dúvida que neste romance está em causa o

mimetismo de enunciações de realidade, mas, primordialmente, temos a mimese da própria

realidade: a solidão de dez indivíduos que se procuram a si próprios num tempo que os anula.

Opto pelo termo voz narrativa ou voz enunciadora. A tendência para a ontificação

do acto narrativo não é óbvia mas é inevitável neste romance: ao avançarmos na leitura de

cada capítulo, conseguimos abstrair uma entidade única, um co-produtor de todas as vozes

dos dez locutores, um omni-locutor responsável por uma supra-enunciação que não está

radicada em nenhum sistema de coordenadas interno ao universo do romance. Esta voz

narrativa fala pela boca das personagens, transfigura-se e reproduz o discurso destas na sua

forma original, ou seja, a forma da estrutura de uma enunciação. Trata-se de um verdadeiro

fenómeno de polifonia. Esta voz deixa perpassar no discurso as pressuposições, avaliações,

visões do mundo que compartilha com as personagens ou de cuja cosmovisão se distancia.21

Mas não nos iludamos: também esta voz, que já no final do romance assume um rosto, o de

L10, é fruto de um processo de ficcionalização:” en la literatura es imaginario el mundo

representado — enteramente o en parte — y es imaginaria la representación. “22

Insisto: temos, de um lado, a expressão endógena ao texto romanesco,

correspondente à enunciação ficcional das personagens; do outro, a comunicação exógena. A

comunicação literária exógena patenteia um presente infinitamente repetível; a comunicação

endógena gira em torno de um presente virtual partilhado pelo narrador / locutor e

personagens / ouvintes. O primeiro “ transporte “ a operar diz respeito à nossa incursão no

mundo dos locutores. A afirmação “(...) le présent du lecteur, celui de “l'énonciation”

29
véritable, renvoie au “présent” virtuel de l'écriture, qui renvoie le plus souvent à celui,

ficcionnel cette foi, de la pseudo-énonciation d'un narrateur — laquelle à son tour, revoie aux

“passés” plus au moins étagés et enchevetrés de l'histoire ( des personages), evidamment

fictionnels eux aussi (...)”23 esclarece bem a distinção entre os dois níveis de enunciação.

A comuniação exógena compõe-se de e explora, imitando, os actos enunciativos “

naturais” ou sociais e integra-os num plano institucional e retórico de códigos sempre

renováveis: o da literatura. Estes actos ilocutórios “naturais” são matéria de constituição de

um signo complexo e elaborado — a obra literária — que é captado pelo leitor juntamente

com as inflexões diversas— e diversamente veiculadas — da voz narrativa. Só depois de ter

captado esta voz por detrás dos actos ilocutórios simulados é que o leitor fecha o círculo do

discurso literário. Todo o sentido dos actos citados « se convierte a su vez en un

“significante”, cuyo “significado” es precisamente, el sentido del texto.»24

É efectivamente a detecção do circuito estabelecido pela comunicação literária —

que no romance em análise se compõe de e arquitecta o plano da voz narrativa e o plano da

enuncição das personagens — o factor primordial da ficção. É a partir deste momento que

neutralizamos a nossa descrença. O ser efectuada esta detecção é sinal de que o leitor se

apropriou já das convenções que lhe permitem a entrada no mundo de ficção. Só quando o

leitor consegue dar conta do “ serious speech act”25 que está a ser comunicado através do

complexo de convenções activadas no romance, é que podemos dizer que está a ser activado o

fenómeno de ficção na sua plenitune.

Importa vincar que a dissociação destes dois níveis apresenta apenas um carácter

funcional e analítico. À superfície do texto, o leitor não experiencia essa separação.

Vemos agora como, sem pretender proceder a uma correspondência directa, as

noções de “ função narrativa” e de “ narrador de 1ª pessoa” me potenciam a obtenção dos dois

níveis enunciativos. O que sublinho da exposição do conceito de narrativa de 3ª pessoa

elaborada por Hamburger é o facto de aí se considerar que aquilo que é assertado não pertence

30
ao campo de experiência de nenhum indivíduo e, como tal, esse discurso não apresenta um

Eu-origem. Poder-se-á afirmar que se trata de um discurso com uma malha de referências a-

deícticas. Se assim é, posso alargar a instância produtora do discurso àquilo que designei por

“voz narrativa”, entidade demiúrgica que delineia estratégias narrativas visando determinadas

intenções comunicativas. Por outro lado, a insistência levada a cabo por Hamburguer na

tónica de que toda a enunciação é uma enunciação de realidade, donde consequentemente

decorre o assentimento de que os sujeitos enunciadores são reais, o seu tempo e lugar são

reais, os conteúdos das locuções são reais ( porque, devido à própria estrutura essencial da

enunciação, são considerados como existindo independentemente de serem enunciados)

conduz-me ao apuramento do primeiro nível enunciativo acima descrito. Prescindo, todavia

da noção de “ enunciação de realidade fingida “ amplamente explicada pela autora no sentido

de fazer comungar o relato autobiográfico do conjunto dos textos literários. À luz do que já

ficou dito, ao questionarmo-nos sobre a índole desta realidade, facilmente somos levados à

seguinte conclusão: o sujeito enunciador é real no âmbito de uma realidade paralela que é a

ficção literária. Realidade calculada internamente à obra, onde tudo está a acontecer no

momento em que a lemos, o mesmo momento em que os eventos estão a ser relatados.

Voltamos à essência da ficcionalidade: a semelhança com a vida ignora qualquer

relação com a esfera da realidade.

Qual a operatividade analítica desta minha proposta? Se atendermos ao primeiro

nível explicitado, encontramos dez locutores cujos actos enunciativos originam mundos

alternativos sempre que ocorre uma transposição dos marcos de referência deíctica para a

esfera do ausente26. Vemos então que aos dois níveis enunciativos é possível fazer

corresponder igualmente duas ficções : a ficção especificamente literária e a ficção em sentido

amplo ( literária ou não), ou seja, toda a representação discursiva que careça de pré-

determinações contextuais, uma competência que se manifesta precocemente no sujeito

falante. Esta dissociação já foi aliás preconizada por F. I. Fonseca: «Uso o termo fictivo para

31
referir, marcando uma distinção em relação a ficcional, este sentido mais amplo que implica

todo o tipo de projecção das coordenadas enunciativas quer essa projecção se associe ou não à

efectiva “ invenção” de situações irreais»27.

É pelo facto de não considerar isoladamente, do ponto de vista meramente analítico,

este primeiro nível enunciativo que Hamburger não consegue conjugar a noção de narrativa

épica ou narrativa ficcional com a teoria da deslocação de Bühler28: “Even in the novel set in

Rome, «here» does not mean that Mohammed, i. e., author and reader29, mentally transposes

himself to the location where the hero is, nor does «there» mean that he remains in his place

and performs some kind of telefocussing; rather, «there» is nothing other than «here» referred

to the fictive figure, the fictive I-Origo of the person in the novel.”30 A ideia de movimento

transpositivo é fecunda quando aplicada a interlocutores reais ou criados na ficção literária e

não entre autor e leitor, já que estes se integram num enquadramento comunicacional

específico.

É no primeiro nível enunciativo-ficcional que colocarei o foco da minha análise

numa larga componente deste trabalho ao examinar o papel do tempo e do aspecto verbal no

processo de figuração representacional da realidade. Neste sentido, falarei menos de A Ordem

Natural das Coisas, do que deste ou daquele fenómeno n'A Ordem Natural das Coisas.

32
Capítulo 2. Transposição e deixis indicial fictiva

“ Is there no way to recapture, re-experience, relive it?


[ the past ] We crave evidence that the past endures in
recoverable form. Some agency, some mechanism, some
faith will enable us not just to know it, but to see and feel
it.”

( David Lowenthal, The past is a foreign country)

2.1. Fenómeno geral da deixis

Não é prudente avançar com um estudo que, como já tive oportunidade de anunciar,

dedica um espaço central ao discurso fictivo sem me deter na descrição do fenómeno geral da

deixis e, em particular, da deixis fictiva. As noções de “deslocação” e “criação de “universos”,

a que já aludi no capítulo anterior, aguardam completação a nível teórico e prestam-se, na sua

aplicação à análise discursiva, a uma problematização fundamentada.

Deve-se a introdução e divulgação do termo “deixis” no código metalinguístico

português a Herculano de Carvalho31. Podemos hoje facilmente observar em algumas

gramáticas escolares a expressão “função deíctica” invocada na apresentação do paradigma

dos demonstrativos.

33
Sabemos que a raíz etimológica do vocábulo “deixis” remete para a noção de

mostração, ostensão, indicação ou indigitação, sendo que da tradução do vocábulo grego para

o latim resultou a generalização do termo “ demonstrativo” na terminologia clássica. Porém,

se é certo que, em termos restritos, o deíctico subsume um acto de mostração corporal num

apontar verbal, a referida noção de função deíctica deverá albergar igualmente a vocação do

deíctico para a referenciação de uma malha alargada de pessoas, objectos, factos, espaços,

tempos, processos e actividades cuja significação só pode ser calculada a partir de uma

indigitação primordial: a de um sujeito que ao designar-se por EU, aponta para si próprio num

acto particular, discreto, único de produção discursiva.

A rede de referenciação instituída pela deixis é determinada por uma marca

egocêntrica. A mostração de um objecto deriva da mostração do sujeito que ao dizer “EU”

remete para a própria enunciação e abre o mapa de todas as coordenadas enunciativas. Daí

que a deixis pessoal possa ser apresentada como génese da deixis temporal, espacial ou

circunstancial. Perspectivando assim o dispositivo deíctico, estamos a radicá-lo no facto

histórico que é o acto de enunciação, focando a sua vertente auto-referencial. Benveniste, ao

alertar para o carácter sui generis da categoria dos pronomes, evidencia que “ Il ne sert de rien

de définir ces termes [ aujourd'hui, hier, demain, dans trois jours ] et les démonstratifs en

général par la deixis, comme on le fait, si l'on n'ajoute pas que la deixis est contemporaine de

l'instance de discours qui porte l'indicateur de personne; de cette référence le démonstratif tire

son caractère chaque fois unique et particulier, qui est l'unité de l'instance de discours à

laquelle il se réfère.”32 tendo antes observado que a realidade assumida pelos deícticos não é

outra senão a própria realidade do discurso.

As dimensões pragmáticas da produção discursiva são incontornáveis: o enunciado

incorpora o próprio retrato da enunciação. Vem neste sentido a observação de Ducrot: “

Interpreter un énoncé c'est y lire une description de son énonciation. Autrement dit, le sens

d'un énoncé est une certaine image de son énonciation.”33 Lyons, por sua vez, apela para a

34
impossibilidade de desenraizar a referência dos deícticos das “particular utterance-tokens”34,

esboçando uma situação comunicativa convencional cujas condições seriam: presença de um

EU face a um TU ( singular ou plural ), relação de co-presença entre os intervenientes;

concorrência de elementos paralinguísticos; a necessária alternância de papéis locutor —

alocutário. Daqui resulta a consideração das dimensões congnitivas, psicológicas, sociais e

culturais que envolvem a acção discursiva interactiva.

Já o referi: num acto particular de produção discursiva, os indicadores da deixis

giram em torno de um marco de referência que é o sujeito. A enunciação instala a

subjectividade no discurso. A subjectividade corresponde à capacidade de o alocutário ao

dizer EU se posicionar como sujeito remetendo para si mesmo e instituindo a própria

existência da linguagem; reciprocamente, o indivíduo constitui-se através da sua

potencialidade de linguagem. A subjectividade é a instituição do sujeito falante enquanto

actante enunciativo. O laço inalienável sujeito-linguagem é ubíquo, já que todos os

enunciados são marcados subjectivamente.

O conceito de subjectividade alarga-se a uma tríade fundamental: a linguagem, o EU

e o TU. É que o EU não pode ser concebido a não ser por contraste com o TU. O sujeito

falante eleva o outro à condição de existência no processo de comunicação. “EU-TU” é um só

ente criado pela reciprocidade de dois elementos numa realidade dialéctica, interactiva que é o

processo de comunicação. Parece-me importante destacar que a consideração essencial do

exercício linguístico situada na polaridade entre dois sujeitos, corresponde a uma

complexificação da noção de subjectividade que o próprio Benveniste protagonizou. O

conceito de subjectividade parece incorporar o conceito de intersubjectividade. Vejamos: «(...)

en introduisant la situation d'“allocution”, on obtient une définition symétrique pour tu

comme l'“individu allocuté dans la présente instance de discours contenant l'instance

linguistique tu “».35

35
É muito curioso determo-nos a este propósito nas páginas do filósofo alemão Martin

Buber36, segundo o qual “EU-TU” é uma palavra básica dupla com a qual, entre outras, o

Homem baliza o mundo. Tal palavra institui a sua própria referência ao ser pronunciada.

Quando eu pronuncio EU, o outro elemento da palavra par (TU) é também dito

imediatamente. Assim: “The basic word I-YOU can only be spoken with one's whole being.

(...) Being I and saying I are the same. Saying I and saying one of the two basic words [ I-

YOU, I-IT] are the same.” Buber, sem nomear nunca o processo de produção discursiva, toca

no âmago da própria noção de enunciação enquanto exercício linguístico dialógico. A

obtenção de Eu é o resultado do processo de dizer — e ser— através da interlocução.

2.2. Mostração do ausente

Se a condição essencial do exercício linguístico é a polaridade entre duas pessoas, é

fácil perceber que os interlocutores não partem de um vazio conceptual ou experiencial , por

mais díspare e assimétrica que seja a sua posição interactiva. A co-actividade discursiva

presentifica conhecimentos comuns aos dois participantes, tornando acessível um

conhecimento compartilhado passível de evocação mental.

Neste contexto, concebemos que a enunciação actual possa perder temporariamente o

seu carácter auto-reflexivo original, pois passa a radicar em coordenadas que não são as suas,

mas as de uma realidade já experienciada pelos interlocutores, ou as de uma outra que é

instaurada ao ser dita. Ambas ausentes, portanto. A reflexidade passa a ser indirecta, já que

uma referência ausente é calculada por intermédio da radicação primordial nas coordenadas

do acto enunciativo actual, e é objecto de uma marcação textual que, como tal, nunca é alheia

ao acontecimento verbal concreto.37

36
É do uso transposto do dispositivo deíctico que Bühler 38 dá conta, aquando do

apuramento dos três modos de indicação espacial: “ demonstratio ad oculos”, anáfora e deixis

“am Phantasma”. Nos dois primeiros, a mostração / referenciação continua a processar-se in

praesentia, apesar de, no caso da anáfora, darmos conta de um desfasamento espacio-

temporal entre o acto de indigitação verbal e a construção de um objecto mostrado, isto é,

determinado segmento textual imediatamente anterior. Assume especial destaque o terceiro

modo.

A enunciação “am Phantasma” patenteia um marco de referência egocêntrico. Mas

esse marco está desfasado da situação de enunciação actual, efectiva. O locutor, segundo uma

estratégia de orientação harmónica, propõe ao alocutário uma alienação relativamente à

radicação na evidência real compartilhada e a incursão dos dois numa evidência mental, num

espaço imaginário ao qual o alocutário tenha possibilidade de aceder, designadamente através

da activação da memória a longo prazo ou pelo desencadear da engrenagem da fantasia. O

termo “em fantasma”, não causará estranheza, se tivermos presente o seu significado

primeiro, ou seja, imagem ou espaço imaginário formulado pela mente, não percepcionada

pelos sentidos. “ Si el psicólogo tropieza con cualesquiera funciones en el campo de la

llamada retención inmediata, busca luego funciones análogas en el campo de retención no ya

inmediata, sino mediata, es decir, en el campo de los recuerdos maduros y de la fantasia

constructiva.”39 Bühler parte da constatação de que o locutor e o alocutário chegam a um

campo mostrativo ausente, sendo que o locutor usa os mesmos deícticos como se os objectos

que aí se encontram pudessem ser percepcionados ocularmente. Então, os interlocutores

fazem de conta que os objectos que de facto lhes são apresentados aos olhos do espírito, são

objectos apresentados aos olhos corporais, como habitualmente. Estamos em face de uma

transposição das coordenadas enunciativas actuais. Os interlocutores são de comum acordo

transportados para um mundo sem ancoragem directa na situação real: o mundo da recordação

ou o mundo possível.

37
Transposição: palavra essencial, pois. Em primeiro lugar, porque diz respeito ao

próprio processo de entrada num espaço ausente, conceptual: o locutor transpõe-se para aí e

leva consigo a sua imagem táctil, corporal, presente; invoca a imagem táctil, corporal,

presente do interlocutor, arrastando todo o sistema de coordenadas enunciativas que se

prestam a nova ancoragem. Por outro lado, o termo evidencia a dimensão espacial que

percorre todas as operações deícticas na teoria Bühleriana.

O espaço, que desde sempre sustenta materialmente a ilusão de que o homem é capaz

de se movimentar no tempo e de conquistá-lo40, assume-se também aqui como metáfora

configuradora de uma potencialidade específica da linguagem humana: fingir a existência de

um marco de referência alternativo ao da situação enunciativa, a partir do qual é possível

estabelecer nova malha de relações deícticas de localização / referenciação espacio-temporal

(anterioridade, concomitância, posterioridade; ou então, “informação reportada”, “grau zero”,

“informação antecipada”41) à imagem e semelhança do que ocorre no plano da enunciação

actual. Bühler associa livremente o processo de mostração “am Phantasma” a uma situação

em que alguém guia outro alguém no ausente. O sujeito reconstitui ou cria, explicitando-as no

e pelo discurso, as determinações contextuais necessárias à emergência de um espaço

perceptivo mental que se quer comum, onde radica um sistema subjectivo de orientação que,

por esse meio, sendo ausente se tornou entretanto presente ( no sentido adjectival do termo).

A metáfora encontra-se maximamente explorada quando o psicólogo apura três casos

de mostração “am Phantasma” que cobrem todas as técnicas discursivas / narrativas, mesmo

as mais “refinadas”.42 Passo a apresentá-los:

1º:” a montanha vem a Maomé”: locutor e alocutário não se deslocam; esse

movimento é levado a cabo pelo quadro de referências ausente que invade o espaço

perceptivo presente; o marco de referência egocêntrico continua, pois, a radicar neste

último; assim, os objectos componentes do quadro representado recebem a mesma

orientação aos “olhos do espírito” da que recebem aos “olhos do corpo”;

38
2º:” Maomé vai à montanha”: o locutor transfere-se para um quadro representado

ausente e é aí que o ponto origem da orientação harmónica se encontra;

3º : “Maomé e a montanha ficam cada um em seu lugar”: o locutor é capaz de

apontar para o ausente sem nunca abandonar o seu marco de referência espacio-

temporal.

O primeiro caso é activado em situações quotidianas específicas e, quer no que diz

respeito à figuração da posição de objectos móveis numa sala vazia, por exemplo, quer à

ressonância de uma voz familiar no nosso íntimo, ele está acantonado à esfera das

experiências avulsas, incapazes de assumirem, por si só, a constituição de uma unidade

textual.

Já o mesmo não se passa com o segundo e terceiro casos. Bühler sublinha o seu uso

discursivo enquanto técnicas narrativas. É bem certo que une estes dois tipos de mostração

“am Phantasma” o facto de, como já tive oportunidade de referir, pressuporem a transposição

de marcos de referência alternativos. A especificidade de um e outro tipo encontrar-se-ia, pois,

no recurso aos deícticos do subsistema actual/inactual43: aqui-agora, por lá-então, no segundo

e terceiro tipos, respectivamente.

No entanto, é o segundo caso, “ Maomé vai à montanha”, que se reveste de

protagonismo, ainda que não intencionalmente ( como julgo crer), desde o início do capítulo

dedicado à apresentação da deixis “ am Phantasma “44. É curioso notar como a primeira

explicitação do fenómeno geral de mostração “ am Phantasma “ é coincidente com a definição

deste seu tipo particular enquanto movimento de incursão do locutor e do alocutário num

mundo representado, alheio à sua situação enunciativa:”(...) un narrador lleva al oyente al

reino de lo ausente recordable o al reino da la fantasía constructiva y lo obsequia con los

mismos demonstrativos45, para que vea y oiga lo que hay allí que ver y oír.(...) El que es

guiado en fantasma no puede seguir con la mirada la flecha de um braço con el índice

extendido por el hablante, para encontrar allí el algo; no puede utilizar la cualidad espacial de

39
origen del sonido vocal para hallar el lugar de un hablante que dice aquí; tampoco oye en el

lenguaje escrito el carácter de la voz de un hablante ausente, que dice yo. Y sin embargo le

son ofrecidos esos y otros demonstrativos, en rica multiplicidad (...)”46.

2.3. Dois modos enunciativos

Considerando que o segundo e o terceiro tipos de referenciação do ausente surgem

como mecanismos constitutivos do modo de enunciação narrativo, detenho-me brevemente na

descrição deste último à luz da teorização de Benveniste e Weinrich.

Com base em duas categorias deícticas fundamentais — tempo verbal e pessoa — é

possível proceder a um corte conceptual e discursivo no nosso mundo de referências: de um

lado, o ambiente comum e mediato que envolve locutor e alocutário; do outro, tudo o que está

fora dessa experiência. Partindo do pressuposto de que o ponto de referência temporal de um

enunciado é o intervalo de tempo da enunciação a partir do qual é possível fazer derivar uma

marca textual, novo eixo de referências temporais anafóricas — facto protagonizado pelos

advérbios e pelas locuções adverbiais temporais e amplificado na organização dos dois

subsistemas de tempos verbais — é possível aceder a dois modos de enunciação / atitudes de

locução: uma produção discursiva que apresenta radicação imediata na enunciação e uma

outra cuja referenciação pode apenas ser calculada em relação àquela — “discurso” e

“história” em Benveniste; “comentário” e “narração” em Weinrich, respectivamente.

À correspondência dois sistemas temporais — dois planos diferentes de enunciação,

acrescenta Benveniste a variante inclusão/exclusão da relação EU-TU, de índole accional. A

terceira pessoa, no mundo das acções já acabadas e concebidas como passadas, não apresenta

carácter opositivo relativamente à primeira e segunda pessoas, como acontece ao ser activado

o dispositivo formal do discurso. Sem o objectivo de interferir no mundo, o discurso narrativo

40
autoconstrói-se: “ (...) personne ne parle ici; les événements semblent se raconter eux-

mêmes.”47 Os objectos representados não pertencem ao campo de experiência de um possível

responsável pelo relato; eles são, sim, componentes da construção de uma experiência de vida

que vai emergindo da história à medida que esta progride.

Weinrich enfatiza a funcionalidade dos deícticos integrados no âmbito do texto ao

descrevê-los como indícios instrucionais obstinados das duas atitudes de locução48: uma

atitude tensa, a do comentário, exercício da acção humana, onde os sujeitos intervenientes não

se podem ilibar de estarem implicados enquanto agentes de modificação de estados

epistémicos; uma outra atitude distensa, onde as palavras são inócuas, pois radicam num

ambiente estranho ao locutor e alocutário, meros espectadores de um drama que não lhes diz

respeito. Quer o tempo, quer o espaço, quer os sujeitos desse quadro estão em nítida ruptura

com o mundo experiencial onde radica a relação dialógica EU-TU.

2.4. Deixis “am phantasma” e narração

É focando a possibilidade de o indivíduo se libertar do agrilhoamento situacional a

que está sujeito desde o momento em que produz uma intervenção discursiva comentativa,

possibilidade essa oferecida pela evocação narrativa, que Fernanda Irene Fonseca sublinha a

associação inevitável entre a activação do sistema deíctico e a construção de referência.

Reconhecer a ramificação pressuposta de marcos de referência alternativos é admitir a

mostração e localização do ausente, mas primordialmente, a sua criação. A explicitação das

pré-determinações contextuais na narração não é mais do que a criação discursiva do seu

41
próprio contexto referencial. Então narrar é o modo enunciativo no qual e pelo qual

conceptualizamos o mundo circundante, configurando mundos possíveis.

Neste sentido, F. I..Fonseca propõe a amplificação da concepção de deixis “am

Phantasma”. Bühler nunca transcende a dimensão espacial — suporte cognitivo fundamental

à captação das potencialidades discursivas da deixis “am Phantasma” — mesmo quando

projecta o funcionamento do sistema deíctico no domínio textual. O máximo a que procede é

a uma comparação estreita entre a deixis espacial e a deixis temporal: “ La palabra aislada

ahora indica, como el aqui, su mismo valor de posición, quando se la pronuncia (....) Y lo

mismo que el aqui, también el ahora en fantasma puede ser trasladado a qualquier situación

(...)”49 Daí que « Se encararmos mais amplamente a noção de “transposição” — não

esquecendo que se trata de um termo equivalente, na sua formação, a “metáfora”— ela pode

aplicar-se também às outras coordenadas: além da transposição para o “não-aqui”, há a

transposição para o “não-agora”, para o “não-eu” e para o “ não- assim”. Transposições por

natureza utópicas. A deixis “am Phantasma” engloba todas as possibilidades de criação, na

linguagem, de marcos de referência alternativos ».50 F. I. Fonseca activa, então, um sema de

“narração”, o da sua dimensão fictiva, ao rebaptizar o conceito de deixis “am Phantasma”,

onde “ficção” e “narração” aparecem em contiguidade: “Quando me proponho rebaptizar o

conceito de deixis “am Phantasma” designando essa forma de deixis como deixis fictiva ou

narrativa, pretendo justamente sublinhar a sua importância para o estudo da narração e, em

geral, da ficção.”51

2.5. Carácter atípico do segundo caso de mostração “am Phantasma”

42
Todavia, a redimensionação da deixis “am Phantasma”, ao ser designada por “deixis

narrativa” esbate a idiossincrasia de uma modalidade de mostração do ausente: precisamente,

o segundo caso. Só ao substituirmos o formato de figuração do ausente que recorre ao

dispositivo deíctico eu-tu-aqui-agora, ao subsistema temporal actual e seus correlatos, por

uma configuração que lança mão dos deícticos do sistema inactual — lá, então, nessa altura e

respectivo subsistema inactual — é possível colocar totalmente a deixis “am Phantasma” ao

serviço da narração, enquanto fenómeno geral de transposição construtiva. Apenas uma

equivalência perfeita entre os mecanismos enunciativos activados na modalidade de

mostração ad oculos e os que potenciam e produzem uma mostração típica da narração poderá

tornar totalmente pacífica a designação de “deixis fictiva ou narrativa”.

Mas essa equivalência não se verifica plenamente. O apontar para uma evidência

mental através dos deícticos primários escapa a este enquadramento globalizante.

Assim, se colocarmos a hipótese de o segundo caso de deixis “am Phantasma” não

constituir uma mera variante estilística ou simples artifício narrativo em relação ao terceiro

caso, à revelia do que afirma Weinrich (“Si le narrateur confère de la tension à son récit, c'est

par compensation (...) en disposant des signaux stilistiques de manière à provoquer la tension,

il “captive” son lecteur, il l'oblige à une attitude réceptive qui contrebalance en partie la

détente de l'attitude initiale. Outre le choix du sujet, il a recours alors aux signes syntaxiques

du commentaire, et avant tout aux temps commentatifs (...). Il raconte comme s'il

commentait.”52) deparar-nos-emos inevitavelmente com alguns paradoxos.

Esta hipótese é sustentada pela observação de ocorrências discursivas em que o

locutor invoca uma experiência de que fez, poderia fazer ou poderá fazer parte, incluindo-se a

si, e potencialmente ao seu interlocutor, como agente e recorrendo ao dispositivo deíctico do

sistema actual.

Firmada na lhaneza da descrição deste tipo de acto transpositivo, proponho para o

segundo caso de deixis a designação deixis indicial fictiva. Esta miscigenação terminológica

43
decorre da índole mista do próprio conceito: indicial, porque, em termos formais, o

dispositivo deíctico coincide totalmente com a deixis de mostração “ad oculos”; fictiva,

porque, em termos funcionais, acciona a fixação de coordenadas num contexto ausente.

À incursão num espaço e tempo que não existem no momento em que se fala —

porque pertencem ao já vivido ou porque não existiram nunca — preside a efectiva radicação

em coordenadas da situação enunciativa que viabiliza essa incursão. Considerar o contrário é

situarmo-nos apenas no campo da narrativa ficcional literária, onde esse processo de

desancoragem está de modo automático, activado por implicitação. Porém, quando F. I.

Fonseca alarga o fenómeno da deixis transpositiva às restantes coordenadas, para além da

espacial, inclui, nessa amplificação a coordenada EU que passa a ser transferida para o “não

EU”, correspondente, supostamente, a uma terceira pessoa. Ora esta transferência contradiz a

própria essência da tipologia da referenciação transposta que aqui descrevo, a saber, a relativa

ao acto transpositivo que recorre aos deícticos do subsistema actual: ela apaga o próprio

momento em que a transposição se efectua e mediante o qual podemos constatar que o sujeito

enunciador se identifica formalmente com o sujeito transposto. Neste tipo de formato

enunciativo é, então, como vemos, a omnipresença da primeira pessoa, que percorre quer um,

quer outro plano enunciativo, fenómeno banido por Benveniste do âmbito da “história” e

excluído por Hamburger da esfera da ficção.53

Sublinhada a especificidade da deixis indicial fictiva, começam a emergir, de acordo

com o nosso conhecimento de falantes e contadores de histórias, os paradoxos a que acima

aludi. Ei-los:

Se, por um lado a enunciação que patenteia o segundo caso de deixis “am

Phantasma”:

— não dá uma imagem da ocorrência discursiva;

— não apresenta um fim ilocucional;

44
— não evidencia intersubjectividade, sendo que o percurso discursivo é da inteira

responsabilidade do locutor;

— carece da explicitação das pré-determinação contextuais

também é certo que numa enunciação desse tipo:

— o locutor não é mero espectador, como já tive oportunidade de referir, do “

teatrum mundi” representado; como tal, não é totalmente líquido podermos falar

aqui, ao nível de efeitos textuais obtidos, de uma atitude de locução distensa;

— o subsistema verbal — Pretérito Perfeito, Presente, Futuro — cumpre o papel do

subsistema inactual;

— este Presente não corre como uma flecha, não é transitório, não parte do indivíduo

como o Presente da enunciação: antes está fixado numa eternidade imóvel.

Do que fica dito, é possível avançar já com algumas ilações intermédias. Em

primeiro lugar, há que referir que a deixis indicial fictiva estala a temporalidade da nossa

experiência vivencial, da ordem das coisas, abalroa a estrutura do tempo gramatical. Por outro

lado, esta submodalidade de mostração simula o mundo comentado e recria-o: o locutor pode

mobilizar a própria situação que representa.

Em face disto, penso ser necessário proceder à reconsideração da noção de “

mimetismo” no que toca à focagem das associações entre deixis do plano actual e deixis do

plano inactual ou fictiva. Segundo Fernanda Irene Fonseca: “(...) deixis temporal fictiva: trata-

se da reprodução mimética das relações que se estabelecem à volta do marco de referência

enunciativo — o agora — à volta de uma marco de referência transposto — no caso da deixis

temporal, então.”54 Podemos encontrar este mesmo tópico quando a autora explicita a noção

de “deíctico”: “a referência anafórica e a referência fictiva têm um carácter deíctico na

medida em que não deixam de pressupor uma referência às coordenadas zero da enunciação

— mediata, no caso da anáfora, mimética no caso da deixis fictiva.”55

45
Ora, considero que este segundo tipo de deixis “am Phantasma” se funda também na

reactivação dos mesmos sinais deícticos e não só na imitação das relações estabelecidas entre

os deícticos de um e outro plano, actual e inactual.

O que acontece num enunciado em que vigore a deixis idicial fictiva é que não é

possível verificar uma referência gramaticalizada às coordenadas da enunciação; o que ocorre

é o estabelecimento de novas coordenadas, referenciadas pelos mesmos deícticos, totalmente

desenraizadas e em ruptura com a situação de enunciação original. Há uma radicação inicial

das coordenadas enunciativas e esse fenómeno é multiplicado, de modo independente,

recusando a enunciação uma radicação definitiva. Daí podermos falar de um mimetismo ao

nível das relações entre um e outro subsistema deíctico, mas também no sentido de cópia fiel

da situação enunciativa original no seu conjunto. Em consequência deste facto, quase

seguíamos a ilusão de que é possível dispensar o recurso à explicitação dos elementos

extralinguísticos constitutivos do contexto situacional automaticamente compartilhado, não

fora a constante descrição dos mesmos.

Por esta ordem de ideias, parece problemático associar a deixis indicial fictiva à

enunciação narrativa. E, no entanto, essa associação, tendo em conta o fenómeno da deixis

“am Phantasma” na sua globalidade, é inevitável.

Vejamos as fontes desta contradição.

Bühler, aquando da apresentação do segundo e terceiro tipos de deixis “am

Phantasma”, avança com concretizações associadas à literatura infantil de tradição oral, bem

como ao cinema moderno e, de uma maneira geral, ao “país de los cuentos”. Considero

necessário sublinhar, a este propósito, o facto de a narração surgir comummente integrada no

comentário: para o relato de um conto infantil / popular o locutor apresenta perante o seu

auditório primeiramente o móbil que o leva a proceder a tal relato; a “narratio” da “dispositio”

da retórica antiga é uma ilustração breve de fenómenos apresentados no comentário; o mesmo

facto ocorre numa crónica de jornal ou noticiário televisivo, bem à semelhança dos nossos

46
discursos quotidianos. Neste sentido, o alocutário assiste e participa do próprio fenómeno de

transposição. Reafirmo o tautologismo: à desancoragem presidiu a ancoragem enunciativa.

Aliás é precisamente este estado de coisas que o autor inicialmente expõe: o locutor orienta o

alocutário e convida-o a transpor-se para o mundo do ausente recordável ou imaginável.

Depararmo-nos com um discurso que não faz este convite é situarmo-nos ao nível da

instituição literária, forçosamente, e isso não é tocar no essencial do problema que aqui

invoco56. Neste caso, a deixis do discurso literário vai apontar para o espaço institucional da

literatura, que se impõe enquanto circuito fechado, apagada que está a ramificação

relativamente à situação enunciativa / produtiva que a originou — inadvertidamente

identificada com o acto de escrita do autor.

Esta limitação, acarretada pela associação narração — narrativa ficcional literária,

tolhe um factor de máxima importância para a consideração da função discursiva da deixis

indicial fictiva : o facto de o EU do comentário ser o mesmo EU da narração. O EU do

discurso fictivo / narrativo é um EU textual, mas no plano da deixis indicial fictiva ele é

textual e instância discursiva, o mesmo podendo acontecer para o TU. Só esta acumulação de

estatutos permite essa imitação estrita da situação enunciativa original.

Consideremos, agora, um discurso composto de uma multiplicação de situações

enunciativas, imitativas de uma situação enunciativa original. É o caso do locutor que tende a

recordar ou imaginar factos tal como se os estivesse a viver no momento em que os descreve,

fenómeno recorrente no discurso literário e no discurso não literário. Até que ponto é lícito

incluir este discurso na esfera da narração, tendo em conta o que já ficou exposto?

A minha interrogação fundamenta-se também na necessidade de relevar a dimensão

temporal em que se funda a narração. Se a linguagem traduz a experiência humana do tempo,

na narração a linguagem diz o não presente enformado já numa configuração temporal.

Sabemo-lo, seguindo os passos de Benveniste, Weinrich e, necessariamente, Ricoeur (1983).

A unidade temporal emerge do texto, limando o heterogéneo, a diversidade, as contiguidades

47
aleatórias, fundada na arquitectura global da acção onde agentes, circunstâncias, causas e

efeitos se encadeiam numa totalidade significativa.

Repito então: que possibilidades configurativas pode oferecer a produção de um

discurso em que as evocações se processam mediante a reactualização, re-ocorrência simulada

de contextos situacionais / situações discursivas ausentes, como é o caso da produção

discursiva efectuada nos moldes da deixis indicial fictiva? Recorrendo aos deícticos do

susbsistema inactual, o locutor distancia-se, faz um cálculo e organiza o mundo a que assiste

por sua própria representação. Mas como poderá levar a cabo esta tarefa o locutor que, pelo

discurso, se coloca, e entretanto está outra vez, dentro da cena evocada? Como já referi

acima, a deixis indicial fictiva potencia um efeito de mimetismo directo das coordenadas

actuais. Ora, a narração é a negação desse mimetismo. Narrar é sinónimo de alienação

explícita das coordenadas situacionais actuais, instaurando-se um ambiente discursivo não

accional. Logo, o acto narrativo acomoda-se mal a essa incursão no mundo ausente efectuada

pela coexistência de coordenadas actuais.

Na verdade, no discurso que integra recorrentemente uma mostração / localização /

referenciação deste tipo não podemos observar uma genuína libertação do constrangimento

deíctico. Ocorre, antes, a substituição de um constrangimento por outro. Só neste registo é

possível perguntar “Em que tempo estás?”, ou, mais estranhamente, “Quando estás?”, visto

que efectivamente o locutor não localiza situações e acontecimentos em relação a um agora.

Ele mostra-se a si e ao seu alocutário a viver tais acontecimentos. O locutor só poderá fazer

uma evocação se for detentor de uma impressão deixada no seu espírito que aí permaneça

incólume. A deixis indicial fictiva substitui a impressão das coisas passadas por uma vivência

actual — ou igual à actual — de tal modo que essas coisas passadas passam a existir pelo

discurso, mas é como se sempre tivessem existido, em concomitância com o plano actual.

Deste modo, a deixis indicial fictiva não possibilita uma disposição configurante da existência

48
capaz de dar resposta às perplexidades impostas pelo tempo ao homem: bem pelo contrário,

intensifica-as.

É com base nesta fundamentação que me permito concluir que a deixis indicial

fictiva não pode corresponder a um artefacto técnico ou estilístico em assessoria ao modo de

enunciação narrativo. A sua idiossincrasia, que penso ter ficado provada, eleva o discurso,

composto por constantes reproduções cabais de situações enunciativas originais, à categoria

de modo de enunciação misto, pois ele vive da fusão dos dois modos enunciativos.

2.6. Operacionalização

É chegado o momento de começarmos por olhar para o que, neste âmbito, ocorre na

arquitectura global discursiva activada pelos locutores / personagens, integrados que estamos

no nível da expressão endógena ao romance A Ordem Natural das Coisas. Os processos

evocativos disseminados ao longo dos grandes monólogos destes locutores assumem formatos

variados mas, uma vez activados, tornam-se quase obsessivos.

A representação / recriação de quadros ausentes pode ser feita nos moldes “puros” da
deixis indicial fictiva:

“... é Abril e estou a inclinar-me para ti na pastelaria onde te encontrei pela primeira vez, com
duas colegas todas risinhos e cochichos, a mastigarem pastilhas elásticas diante de batidos
de morango, e perguntei se não te importavas que me acomodasse à tua mesa com o chá de
limão dos constipados.” (p.21)

A instância discursiva referencia e cria, como se explicitasse, a coordenada temporal e, numa

atitude de locução eminentemente dramática, mostra a si próprio o seu gesto, enquanto EU

49
textual, num instante que se sobrepõe a T0, fenómeno potenciado pelo recurso ao Presente

“é”, “estou”.

Este Presente, enquanto deíctico indicial fictivo, apenas copia formalmente o

Presente de uma enunciação actual original, mas não os seus efeitos semânticos. Sabemos que

no momento tido como ponto de referência original, do discurso não transposto, este tempo

verbal não referencia o instante transitório, mas antes um intervalo de tempo com uma

margem de validade mais ou menos alargada, sempre limitada, oponível aos tempos do

passado e do futuro e coincidente com o momento da enunciação. A partir da altura em que o

Presente serve a descrição de um momento de enunciação ausente, temos de assumir o

necessário desfasamento temporal entre o fazer e o dizer. Então, o efeito semântico é o de

uma duração não confrontada com nenhum constrangimento: o quadro é retido na memória

em curso de ocorrência e quando evocado, a língua é capaz de enformar genuinamente esse

desejo de evocação. Para tal, este Presente assim activado perde as suas funções semântico-

morfológicas que detém no espectro do subsistema temporal actual, para desempenhar a

função de presentificação fiel do ausente dotado de intemporalidade.

Ao assistirmos às elocuções que se vão alternando capítulo a capítulo, detectamos

esta mesma estratégia de transposição para um passado recriado, activada de modo

notoriamente insistente, mas dispensando a enunciação o recurso à conjugação verbal no

Presente:

“... entraram-me as rolas do mundo pelo quarto dentro, não cinco, nem sete, nem dez, dúzias
e dúzias de rolas pelo quarto dentro, abri a porta, senhor, e só ouvia arrulhos, tanta
passarada que nem com a cama dava, asas, bicos, olhos, caudas em leque, patas, penas
que subiam e abaixavam sem que ninguém as soprasse, pensei em fugir, abandonar a mala,
a escova de dentes, a roupa, dar uma volta à chave, descambar por ali abaixo a caminho da
rua e só parar no terreiro do Paço, frente aos cacilheiros, mas uma voz de mulher chamou-
me pelo nome do meio das aves e era ela, amigo escritor, a Lucília sorrindo-me do colchão
coberto de poeira e de ovos pintalgados, o chulo preto fora a Cabo Verde ao funeral da mãe,
e ei-la sozinha, quem diria, sem ter de dar ao útero na noite da Avenida, sozinha, pá,
tranquila, sem apanhar bofetões, sem descomposturas, sem gritos, a beber o seu alcoolzinho
de drogaria, a Lucília, o sonho deste teu criado, a pequena ideal, espojada nos meus lençóis
a oferecer-me a garrafinha, e mais rolas no peitoril, e mais rolas nos algerozes, e mais rolas
no quarto, rolas brancas, azuis, cinzentas, rolas diferentes das rolas da Praça da Alegria,
rolas passeando-se no soalho, no tampo da única cadeira, da única mesa, rolas sobre o
peito, sobre os rosto, sobre o sorriso, sobre as coxas da mulata, rolas a dar com um pau,
50
amigo escritor, chamando-me para a almofada em que todas as auroras agonizo crucificado
pela colite, rolas e a Lucília, rapaz, à minha espera, a fazer-me sinais com a garrafinha, a
deitar-me a língua de fora, a desarrumar-me em caretas, a troçar-me com ternura, a Lucília,
safa do preto, ao meu alcance, a conversar comigo, a desafiar-me, a descer-me o polegar até
ao cinto, até à braguilha, a Lucília a descalçar-me, a desabotoar-me a camisa, a desapertar-
me a fivela, a beijar-me, a puxar-me contra ela, a pedir-me.
Chega aqui Portas (...)” (p.69,70)

O relato do episódio efectua-se inicialmente pela ortodoxa radicação nas

coordenadas da enuncição actual — correspondente ao terceiro caso de mostração do ausente

inventariado por Bühler: “Maomé e a montanha ficam cada um em seu lugar” — facto

apurado pela presença do Pretérito Perfeito e do Mais-que-Perfeito. Mas esta referência

directa esbate-se rapidamente: de imediato, locutor e alocutário abandonam a esplanada em

frente à Faculdade de Medicina e transitam para o quarto de L2. Este transporte é denunciado,

em primeira análise, pela indigitação em “ ali abaixo a caminho da rua” e “ ei-la sozinha”.

O que inicialmente concluímos ser uma narração, transformou-se na descrição de um


quadro co-referenciado. Se, como já tive oportunidade de demonstrar, o locutor é
simultaneamente instância discursiva e objecto textual, o mesmo acontece com o alocutário
cujo papel é manifestado pelos vocativos “pá”, “rapaz”, “amigo escritor”: L2 exige do seu
alocutário a máxima atenção na observação da cena que ambos têm à frente. E é de facto de
uma descrição que se trata. A sucessão / ordenação lógico-temporal, o mimetismo das relações
anterioridade, concomitância, posterioridade, estão suspensos. O acto de observação do
ausente e de enunciação é concomitante às acções desenvolvidas, não se verificando um
desfasamento entre o fazer e o dizer, primordial na concepção da configuração narrativa. O
marco de referenciação temporal é agora móvel, acompanha a transição de quadro para
quadro. Só é possível chegar a esta constatação se, como me parece lícito defender,
atentarmos no significado temporal de presente assumido pelo Infinitivo antecedido de
preposição. Não saímos do registo potenciado pela deixis indicial fictiva: “ [ a Lucília está] a
oferecer-me a garrafinha” (...)”[está] a deitar-me a língua de fora” (...)”[está] a desarrumar-me
em caretas”, etc.

Mantém-se a questão: em que modo enunciativo podemos albergar esta modalidade


de representação fictiva? O propósito de L1 é confesso:

51
“(...) amaldiçoando a história que conto (...)”

Mas que história é possível apurar? Que concatenação temporal-causal resulta desta
constante radicação em coordenadas enunciativas transpostas, concorrentes com as
coordenadas actuais? E quais os seus actores?
Tentarei trazer algumas respostas a estas questões no curso dos capítulos posteriores
deste trabalho.

52
Capítulo 3. Do domínio do tempo à construção de mundos

«Mais pour le linguiste, et les fins qu'il poursuit, cette image


optima du temps [ le paronamisme du temps] est un instrument
insuffisant. Son défaut vient précisément de sa “perfection”.
Ce qu'elle offre au regard, c'est du temps déjà construit en
pensée, si l'on peut s'exprimer ainsi, alors que l'analyse
demanderait qu'on vit du temps en train de se construire dans
la pensée.»

(G. Guillaume, Temps et Verbe.)

3.1. Uma textura discursiva particular

À medida que começamos de percorrer as locuções constitutivas do romance em

estudo, podemo-nos surpreender em face da dispersão temática que evidenciam, gerada pela

desconcertante atitude dos locutores: eles evocam quadros, imagens, cenas de alcance

variado, pequenos fragmentos ou parcelas de mundos vividos que se intersectam mediante o

impulso aleatório da memória. As profusas incursões no passado surgem à superfície textual

reduzidas a pequenas sequências, abandonadas ou retomadas ao critério do fluxo das

recordações, daqui resultando um ritmo discursivo fortemente sincopado. A retoma de

microestruturas textuais ocorre inevitavelmente, mas só após um corte no tema e no tempo

que se dá inesperadamente e cuja duração é irregular. Damos conta de que a articulação

53
anafórica é alheia a um esquema discursivo harmonioso e a detecção de isotopias é um

processo sinuoso.

A linearização de blocos textuais, regidos por um tópico subtemático autónomo,

parece não obedecer a nenhum trajecto semântico-ideológico pertinente. O leitor faz esforços

acrescidos para apurar um rumo discursivo unitário capaz de congregar fragmentos de

enunciação espargidos em várias direcções temporais. O aparente despropósito com que eles

se impõem à mente dos locutores desencoraja, à partida, a tarefa de procurar, ao nível local do

discurso, uma conexidade intersegmental vincada. As proposições não se concatenam por

laços de causalidade, sucessão temporal, dedutibilidade ou indutibilidade, antes parecem

justapor-se aleatoriamente. Este fenómeno tem como reflexos ao nível da superfície textual, a

precária articulação frásica e oracional manifestada na recorrência insistente da vírgula, nos

hiatos entre orações, na ausência de verbos instrucionais de transposição deíctica ou de

introdução de discurso relatado, ao serviço da expressão de associações livres de conteúdos

psíquicos.

Naturalmente, estas constatações já não causarão perplexidade se reconhecermos, no

universo textual dado a análise, a expressão espontânea de pensamentos em gestação,

radicada no presente de uma enunciação interiorizada umas vezes e outras, verbalizada

efectivamente.

“(...) a memória tem os seus mecanismos próprios, o seu ritmo, as suas leis, os seus
caprichos (...)” (p.33).

A necessidade de verosimilhança no revelar de monólogos interiores, que algumas

vezes se mascaram de diálogos, impõe a presença de uma estrutura discursiva elíptica,

sincopada, caótica. A tentativa de mimetizar a corrente de consciência dos locutores está

subjacente à opção por esta textura discursiva. O ritmo discursivo irregular arrasta consigo a

subversão da linearidade cronológica da configuração da experiência humana, isto porque “ la

structure de la mémoire sémantique ne reflècte pas une structure logiquement hierarchisée”57.

54
À excepção de L4, L9 e L10, todos os locutores têm ou elegem um interlocutor

formal ou real.

L1 produz um pretenso diálogo, na medida em que o seu interlocutor — Iolanda —

está apenas fisicamente presente. Na verdade, àquele está-lhe vedada qualquer hipótese de

interlocução ou de comunhão afectiva. Ainda assim, L1 não abdica de vocalizar o seu

monólogo:

“ Quando me calo no colchão (...)”(p.30)

“(...) ao falar-te das minhas tias (...)” (p.40)

“(...) Meu amor, ouve (...) (p.13)

“(...) te abandono e me calo (...)

“ (...) e sem cessar de falar (...)”(p.15)

“(...) logo que adormeces e uma brancura de olmo com pássaros nos atravessa o quarto,
arengo sem que troces, converso pairando sobre ti (...)”(p.12)

L3, L7 e L8 invocam um interlocutor, passível de estar co-presente, mas que nunca

abandona o seu mero estatuto de apóstrofe. Já L5 e L6 tomam como interlocutores indivíduos

definitivamente ausentes.

Tendo em conta o espectro das elocuções que perfazem os livros do romance, a de

L2 revela a singularidade de se inserir numa situação de interlocução efectiva. As falas do “

amigo escritor” são detectadas a partir de sinais de interlocução no discurso de L2 —

interrogações e exclamações — e das inflexões temáticas impostas a este pela voz do

interlocutor:

“(...) repare, não se mexa, repare aquele ali de casaco às riscas a conversar com um velho
parece mesmo o seu fulano, não, mais atrás, junto à porta dos lavabos, o nariz, a boca, o
formato do queixo, acertei? Tem razão, desculpe, este é loiro (...)” (p.29)

55
e do eco da enunciação do interlocutor na locução de L2:

“...Quando foi isso, pergunta-me você?”; “ Quem, o gaiato? A sério que é o gaiato que lhe
interessa? (p.34).

Todavia, esta especificidade é superficial e não chega a ser suficiente para isolar, na

sua essência, esta locução das demais: se por um lado se escapa ao formato de solilóquio, que

encontramos nas outras locuções, por outro, vemos na verdade que ela patenteia também uma

índole monologal. L2 tem por objectivo extorquir algum dinheiro ao seu interlocutor. Neste

sentido, descreve o seu mundo actual, a degradação, solidão e pobreza extremas; esboça

mundos paralelos [ “Nunca se imaginou nu, a cheirar a formol, deitado de barriga para cima numa

tina de mármore à espera que lhe rebentem as costelas com uma tesoira enorme?” (p.25)], exprime

a hostilidade que a cidade excerce sobre ele. O seu projecto discursivo é traçado fora de

qualquer regime de cooperância. Momentos há, raros, em que o locutor se vê compungido

(pelo que ficamos a saber através dos sinais linguísticos ou extralinguísticos, reflectidos na

sua locução) a reorientar rumos discursivos, harmonizando-os em função de um fim

ilocucional que se pretende comum, sob pena, não tanto de deixar de ter interlocutor, mas, em

consequência disso, deixar de usufruir de algumas benesses materiais:

“Porém, indo direito ao que lhe importa a si (...)”(p.26)

Efectivamente, é a primeira pessoa do singular que predomina e não o “ele” relativo

à personagem sobre quem o alocutário pretende obter informações, móbil primeiro desta

pretensa interacção discursiva. L2 abandona de imediato e a todo o momento esse propósito e

então assistimos igualmente à mesma heterogeneidade de sequências discursivas

relativamente a um desejado contexto isotópico.

Será então lícito concluir, com base na constatação do predomínio destes discursos

sincopados, a respeito da inexistência de uma totalidade significante ou pertinência

56
semântica? Será que não experimentamos qualquer sentimento de unidade ao longo da

recepção das diversas elocuções?

Acima do carácter inconsútil de blocos de enunciados, de uma reconhecida

conexidade periclitante encontramos uma intenção comunicativo-expressiva global que,

afinal, perpassa todas as locuções e que chega a ser explicitada em alguns momentos:

“ (...) a questão é que preciso tanto de um pretexto para poder chorar, para encostar a minha
angústia ao pescoço dela e chorar (...)” (p.35);

“(...) e eu, cansado de não ter ninguém a quem contar tudo isto, cansado do sol e ansioso por
desabafar (...)” (p.114)

Norteia a produção discursiva de todos os locutores a expressão gratuita de um

profundo abandono, de uma imensa exaustão de uma vida desconstruída, da fuga à inelutável

crueldade da realidade.

Com base na análise micro-estrutural das várias locuções, detectamos temas

desgarrados que ora radicam na rememoração, ora no projecto, ora no factual, ora no

meramente hipotético. Mas alargando a perspectiva de abordagem, vemos emergir do discurso

uma evolução temática construída de cenas estáticas que cronologica, mas não textualmente,

se alinham.

Atentemos, a título de exemplo, novamente, na elocução de L2. A sequencialidade

de patamares temporais deixa-se topicalizar da seguinte forma: infância em Odemira; “mil

novecentos e trinta e tal” em Marvila; Posto da Pide em Damão; Póvoa do Varzim; Hotel da

Ericeira em mil novecentos e cinquenta; Revolução de Abril. Ainda que interrompida por

constantes regressos ao presente da enunciação, é inegável a detecção de uma configuração

coerente dos discursos. À desordem interfrásica não corresponde — nem poderia

corresponder — desordem semântica. Diria que o contexto isotópico de cada locução é lato,

57
isto é, sob cada quadro temporal, albergam-se comentários e reflexões tematicamente

descontínuos: só assim conseguimos esbater a heterogeneidade dos elementos que o integram.

A partir da confirmação deste estado de coisas, é igualmente possível concluir que,

no que toca ao tipo de regularidades sequenciais58, deixamos de ver apenas discursos

desenformados para reconhecermos afinidades, ainda que ténues, com a sequência narrativa,

já que encontramos uma sucessão temporal mínima, ou com a estrutura monológica, pela

exposição de estados incoativos de processos mentais.

3.2. Contiguidade de planos temporais

Se são pacíficas as ilações retiradas a respeito da consistência de veios semântico-

referenciais que todas as elocuções patenteiam, desçamos, agora com o pormenor necessário,

ao nível local do discurso.

Contraditoriamente, já o referi, o que aí encontramos é uma refracção caleidoscópica

de evocações fragmentadas, reflexões e projectos discursivos entrecortados, servida de

enunciados tematicamente diferenciados e apenas justapostos. As múltiplas incursões no

passado são de alcance variado e encontram-se reduzidas a breves sequências disseminadas ao

longo do discurso.

3.2.1. Os articuladores

58
A recorrência a unidades morfemáticas responsáveis por uma conexidade linear de

índole meramente aditiva é de uma evidência incontornável. A insistência obstinada59 na

activação de um paradigma limitado de conjunções, partículas e expressões comparativas visa

sublinhar uma ligação de enunciados, à partida, temporal e semanticamente desordenados.

Estas unidades locais assumem a função de índices instrucionais de alternância de planos

temporais. Introduzem invocações breves, a todo o momento mutiladas por constantes

retomas do presente de enunciação. Mais do que isso, elas naturalizam o deslize de uma para

outra experiência temporal e denunciam assim a percepção da realidade efectuada pelos

locutores, fundada na construção de um fluxo temporal ininterrupto, a partir da atomicidade

de quadros temporalmente dispersos, linearizável em função da ordenação de uma lógica de

afectos. Designo estes elementos por articuladores diegético-temporais. Esta fórmula

terminológica cobre as duas dimensões de coesão onde estas unidades actuam: por um lado,

elas permitem o encadeamento, não sequencializado, de episódios e quadros, tradicionalmente

albergados na noção de história; por outro, cobrem fossos entre universos temporais,

produzindo uma sequencialidade acronológica. Destaco os exemplos mais recorrentes:

“(...) no dia seguinte estávamos nós numa sala com uma mesa em cima de um estrado e
bancos como no cinema desmontável em Esposende, onde o filme e o mar se confundiam
(...)”(105)

“(...) em acusações que não entendo hoje como não entendi nesse domingo (...)”(p.157)

“(...) e eles nesta conversa e eu em Esposende, há trinta e seis anos (...)”(p108)

“(...) a Teresinha interrompeu o crochet para fitar-me, e eu era outra vez criança e pasmava
para as dioptrias que lhe transformavam os olhos em insectos rodeados de patas de
pestanas.”(p150)

“(...) e adormeci embalado pelas horas dos relógios, a sonhar com os militares (...) tal como
aqui em Alcântara (...) sonho com a festa do nosso casamento (...)”(p.44)

“(...) do mesmo modo que hoje a tua doença, Iolanda, me surpreende (...) também na época
da minha infância (...) os meus pais constituíam um absoluto mistério para mim (...)”(p.45)
59
“(...) a mudez do quarto assusta-me de receios que compreendo mal, semelhantes ao medo
com que escutei o médico de Mafra (...) (p19)

Há articuladores que encetam a deslocação do locutor, originariamente radicado no

presente enunciativo, para uma esfera temporal paralela, fenómeno abrangido pela

modalidade de mostração “am Phantasma”; outros há que inauguram o processo inverso, ou

seja, o regresso à situação enunciativa actual (“a montanha vem a Maomé”). Reconhecemos,

então, dois movimentos transpositivos. No primeiro, o presente é tomado de assalto pelo

passado:

“(...) e a casa onde morei antes da família da minha mãe surge da noite (...)”(p12) ;”(...) e a
infância surge diante de mim, indiferente à tua zanga, nessa manhã de Alcântara (...)”.

O outro movimento diz respeito à projecção do presente no passado:

“Tudo isto se passou há muito tempo, porque tudo se passou há muito tempo, mesmo o que
acaba de acontecer agora.”(273)

Mas o ponto de referência temporal pode ser derivado de um momento de que se fala

e então o articulador exerce uma transposição temporal de segundo grau:

“(...) era domingo como o domingo em que enterrámos o nosso pai (...)”(p.150).

O marco de referência transposto efectua a desancoragem do discurso da situação

actual de locução. É, por sua vez, nesse mundo ausente que ocorre nova transposição, com

novo marco de referência, responsável pela instauração de outro enquadramento temporal.

Mantendo-se indistintamente os mesmos deícticos — quer morfemas verbais, quer

advérbios e locuções adverbiais, espaciais e temporais— na referência de um e outro plano

temporal, resta aos articuladores diegético-temporais a função de vincar a suspensão da

60
oposição entre o sistema actual e o sistema inactual, auxiliada pela não rara omissão do

intervalo de tempo entre a situação em que se fala e a situação de que se fala. Daqui resulta a

instauração de um curso temporal contínuo que apaga hiatos temporais, um deslize perfeito do

plano actual para o pano inactual / ausente. Paralelos, “o que foi” e “ o que é” estabelecem

uma relação de contiguidade; aproximados por relação de semelhança, estabelecem

associações afectivas. A constante retoma do presente da enunciação é tida como processo

natural: ao passado de há cinquenta anos segue-se o presente da enunciação, como se os

universos temporais ocorressem numa sucessão imediata, como se a ordem textual seguisse o

curso cronológico natural.

De notar ainda o recurso a um contingente mínimo de articuladores de falsa indução:

“...e as minhas tias, que tricotavam naperons em cadeirões estalados pelo uso, iluminadas
pelo fio de luz que atravessava as cortinas, ergueram-se à uma, enxotando com as agulhas o
bicho que embateu num pêndulo despertando uma saraivada de carrilhões e de soluços de
cucos, e por fim, Iolanda, quando espirravas pela terceira vez, a puxar lenços de papel da
carteira, lá assomou uma ampolazinha verde a navegar na rotunda...” (p.60,61)

“Por fim”, locução adverbial de gestão discursiva, serve prototipicamente a

introdução de um segmento textual aposto a outro, anunciando o termo de uma sequência

enumerativa e denunciando associações de índole temporal causal. A activação deste

articulador neste contexto frustra essa expectativa, já que, em vez de instruir no sentido de um

encadeamento de sequências radicadas num mesmo contexto isotópico e temporal, introduz

uma inflexão temática patente no segundo segmento deste excerto. A agramaticalidade na

activação desse articulador presta-se à expressão da transição de mundos distanciados, ao

abrigo de uma relação temporal-causal, que efectivamente não se verifica. Esta prática leva

mais além o fenómeno de conexidade afectiva do que a simples adição ou comparação.

3.2.2. Os lexemas verbais

61
Igualmente responsáveis pela marcação das operações de transposição de planos

temporais são os lexemas verbais e expressões de cariz evocativo. Deste paradigma interessa

analisar a semântica de alguns verbos pelo enfoque interpretativo que potenciam. Os verbos

REGRESSAR, RECUAR, SURGIR assumem a função de marcadores transpositivos explícitos ao

instituírem os locutores enquanto crononautas e naturalizam a transição de universos

temporalmente afastados:

“(...) regressando, Iolanda, à casa onde vivi antes de conhecer a família da minha mãe
(...)”(p.13)

“(...) regressei de imediato aos domingos de há vinte e cinco anos (...)” (p.118)

“(...) obrigando-me a regressar ao passado a fim de me impedirem o presente (...) “(p.196)

Se o contexto em que se inscreve o lexema REGRESSAR, no primeiro segmento citado

desta série, apenas nos pode levar a concluir acerca da sua ambiguidade funcional, no sentido

de que quer o valor de movimento temporal, quer o de retoma temática terem plausibilidade

interpretativa, já o mesmo não pode ser dito a respeito dos verbos presentes nos segmentos

dos exemplos que àquele se seguem. Aqui, o movimento retrospectivo implicado no conteúdo

semântico do verbo apoia-se na representação metafórica do tempo a partir do espaço. Assim,

segundo uma concepção linear do tempo, o passado situa-se atrás do espaço em que está o

sujeito enunciador, correspondente ao instante em que se fala; o futuro localiza-se à frente

desse espaço / instante. O mesmo pode ser dito a respeito do lexema RECUAR em sequências

como:

“(...) tenho sono, repeti, vou dormir um bocadinho, não me despertem, e recuei anos e anos e
a criada abria as persianas (...)”(p.163).

62
Mais uma oportunidade para sublinhar a pertinência da teorização de K. Bühler 60. O

conteúdo semântico do verbo SURGIR possui um carácter metalinguístico, pois comenta o

resultado do acto de invocar, ou seja, chamar pela palavra um espaço-tempo ausentes:

“(...) a casa onde morei antes da família da minha mãe surge da noite (...)”(p12)

“( ...) e a infância surge diante de mim, indiferente à tua zanga, nessa manhã de Alcântara
(...)”(p.60)

“(...) o passado surge-me tão claro que não necessito de fechar os olhos para ver de novo o
senhor Fernando descendo as escadas (...)” (p.68)

“...e a Julieta surge, de bibe, com um laço a soltar-se do cabelo..”(p158)

3.2.3. Ausência de instruções de transposição

O papel instrucional e conectivo levado a cabo pelos articuladores e verbos referidos

chega a ser, frequentemente, dispensado e então o que encontramos à superfície textual é a

simples vírgula ou ponto final no limiar de enunciados díspares no que diz respeito à sua

referência temporal.

O efeito de contiguidade entre experiências e quadros temporalmente descontínuos

purifica-se:

“(...) mimosas brotavam dos penedos e nos chalés flutuavam as candeias dos habitantes de
outrora, até que uma camioneta de carreira arrebanhava os veraneantes que seguiam a
chocalhar para Lisboa, à medida que as vagas engoliam a praia, o céu se cerrava em nuvens
de tempestade com arestas de gaivotas gritando pelas rochas, as copas das árvores
libertavam cardumes de pintarrochos dementes, e a minha madrinha, indiferente à
tempestade, pegava nas agulhas de crochet e sonhava com americanas extravagantes,
vestidas de sandálias e panamá como para uma expedição aos trópicos.
Um comboio abriu a noite perpendicular aos candeeiros da Avenida de Ceuta...”(p.15)

A transição do plano temporal inactual para o plano actual do discurso faz-se sem

qualquer demarcador de tal mudança. Tendo em conta o que preconiza Weinrich (“un signe
63
linguistique est en principe valable jusqu'à la fin du texte”61) esta actuação discursiva poder-

se-ia justificar pelo facto de a explicitação das coordenadas dos dois planos deixar de ser

pertinente já que elas foram, a seu tempo, explicitadas e encontram-se em vigência até serem

substituídas. É impossível, todavia, negar o efeito de contiguidade temporal obtido pela

implicitação dos eixos de orientação deíctica. A instrução do regresso a T0, movimento

temporal centrípeto, é da responsabilidade de um único deíctico, o Pretérito Perfeito (“abriu”),

que significa a anterioridade calculada em função do marco de referência “agora”. Este

fenómeno pode agudizar-se quando há dois planos temporais cuja alternância é expressa pelo

constante e rítmico entrecruzamento de brevíssimas sequências textuais. É o que encontramos

nas locuções de L1 no capítulo 5 do Livro Primeiro ou de L5 no primeiro capítulo do Livro

Terceiro.

Aliás, nesta última elocução, o revezar contínuo entre planos temporais é servido

pela mostração de vozes, latentes na memória do locutor, na modalidade de discurso directo,

sem a introdução de verbos “dicendi”. Esse procedimento não é pontual:

“(...) apenas o desejo de um papel mais importante na máquina do Estado, apesar de tudo
estamos em mil novecentos e cinquenta, pá, temos ou não temos uma palavrinha neste País,
meu brigadeiro (...)”(136)

“(...) que nos tentava explicar que o meu mal é a artrite, rapazes, farto-me de consultar
doutores e nada (...)”

“(...) enquanto o do bigode, de palma no meu ombro primeiro e em torno do meu pescoço
depois, me fala ao ouvido acerca da necessidade de defender a Pátria, ouviste, de defender
os portugueses, ouviste (...)” (p.31)

“(...) e como na semana anterior um outro socialista com quem eu conversava há três dias,
impedindo-o de dormir, se atirou por embirração da janela, desterrando-me para a Ericeira
incumbido de espiar o albino sem lhe tocar com um dedo que mártires temos nós de sobra
(...)” (p.34)

Desde já, há que referir que a activação do discurso directo não deve ser

primeiramente tida em conta como um relato de um enunciado; antes disso, ela dá conta de

64
uma situação de enunciação. Deste modo, evoca-se uma situação de enunciação passada

através do enunciado daí resultante, criando-se a ilusão de autenticidade e de fidelidade desse

processo de citação. Posto isto, é de evidenciar , mais uma vez, a supressão de qualquer

marcador instrucional na transferência de um contexto situacional para outro, fenómeno

concorrente para o efeito de contiguidade temporal já identificado.

Sem indicador instrucional, e em face da omissão de um marco de referência

derivado, os morfemas verbais de Imperfeito e a perífrase constituída pelo Infinitivo

antecedido da preposição “a” ou Gerúndio revestem-se de protagonismo, já que acumulam a

função de sinalização de transposição deíctica, e potenciam a projecção de mundos nos quais

se vão inserir acontecimentos num ambiente aberto à ficção:

“(...) o Tejo que nos aparece em todos os postigos, que nos baloiça a cama, durante o sono,
com o seu vai-vem de berço, o Tejo e as suas luzes nocturnas que me magoavam os olhos
quando, acompanhando o do bigodinho com mais dois ou três colegas, saía a prender
comunistas (...) arrombando portas, cambulhando até um colchão às escuras (...) revistando-
lhe o quarto (...)”

“(...) domingo nas Portas de Santo Antão, contrabandistas prostitutas, palhaços, trapezistas, e
o empregado da capelista e eu e descermos, em busca de brometos, para o palácio da
Mocidade Portuguesa (...)” (p.159)

3.3. Simultaneidade de planos temporais

A transição do presente dialéctico ( pelo menos ao nível potencial ), vivo,

engendrado na instantânea e contínua mudança do que está para vir para o que já passou ( o

presente inerente à assunção do discurso, a origem da referenciação temporal ) para os

“presentes -passados”, activados pela memória, torna-se tão intensa que estes dois tempos

chegam, em alguns momentos, a fundir-se. Esta vivência a dois tempos é a grande conquista

65
do Homem que ocorre aquando da acção linguística, designadamente, da actualização do

dispositivo deíctico: “ l'éxistence du présent psychologique implique que plurieurs

événements successifs peuvent être appréhendés en une relative simultaneité “62.

Os recursos enunciativos que manifestamente concorrem para a composição desta

significação global são componentes das manipulações semânticas, autorizadas pelo discursos

literário, que denunciam esta vivência a dois tempos:

“(...) percorro caras e não distingo a que pretende (...) “(p.29)

“(...) repare, não se mexa, repare, aquele ali de casaco às riscas a conversar com um velho
parece mesmo o seu fulano (...)”(p.29)

“(...) assim estamos agora, o amigo escritor e eu, de pálpebra decepcionada nos bilhares de
Marvila (...)”(p.30)

“(...) que porcaria, tem razão, eu a comer a banana e o tipo raspando mucosas sem
consideração nenhuma e a fitar-me de longe (...) “(p.30)

A possibilidade de o sujeito falante se libertar da contigência deíctica que o prende à

situação de enunciação é extremizada na elocução do capítulo dois do Livro Primeiro. L2

transporta-se a ele e ao seu interlocutor para um universo passado. Convida o seu ouvinte a

deixar-se conduzir por campos mostrativos ausentes, os quais observa, para os quais aponta,

nos quais se reconhece, já que o seu acto enunciativo está radicado num “agora” e num “eu”

desdobrados. O acto de indigitação que efectua (“aquele ali”) consolida uma realidade

paralela. Não se trata já da mostração de um mundo hipotético ou fantástico, constituído

através de operação mental, mas, na configuração representacional de L2, de um mundo cuja

existência e actualidade não pode ser já posta em causa. Mais do que acto de transposição

deíctica, a interrogação “(...) será da nicotina, será do nevoeiro a quinhentos metros de nós?

(...)” denuncia a sobreposição de universos vividos. A referência dos deícticos Eu-Tu-Aqui-

Agora-Assim passa a ser dupla. Esta referência cumulativa do dispositivo deíctico ocorre

abundantemente:
66
“(...) já não é o grande Fausto Júnior quem conversa com o do bigode, ora repare, sou eu
(...)”

A deslocação desta coordenada fundamental — EU— para um tempo ausente não

implica, como deixei antever, o esbatimento da coordenada origo, mas antes a sobreposição

de referentes deste deíctico: EU presente e EU passado.

No que diz respeito à coordenada” agora”, a dupla referência é evidenciada pela

articulação de tempos verbais do subsistema inactual com tempos verbais do subsistema

actual:

“(...) atente-lhe no bigode à Clark Gable, que agora se percebe perfeitamente da terceira
mesa, foi quem me levou a trabalhar para a Polícia Política uns meses após a guerra,
falecera meu tio há pouco (...) “(p.30)

A acção de “levar a trabalhar para a polícia política” não pode ser primeiramente

calculada em relação a um “agora” transposto, “ am phantasma”. Se o fosse, o verbo “levar”

teria forçosamente de se encontrar no Futuro, assim como “falecera” encontrar-se-ia no

Pretérito Perfeito. “Agora” é, pois, identificável com T0 do discurso, correspondente a “neste

momento em que falo contigo, amigo escritor”, “neste ponto da nossa conversação”. Não é

possível negar, no entanto, a referência temporal endógena, parafraseável do seguinte modo:

“neste instante desta cena para a qual nos transpusemos”. O marco de referência “há pouco” é,

este sim, cabalmente transposto no sentido em que se apresenta como autónomo em relação

ao ponto de referência original. E, no entanto, tem como antecedentes o verbo no Pretérito

Mais-Que-Perfeito, radicado no ponto de referência secundário — “uns meses após a guerra”.

3.3.1. Dois sistemas de deícticos co-activados

67
No referido capítulo, a metáfora da omnipresença espacio-temporal comenta e

explora o fenómeno de alienação da situação enunciativa actual por parte dos interactantes

que ocorre por excelência no modo de enunciação narrativo. Mas o fenómeno de actualização

de experiências temporais simultâneas, gerada pela miscigenação de deícticos de referência

temporal primária (radicada na instância enunciativa) e de deícticos de referência temporal

secundária (desancorada do presente da enunciação) encontra-se disperso por todos os

monólogos. Detenho-me em dois desses momentos:

(...) e agora tínhamos vinte anos (...)” (p.150)

“(...) e fui suficientemente imbecil para acreditar naquilo, acreditar no sorriso da esposa,
acreditar na filha, e agora o soldado varava a escrivaninha do meu avô à coronhada.” (p.139)

No primeiro contexto frásico, o Imperfeito torna-se homólogo ficcional do Presente

do Indicativo e projecta o mundo assim configurado para fora do tempo ou para um tempo

outro. Este mundo descrito dinamicamente desprende-se progressivamente das coordenadas

enunciativas actuais e ramifica-se, devendo a sua própria existência ao acto de referência.

É abundante a teorização de Fernanda Irene Fonseca nesta matéria: os valores modais

do uso do Imperfeito não dependem do seu valor temporal, segundo uma interpretação

analógica, mas do facto de este tempo verbal representar a reprodução do próprio marco

original de referência deíctica, o que faz com que o seu uso matize o enunciado de valor

contrafactual e de um efeito de irreal. Fazer depender a acção verbal representada no

Imperfeito, um tempo ramificado, do ponto de referência original é explorar ao máximo esse

efeito de irreal pelo “ choque entre duas formas de referenciação deíctica”.63

A dimensão modal da referenciação deíctica integra-se por seu turno numa

abordagem fictiva da enunciação, no sentido em que se a deixis cumpre o papel de

indigitação de uma evidência material, dependendo a sua referência do contexto situacional, e

também de mostração de uma evidência mental compartilhada, ela torna, por este facto,

68
possível referir realidades que existem a partir do momento em que são referidas. Deste

modo, aquando da interpretação de enunciados como o primeiro desta série que citei, a

dimensão construtiva da linguagem e o efeito de irreal potenciadas por uma activação

particular da linguagem, que percorre quer os discursos lúdicos quer o discurso romanesco,

conduzem à conclusão relativa ao valor referencial ambíguo de “agora”: “agora”, no momento

em que falo; “agora”, no momento da cena para a qual me transpus”;” agora”, a partir do

momento em que este mundo assim representado passa a ter a consistência do mundo real.

Se restringirmos, numa primeira fase, esta proposta à vertente temporal desta sintaxe

particular, detectamos uma operação temporal heterogénea, porque faz mover consigo o

próprio ponto de referência enunciativo primordial, mas ao mesmo tempo, e mantendo a

metáfora espacial, pressupõe a permanência no contexto situacional da enunciação em que

ocorre a deslocação. Este recurso enunciativo, assim descrito, oferece ao locutor a

possibilidade de fundir experiências temporais distanciadas, tornando-o mestre do tempo e do

espaço.

Assim sendo, se o sistema deíctico permite a projecção criativa de coordenadas

origo, daqui resultando a invenção de mundos de evasão, ele também está no cerne da ficção

que afecta o próprio acto enunciativo. Afinal, vemos gerada uma “enunciação possível”,

alternativa àquela que aprisiona o locutor ao sistema de coordenadas da situação enunciativa

primordial e integradora daquela outra que se atém à formulação da realidade pela projecção

de um marco de referência ramificado. Pressupõe-se que se é possível conceptualizar, pela

activação particular do sistema deíctico, essa fusão de dois tempos, então é porque é possível

vivê-los efectivamente. É esta a interpretação que me parece plausível sobretudo para

enunciados afins ao que apresento em segundo lugar desta série, em que o valor modal do

Imperfeito se esbate, em relação ao seu uso temporal e aspectual.

3.3.2. Marcos de referência ambivalentes


69
É oportuno referir que todo o discurso de onde foi retirado este segundo excerto, o de

L5, evidencia a particularidade de radicar num marco de referência ambivalente. A

transposição firmada no ponto de referência “ um Domingo “ ocorre assim que começa o

relato dos antecedentes que conduziram à prisão de L5. Os tempos verbais e demais deícticos

são os da série inactual, em conformidade com esse mesmo marco derivado:

“(...) sempre pensei que as coisas pudessem correr mal mas não tão depressa, mas não
daquela forma. Ainda não ultrapassáramos as reuniões preparatórias (...)”

O locutor relata discursos verbalizados e os seus pensamentos no instante em que as

acções pretéritas ocorrem. Ora, é plausível considerar que esses monólogos interiores,

localizados inicialmente num tempo passado, estejam novamente em curso no momento da

enunciação actual que se finge exógena ao discurso — “Estou Aqui há séculos (...)”.

Então, é impossível apurar em que marco de referência está ancorado o enunciado

injuntivo:

“(...) devia ter desconfiado logo, devia ter comunicado aos camaradas (...)”(p.138)

Posso interpretar: “foi o que eu pensei naquele momento”; “é o que eu estou a pensar

agora”. O reconhecimento deste facto conduz igualmente à inferência relativa às noções de

simultaneidade e homogeneização temporal. Os locutores estão dotados de uma capacidade

de, através da pluri-referencialidade do dispositivo deíctico, sobreporem duas experiências

temporais. Se assim é, então o passado situa-se numa eternidade imóvel, passível a todo o

momento de actualização, indistinto do presente, também ele infinitamente extensível,

porque, pelos mesmos mecanismos linguísticos, ele será sempre presente mesmo quando já

não o for. O instante, o transitório, o efémero tornam-se eternamente repetíveis e

consentâneos com o momento actual.

70
3.3.4. Discurso indirecto livre

Os dois subsistemas deícticos manifestam-se, portanto, ao nível do relato de acções,

eventos ou descrição de quadros, sendo que, como vimos, a sua actualização corresponde a

uma marca linguística inequívoca não só da apresentação de universos libertadores da

situação enunciativa actual, mas de exploração criativa de modos de enunciação /

configuração de realidades alternativas.

Ultrapassando o relato de eventos e concentrando-nos no relato de palavras, é o

discurso indirecto livre com que nos deparamos. As conclusões que pretendo tirar ao abordar

esta matéria levam-me a contornar a polemicidade que a envolve. Procurar saber se este tipo

de reprodução de discursos é predominantemente uma forma de dar conta de pensamentos ou

se, pelo contrário, abarca largamente a mostração de falas; se se aproxima mais do discurso

directo ou do discurso indirecto; se oscila mais para a vertente de apresentação de palavras ou

para o relato e quais as fronteiras que estabelece com outras formas ambíguas de citação do

discurso, pouco contribui, por vezes, para o apuramento da essencialidade do fenómeno.

Fundamento a minha análise nas propostas teóricas avançadas por G. Reyes, porque o seu

elevado grau de inequivocidade supera a estreiteza inevitável e confessada das definições

obtidas64. A sintaxe surpreendente que solidariza “lá” e “então” com “aqui” e “agora” é o sinal

da fusão de duas perspectivas desfasadas no tempo: a do narrador e a da personagem. Mas

primordialmente, tendo em conta que qualquer tipo de discurso relatado corresponde à

(re)criação de situações enunciativas vividas ou imaginadas [(...) “imagine dezenas e dezenas de

criaturas esvoaçando por aí, e os maridos a gritarem-lhes, desesperados, Anda cá Alice (...) “(p.27)], é

a sobreposição de situações de enunciação que está em causa e, como tal, a simbiose de

universos vivenciais.

71
Como já tive oportunidade de referir65, poderemos considerar, sem forçar a realidade

textual a adaptar-se às ilações pretendidas, que cada instância discursiva, relativa a cada

locução constitutiva dos capítulos deste romance, abarca um EU — locutor / relator,

contemporâneo da enunciação englobante e um EU — personagem, entidade pertencente a

um mundo pretérito, futuro ou paralelo à actualidade da locução. Creio não deturpar o estatuto

lógico-discursivo do discurso indirecto livre ao aplicar também a esta situação a noção de

polifonia em que aquela modalidade discursiva assenta. Não é esta, de todo, a interpretação

que lhe dá K. Hamburger ao colocar o discurso indirecto livre ao lado dos verbos de “inner

action” no quadro dos recursos enunciativos reservados à narrativa de terceira pessoa. Porém,

o que nos discursos em análise podemos observar é igualmente essa contaminação de vozes

— voz actual e voz ausente — independentemente de elas pertencerem ou não ao mesmo

indivíduo. Na verdade, temos dois enunciadores temporalmente distintos e ontologicamente

coincidentes.

À luz do que ficou dito, observemos o seguinte excerto:

“(...) desde há meses me ordenaste Vem e eu me apresentei com o guarda-chuva e duas


malas gastas, neste andarzinho da Quinta do Jacinto em Alcântara para explicar que sim, que
tinha mais trinta e um anos do que tu, mas o emprego do estado, Senhor Oliveira, Não é mau
de todo, e claro que pagaria a electricidade (...) (p.12)

A banalização do desprezo pela marcação ortodoxa de introdução de discurso citado

faz com que o discurso directo (assinalado pela maiusculação) e o discurso indirecto (cujos

vestígios são o verbo “ dicendi” e a conjunção integrante) se incrustem na narração,

provocando um sentimento de indistinção de modalidades discursivas. As duas primeiras

orações deste pequeno trecho assimilam-se à modalidade de relato de acções, sem considerar

o brevíssimo momento de discurso directo. O primeiro indício de heterogeneidade encontra-se

na estrutura sintáctica de cariz oralizante, pois se suprimirmos a conjunção integrante,

repetida por contágio com a modalidade de discurso directo com que se entrecruza,

desvelamos a suposta enunciação original — “sim, tenho mais trinta e um anos...” — para

72
logo se impor o deíctico correspondente à locução englobante do discurso citado — “tu”. De

seguida, estranhamos a omissão da conjunção, já que ela tinha acabado de ser activada — “

mas (que) o emprego de Estado...” — e concluíamos que, afinal, é o discurso directo que vai

imperar, não fora o Condicional, tempo ramificado. Num segmento tão breve, a fusão de

situações de enunciação / planos temporais apenas é atraiçoada pela linearização textual.

Mas a polifonia, gerida nestes moldes, pode fazer entrar em cena dois locutores-

enunciadores ontologicamente distintos. É assim, como vimos, que o fenómeno do discurso

indirecto livre surge tradicionalmente descrito:

“Assine aqui
que o julgamento do meu irmão, acusado de furar a cidade, era amanhã (...) “(p.104)

Nesta sequência, a marcação gráfica assinala a mudança de voz: a partir da abertura

de parágrafo, único sinal delator da vigência de discurso indirecto livre, é o deíctico temporal

“amanhã”, calculado em função do marco de referência da enunciação segunda. O Imperfeito

marca o pólo do relato, o advérbio assinala o pólo do discurso da personagem. Sem esse

elemento e sem o pronome pessoal, diríamos que regressávamos à situação de locução

primordial com a ressalva do reconhecimento da ambiguidade, ao nível do conteúdo, do resto

da oração: é plausível admitir que o “dictum” seja pertença do polícia à paisana e não de L4.

A parcela “acusado de furar a cidade” adquire toda a pertinência pragmática quando

identificada como tendo sido pronunciada por aquele.

Ao potenciar a coexistência de dois espectros de coordenadas situacionais, o recurso

ao discurso indirecto livre deixa implicitada a acumulação de dois marcos de referência —

actual e inactual.

3.3.5. Comentar os próprios efeitos discursivos

73
É possível levar mais longe a noção de simultaneidade ou homogeneidade temporal.

Todas as acções / estados de coisas percepcionados pelos locutores parecem flutuar no tempo,

numa suspensão eterna. Vigora o sentimento de atemporalidade. A intencionalidade

comunicativa / expressiva que motiva a exploração dos recusos enunciativos descritos surge

não raro explicitada pelos próprios locutores:

“(...) ao mesmo tempo na cantina de Joanesburgo, ainda jovem (...) e na Quinta do Jacinto
enervado com a presença do rio (...) (p.119)

“(...) voltado para a janela e depois da janela para os esgotos e os comboios de Cascais (...)
voltado para a janela, cercado de mineiros pretos (...) (p.119)

“(...) acossado pela voz do meu pai Que mal fiz eu a Deus para ter um filho tão estúpido,
senhora? (...) a voz do meu pai que escarnecia, há quarenta anos, de mim (...) (p.155)

“(...) o que vieste aqui fazer, Fernando?, interessou.-se o filho da costureira acabado de sair
do Sótão da Calçado do Tojal, a ajustar o cinto (...)”(p.189)

Reconhecemos novamente a alta produtividade da teorização de Bühler no estudo em

curso. A submodalidade de referenciação fictiva “am Phantasma” que designei por deixis

indicial fictiva66, ou seja, a possibilidade de o locutor instalar algures no tempo — ou algures

fora do tempo — novo quadro de coordenadas, paralelas à origo enunciativa, através do

recurso às mesmas unidades deícticas, surge comentada na estrutura semântica de alguns

verbos:

“(...) a questão é que preciso tanto de um pretexto para poder chorar, para encostar a minha
angústia ao pescoço dela e chorar para me ausentar do Forte de Caxias, do ganir dos
ferrolhos e dos passos dos soldados do outro lado da porta, ausentar-me, amigo escritor, dos
tempo da revolução, das pessoas a esbofetearem-me (...)

Os semas constitutivos do lexema AUSENTAR congregam-se na expressão das noções

de afastamento, alheamento. O locutor deseja apartar-se de um quadro vivencial que o

envolve, à revelia da sua vontade, que o prende como uma segunda contingência deíctica. Não

se trata de situações experienciais invocadas, chamadas do passado pela palavra, mas


74
impositivas. Ainda assim, as duas situações, a actual e a “imposta”, apresentam-se em relação

de disjunção.

Na verdade, as palavras cujo significado explora a noção de referência deíctica

cumulativa, e que primordialmente, comenta o próprio fenómeno de mostração deíctica “am

Phantasma”, são os verbos de significação sensitiva:

“(...) e através de sobrepostas, refrangentes, densas camadas de tempo desses vinte e cinco
anos vi o espírita que a picareta assustava, agarrar no copo (...) “(118)

“...e mesmo hoje oiço os sinos quando me lembro disto, mesmo hoje vejo a minha prima que
não casou por a parirem corcunda, a tapar-me a cabeça com um véu...”(p.127)

“(...) se farejo as minhas palmas sinto o perfume, se fecho os olhos o seu ombro amolece
contra o meu, era estudante de farmácia, namorava um aspirante e queria casar comigo
(...)”(p.143)

É tempo de me deter na abordagem da dimensão gramatical, em articulação com as

dimensões semânticas e pragmáticas do discurso, das noções-chave de contiguidade e

simultaneidade de planos temporais na interpretação dos discursos constitutivos desta obra.

Neste âmbito, os excertos apresentados deixaram já aflorar o protagonismo das formas

nominais do verbo e dos tempos gramaticais Imperfeito e Presente. Na verdade, ao

avançarmos por entre os monólogos de cada capítulo, a hegemonia de verbos no Imperfeito,

Infinitivo e Gerúndio é notória face à presença de formas verbais de significação gramatical

transicional e perfectiva. Os locutores não contam histórias, efectivamente, mas descrevem

quadros, imagens avulsas. Nestas imagens encerram-se processos não transicionais,

contínuos, assimiláveis a estados. A constelação das formas verbais referidas é a chave mestra

na configuração de quadros ficcionais que assumem os valores de estatismo e inércia. Aspecto

e modalidade harmonizam-se. O “efeito de irreal”67 conjuga-se então com o efeito de

suspensão temporal. Ora, sob este efeito, as acções são captadas enquanto fenómenos

infinitamente repetíveis ou repetidamente presentificados.

Eis o Homem a superar o transitório e a alcançar o eterno.


75
3.4. Algumas considerações sobre o aspecto verbal

É ilusório pensar que há expressão pura do tempo na língua. Falar de configuração

temporal corresponde a não perder de vista conexões aspectuais, modais e estilísticas, bem

como opções enunciativas. O estudo das formas verbais vem ilustrar a polivalência dos signos

quando activados no acto de fala. Não é de esquecer que a este misto de marcas enunciativas,

temporais, aspectuais e modais da superfície discursiva presidem sistemas coesos de valores e

o falante activa eficazmente os elementos desses sistemas porque eles se encontram

organizados em agrupamentos. Obviamente, esta impureza de valores não corresponde a um

bloco monolítico inanalisável e a abordagem empírica não se pode escudar nela para justificar

as suas conclusões sincréticas.

A categoria que prima pela heterogeneidade de mecanismos expressivos e pela

multifuncionalidade é, sem dúvida, a do aspecto verbal. Os estudos que versam sobre o tema

ou fazem eco uns dos outros ou parecem, por vezes, que não se ocupam do mesmo objecto. A

relativa consensualidade na definição geral de aspecto faz esquecer a complexidade de que se

reveste. Se o tempo corresponde à localização dos eventos num eixo em função de um

intervalo temporal, o aspecto detém-se com a indicação relativa ao ponto em que está o

processo do ponto de vista do seu desenvolvimento interno, independente de qualquer

localização temporal.

Uma bifurcação classificatória se impõe a priori. Podemos perspectivar o aspecto

como uma categoria objectiva, sendo que o carácter do processo verbal é dado pelas

propriedades do verbo indicadoras de processo com ou sem final certo. É a natureza da

estrutura dos eventos que está reflectida no semantema das unidades lexicais. Esta é a vertente

76
lexical do aspecto. Mas o aspecto, nas línguas românicas, não é exclusivamente de índole

lexical. Esta categoria é primordialmente activada enquanto categoria subjectiva, no sentido

de que é o olhar do locutor que pode considerar o estado de coisas de dois modos: como

Perfectivo, globalmente, de fora; ou como Imperfectivo, isto é, perspectivado como tendo

uma parte realizada e outra por realizar, já que é focalizado por dentro do seu curso. É a

expressão gramatical do aspecto que aqui está em causa. Inevitavelmente este aspecto, que

podemos designar de deíctico, relaciona-se com a enunciação. Saber se o locutor toma em

consideração o que se passa durante uma parte ou todo o intervalo de tempo ocupado pelo

processo está dependente do ponto de referência por ele assumido: visto ou não à distância do

momento da locução.

A simplicidade destas primeiras observações não é capaz de ocultar a

pluridimensionalidade de que se reveste a expressão do aspecto. A acção verbal apresenta

múltiplas distinções aspectuais das quais é possível destacar: a quantidade (atendendo ao grau

de duração interna do processo), o número (dando conta de uma acção única ou repetida), os

termos do processo (reconhecendo incidência no ponto inicial ou final do processo), as suas

fases (considerando o grau de desenvolvimento em que a acção é considerada), a relação

estabelecida com outras acções e, finalmente, a orientação em relação a um ponto de

culminância.

Daqui é possível determinar as dimensões de duração ( processo durativo — não

durativo), iteração, determinação / orientação (a acção apresenta ou não um objectivo),

resultado e visão (parcializável ou global). Como já deixei antever, o aspecto reparte a sua

expressão pelo léxico, pelos paradigmas flexionais e pelas perífrases. A determinação da cor

aspectual dos enunciados não pode ignorar o tempo gramatical e a co-ocorrência com outros

tempos verbais, a expressão adverbial, tipos de argumentos dos verbos e tipo de situação em

questão. Falo, neste âmbito, da tripartição dos estados de coisas em Processos, Eventos e

Estados. A situação representada como um Processo é dissecada nas suas diversas fases que se

77
sucedem no tempo. O Evento pressupõe igualmente dinamismo mas o foco é colocado na

transitoriedade de uma condição que termina para dar lugar a outra oposta. Já o Estado diz

respeito a uma configuração que faz com que encontremos sempre a mesma situação em

qualquer posição temporal em que nos localizemos.

Do que fica dito quero sublinhar dois pontos essenciais para a análise que me

proponho levar a cabo.

Em primeiro lugar, há que deixar claro que apesar de o aspecto poder ser expresso

pelos diversos mecanismos referidos, pelo menos, é pacífico o reconhecimento de que é o

verbo que se vedetiza enquanto núcleo sintáctico do enunciado e no que toca à sua

constituição semântica.

Em segundo lugar, é fulcral explicitar duas oposições aspectuais basilares, uma das

quais apenas referida acima, sobretudo depois da constatação da diversidade que tange esta

categoria. A oposição Perfectividade / Imperfectividade deixa-se descrever do seguinte modo:

a situação perfectiva encontra-se reduzida a um objecto tridimensional, isto é, as três fases do

processo — princípio, meio e fim — são consideradas unitariamente; é a acção pura e simples

que se apresenta focalizada no seu termo, descurando o enunciado uma referência explícita à

constituição interna do processo. Este fenómeno só pode ser fruto de uma distanciação entre o

sujeito falante e o sujeito do enunciado. A situação captada imperfectivamente deixa-se

visualizar internamente no curso do seu desenrolar; exige que se faça uma abstracção

relativamente ao seu final e locutor e interlocutor situam-se num dos momentos do percurso

em causa. Compreendemos que não se verifique qualquer afastamento entre o locutor e o

estado de coisas relatado. Esta oposição traz consequências para o valor de verdade das

proposições enunciadas, já que o locutor assume total ou apenas parcialmente a

responsabilidade da situação, consoante se trate de uma configuração perfectiva ou

imperfectiva, respectivamente.

78
Dependendo da largura ou estreiteza do compósito passado — futuro inerente à

situação, assim é possível obter o aspecto momentâneo, em função do qual a situação coincide

com um ponto, sem a consideração de intervalo temporal ou o aspecto durativo, em que a fase

do meio do processo apresenta uma duração considerável, correspondente a um intervalo

temporal superior a zero. Nesta oposição é, portanto, o tempo interno do evento que é levado

em linha de conta. Cabe aqui a expressão da acção que se repete ou a descrição de um estado.

O aspecto durativo alberga a duração mensurável, em que o curso temporal é apreciado na sua

extensão, e a duração não mensurável, apreciada no seu esgotamento constante.

3.4.1. Aspecto: uma categoria primordial

Aspecto e tempo estabelecem relações inalienáveis, pois. “C'est en effet à travers

l'aspect que l'on comprend le mieux le temps, qui présuppose toujours et inclut l'aspect.”68

Mais do que reconhecer as relações tempo-aspecto, é pertinente defender a

primordialidade do aspecto relativamente ao tempo. É célebre a posição de G. Guillaume:

“L'aspect est une forme qui, dans le système même du verbe, dénote une opposition

transcendant toutes les autres oppositions du système et capable ainsi de s'intégrer à chacun

des termes entre lesqueles se marquent les dites oppositions”69.

Antes de demonstrar a produtividade desta posição, retomo a explicitação da noção

de tempo, apropriando-me da dissociação levada a cabo por J.G. Herculano de Carvalho de

três acepções a ter em conta: tempo enquanto categoria da realidade; tempo enquanto

categoria semântico-gramatical; e a “morfotaxe”, ou seja, os paradigmas das formas temporais

da flexão verbal. Percebemos que o que é designado por tempo gramatical deverá abarcar as

duas últimas dimensões descritas se pensarmos que não cabe ao tempo linguístico a faculdade

de introduzir novos referentes, ou seja, intervalos de tempo, mas de localizar um evento

79
relativamente a outros, em articulação com um ponto de referência que tem de ser dado

linguística ou contextualmente. Bull toca no âmago deste postulado ao afirmar o óbvio: « It is

of extreme importance to keep in mind that when we “tell time” we are, in fact, not talking

about time at all. We are talking about events.»70, sendo o evento primordial o acto de fala,

ponto de referência e de partida para outros eixos de temporalidade. Sumariamente: o tempo

gramatical corresponde à consideração de relações sequenciais entre eventos, seja de que

índole eles forem, e a sua expressão apenas pode ser concebida em termos relativos. Já o

sabemos: o tempo ostenta uma função deíctica. Ele permite fixar o momento de um dado

processo em função de um ponto sobre o eixo temporal a partir do qual o processo é visto

(origem), do lugar do processo no tempo (“visée”) e do ponto através do qual o espírito fixa

esse lugar (referência), segundo Martin.71 Mediante estes três pontos é possível determinar a

perspectiva — respectiva, prospectiva e retrospectiva — e o plano — actual e inactual, cujos

centros de orientação são, respectivamente, o Presente e o Imperfeito.72

A primordialidade do aspecto relativamente ao tempo resume-se nisto: o

conhecimento do mundo dita que um estado de coisas acabado se encontra distanciado do

locutor e portanto é anterior ao acto de fala; se ele é tido como inacabado, então é porque se

impõe como simultâneo ao acto de fala ou a outro evento que sirva de ponto de referência.

Insisto: só estão dois vectores em jogo: distanciamento ou não distanciamento dos objectos

enunciados em relação ao enunciador. “(...) time is something conceived through the

observation of events, and the past, the present, and the future, as just defined, are not to be

identified with time. They are, rather, disguises for concepts wich the grammarian associates

with aspect. Thus an event wich is simultaneous with the act of speaking ( the act of reporting

the event ) is said to be imperfect. An event wich is anterior to the act of speaking is,

obviously, perfected.”73 Aliás estas considerações estão em sintonia com o postulado de base

avançado por Pottier no estudo do sistema verbal: o verbo só tem três modos de existência: a

acção é concebida em estado puro ( “produzir” ); ou encarada no seu curso (“produzindo”); ou

80
focalizado no seu resultado ( “produzido” )74. Excluindo o primeiro, pela sua neutralidade,

obtemos a mesma oposição aspectual — concluído, não concluído — arreigada à oposição

temporal passado — presente. Basta-nos atender a estes dois tempos, pois não desconhecemos

a primazia dos usos modais do futuro sobre os temporais, sendo que a narração futural é

enformada nos tempos do passado e que o Presente é o tempo substituto do futuro próximo.

“ L'aspect reprend tous ses droits et devient plus que jamais décisif dans le choix des

formes verbales (...)”75. Esta asserção surge plenamente confirmada se reflectirmos no que se

passa no âmbito dos planos actual e inactual. Já tive oportunidade de o referir: o Presente e o

Imperfeito são os únicos tempos em função dos quais é possível relativizar tempos de

anterioridade e de posterioridade. Este facto torna-os origem de dois eixos temporais

estruturalmente paralelos. É antigo o reconhecimento do paralelismo funcional entre o

Presente e o Imperfeito. Em Damourette e Pichon (1936), ao Imperfeito é reconhecido o

mérito de inaugurar uma actualidade concorrente com a do acto enunciativo. Este é o tempo

verbal sobre o qual mais se tem escrito devido à polivalência de que se reveste. Qual a

explicação possível para este protagonismo nos nossos actos de fala correntes? “ L'imparfait

est le temps qui a été le plus exploité dans se sens. Il doit cette situation privilégiée à la

souplesse de son aspect, qui, excluant à la fois le perfectif et l'accompli, souligne ce que le

processus a de vivant et par conséquent de sensible à l'imagination ou au «coeur».”76

Interessa comprovar essa homologia Presente-Imperfeito. Em termos gerais, não

podemos postular um período temporal estrito de coincidência entre o intervalo de tempo do

evento e o intervalo de tempo ocupado pela enunciação. Este marco é constantemente volúvel

e, objectivamente, redutível a um ponto zero. É curioso observar que a activação do morfema

de Presente não serve muitas vezes a expressão da coincidência rigorosa entre a origem,

referência e “visée”. Para tal, nos nossos actos de fala correntes, recorremos ao presente

perifrástico, composto pelo verbo auxiliar “estar”, preposição “a” e Infinitivo. Daí os

múltiplos valores temporais, aspectuais e estilísticos que o Presente chama a si e que vão

81
desde o Presente actual ao Presente omnitemporal. “The extended present needs to be

conceptualized as something like an accordion which can be expanded or contracted at will

and which can readily be shifted from the «present moment» to « the present century.” 77

Interessa-me focar neste passo o Presente tido como centro axial de uma actualidade, ou

gerador de outra, integrado no relato de eventos que o locutor tem em frente dos olhos ( da

cara ou da mente). Este tempo, assim concebido, reflecte a experiência imediata da duração

vivida, a transição ininterrupta do que ainda não é para o que já não é. A duração é

experienciada no seu curso, concebida no seu desenrolar. Instante a instante, o processo é

captado na sua mobilidade contínua. O aspecto Imperfectivo do Presente impera naturalmente

em verbos estativos e é capaz de transformar temporariamente a significação de um verbo que

indique um final fixo, sendo que o seu valor perfectivo surge neutralizado. O evento expresso

pelo verbo perfectivo no Presente sofre uma dilatação, no sentido em que é a fase medial da

sua ocorrência que oferece o foco de configuração. Os objectos do discurso são

dramaticamente vividos na sua durabilidade faseada.

Enquanto o Presente é o tempo vivido, o Imperfeito é o tempo representado que se

finge vivido. O Imperfeito exprime igualmente a simultaneidade com outro evento. Porém,

este outro evento já não é o acto de fala gerador do discurso que activa este tempo verbal. Em

todo o caso, é pela via da expressão da co-extensibilidade de eventos que reconhecemos o

Imperfeito como o tempo que representa o processo em pleno desenvolvimento. Este tempo

verbal permite ao locutor e ao alocutário colocarem-se no interior do espaço temporal

ocupado pelo facto relatado. O virtuosismo do Imperfeito encerra-se num paradoxo único: a

partir do presente actual da enunciação olhamos para uma situação passada78 em

desenvolvimento. É este o fundamento para que o Imperfeito seja o tempo de uma origo

fictiva. É o valor aspectual de Imperfectivo que suporta o acto de “recréer dans le passé

l'incertitude de l'avenir, bref, de laisser le terme de l'action se perdre dans l'inconnu.”79(...) il

présente une action ouverte, dont le terme, loin de retenir l'attention, se perd dans une

82
pénombre que l'on se refuse de pénétrer.”80 O Imperfeito, em concorrência com o Presente, é

um tempo cinésico: dotado de dinamismo interno, reproduz no plano inactual a passagem

ininterrupta de futuro em passado. Oferece, deste modo, uma experiência viva da duração,

composta de instantes sucessivos, em aberto do lado do futuro: reprodução do actual no

ausente. É o aspecto imperfectivo / durativo que predispõe o Imperfeito primeiramente a

exprimir a concomintância de estados de coisas e, em consequência deste facto, a ser o tempo

de um ponto de referência independente de T0 e assim criar a ilusão de que os momentos

passados estão ainda em curso.

Considerando ainda a dimensão dos planos temporais, há a observar a acção do

aspecto no que toca à radicação do Pretérito Perfeito no eixo do plano actual. O processo

configurado pelo Pretérito Perfeito é focado sinteticamente, como um todo inanalisável,

fechado sobre si próprio. O processo é dado sem a possibilidade de apreensão do seu

desenvolvimento interno, tomado por uma visão totalizante, indiferente às diversas fases de

que se compõe. Assimilável a um ponto, a acção neste tempo verbal demarca, na linha

temporal, um antes e um depois. Daí a afinidade desta acção assim configurada com a própria

noção de evento: situação dinâmica do ponto de vista da perfectividade que toma lugar

unidireccionalmente e cuja repetição só pode ser sequencial. Então, o evento enformado

nestes moldes, e figurando numa oração independente, só pode ser calculado em função do

presente da enunciação, já que corresponde a um ponto que o locutor consegue visualizar a

partir do momento actual em que fala.

Reconhecer ao aspecto a função de pedra angular no acto de representação do tempo

arrasta consigo uma justificação, a meu ver, convincente dos valores modais / fictivos e

discursivos dos tempos verbais.

Em termos ontológicos, a explicação do valor modal do Imperfeito está fundada na

ideia de afastamento temporal81: quanto mais o evento se encontra afastado do presente, mais

83
ele surge afectado no seu grau de factualidade. Potencial, hipotético, irreal estabelecem

relação com os seus graus de distanciamento temporal a partir do momento presente, sendo

que, para nos situarmos no mundo real ou no mundo imaginado, há que atender ao contexto

sintáctico ou lexical. De acordo com esta proposta explicativa, o Imperfeito, enquanto tempo

pretérito, exprime a contrafactualidade, pois aquilo que aconteceu já não tem força

existencial.

Ora, sabemos que o valor modal do Imperfeito assenta no facto de este ser um

“presente no passado”, ou seja, o tempo que assinala a reprodução, no plano ausente, do ponto

de referência original. E para a evidenciação deste facto, teremos de recorrer à dimensão

aspectual do Imperfeito, como já tive oportunidade de demonstrar. O locutor não consegue

limitar o processo, não pode abarcar a sua conclusão. Esta indefinição de fronteiras das

situações relatadas, que redunda numa continuidade à qual voluntariamente não se quer pôr

cobro, determina usos modais. A evocação fictiva projectada para fora da esfera da realidade

permite a atribuição ao Imperfeito das classificações de onírico, fabulativo, contrafactual e

hipotético e a motivação para que assim seja encontra-se no seu aspecto Imperfectivo.

A oposição aspectual acima referida entre o Pretérito Perfeito e o Imperfeito

repercute-se na esfera da modalidade. Se, como já evidenciei, o Pretérito Perfeito está ligado à

noção de evento, é fácil concluir a respeito do que neste tempo verbal há de negação do

ilusório ou potencial. Ao contrário do que estipula a explicação relativa

à analogia entre referenciação temporal e grau de factualidade, o Pretérito Perfeito imprime

um cunho de realidade ao estado de coisas enunciado pela via do seu aspecto pontual /

perfectivo.

No que toca à dimensão textual do uso dos tempos verbais, a valorização da função

do aspecto não deve igualmente ser contornada. A activação dos tempos verbais é motivada

pela sua qualidade de índices instrucionais de ficcionalidade, em Hamburger, ou pela sua

função de dar relevo ou secundarizar determinados conteúdos, em Weinrich. Em ambos os

84
casos temos como premissa de base a ideia de que as funções dos morfemas verbais devem

ser norteados pela orientação e índole do discurso e não puramente pela significação

gramatical que contemplam no sistema. Neste contexto, Imperfeito e Pretérito Perfeito são

tempos correlativos, integradores de transições temporais que ajudam o alocutário a detectar

quais as informações novas, surpreendentes e quais as que lhes servem de cenário.

De acordo com esta orquestração textual, os acontecimentos marginais estão no

Imperfeito, tomado como tempo panorâmico, e os pontos culminantes da narração encontram-

se a cargo do Pretérito Perfeito, o tempo da projecção do primeiro plano. O eixo temporal do

discurso é deslocado para a frente devido à visão progressiva do tempo oferecida pelo

Pretérito Perfeito. A “ossatura narrativa”82 compõe-se de acontecimentos organizados segundo

sequências temporais. Por seu turno, os elementos dos bastidores não estão ordenados no

tempo, são indiferentes ao eixo temporal. Ainda que se trate de situações dinâmicas, a sua

mobilidade mantém-se intacta, não evolui, independentemente do ponto do eixo temporal

mediante o qual seja considerado.

Weinrich é peremptório na evidenciação das forças actuantes na selecção dos tempos

verbais segundo exigências textuais: “Malgré son aveuglement devant les structures

narratives, la théorie de l'aspect a donc, par hasard, touché juste: le temps de l'arrière-plan

prend en charge le duratif, l'imperfectif, etc., celui du premier plan le ponctuel, le perfectif,

etc.”83 De facto assim é: o Imperfeito ao referenciar situações no seu curso de

desenvolvimento presta-se a receber um facto novo, que venha interromper um estado de

coisas vigente. Por seu turno, esse dado novo, que faz avançar o eixo da temporalidade, é

expresso no Pretérito Perfeito, já que este tempo visualiza o processo no que ele tem de

unitário, global. As afinidades que este tempo apresenta com a noção de evento fazem com

que seja o tempo da mudança, capaz de marcar o eixo da temporalidade pela expressão da

transitoriedade. O aspecto Pontual / Perfectivo faz com que este tempo exprima um incidente

capaz de romper com a continuidade que se estende por um intervalo de tempo alargado ou

85
ilimitado. O evento assim expresso tem inevitavelmente de adquirir relevo na textura

discursiva.

Como tentei comprovar, é lícito defender que o aspecto, essa categoria difusa e

pouco consensual, actua na conceptualização de marcos de referência alternativos e,

consequentemente, na estruturação dos dois subsistemas temporais. Percebemos a partir

daqui, que o aspecto potencie dimensões modais no discurso. Fundamenta ainda a articulação

específica de tempos verbais no enquadramento textual.

3.5. Operacionalização

O tratamento das questões relativas às conexões estabelecidas entre tempo, aspecto,

modalidade e textualidade, tal como se acabou de efectuar, serve de instrumentário na

dissecagem de alguns blocos textuais cuja selecção se tornou pertinente no âmbito da

demonstração das potencialidades enunciativas oferecidas aos locutores no sentido de lhes

facultar não só a libertação fictiva do agrilhoamento das coordenadas enunciativas, mas

também a capacidade de controlar o tempo e de projectar tempos.

No primeiro conjunto de excertos é o Imperfeito que se vedetiza, não esquecendo a

relação de solidariedade que estabelece com outros tempos verbais, advérbios e articuladores

discursivos.

“(...) e assim que o meu sobrinho me visitou, estava eu a lembrar-me do norte de África diante
do televisor desligado, pedi-lhe que me explicasse a doença que tinha, enquanto árabes
discutiam na rua, a minha irmã mais nova não nascera ainda, o meu pai, de cabelo preto, lia
o jornal na poltrona, e a minha infância se desenrolava diante de mim como se estivesse a
ocorrer naquele segundo.” (p.285)

Este fragmento do discurso de L10 deixa-se dividir em dois momentos pelo

articulador diegético-temporal “enquanto”. Esta cisão é particularmente operativa porque


86
permite dissolver uma possível deficiência interpretativa que se pode gerar em torno do termo

“simultaneidade”, tal como ele tem sido activado até aqui.

Vejamos, então.

No primeiro momento destacado, o ponto através do qual o locutor localiza

temporalmente os estados de coisas descritos é dado por uma acção colocada no passado e

referenciada pelo Pretérito Perfeito – a visita do sobrinho – acolhida numa continuidade

enformada na forma progressiva (“estava eu a lembrar-me”), que lhe serve de enquadramento

temático. A simultaneidade assim concebida decorre do carácter anafórico do Imperfeito, aqui

activado no verbo auxiliar desta perífrase. A detecção de um antecedente temporal impõe-se,

sendo que a relação de co-referencialidade de intervalos de tempo se inscreve no mesmo eixo

temporal.

Desta concepção gramaticalizada de “simultaneidade”, convencionada nos actos de

fala correntes, decorre a percepção de uma omnivivência temporal, no sentido em que os

mesmos esquemas discursivos / gramaticais actuam analogicamente na articulação de Eventos

/ Estados e Processos radicados em eixos temporais dessincronizados. Assim, a elocução

apresentada em discurso indirecto afirma-se como antecedente de acções que pelo

conhecimento do mundo do romance, reconhecemos como inscritas em planos temporais

heterogéneos. Esta simultaneidade é denunciada pelo articulador diegético-temporal e pelo

segmento textual constituído pelas duas últimas orações do excerto. Este segmento, de

carácter comentativo, explicita a experiência omnitemporal levada a cabo pelos locutores e

sublinha o efeito de anulação de relativismo entre intervalos temporais e oposições fundadas

na extensibilidade do tempo. São os próprios efeitos de significação aspectual do Imperfeito

que aqui surgem comentados. De notar que a relação que une os dois planos temporais

potenciada pelo Imperfeito não é de identidade ( tal fenómeno está a cargo da deixis “am

Phantasma”, como a seu tempo foi demostrado), mas analógica. Isso mesmo é manifestado

pela partícula comparativa “como”.

87
A estrutura transicional Imperfeito – Pretérito Perfeito correspondente à articulação

entre plano de fundo e primeiro plano discursivos, é executada na conjugação entre parcelas

de experiências temporais e imagens de universo84 desconjuntadas:

(...) os médicos observavam radiografias e amostras de sangue enquanto as enfermeiras


preparavam seringas de insulina, os patriotas com granadas à cintura, subiam e desciam os
degraus, o do lacinho, fazendo equipa com o chofer, propunha o Governo Civil para o
noivado, e nisto, o Senhor Fernando, de bivaque na nuca, apareceu na sala com a raposa
dependurada pela cauda, e eu recuei de susto, até à cantoneira dos copos e dos cálices, à
vista do nada dos seus olhos.” (p.67)

A sobreposição de quadros temporais referenciados no Imperfeito não está ao serviço

da reconstituição e compreensão dos eventos que aparecem em relevo por acção do Pretérito

Perfeito e da expressão “nisto”. A pertinência dos enunciados no Imperfeito esvai-se se

tomarmos este tempo verbal como agente activo na interpretação do conteúdo logico-

semântico das proposições pertencentes ao primeiro plano. Assistimos à manipulação do

esquema discursivo descrito por Weinrich no sentido em que reconhecemos o aproveitamento

dos efeitos por ele convencionados na consolidação de uma significação particular: a da

homogeneização temporal. Sob o efeito desta exploração particular, as acções pontuais e,

como tal, sequencializadas, são apresentadas emergindo de entre acções continuativas, como

se estas pertencessem ao mesmo eixo de temporalidade daquelas, como se continuassem a

existir e, em uníssono, se prolongassem sob a ocorrência das ditas acções pontuais.

Se, atendendo à dimensão temporal, o Imperfeito incrusta a cena descrita num

quadro referencial sentido como passado, também é certo que este tempo verbal, por mérito

do seu aspecto não acabado, proporciona, por si só, a ilusão da localização do ponto de vista

da percepção do processo no interior do seu desenrolar. O Imperfeito capta o evento no seu

máximo de tensão inerente, ou seja, o locutor comunica que há uma parte do processo que já

está acabada e outra que ainda está por acabar. Esta duração que o Imperfeito perpetua é

imensurável, pois o termo da acção escapa ao locutor.

88
“(...) o do segundo esquerdo que mariscava comigo na cervejaria e me passava
informaçõezinhas grátis, desatou-me aos insultos e aos pontapés nas canelas que mesmo
hoje trago aqui as cicatrizes; desenhavam-se foices e martelos nas paredes, farrapos de
cartazes desprendiam-se dos muros, operários de punho fechado berravam Abaixo a ditadura
Viva o socialismo, e eu pensei Estou frito (...)” (p.24)

O uso de carácter panorâmico que neste passo se faz do Imperfeito autoriza uma

leitura eminentemente aspectual. A reprodução, noutro tempo e lugar, de um estado de coisas

à semelhança da sua ocorrência no momento presente da enunciação está fundada na

imperfectividade que une o Imperfeito ao Presente. O sentimento de que assistimos a uma

experiência em pleno desenvolvimento está fundado no facto de o locutor se abstrair

voluntariamente do termo do processo que descreve.

Este resultado é corroborado pelo aspecto lexical dos verbos DESENHAR e BERRAR.

O aspecto durativo / cursivo de “desenhavam-se” surge especificado pelo seu complemento

directo: o plural aponta para a expressão de uma acção iterativa. Em “berravam” verificamos

o mesmo valor iterativo tendo em conta a dimensão pragmática do discurso directo que esse

verbo introduz: as palavras de ordem só o são quando pronunciadas repetidamente.

Já o aspecto pontual / transicional inerente ao lexema DESPRENDER aparece

neutralizado pelo aspecto gramatical. É a acção do Imperfeito a força actuante neste

enunciado, tornando Eventos, Estados e Processos passados contemporâneos do momento do

discurso relatado; é aqui que esse fenómeno de reactualização de uma situação ausente

sobressai particularmente, pois aquilo que é redutível a um intervalo temporal mínimo acaba

por ter duração interna considerável, porque se simula uma visão interna à ocorrência do

evento.

A ilação que podemos tirar desta interpretação relativa à simultaneidade de planos

temporais realiza-se obliquamente, no sentido em que ela está fundada no pressuposto de que,

apesar da reconhecida expressão da inclusão do locutor na cena ausente descrita, o

alheamento das coordenadas do acto de discurso nunca se pode dar na realidade. O acto de

transposição fictiva das coordenadas enunciativas levado a cabo pelo locutor é um acto

89
complexo, já que, ao evocar um tempo ausente, faz com que esse seu discurso evocativo não

deixe de ser sensível às coordenadas enunciativas actuais.

A acumulação de quadros experienciais é extensível à projecção de universos.

“ Provavelmente agora que ninguém morava na pensão, dezenas de táxis vinham de Sintra
de faróis acesos no desalinho dos pinheiros para entornarem no hotel grupos de americanas
centenárias que tiritavam, nos vestidos decotados, sob uma temperatura polar. Os quartos
inundavam-se de malas e baús, um lodo fétido pulsava nos bidés, bengalas tropeçavam, para
baixo e para cima, nas escadas saltavam fechos num guinchozinho de óxido, alguém
consertara a caldeira da cave que trabalhava num torpor duodenal, marteladas enérgicas
destruíam o piso superior, e o corvo, a quem o ruído incomodava, grasnava palavrões
náuticos nos ladrilhos da cozinha.(...)” (p.20)

O advérbio que encabeça a primeira frase colora-a modalmente. Ora, a eficácia do

Imperfeito ao exprimir o valor de probabilidade surge aqui plenamente evidenciada. A

rivalidade entre Imperfeito – Presente é inerente aos dois tempo verbais. O Imperfeito, inapto

a marcar um ponto de referência num eixo temporal ( sendo capaz de representar, por

homologia, o próprio instante inerente ao exercício linguístico reproduzindo o seu constante

esgotamento ) representa um presente que é excluído do plano actual e, por esta ordem de

ideias, é um presente noutro tempo e lugar. O deíctico “ agora” situa o estado de coisas

imaginado numa actualidade paralela à do acto de fala. Na segunda frase, o dictum sofre uma

libertação da afectação do advérbio de modo. Então, o Imperfeito, de índole não autónoma,

autonomiza-se; incapaz de acusar uma ancoragem temporal, parece prescindir dela. Assinala

uma experiência temporal alternativa à contingente ao acto de fala e, ao enformá-la

linguisticamente, cria-a, configurando um mundo cuja localização só pode coincidir com o

momento presente.

Atentemos na produtividade da relação funcional particular entre Imperfeito e

Infinitivo.

“ (...) do mesmo modo que hoje a tua doença, Iolanda, me surpreende (...) também na época
da minha infância, na Ericeira primeiro e na Calçada do Tojal depois, os meus pais
constituiam um absoluto mistério para mim (...) a Dona Maria Teresa revirava em silêncio os
olhos de lagosta, a Dona Anita ralava-se com a minha magreza e oferecia-me bolachas que
sabiam a cré, o meu tio, o senhor Fernando, piscava o olho à damas (...) Aflige-me que tu,
90
nascida em Moçambique no ano da revolução, não possas entender a época da minha
juventude em que os homens vestiam, ao domingo de manhã, a farda da legião portuguesa e
marchavam pelas ruas de Lisboa (...) os cafés a transbordarem de uniformes que gritavam
canções guerreiras (...) e eu a perguntar à minha tia O que é feito dos meus pais?(...)”
( p.46/47)

O excerto acima citado é divisível em dois momentos, cujos limites iniciais são

estabelecidos pelas instruções de transposição deíctica ( “na época da minha infância”; “ a

época da minha juventude”) e distinguíveis pelas diferentes funções que o Imperfeito neles

desempenha. Se no segundo momento nos deparamos com um Imperfeito panorâmico, já o

mesmo não é possível afirmar relativamente ao primeiro momento. Não se trata aqui de

esboçar um cenário, mas tornar contínuas e infinitas acções caracterizadoras das personagens

apresentadas. Simula-se que estas acções avulsas são captadas no instante em que tomam

lugar e suspendem-se intactas no tempo, eternizam-se.

Os eventos designados pelos verbos no Imperfeito não estão ordenados no tempo em

função de um eixo temporal. Todos eles permanecem idênticos para cada um dos pontos

definidos sobre um qualquer possível eixo temporal; todos eles são assimiláveis a dados

descritivos estáticos, sem termo, passíveis de ocorrerem simultaneamente. É esta a

significação que é possível apurar da neutralização do aspecto pontual / não durativo dos

lexemas REVIRAR, OFERECER, PISCAR levada a cabo pelo Imperfeito, pela acção do seu

aspecto Imperfectivo.

À revelia da sinalização da transposição deíctica, estes fragmentos vivenciais

referenciados pelo Imperfeito parecem prolongar-se segundo uma extensibilidade sem limites

( em teoria, tangendo o momento da enunciação) por contágio com o Presente progressivo

activado para o verbo dicendi PERGUNTAR.

A interpretação desta forma verbal enquanto perífrase abreviada de Presente

progressivo, à qual se omitiu o verbo auxiliar ESTAR no Presente, apresenta o seu fundamento

integrado numa perspectivação global dos discursos do romance. Ler “ a perguntar “ como “

estou a perguntar “ apresenta razoabilidade quando procedemos a um processo de comutação:

91
a mesma perífrase com o verbo auxiliar conjugado no Imperfeito ou Pretérito Perfeito

( “estava a + INF” ou “estive a + INF “) detém inquestionavelmente uma referência anafórica.

Porém, o que encontramos no romance são sequências relativamente longas, tendo este tipo

de Presente progressivo por núcleo verbal; sequências essas que se autonomizaram e

dispensam qualquer modalidade de co-referenciação temporal. Em acréscimo, verificamos

que esta perífrase lacunar no Presente se segue a um articulador diegético temporal, delator,

como já tive oportunidade de demonstrar85 de uma acumulação referencial temporal.

Porém, a função presentificadora que atribuo nesta análise a esta fórmula verbal não

é, nem podia ser, exclusiva e originalmente gerada neste contexto. Reconhecer este Infinito

antecedido de preposição enquanto um Presente progressivo está na base da compreensão do

que é designado por Infinitivo de Narração: “Il présente en effet, par rapport au présent de

narration, une sorte de superlatif stylistique de la vivacité temporelle (...)”86. A opção

estilística a que se refere Imbs encontra um lugar muito próximo da modalidade referencial

designada neste trabalho por deixis indicial fictiva.

Ainda que outras leituras deste uso do Infinitivo não sejam solidárias com a

interpretação aqui levada a cabo, permanece sempre um reduto inquestionável, inerente ao

fenómeno, que se prende com a ambiguidade temporal que este Infinitivo sempre patenteia, e

que assume relevo quando a marcação do processo no eixo do tempo, dada pelo verbo auxiliar

da perífrase da forma progressiva, é negligenciada. Porém, esta visão mais globalizante, e por

isso mais consensual, deste recurso enunciativo inverte a abordagem deste e de outros

segmentos textuais: em vez de vermos o valor temporal do Imperfeito sofrer a influência da

actualização referenciada por este uso do Infinitivo, é o Infinitivo, dada a sua flexibilidade,

que vai radicar a sua referência temporal no Imperfeito, estabelecendo com este tempo verbal

uma relação de co-extensibilidade. Em conformidade com esta abordagem, o intervalo

temporal ocupado pelos eventos descritos só pode definitivamente ocupar um lugar no tempo:

no passado.

92
Em todo o caso, seguindo quer a leitura eminentemente deíctica, quer a visão

anafórica e globalizante da actualização deste Infinitivo, é incontornável o facto de esta

fórmula verbal chamar a si a expressão mais pura da referência temporal cumulativa. A sua

recorrência obstinada em blocos textuais relativamente longos vem explorar ao máximo os

recursos oferecidos pela língua na aventura de configurar e experienciar vivências

dessincronizadas.

De sublinhar, na decorrência do que fica dito, que do Infinitivo decorre um nítido

efeito de dramatização do quadro vivido que é alheio ao Imperfeito. Em moldes descritivos, o

Infinitivo presentifica um instante que deixa imediatamente de ser ausente, ao passo que, o

Imperfeito referencia inevitavelmente um mundo não presente.

É inegável a força com que o Infinitivo recupera a intensidade do vivido:

“ eu na loja do meu pai


em Esposende
a arrumar fazendas, sem responder às perguntas da minha
madrasta, a abanar as bochechas que sim, a abanar as bochechas que não, a ver
desarmarem a lona e os bancos do cinema ambulante, a amontoarem-nos numa camioneta e
a partirem, de manhã cedo para a Póvoa, eu a ver as latas dos filmes e a máquina de
projectar, embrulhada em serapilheiras, eu a vê-lo a ele, de boné, ao lado do condutor, a
sumir-se na primeira esquina da vila (...)” (p.109)

Neste segmento textual, o único indício de transposição deíctica é dado pelos

complementos circunstanciais de lugar e só o entendemos como tal pelo conhecimento que

temos do universo romanesco. De notar a opção pela frase nominal “ eu na loja do meu pai”

que, de modo ambivalente, denota quer um estado que se distende no tempo sem fronteiras,

quer o instante, o ponto irredutível em que o espírito o percepcionou. Esta ambivalência

afecta as sequências discursivas posteriores.

Em oposição com a significação de simultaneidade global oferecida pelo Infnitivo no

excerto imediatamente anterior a este, reconhecemos que o mesmo Infinitivo serve agora uma

visão sequencial dos acontecimentos. Sequencial, mas não evolutiva, paradoxalmente. Através

do conteúdo semântico dos verbos que compõem a descrição do quadro visualizado pelo
93
locutor, é apurável uma ordenação temporal linear – “ a desarmarem”;” a amontoarem”; “ a

partirem”; “a sumir-se”. No entanto, a forma progressiva, sendo aplicada à descrição de

acções não presentes, faz com elas sejam percepcionadas como infinitamente actualizáveis,

concebidas na fase medial do seu decurso.

Ora, este dinamismo prende-se com a ambiguidade de referenciação temporal que

aqui o Infinitivo maximamente ostenta: “eu a ver (naquela altura); “eu a ver (agora, na minha

representação mental dos factos)”. A sequencialidade dos eventos é dada nos moldes de um

relato de uma partida desportiva: a acção é concomitante ao acto narrativo.

Este Presente perifrástico de formação lacunar entra na representação de um universo

assumidamente irreal, firmado em tempo nenhum, incutindo ao discurso o mesmo grau de

presentificação, devedor do seu aspecto Imperfectivo / Durativo, que já atribuía ao relato de

eventos rememorados. A neutralização da oposição verdade – falsidade é servida pela

activação do mesmo recurso enunciativo.

“Não há dúvida, emalucaram, entraram pela cerveja adentro e emalucaram como o meu pai
emalucou depois de um jantar de lulas no aniversário da minha madrasta, terminava o arroz e
nisto imobilizou-se, ergueu os membros acima da cabeça e afirmou Pronto, sou uma acácia
(...) e o meu pai, a criar raízes na toalha, a lançar ramos na direcção da lâmpada do tecto, a
tombar pólen do cabelo, o mau pai a pedir que lhe abríssemos a janela por lhe fazer falta a
brisazinha da tarde (...)”(p.130)

Depois do sinal instrucional da deslocação para um quadro referencial passado, dado

pelo articulador “como”, emerge subitamente do enunciado um universo de crença que

igualmente se impõe como coincidente com o momento do acto de fala.

O mesmo fenómeno ocorre quando o locutor esboça uma realidade possível. Tal como

o Imperfeito, este Infinitivo presta-se à representação de um mundo alternativo. Ele é

configurador da acção que nunca foi produzida nem nunca será.

“ De tempos a tempos, quando me sinto mais cansado, mais tenso, mais esvaziado de força
e de energia, quando o dinheiro do meu ordenado não chega para as despesas da casa e
meto vales no balcão da contabilidade, acontece-me pensar fazer a mala e sumir-me, sem
que ninguém o note, da Quinta do Jacinto, para recomeçar a vida (...) recomeçar a vida em
94
Campo de Ourique, em Campolide, em Alvalade, na Portela, arrastando-me por cafés que
não conheço, a jantar em cervejarias de que não sei o menu, a responder aos anúncios de
casamento do jornal e a encontrar-me, com um cravo na mão, com senhoras tão solitárias
como eu, a fim de unirmos o nosso desconsolo, depois do Registo Civil, em camas cujas
tábuas protestam ao menor suspiro, acordando as pancadas de Molière da indignação dos
vizinhos que servem de prelúdio aos beijos da velhice.” (p.78/80)

A possibilidade vai ganhando terreno à conjectura pelo esboçar de uma figuração,

idealizada, relativamente extensa, dada progressivamente com mais pormenor, de tal modo

que chega a roçar o campo de experienciação efectivamente vivida. Estranhamente, o locutor

mostra conhecer bem uma realidade que apenas é experimentada à medida que é dita. Esta

minúcia descritiva representa um acréscimo para o grau de existência do universo criado.

O reconhecimento de laivos de factualidade que tangem esta parcela de discurso está

em sintonia plena com a identificação desta fórmula de Infinitivo enquanto modalidade

expressiva de deixis indicial fictiva. Os processos relatados como estando a se desenrolar em

frente dos olhos do sujeito enunciador inviabilizam atributos contrafactuais do discurso. O

aspecto durativo / Imperfectivo não tolhe totalmente o tom de realidade que afecta o discurso,

porque o formato discursivo faz com que uma situação tansposta para lugar nenhum e

atemporal passe por ser actual e, deste modo, de uma consistência idêntica à da realidade em

curso de experimentação.

O Gerúndio, forma inflexionável, sendo um correspondente funcional da perífrase

progressiva, é prototípico no que toca à tradução da ambiguidade na radicação em planos

temporais. A sua significação temporal apenas é activada com a temporalização de outra

forma verbal. Assim sendo, esta forma nominal está ao serviço, neste contexto, da expressão

de uma actualidade concorrente com a situação de enunciação.

Outro passo análogo ao que acabei de analisar:

“(...) como poderia eu viver com uma senhora de sessenta anos em Alvalade, com uma
senhora de sessenta anos na Portela, com uma viúva tão desejosa de me agradar, tão
sempre a perguntar-me
O que queres queriducho?
tão sempre ciumenta, tão sempre a comprar-me roupa, tão sempre a
concordar comigo (...)” (p.87)
95
Este quadro hipotético é esboçado segundo movimentos incessantemente repetidos

que o fazem comungar da mesma inércia que caracteriza qualquer segmento textual descrito

até aqui. O que é de salientar é a capacidade de o Infinitivo, em articulação com o

Condicional, que instrui o leitor quanto a uma nova incursão num mundo paralelo, ser capaz

de criar uma imagem virtual que adquire a forma de uma quadro dado como já experienciado,

e portanto, visível aos “ olhos da mente”, para recorrer à expressão Bühleriana.

A homologia Infinitivo regido da preposição “a” — Presente é detectável seguindo os

traços aspectuais e deícticos. Estas duas formas verbais são perfeitamente solidárias na

representação de um mundo assumidamente irreal:

“Sonho com a festa do nosso casamento num salão repleto das tuas colegas de liceu, cada
qual soprando uma pastilha elástica cor-de-rosa, enquanto o campeão de Karaté bate
palmadas nos amigos e a tua família, a uma canto, se aglutina, num cacho
conformado.”(p.44)

A instrução de que damos entrada num espaço ficcional irreal é dada explicitamente

pelo embraiador de ficcionalidade, uma espécie de verbo performativo: “sonho”.

Imediatamente o Presente é captado no seu emprego não temporal, não deíctico: o seu

domínio de referência é disjunto da enunciação. Captando as acções por dentro do limite

infinitamente estreito entre o passado e o fututro, o Presente adquire uma dimensão pictórica.

Deste modo, o momento descrito assimila-se a um instante cristalizado, alheio a qualquer

localização temporal. Neste contexto, o Presente traz ao enunciado uma coloração factual,

ainda que desmentido pelo verbo “sonhar”, à custa da reprodução em nenhures do Presente

estreito, válido apenas para o momento actual no qual está situado o locutor. O simulado valor

actual do Presente decorre da tipologia textual a que pertence este segmento discursivo: a

descrição de um quadro.

O motivo do registo fotográfico manifesta de modo particularmente feliz a actuação do

locutor ao mostrar acções supensas no seu curso.


96
“ (...) e acabei por gastar o rolo a retratar-me no Jardim zoológico a mim e à mulata,
chegávamos diante da jaula dos leões, pedíamos a um desconhecido
Tira-nos aqui uma chapa, por favor, basta carregar no botão
e abraçávamo-nos a sorrir, encostados às grades, se tiver
curiosidade, mostro-lhe a Lucília a dar peixinhos às morsas e amendoins aos gorilas, mostro-
lhe a Lucília e eu a estendermos uma moeda de dez escudos ao elefante, a Lucília e eu a
lancharmos capilés na esplanada (...) (p.72)

A descrição faz-se agora sobre uma imagem material. O momento presente expresso

pelo Infinitivo é interno à própria representação e calculado em função do universo descrito.

Assim expressas, as acções são apresentadas como inacabadas; mas a sua duração foi

reduzida a um ponto irredutível. O movimento é registado numa fase pontual de entre as

demais de que se constitui. A conjugação aspecto Imperfectivo – verbo Durativo / Iterativo

resulta na expressão de um conteúdo surpreendente que posso designar por dinamismo

suspenso ou, agudizando o paradoxo, dinamismo estático.

De imediato somos conduzidos a estabelecer um paralelo entre a impressão da película

e a retenção no espírito de imagens mentais rememoradas.

“(...) veio-me à ideia um crepúsculo antigo, em cinquenta ou cinquenta e um, com os


canteiros do jardim regados de fresco, o senhor Fernando, em camisola interior, a fazer
ginástica à varanda, e um rebuliço de gatos no pátio da cozinha comigo empoleirado no muro
a farejar as brisas de Monsanto (...)”(p.12)

Encontramos novamente acções que se sustêm num instante, interrompidas no seu

desenrolar, não evolutivas, em perpétuo desenvolvimento, focalizadas eternamente na sua fase

medial. O tempo não marcha. O Infinitivo é, como constatamos, afeito a representar quadros

estáticos mediante a captação de uma continuidade inesgotável que redunda em inércia. Os

processos são encarados como espectáculo e o curso do tempo suspende-se. O Infinitivo

enforma seres e objectos considerados na sua simultaneidade, de forma global.

O elemento deste bloco textual indicador de uma configuração de índole pictórica ou

imagética é o pronome pessoal adjunto adverbial “comigo”, denotando uma figura que se cola

97
a um pano de fundo. Como auxiliar na expressão da identificação de uma imagem mental com

uma imagem material está o Particípio Passado, activado num verbo estativo.

Este emprego do Particípio Passado corresponde ao mais elevado grau de distanciação

relativamente à própria noção de verbo, que implica sempre um estado de coisas em tensão,

para se confundir com o adjectivo, indiferente a qualquer relação temporal.

“(...) passe-me a dica, amigo escritor, que na minha infância não foi, o que topo lá é Odemira,
extensões de praia, Agosto, a minha mãe a coxear para o estendal, entre as piteiras, com um
cesto de roupa no braço, e as ondas , pá, as ondas, a reverberação das ondas no cobalto do
céu, a mãe reflectida ao contrário nas nuvens a pendurar ceroilas, a minha irmã no carrinho,
o meu pai emoldurado no aparador (...) (p.27/28)

O valor aspectual de permansividade do Particípio Passado — “reflectida”— faz com

que o estado de coisas seja apresentado na sua duração interminável. É o mesmo Particípio

Passado que encontramos na referência que a seguir se faz de uma imagem fotográfica.

A tríade das formas nominais do verbo vem arquitectar uma construção do tempo

vivido indiferenciável do tempo vivo do acto de fala. Gerúndio e Particípio Passado são

formas satélites, referenciam apenas um tempo virtual, já que a informação temporal que

comportam – anterioridade, simultaneidade, posterioridade – está dependente de uma

proposição finita. Alheias são também à oposição plano actual – plano inactual. De onde

deriva a percepção de que estas duas formas patentes nos enunciados dos locutores deste

romance, exprimem a concomitância de estados ausentes com o acto de fala? O Infinitivo,

aqui integrando uma forma verbal flexionada, afirma-se enquanto forma autónoma, pois

corresponde a um Presente progressivo “am Phantasma”. Em regime de co-referência,

Pretérito Perfeito e Gerúndio passam a referenciar uma actualidade em sobreposição à

enunciação.

É pelo acto enunciativo que cada locutor experimenta a apoteose de conceber todas

as coisas como simultaneamente presentes.

98
Capítulo 4. Em busca de uma identidade

“A minha mãe costumava dizer-me Quando fores mais


velho hás-de compreender. Não devo ter envelhecido seja o
que for dado que não compreendo nada.”

(António Lobo Antunes, Público, 19 de Outubro de 1997)

“ (...) ce recit fondamental dans lequel baigne notre vie


entière.”

(Michel Butor, Répertoire I)

4.1. Cognição e criação na linguagem

Como corolário do percurso traçado por esta exposição, é hora de nos questionarmos

acerca da necessidade que impele os locutores deste romance a proferirem monólogos onde o

passado se intercala com a visão fantástica, traçando um mapa de temporalidade, umas vezes

nítido, outras vezes esbatido. Apercebemo-nos, ao virar de cada página, da urgência imperiosa

que têm estes indivíduos em falar gratuitamente, conversar com ninguém sobre eventos

pretéritos que se acumulam a despropósito ou inventar realidades que, por vezes, de tão

absurdas nos fazem duvidar da integridade psíquica dos seus autores.

Que intenções comunicativo-expressivas poderão visar discursos deste tipo?

Antes de procurar dar uma resposta a esta questão que, afinal, vai ao encontro da

linha secante que percorre esta obra de Lobo Antunes — ou seja, a exibição do acto dramático
99
de dez indivíduos em busca de si próprios — é produtivo explanar os pressupostos

fundamentais que a sustentam. Dizem respeito às motivações cognitivas do exercício

linguístico e, especificamente, do acto narrativo.

A integridade do Homem enquanto ser social depende da assunção do seu

isolamento. É em conformidade com esta constatação, ditada do senso comum, que melhor

compreendemos o facto de a linguagem se realizar primordialmente quando o indivíduo se

encontra perante si próprio. A necessidade mais básica que o acto de falar cumpre é objectivar

e enformar conteúdos de consciência, o que corresponde, enfim, ao conhecimento.

É falsa a crença generalizada de que é possível dissociar pensamento e linguagem.

Esta seria o instrumento oferecido ao Homem para exteriorizar conteúdos cognitivos pré-

formados na consciência do sujeito, como se tais conteúdos pudessem auto-modelar-se até

atingirem um grau de objectualização sem qualquer suporte simbólico, como se o pensamento

se gerasse ex nihilo e aguardasse o resgate da linguagem para aceder à sua exteriorização.

Na verdade, o pensamento só tem lugar na linguagem. Esta fá-lo existir porque o

modeliza mediante as suas estruturas de relações e categorias, disponibilizando assim um

esquema de compreensão analítica do mundo. O pensamento só o é quando enunciado. Fora

deste âmbito, temos apenas sensação e instinto.

Esta forma mais perfeita de apreensão da realidade, que ascende a ser considerada

como o conhecimento humano, só se pode realizar na e pela linguagem e o seu virtuosismo

reside no facto de o acto de referência não corresponder a uma etiquetagem da realidade, mas

antes a uma forma de a modelar. Pouco poderíamos fazer se dizer correspondesse apenas a

enformar a realidade como um bloco monolítico de representações. O Homem satisfaz

plenamente a sua necessidade de delimitar e actuar sobre o mundo porque é capaz de activar

um conjunto de possibilidades referenciais previstas na língua.

100
O acto de referência — transposto ou não — é sempre uma operação cognitiva no

seio da qual assume primeiro plano a conceptualização do EU. O princípio de toda a

apreensão do mundo circundante encontra-se aqui: na referenciação do EU por oposição ao

TU. A partir daqui a mesma oposição é activada relativamente aos objectos inscritos nas

dimensões do tempo, espaço e modo.

EU-TU87: palavra genesíaca no que diz respeito a essa aventura humana de

caracterizar, criar e estabelecer relações entre objectos. Para além disso, integrando o núcleo

do sistema deíctico, representa a unidade elementar mediante a qual a dialéctica entre o

singular e a generalidade se inaugura. É a partir do momento em que o sujeito capta

integralmente o geral no individual que temos fundada não só a expressão, mas a construção

na língua. O dispositivo deíctico, pelo seu carácter sui-referencial relativamente ao acto de

enunciação, alicerça essa operação fundamental de apreensão da realidade que é abarcar numa

designação o conceito e a referência.

“A palavra não é expressão mas construção imediata”88. Designar é criar uma

realidade. O acto referencial primordial é pois aquele que faz existir o sujeito falante. Falar é

saber-se existir.

4.2. Falar do passado

Componente adjacente ao acto de auto-designação, na empresa levada a cabo pelo

indivíduo de significar o mundo, é o Tempo. O presente é irredutível e não tem consistência

temporal; o futuro é contingente; o passado está assegurado; é um legado fixo e inalterável

( ou tomado como inalterável, ainda que produto de uma construção). Então dizer EU é

referenciar aquele que fala e pressupõe a dimensão temporal de que o sujeito falante se

101
constitui. A assunção do indivíduo perante si mesmo e perante os outros passa pela produção

discursiva de predicação no pretérito.

Esta constatação básica conduz-nos à consideração de que nomear não pode ser

apenas dar consistência real a objectos no momento do acto comunicativo, mas fazê-lo existir

na nossa memória. Esta radicação dos eventos no nosso reservatório de experiências passa

naturalmente pelo filtro dos afectos.

Falar do passado para quê?

A função heurística da actividade verbal possibilita ao sujeito a investigação

reflexiva. O homem é feito de experiência temporal, sendo que, num processo de autognose

recorre a determinados moldes textuais no sentido de configurar e conceptualizar o tempo e,

com isso, perceber-se a si próprio. “(...) l'identité personnelle qui ne peut précisement

s'articuler que dans la dimension temporelle de l'existence humaine (...) c'est á l'échelle d'une

vie entière que le soi cherche son identité (...)”89.É traçando um mapa pessoal de

temporalidade que o indivíduo se reconforta na sua certeza de existir com integridade. “The

past is integral to our sense of identity”90, já que “(...) the sureness of «I was» is a necessary

component of the sureness of «I am».”91 A acomodação a uma história traçada pelo percurso

existencial garante a edificação de uma personalidade equilibrada: “ Ability to recall and

identify with our own past gives existence meaning, purpuse, and value”92. “ Self-

consciousness involves at least the capaciy to think in terms of the story of one's past life.” 93.

A necessidade de pensar o passado e enquadrá-lo numa representação do mundo e universo de

valores, convicções e afectos é pautada pela busca de um sentido global da existência. Para se

poder morrer sem remorso da vida.

102
4.3. Acto narrativo e autognose

Acabei de aludir aos termos “molde textual” e “história”, incontornáveis na

abordagem, por mínima que seja, dos problemas atinentes à representação do tempo e do

sujeito. Isto porque o decurso desta explanação impõe que sejam então apuradas as estruturas

discursivas afeitas a moldarem uma apreensão do mundo e a formularem a individualidade do

sujeito e o seu tempo.

Já o sabemos: é uma quimera aspirar a pensar o tempo objectivamente. É o sujeito,

explorando os recursos da língua, que dá de si mesmo, e por conseguinte do seu passado, uma

representação mediante a qual ele se quer rever.

Benveniste num pequeno artigo incorporado em Problèmes de Linguistique Général


94
debruçou-se sobre as análises psicanalíticas freudianas para concluir a respeito do papel da

língua e, especificamente, do relato no processo de investigação das causas de lesões

traumáticas. É na maneira como o paciente conta os acontecimentos pretéritos que está

situada a chave de entrada no inconsciente. A actividade mental é vazada na actividade verbal,

através da qual o indivíduo historiza, ainda que anarquicamente, e edifica a sua personalidade.

Não há outro meio de acesso ao sonho e ao inconsciente a não ser pela palavra: a palavra

narrativa. Num outro momento Benveniste conclui: “La langue fournit l'instrument d'un

discours où la personalité du sujet de délivre et se crée (...)”95

O reconhecimento, no seio da análise psicanalítica, de que é pela actividade

fabulatória que o indivíduo oferece um complexo significativo, provavelmente fundado em

ilusões, mas válido exactamente por esse motivo, vem consolidar a avaliação do acto

narrativo como tendo um papel fundamental no processo de autognose por aquilo que tem de

catártico. O enredo da sua biografia é agente purificador da fraqueza e de vergonha e promove

a edificação da estrutura moral do Homem.

103
A vertente reflexiva do acto de contar é uma especificidade de uma operação

cognitiva primordial: contar enquanto transmissão de um legado de informação sobre a ordem

e razão do mundo. Este conhecimento de ouvir contar é o primeiro a entrar na constituição de

um esquema do mundo e de uma escala de valores. As historinhas infantis representam

modelos de acção arquitectados em função de uma visão coerente e harmoniosa da realidade.

Toda a actividade verbal do sujeito visa, em última análise, este fim.

Ricoeur coloca a noção de narração na raiz do processo de compreensão do mundo

no âmbito do discurso literário e não literário. Ao tomarmos conhecimento daquilo que na

sua obra Temps et Récit é designado por “mimesis II”, vemos explanado abundantemente este

género de elaboração textual — “mise en intrigue” — enquanto representação da acção mas

também como criação de referência. Inspirado na doutrina aristotélica, Ricoeur coloca a

tónica da sua abordagem da narração na possibilidade de o contador de histórias conseguir

fazer vingar a ordem sobre a sucessão aleatória de fenómenos.

Sob este ponto de vista, a intriga recebe primeiramente uma descrição formal:

construção semântica simples, representa uma acção acabada, equilibrada mediante três

pontos estruturais — antes do clímax, clímax e depois do clímax — de fácil apreensão, onde

todos os elementos se interligam por nexos de causalidade. Se buscarmos mais

profundamente a essencialidade da intriga encontramos uma alquimia fundamental:

transformação do casual, da heterogeneidade, do acidental em história, ou seja, num esquema

de significação inteligível totalizante. A ocorrência singular transforma-se em episódio. Quer

isto dizer que ela não faz par com outras ocorrências por enquadrar-se numa ordem serial,

mas porque constitui um elo na urdidura complexa onde agentes, objectivos, meios,

circunstâncias e resultados se harmonizam num todo de significação, o macrosigno que é o

texto narrativo. A narração avança quando está sujeita a um esquema de causalidade. Narrar

é, pois, ordenar acontecimentos em função de uma estrutura significativa, tendo como fim

atribuir sentido à experiência humana. Numa palavra: configurar. “ J'applique le terme de

104
configuration à cet art de la composition qui fait médiation entre concordance et

discordance.”96

A configuração narrativa assenta no curso de uma temporalidade cuja representação

despreza a cronologia. O acto configurante é necessariamente um processo temporal.

É fácil então perceber que da unificação e completude de uma história de vida

dependa a identidade do sujeito que a relata. Ele assume-se como indivíduo ontológica e

socialmente singularizável porque executa e sofre acções acabadas, dispostas no tempo de

modo congruente. Se o sujeito não visualizar a sua vida enquanto uma totalidade singular, isso

é sinal de insucesso. O seu percurso vivencial está incompleto e deficiente. Este facto conduz

inevitavelmente à fragmentação do indivíduo.

O papel fulcral da narração na sedimentação da estrutura cognitiva e emotiva do

sujeito relator e ouvinte reside na índole desta actuação discursiva — “síntese de

heterogeneidade”97 de dimensão temporal - mas também nos fins para que naturalmente tende.

A imitação da vida nos moldes da narração faz emergir uma existência eufórica na qual o

sujeito se possa rever. Assim é, de facto, já que contar é dar existência a “mundos possíveis

organizados a partir de fragmentos do mundo mais óbvio, e ligados a hipóteses de uma

alternativa mais compreensível ou então mais desejável”98. É esta a finalidade ética que toda

a narrativa persegue.

4.4. Figuração disfórica do EU

105
Foram passadas em revista, com a brevidade exigida pelos objectivos que aqui me

proponho levar a cabo e anunciados no início deste capítulo, questões fundamentais em

qualquer abordagem da enunciação: função cognitiva e heurística da linguagem e,

especificamente do modo narrativo, bem como a função desta modalidade discursiva na

formação e assunção da personalidade do sujeito falante / ouvinte. É tempo agora de

confrontarmos estes pressupostos com o universo experiencial dos sujeitos / personagens

dados a conhecer por este romance de Lobo Antunes. De recordar que continuo a situar a

minha análise no âmbito das representações e construções figurativas da responsabilidade dos

dez locutores que sobem a cena em cada capítulo, ou seja, no nível da “expérience fictive du

temps, telle qu'ele est faite par les personnages eux-même fictifs du récit” 99, e que designei no

primeiro capítulo deste trabalho de nível de expressão endógena ao texto romanesco.100

Assistimos, neste plano, à acção de enformar experiências pretéritas através de uma

gestão particular dos recursos enunciativos da língua — especificamente, dos inscritos no

domínio do dispositivo deíctico e do aspecto. Do quadro representacional elaborado por cada

locutor deriva uma forma complexa, porque está aí vigente o grau máximo da presentificação

de cenas vividas. Este facto faz com que a imagem do mundo se componha de sobreposição

de acontecimentos e das circunstâncias que os acolheram. Este formato da realidade compõe-

se de múltiplas realidades heterogéneas que se conjugam afectivamente.

Os mesmos recursos da língua participam da invenção de mundos alternativos,

assumidamente irreais ou com validade de realidade, processo que conflui para o mesmo

objectivo: a compreensão e domínio da realidade. O simples acto de monologar, relatar

eventos pretéritos e divagar livremente por reflexões de ordenação aleatória, é meio eficaz de

aceder a um sentido global da existência:

“ A minha vida, com as suas ansiedades e os seus mistérios por elucidar, com a ausência dos
meus pais durante a minha infância, o vizinho ilusionista, o sótão onde ecoavam passos,
cessou de ser um enigma para mim desde que te encontrei...” (p.67)

106
Este marco temporal, “desde que te encontrei”, corresponde ao momento a partir do

qual L1 teve um pretexto para proferir os seus discursos isolados na solidão da noite.

É L3 que relata a despedida da sua esposa num asilo em Moçambique, facto que

nunca se deu; ou L9 que ouve passos de criança (o filho que lhe tiraram?) que não está

presente; ou ainda L7 que se desola com a transformação em milhafre do seu parceiro; enfim,

todos os locutores são impelidos, como que numa espécie de patologia, a situarem-se em

universos paralelos, na esperança de aí encontrarem uma conexão equilibrada entre os

elementos constituintes da sua existência:

“... e eu imaginava os russos a desembarcarem em Leixões, sequiosos de violarem


cemitérios...”(p.82)

“... e imaginei que se tirasse o casaco e desabotoasse a camisa um par de asinhas se lhe
começaria a agitar nas omoplatas e ele subiria tarde fora, a caminho das nuvens, erguendo-
se a custo como um avião de museu.”(p.250)

“... escutava os defuntos flutuando, com seus trajes de casamento e as suas flores
tristíssimas, muito acima de mim, quase juntinho ao sol...”(p.91)

Os exemplos poder-se-iam multiplicar.

Estes mundos projectam-se no tempo e compõem-se de tempo. Mas é também o

próprio tempo o tema central nessa actividade de autognose protagonizada por todos os

locutores. Em face da estagnação temporal experienciada no momento da enunciação ( “Não


voltei à Ericeira mas como em Portugal, tirando eu que envelheço, tudo estagna e se suspende no

tempo, presumo que nada se alterou desde então: Alcântara, por exemplo, durará mil anos como a

vejo agora, às três da manhã no meu relógio de pulso...”(p.19)) os locutores socorrem-se dos

instrumentos materiais de captação de momentos ou de medição convencional do tempo,

procurando certificar-se de que eles próprios percorreram já uma extensão temporal, para

assim se assegurarem da sua existência. São profusas as experiências:

“ (...) a Teresinha descia os degraus e um instante depois a cadeira e o tango calavam-se e


os passos recomeçavam, desregulando os relógios. As fotografias dos mortos procupavam-
se também (...)”(p.149)
107
“ (...) salas e salas imensas numa penumbra árida, povoadas por retratos de militares,
gravuras que representavam cavalos a galope, e relógios de pêndulos de cobre, soando
horas desiguais como se o tempo marcasse de cansaço nos mostradores trabalhados.”
(p.41).

E todavia, à ordenação temporal pacificadora, porque condição sine qua non de

elaboração de um esquema representacional fundado no princípio da causalidade, impõe-se

quase sempre a amálgama de tempos, sendo que o passado interage com o presente. Por outro

lado, o sentimento de intemporalidade, que perpassa todos os monólogos, radica num

universo pessoal em que o curso temporal se desenvolve a custo e, como tal, é de medição

deficitária.

Mas o mais dramático é a total ausência da passagem do tempo, porque é sinónimo

de anulação do locutor:

“... e dei com um bengaleiro com incrustações de madrepérola, um calendário de mil


novecentos e sessenta e cinco, representando uma paisagem austríaca com todos os meses
intactos...”(p.55)

“... e isto durante horas, não sei ao certo quantas porque me tiraram o relógio e a lâmpada do
tecto eternizava o tempo...” (p.140)

“Fosse a que horas fosse parecia-me, segundo os mostradores contraditórios, que vivíamos
em simultâneo em todos os momentos do dia...”(p.277)

A figura prototípica desta redução até ao grau máximo de temporalidade é L9,

Julieta, a quem, para ocultarem a desonra da família, roubaram a existência, encerrando-a

num sótão. L9 percepciona uma realidade atemporal. Captamos o tempo pela marcação e

ordenação de eventos ou acções nas quais participamos como agentes ou pacientes ou aos

quais assistimos. A ausência deste dinamismo básico de qualquer existência, mesmo a mais

banal, corresponde à morte:

“ Mas isso, como o resto, também se passou há muito tempo num ano ou num mês ou num
minuto da minha vida que não consigo determinar ao certo, onde o antes e o depois
possuem idêntica textura que me exclui.” (p.275)

108
Banida a hipótese de estabelecer uma situação dialógica, o discurso de L9 representa

o tempo egocêntrico, autista:

“ (...) encapsulada em mim própria (...)” (p.295)

O futuro está vedado, o presente não tem consistência. É o passado que emerge do

discurso a cada passo. É no passado que todos os locutores procuram recorrentemente o

conforto de uma identidade, ou prevêem que assim seja:

“Um feriado qualquer, há meses, tomei no Arco do Cego, diante de um cinema fechado, de
plateia a desfazer-se atrás da grade de ferro, um autocarro para a minha infância...(p.39)

“... e um dia chego ao espelho e observo a minha cara e vivo do passado como de uma
reforma e tenho pena de mim...”(p.261)

Estranhamente, a invocação do passado não envolve o locutor numa aura de

nostalgia. A inércia do presente não tem sequer como contrapolo a dinâmica do passado:

“(...) e eu no banco traseiro, indiferente, porque nunca gostei de Moçambique, nunca gostei
de tanto preto, de tanto calor, de tanta chuva...”(p.95)

A ânsia de abrangência do passado conjuga-se com o sentimento de indiferença ao

ser revisitado pela palavra. Este alheamento pode ser explicado pelo facto de ele ser

representado como tempo indistinto do presente:

“(... ) Os retratos dos militares nos tremós fitando-me de pingalim e esporas (...)”(p.42).

“Que mal fiz eu a Deus para ter um filho tão estúpido, senhores?
A mesma voz que me perseguia (...) a voz do meu pai que escarnecia, há quarenta anos, de
mim...”(p.155)

O passado estende-se até ao presente formando com este uma continuidade

homogénea. O presente dilata-se em dois sentidos ( futuro e passado ) e é sempre igual. O

passado é tão irrisório e miserável, não se distinguindo do presente: a mesma rotina, a mesma

inércia que conduz à anulação do indivíduo.

109
Se reconhecermos sem hesitação a acção autoreflexiva levada a cabo por cada

locutor, já não podemos tirar conclusões tão cabais no que diz respeito à tipologia discursiva

por eles activada.

É explícito o propósito de L1 de contar:

“(...) e recomeço a minha história no episódio em que a deixei (...)”(p.13)

“(...) amaldiçoando a história que conto (...)”(p.38)

“(... ) passa a noite acordado a contar-me histórias idiotas nas orelhas (...)”(p.243)

Para além deste facto, as nossas expectativas de leitores / ouvintes / falantes vão no

sentido de, reconhecido esse processo de autognose, nos acomodarmos ao molde textual da

narração, através do qual o sujeito falante pode configurar e conceptualizar o seu percurso

temporal. No entanto, em conformidade com a análise efectuada no capítulo anterior,

deparamo-nos com dez monólogos em que a fragmentação giroscópica do tempo surge

reflectida linearmente no texto.

Fundamentei essa descrição com a abordagem do papel dos recursos enunciativos

que permitem que se diga o tempo em simultâneo e da omissão de hiatos temporais. Neste

contexto, destaquei os tempos verbais de Presente e Imperfeito, bem como as formas

nominais do verbo.101

O reconhecimento desta específica textura discursiva conjuga-se dificilmente com os

ingredientes prototípicos do texto narrativo: organização temporal e causalidade. É certo que

se procurarmos marcas gramaticais de narratividade encontraremos bastantes sequências em

que a estrutura transicional Pretérito Perfeito — Imperfeito tomam lugar, assim como a

explicitação das coordenadas enunciativas em que radica o discurso transposto. Daqui decorre

a ilação de que estamos em face de relato de eventos. Mas poderão ser estes eventos

considerados como episódios, isto é, enquanto elos de coesão de um todo significativo que é a

intriga? É verdade que apesar da desordem em que surgem à superfície textual, eventos e

estados são ordenáveis quer através da datação, quer através de outras informações temporais
110
substitutivas. Um exemplo deste trabalho de organização de objectos invocados foi já

efectuado no capítulo anterior102. Porém, para além de estas invocações se entrecruzarem

constantemente com pequenos blocos temporais radicados no presente da enunciação, é inútil

procurarmos na sua junção qualquer nexo de causalidade. A ligação entre estes eventos não

respeita o eixo temporal - causal, alicerçado nos três momentos estruturais da “ossatura

narrativa”, ou seja, princípio, meio e fim. Não há qualquer força de pertinência que faça

destacar um episódio considerado no seu papel de impulsionador do desenvolvimento da

intriga.

Para além deste factor, os segmentos discursivos enformados nos moldes da deixis

indicial fictiva vêm igualmente despistar a tentativa de acomodação destas locuções ao modo

discursivo da narração.

O discurso que reporta os eventos no passado indica que aquele que o profere os vê

como acabados e consegue dar conta do seu sentido. Ora, se em virtude da mostração

transposta de um passado que, pelo acto invocativo, está de novo presente diante dos olhos,

esse mundo pretérito não pode ser objecto de configuração; nem sequer matéria de reflexão

porque, simuladamente, ele está ainda em curso.

De cada vez que os locutores recordam o seu passado, vivem-no de novo e

novamente se surpreendem e intensamente experienciam os acontecimentos ou estados de

coisas, nunca chegando a, pelo distanciamento temporal necessário, arquitectá-los numa

unidade global significativa.

Ainda de referir a incompletude da visão do mundo engendrada por estes locutores.

Desprezando uma estruturação unificada por laços de pertinência e causalidade, o discurso

acaba sem fim e inicia-se sem começo. Os blocos discursivos ligam-se entre si sem formarem

uma história inteira e completa, antes sublinham a heterogeneidade dos eventos, múltiplos e

dispersos. Neste contexto, esboça-se necessariamente uma forma discursiva aberta, sempre

disposta a acolher qualquer acidente que arbitrariamente se venha juntar aos demais.

111
A conclusão impõe-se: estes discursos não se acomodam a uma tipologia textual pré-

estabelecida. Deparamo-nos com invocações sem intriga, com rememorações sem narração.

Na verdade, os locutores são alheios a essa composição harmoniosa de elementos

heterogéneos e atêm-se à experiência temporal dramaticamente real:

“(...) Conheces alguma história que não seja idiota, Iolanda? (...)
já que na minha opinião as histórias são tão tolas quanto a vida” (p.234)

“ As histórias são sempre tolas (...)” (p.244)

A singularidade dos discursos proferidos por cada locutor não esbate, no entanto, a

finalidade que estes perseguem, ou seja, recriar, compreender e possuir o seu próprio passado.

Neste sentido, não é descabido afirmar que aspiram a atingirem uma configuração cabal que

lhes devolva o sentido que toda a existência deve ter. Só que, paradoxalmente, esta

configuração teria de respeitar a diversidade e dispersão de experiências temporais no sentido

de aproximar o indivíduo de uma inteligibilidade autêntica, não trabalhada por modelos

textuais convencionados. É a este impasse que assistimos em todos os monólogos

constitutivos do romance A Ordem Natural das Coisas.

O objectivo imperioso de alcançar um propósito existencial faz com que os locutores

re-experienciem vivências pretéritas que, sendo distanciadas, se tornam contíguas; que,

passíveis de ordenação, se apresentam em simultaneidade global. O veio temporal que está

no cerne da gestão de uma configuração narrativa está também ausente destas invocações

presentificadoras. Tanto o modo como são activados os recursos da língua, como o próprio

conteúdo temático dos monólogos confluem para a experienciação de uma suspensão

temporal. A possibilidade de actualizar simultaneamente experiências temporais captadas

numa imobilidade infinita, tornam o Homem capaz de supervisionar o tempo.

Mas não nos iludamos: se estes locutores são assemelháveis a pequenos deuses é

porque, como crononautas, se deslocam livremente de uns para outros quadros temporais,

revivendo-os em sobreposição. Já é uma grande benesse que a língua coloca ao dispor do


112
sujeito falante. Porém, este estar em vários tempos tornados coincidentes pela assunção da

língua, conduz o indivíduo a distanciar-se de um sentido unitário da realidade e a fragmentar-

se. E o fragmentário é incognoscível. A sobreposição de patamares temporais evidencia o

Homem perdido. Ao admitir que, pela fala, o indivíduo excede as suas limitações, reconheço

igualmente que, neste romance, esse processo não é eufórico. Experienciar um estado de

ucronia é, neste contexto, asfixiante e confrangedor. Por um lado, a própria viagem no tempo

é coagida pelo isolamento e sofrimentos extremos, por outro, a experiência da eternidade é

homóloga da estagnação e, enfim, da própria morte. A eternidade é o tempo que não tem um

curso, que não avança nem se esgota. A eternidade contradiz o tempo; é a negação do tempo

deíctico. “Mas afinal, e dada a inseparabilidade entre a consciência do tempo e a consciência

do falante, a eternidade apresenta-se, para o homem, como algo de frustrante e assustador, já

que é o tempo sem homem, o tempo não deíctico.”103 Dizer EU, “aqui”, “agora” corresponde a

dizer o instante irrepetível, e pela sua índole, infinito. O contrário corresponde à redução do

sujeito falante a coisa nenhuma:

“Compreendi (...) que não há rolas, que não há Lucília, que não há a Residencial da Praça da
Alegria, que não há o chulo preto, que não houve o meu passado, nem Damão, nem a casa
de Odivelas, que não houve eu (...) mas suspensos numa espécie de limbo, a conversar de
nada (...)” (p.58)

4.5. Um romance da vida real

É chegada a altura de podermos fechar o mundo dos locutores tal qual eles o

enformaram, para vermos, brevemente, o que se passa agora no universo que os absorve como

personagens: o universo do romance.

A este nível poderá surgir a questão acerca de qual a história oferecida por esta obra.

Enquanto leitores experientes, assistimos, desde as primeiras linhas, ao definhar da acção em

favor da personagem e reconhecemos assim uma das características fundamentais do romance


113
moderno. Por esta ordem de ideias, é descabido procurarmos saber em que ponto do

desenrolar dos acontecimentos deixámos ou retomámos a nossa leitura. A história, segundo

um sentido lato do termo, compõe-se dos discursos das personagens e das relações que entre

elas se estabelecem. Ela corresponde à revelação de dez existências de dez locutores que,

seguindo um encadeamento procissional, vêm a cena mediante a gestão de uma voz narrativa

oculta que as conjuga, como se de uma reportagem da alma se tratasse. “Ecce Homo, parece

dizer cada poema”; as palavras são de Eugénio de Andrade.104 Posso apropriar-me delas: Eis o

Homem, parece dizer cada capítulo. Eis dez indivíduos na tentativa lograda de configurar a

suas existências. Advém daqui a máxima ilusão da realidade: o leitor toma apenas contacto

com a matéria prima, as fontes, o material necessário à construção de um romance. Isso

mesmo é comprovado da voz off do “amigo escritor”. Neste sentido, é pertinente o

comentário de L2:

“... perguntei a mim próprio o que leva a interessar-se a si, um escritor, um homem que vende
romances, que aparece na televisão, que tem o nome nas revistas, por um badameco como
aquele a morar num prediozito da Rua Oito (...) que livro numa história destas pode dar se
tristezas é o que mais há na cidade (...)” (p.54,55).

O romance é a forma mais independente e flexível na construção da qual é possível

criar sempre novas convenções. No que toca à técnica de expressão da corrente de

consciência, a experimentação de novos modos de dizer é livre. Acresce a ênfase dada à

significação do tempo interior que, dada a sua inefabilidade, é factor condicionante de

exploração da técnica romanesca.

Assistimos à descronologização da narração, ao estiolamento da intriga e emerge do

texto a expressão do inconsciente, fragmentada, redundante, ilógica. O romance desfigura-se

até ao seu limite e passa a assemelhar-se a “une sorte d'oratorio donné à lire.”105

Na obra em análise, as recordações, os medos, a melancolia, a construção fantástica

de realidades absurdas (que em alguns momentos chegam a ser compartilhadas) misturam-se

à superfície de um discurso contínuo e monocórdico onde o tempo se atropela e suspende. A


114
intencionalidade que preside à elaboração desta textura discursiva será atingir o máximo de

verosimilhança na representação dos discursos interiores.

A obra cumpre a sua finalidade comunicativa, mas também estética, ao ostentar dez

personagens, irremediavelmente sós, em busca de si próprios. De capítulo em capítulo,

somos testemunhas do esforço levado a cabo pelos personagens de darem sentido à sua vida

sem qualquer sucesso. Página a página, mergulhamos na mesma monotonia, banalidade,

realidade incoerente, que nem sequer ascende a ser trágica. É a mostração assim crua desta

tristeza de viver que faz desta obra um romance desconcertante.

A Ordem Natural das Coisas: não a ordem de vida que os personagens idealizariam,

emoldurariam numa existência consequente, mas a ordem que é imposta pela própria natureza

e condição humanas. Porque a vida é assim mesmo. Tal qual.

115
Conclusão

Chegámos ao fim da análise do discurso de A Ordem Natural das Coisas; análise

linguística que acolheu inevitavelmente teorização literária, que se solidarizou com a

antropologia, psicologia e filosofia. Indagar os mecanismos linguísticos activados na

evocação e construção de mundos, apurar o formato aí conseguido e concluir a respeito dos

efeitos desta actuação verbal levaram-me a atravessar áreas extensas, detendo-me nos

aspectos que necessariamente escoraram o projecto que me propus cumprir. Passo a enumerá-

los: a natureza da ficção e modalidades de referenciação fictiva; modos enunciativos;

estruturação textual; tempo, modo e aspecto; função cognitiva da linguagem; figuração

romanesca. Seja qual for o foco de tratamento deste romance, ele terá de se cruzar, pelo

menos, com estes aspectos, que não cobrem de modo algum todas as abordagens, mas que

nenhuma abordagem deverá ignorar.

A visualização do corpo completo desta dissertação permite fazer um balanço do

alcance dos resultados obtidos.

No que diz respeito ao tratamento dado à problemática do paradoxal estatuto

enunciativo da ficção, a conclusão de que o fenómeno ficcional é produto de procedimentos


116
enunciativos já convencionados ou em vias de serem convencionados a partir do momento em

que são activados, foi validada quer para o nível da comunicação exógena ao romance, quer

para o nível da expressão endógena. A detenção particular nesta questão revelou-se frutífera,

pois permitiu, logo desde o início deste trabalho, erradicar a mínima tendência de perspectivar

as elocuções dos personagens como discursos do mesmo teor dos nossos actos de fala

quotidianos. Neste âmbito, relativo à índole do discurso ficcional, a teorização de Hamburger,

designadamente as questões atinentes às formulações das noções de “função narrativa” e “

narrador de primeira pessoa”, permitiram-me chegar à detecção de uma fusão destes dois

conceitos aquando da dissecação das elocuções constitutivas deste romance de Lobo Antunes

segmentados para análise. Afinal, foi o reconhecimento desta fusão, que é real, que está à

superfície do texto e é experienciável pelo leitor em todas as páginas desta obra, que me

permitiu sedimentar bases sólidas para partir para o apuramento dos dois níveis enunciativos

acima invocados. Por sua vez, o início do trajecto traçado com estes dois percursos conduziu-

me inevitavelmente à explicitação de dois planos de ficção: a ficção literária e a ficção que

todo o discurso patenteia assim que potencia a transposição do locutor e do alocutário para um

mundo ausente.

Ao situar-me no nível da expressão endógena, tive de me deter nos modos de

referenciar o ausente. Aqui a classificação e a caracterização de uma produção verbal que

relata eventos passados com a tensão do discurso accional e que funde uma primeira pessoa-

relator numa terceira pessoa-personagem, forçaram-me a questionar-me sobre o verdadeiro

teor e amplitude dos efeitos da mostração “am Phantasma”. Procurar saber cabalmente que

tipo de ocorrência está em causa, situada na charneira entre “narração” e “comentário”

revelou-se uma empresa fatalmente incompleta, porque avessa a classificações apriorísticas.

Os locutores não contam nenhuma história, não organizam um mundo metafórico de modo

inteligível; antes assistimos à explosão da memória que atira fragmentos de evocações em

todas as direcções temporais, mediante um ritmo discursivo sincopado, caótico, apoplético.

117
Foi esta constatação que o levantamento dos gestores discursivos activados nas dez

elocuções constitutivas do romance veio decompor. Para além disso, estes elementos

denunciam uma construção cognitiva do tempo feita com base numa simultaneidade geral de

planos experienciais.

Simultaneidade e homogeneidade temporal conjugadas com a figuração de eventos

do ponto de vista interno à sua ocorrência: foram pontos de chegada que impulsionaram a

exploração das virtualidades expressivas do aspecto gramatical e lexical. Reciprocamente,

pude ver confirmado, nas teorizações sobre as quais tive oportunidade de me debruçar, aquilo

que intuitivamente já tinha concluído: o papel fulcral da dimensão aspectual na interpretação

do discurso evocativo.

Finalmente, a abordagem do plano da figuração romanesca, longe de entrar em

conflito, foi solidária com a análise linguística levada a cabo. Contorná-la, seria servir-me do

corpus trabalhado, ignorando o macrosigno que o texto literário constitui. Neste quadro,

impôs-se a conclusão de que a estruturação dos eventos no âmbito da intriga corresponde a

uma organização inverosímil, porque necessariamente harmoniosa. Ora, acontece-nos deparar

com o relato de experiências confusas, sem forma, heterogéneas e, por isso, quase reais. Os

locutores não idealizam o passado, nem o envolvem numa aura saudosista. O presente dilata-

se em dois sentidos — presente e futuro — e é sempre igual e homogéneo: irrisório e

miserável, esmagado pela rotina e abandono, factores conducentes à dramática anulação do

indivíduo.

Todas as reflexões se conjugaram para trazer à luz o procedimento discursivo mais

importante e o mais básico que o Homem é capaz de levar a cabo: colocar-se em frente de si

próprio pela actualização da palavra interior.

Foi este o ponto de confluência do todos os percursos de análise. Considerando que A

Ordem Natural das Coisas foi sempre apresentado ao público leitor como romance co-

referente a Tratado das Paixões da Alma e A Morte de Carlos Gardel, podemos perspectivar

118
mais amplamente o facto de que subjacente às temáticas recorrentes nestes três romances — a

estagnação temporal, a obsessão pelo tempo, o isolamento, a vivência do absurdo, o grotesco,

Lisboa marginal, o paroxismo, a morte — está essa revelação desse mecanismo complexo e

perfeito de modelizar a realidade circundante pela assunção da linguagem que se realiza no

íntimo do sujeito falante e que é elemento integrador dele mesmo.

Dizer a tristeza de uma gente, traída pela arbitrariedade da vida, derrotada pela

doença e enredada na sua própria loucura, é usar, manipular e criar mecanismos expressivos

potenciados pelo sistema da língua. A arte literária corresponde afinal a este procedimento

linguístico. O estilo do autor e a técnica romanesca assentam numa particular activação dos

recursos evocativos e configurativos da língua pela mostração de monólogos que se

entrecruzam e encontram no mesmo vazio existencial e na absurda lógica da morte.

119
Notas

120
1
Veremos como, naturalmente, o alcance desta exploração radica no âmbito dos estudos linguísicos, ignorando fronteiras
artificiais entre a linguística e a literatura.
2
Apesar de não se ter debruçado sobre a temática das relações entre linguística e literatura, Culioli reconheceu que “Il est
certain qu'il n'existe pas de communauté sans production littéraire, orale, écrite, mythique, sous la forme de contes, etc. et il
serait insensé de ne pas en tenir compte (...) la linguistique ne peut que la ramener à sa problèmatique." CULIOLI, 1976,
p.23
3
COSERIU, 1977, p.204
4
REYES, 1984, p.19
5
REYES, 1984, p.38
6
HAMBURGER, (1957) 1992, p. 16
7
COSERIU, 1977, p.202
8
MARTIN, (1983) 1992, p.275
9
SEARLE, 1977, p.66
10
VUILLAUME, 1993, p. 56
11
Em face da despersonalização que afecta os locutores deste romance, a ponto de a neutralidade de carácter impor a supressão do nome
próprio de alguns deles, solucionei o problema da designação destas figuras através do recurso a uma fórmula indicadora da sua ordem de
entrada na cena discursiva:
L1, filho de Julieta; interloc.: Iolanda
L2, Ex-Pide; interloc.: " amigo escritor"
L3, Pai de Iolanda; interloc.: Iolanda
L4, Tia de Iolanda ( sem interloc.)
L5, Jorge, tio de L1, irmão de Julieta; interloc.: Margarida
L6, Fernando, tio de L1, irmão de Julieta; interloc.: Conceição
L7, Iolanda; interloc: Ana ( só no cap.3)
L8, Colega de Iolanda; interloc: Iolanda
L9 Julieta ( sem interlocutor)
L10 Maria Antónia ( sem interlocutor)
12
SEARLE, 1979, p.68
13
HAMBURGER, (1957) 1993
14
REYES, 1984
15
REYES, 1984, p.18
16
E, por isso, continuarei a designá-los por L5, L10 e L9, respectivamente.
17
HAMBURGER, (1957) 1993, p.136
18
O sublinhado é meu.
19
Cf. Alargamento interpretativo dado a este fenómeno da miscigenação de sistemas deícticos, na terceira parte deste
trabalho.
20
HAMBURGER, 1993 p.325
21
Cf. noção de "autor-citador" em REYES, 1984, p. 69
22
REYES, 1984, p. 14
23
PICARD, 1989, p.85
24
COSERIU, 1977, p.207
25
SEARLE, 1979, p.74
26
Veremos como é aqui que se encontra a pedra angular da minha argumentação.
27
FONSECA, 1994, p.96
28
Teorização descrita mais adiante nos seus pontos essenciais. Cf. p.38 - 42
29
O sublinhado é meu.
30
HAMBURGER, (1957) 1993, p.129
31
CARVALHO, 1967, pp. 661-669
32
BENVENISTE, 1966, p. 253
33
DUCROT, 1980, p.30
34
LYONS,1977, p. 636
35
BENVENISTE, 1966, pp. 252- 253
36
BUBER, 1970, pp.53-54
37
Se assim não fosse, situar-nos-íamos unicamente no nível simbólico, seguindo a teoria do "duplo campo" de Bühler, onde
os signos conceptuais radicam a sua precisão significativa.
38
BÜHLER, (1934) 1979, pp. 124-158
39
BÜHLER, (1934) 1979, p.141
40
POTTIER, 1980, p.31
41
WEINRICH (1964) 1973, p. 107
42
" Pero por muy diversamente que puedan proceder estos narradores refinados, me atrevo a afirmar (...) que puede reducirse
esquematicamente a los tres casos (...)". BÜHLER (1934)1979, p.153
43
" actual"/ "inactual" foi a terminologia avançada por Pottier e Coseriu para o sistema verbal: POTTIER, 1972, p.98;
COSERIU, 1974, p.94
44
BÜHLER ( 1934) 1979, pp. 139-158
45
O sublinhado é meu.
46
BÜHLER ( 1934) 1979, p.143; o sublinhado é meu
47
BENVENISTE, 1966, p.241
48
WEINRICH, 1964, p.20 et passim.
49
BÜHLER(1934) 1979, p. 150
50
FONSECA, 1992, p.146
51
FONSECA, 1992, p.155
52
WEINRICH (1964) 1973, p.35
53
HAMBURGER (1957) 1973, pp. 311, 337 et passim.
54
FONSECA, 1992, p.200
55
FONSECA, 1992, p.185
56
No capítulo 1 pude destrinçar o plano da ficcionalização literária do plano da ficção lato sensu e apresentar as minhas
opções de análise. Cf. pp.20-21
57
DUBOIS, apud PICCARD, 1989, p. 31
58
ADAM, 1990, p.96: adopto esta designação em detrimento de "superestrutura" por julgar válida a justificação com que
avança o autor para pôr em vigência a sua opção terminológica.
59
O termo é de Weinrich que o activa na referenciação de valores elevados de recorrência. WEINRICH, (1964) 1973, p.17
60
Cf. Cap. 2, pp. 38-42
61
WEINRICH, 1989, p.15
62
FRAISSE, 1957, p. 105
63
FONSECA, 1992, p.203
64
REYES, 1984, pp. 230-279
65
Cf.capítulo 1 p.27
66
Cf. capítulo 2, p.46
67
Aproprio-me da exploração a que F. I. Fonseca procede da expressão bartheana "efeito de real". Cf. 1992, pp.219-222
68
IMBS, 1968, p.22
69
GUILLAUME, 1929, p.109
70
BULL, 1971, p.7
71
MARTIN, 1971, p.49
72
COSERIU, 1978, p.19,20
73
BULL, 1971. p.13
74
POTTIER, 1977, p.180
75
IMBS, 1968,p.92
76
IMBS, 1968, p.106
77
BULL,1971. p.14
78
Para além dos usos atemporais do Imperfeito, a intuição do falante institui este tempo enquanto um tempo passado.
79
MARTIN, 1971, p.71
80
MARTIN, 1971, p.83
81
IMBS, 1968, p.98
82
LABOV, apud REINHART, 1986, p.48
83
WEINRICH, 1989, p.146
84
MARTIN, (1983) 1992, pp. 282-290 et passim
85
Cf. pp.60-63
86
IMBS, 1968, p.156
Ver também CUNHA e CINTRA, 1986, p.483
87
Cf p.38
88
BARTHES, (1985) 1987, p.38
89
RICOEUR, 1990, p.138,139
90
LOWENTHAL, 1985, p.41
91
WYATT apud LOWENTHAL, 1985, p. 41
92
LOWENTHAL, 1985 , p.41
93
CAMPBELL, 1995 , p.1
94
BENVENISTE, 1966, pp.75-87
95
BENVENISTE, 1966, p.78
96
RICOEUR, 1990, p.168
97
" C'est cette synthèse de l'hétérogène qui rapproche le récit de la métaphore." RICOEUR, 1983, p.11
98
LOPES, 1986, p.23
99
RICOEUR, 1984, p.113
100
Cf p. 30
101
Cf. ponto 3.4., Cap.3
102
Cf p.59
103
FONSECA, 1992, p.168
104
ANDRADE, 1980, p.298
105
RICOEUR, 1984, p.146

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