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Estudo da personagem histérica no romance O Homem

de Aluísio Azevedo

por

Rachel Fátima dos Santos Nunes1

“Onde não há palavra aparece o sintoma” (FREUD, 2000)

INTRODUÇÃO

Este trabalho traz em seu bojo a histeria, sua evolução, sua história psicanalítica e os
estudos desenvolvidos por Jean-Martin Charcot e Sigmund Freud sobre o tema. Tem
como idéia central a situação da histeria no panorama da psicopatologia do século XIX,
articulando à análise à pulsão sexual reprimida, que se manifesta no corpo das
histéricas.

Dada a importância de se ter um maior número possível de informações acerca dos


sintomas corporais da histérica, o objeto deste estudo são os sintomas corporais da
histérica representados na literatura nacional. Sendo assim surge como problematização:
Quais são as contribuições dos conceitos de Freud e Charcot acerca da histeria que
foram aproveitadas pela literatura brasileira?

Na mesma linha de pensamento, Serge André (1998) ressalta que a histeria nos
apresenta a questão de saber como a sexualização afeta o corpo, como, no ser humano,
se opera a transformação que privilegia o fato de se ter um corpo mais que o de ser um
organismo. Sendo assim, parte-se da hipótese de que se histérica, objeto da clínica,
encerra tais questionamentos, que pode-se dizer da histérica como ficção literária? Tem-
se, assim, como hipótese deste trabalho, a associação da histeria clínica com a
Psicanálise estudada por Charcot e seu seguidor Freud à análise da personagem histérica
do romance O Homem de Aluísio de Azevedo.

Considera-se o romance naturalista O Homem de Aluísio de Azevedo como um


capítulo da exposição do trauma da sexualidade no âmbito feminino. Neste sentido, ele
se afina com a psicanálise como instância das tramas e dos labirintos do desejo, dos
caminhos tortuosos aos quais o desejo encaminha (ou desencaminha) aqueles que
desejam.

O objetivo geral deste estudo é contextualizar a histeria partindo de Charcot e Freud,


até à literatura, onde será analisada a personagem histérica e seus sintomas corporais, no
romance O Homem de Aluísio Azevedo. Sendo assim nomeiam-se como objetivos
específicos analisar a histeria sob o ponto de vista de Freud e Charcot. Estendendo estes
objetivos busca-se, ainda, mapear as crises histéricas da personagem Magdá do romance
de Aluizio de Azevedo – O Homem.

Veremos em nossa pesquisa que o romance Homem de Aluísio de Azevedo ratifica


os estudos sobre a histeria conforme Freud, que conseguiu associá-la ao sexo. Aluísio
em seu romance já apresenta questões ligadas à histeria freudiana que deixou de ser uma
doença nervosa e hereditária para reafirmar-se como uma doença psíquica de etiologia
sexual. É como se Magdá, personagem de Aluísio, fosse uma das pacientes de Freud
(2000, p. 66) e que este ao vê-la diria: “A histérica é alguém que deseja; o desejo é o
principal traço da histeria, e a anestesia o seu principal sintoma.”

A opção pelo tema deu-se em função do interesse da autora deste artigo em


aprofundar conhecimentos a respeito da insatisfação sexual que pode levar ao
desenvolvimento de comportamentos histéricos. O trabalho não guarda em si a proposta
de trazer respostas absolutas, mas antes estimular uma reflexão sobre os motivos que
levam estas mulheres insatisfeitas a produzirem estes sintomas corporais.

Abre-se este artigo com os conceitos de Charcot e Freud sobre a temática histeria. A
partir de então elabora-se um mapeamento das manifestações da histeria tendo como
base a literatura brasileira, adotando-se como modelo a obra O Homem de Aluizio de
Azevedo. O romance do defensor do Naturalismo foi analisado sob a ótica
psicanalítica.

DESENVOLVIMENTO

Segundo Franco (1979) em seu Dicionário de Psicanálise, o termo histeria origina-se


do grego hystera que significa útero. Uma antiga teoria sugeria que o útero vagava pelo
corpo e a histeria era considerada uma moléstia especificamente feminina, atribuída a
uma disfunção uterina. Sua apreensão era feita com base em sinais negativos (de doença
orgânica) e em diversos preconceitos (a imaginada irritação da genitália, a suposta
inespecificidade dos sintomas e a exagerada importância atribuída à simulação).

Jean Marie Charcot, médico francês, fundador da mais famosa escola de neurologia,
a partir de 1878, dedicou-se ao estudo da histeria e do hipnotismo. Suas aulas e
apresentações de doentes atraíram alunos de todo o mundo, dos quais o mais importante
foi Freud. O nome histeria relacionado ao útero dificulta seus estudos neurológicos.
Mas para separar a histeria do útero, ele a separa da sexualidade como causa,
mapeando-a como uma doença mental, que afeta tanto as mulheres quanto aos homens.
Fazendo da histeria uma doença mental – neurológica – Charcot libera as histéricas da
acusação de simulação, o grande fantasma da psiquiatria do século XIX. (ALONSO,
2004)
De acordo com Antonio Quinet (2008), na apresentação da obra Grande Histeria,
Charcot não era um teórico, mas sim, como ele próprio se designava, um visual que
aprofundava o estudo da nosografia (classificação e definição das doenças), com o
intuito de arrancar a histeria da confusão de espasmos, paralisias, anestesias e
convulsões. Sua pesquisa trouxe autenticidade e objetividade aos fenômenos histéricos
contra os preconceitos e a suposição de que eram apenas uma simulação dos doentes.
Seu esforço em sistematizar e ordenar as manifestações da excessiva e surpreendente
teatralidade do corpo histérico trouxe novas contribuições sobre a histeria, até então
considerada como variação de ataques epilépticos ou simples simulações que não
faziam jus às considerações médicas da época.

Charcot, ao empregar a hipnose como tratamento para os histéricos, demonstrou que


as idéias mórbidas podiam produzir manifestações físicas. Tentou livrar seus pacientes
de pensamentos indesejáveis, através da sugestão hipnótica. Foi graças aos estudos de
Charcot, particularmente sobre as paralisias pós-traumáticas e as sugestões pós-
hipnóticas, que o papel da reminiscência foi reconhecido. A verdade é que Freud atribui
a Charcot o mérito das descobertas que lhe conferem o lugar eterno de ter sido o
primeiro a elucidar a questão da histeria, como uma doença do sistema nervoso.
(FREUD, 2000)

Charcot considerou a histeria uma neurose, recusando-se a levar oficialmente em


conta a etiologia sexual, libertando as histéricas da suspeita de simulação. Ele ficou
conhecido como o teorizador das neuroses. Fez vários relatos de casos clínicos,
das entidades mórbidas, dos tipos, organizando a sintomatologia em ataques
convulsivos, zonas heterógenas,distúrbios da sensibilidade, paralisias, contraturas e
características gerais. Esses sintomas decorriam de modificações fisiológicas do sistema
nervoso, alterando as condições de excitabilidade nas suas diferentes partes, sendo de
grande importância o estudo destas neuroses. (ALONSO, 2004)2

O efeito hipnótico presente no arsenal terapêutico fez com que o médico dispusesse
inteiramente do corpo do paciente. Esse domínio, segundo Sílvia Leonor Alonso (2004,
p. 33-4), permitiu tanto a supressão temporária dos sintomas quanto comportamentos
mais dóceis. A autora conta em seu livro que nas suas aulas, Charcot chama a histérica,
aperta nela um ponto histerógeno e ela começa a manifestar as crises. Os movimentos
epileptiformes clônicos e tônicos sucedem-se às contraturas e ao arco circular; depois
disso é o momento das paixões, com as expressões de alegria ou de horror que
acompanham a alucinação. Charcot usava a hipnose para demonstrar a solidez de suas
hipóteses. Hipnotizando, fabricava sintomas histéricos e os suprimia de imediato,
demonstrando o caráter neurótico da doença.

Segundo Alonso (2004) as histéricas oferecem seus corpos para confirmar o saber
médico. Charcot porém não escuta o sofrimento das histéricas e as convida a fixar-se na
cena, a repetir a fala da louca, a se mostrarem num exibicionismo que se ajusta à
fantasia do mestre. Temos o exemplo de Augustine, jovem mulher que fora estuprada
pelo amante da mãe aos 13 anos e que, alguns dias depois, apresentou ataques
convulsivos que repetia a pedido de Charcot nas apresentações. Nestas, Augustine
reproduzia a cena do estupro, com contorções acompanhadas de injúrias:

Porco! Porco!... está me machucando...Ele me abria as pernas...Eu não sabia


que era um bicho que ia me morder..” Ela repete esta cena 154 vezes num dia;
nesse dia lança acusações a Charcot:
‘_ Você diz que me curaria, não era isso?’

Sumindo o interesse dos médicos por ela, disfarçada de homem, foge do


hospital. (ALONSO, 2004, p. 34-5)

Para os médicos do naturalismo, a histeria produzia crises, chamava a atenção,


mostrava-se e os médicos olhavam-na e se interessavam pelos sintomas manifestos,
com os quais construíam uma figura. A histérica precisa ser histriônica, pois o campo
do conhecimento que a estuda precisa dela desta maneira. (NASIO, 2007)

É por isso que se pode afirmar que as histéricas participaram da invenção da


histeria por Charcot. O saber visualconstruído por ele foi produzido valendo-se do que
as histéricas lhe provocaram. Charcot não conseguia tirar os olhos delas. Fotografava os
movimentos, detalhava os gestos, decifrava os espasmos, media milimetricamente o
corpo. O espetáculo, porém, não chegou a lhe permitir imaginar um teatro privado,
como dizia Anna O (paciente histérica do médico Josef Breuer, que foi professor de
Freud) de seus sonhos, e menos ainda uma outra cena, além da dança dos corpos.
(ALONSO, 2004)

Charcot abre em 1882 um serviço de neurologia no hospital Selpêtrière, em Paris, o


maior hospital da Europa. Nesse hospital, com mais de seis mil pacientes, o médico
francês fazia as apresentações dos doentes no seu seminário semanal, assistidas por
médicos vindos de toda a Europa. Verifica-se a histeria sendo transformada em
espetáculo. A histérica, respondendo a pedido do mestre para que se mostre, repetindo
incansavelmente a mesma cena – torna-se objeto de verificação:

As epiléticas contavam vívidos pesadelos, histórias de membros mutilados, de


mulheres devoradas por uma espécie de crustáceo com cabeça de pássaro; tudo
parecia surgir das trevas da Idade Média; as histéricas cuidavam de suas
companheiras, simulando maravilhosamente todas essas doenças. Possuídas
pela mania especular de mimetizar o sofrimento dos outros, assemelhavam-se
com acrobatas, bufões molhados, vibrantes e esfarrapados, ensinando a loucura
do mundo e a miséria do povo. (ROUDINESCO, 2000, p. 17)

A palavra histriônico significa teatralidade; o histrionismo do histérico é representado


por seu caráter afetado, exagerado, exuberante como se estivesse fingindo. É um
comportamento caracterizado por um colorido dramático, extrovertido e eloqüente, com
notável tendência a buscar contínua atenção. Trata-se dos únicos distúrbios de
personalidade mais freqüentes no sexo feminino. Tendendo a exagerar seus
pensamentos e sentimentos, o histérico, por ser muito sugestionável, idealiza sintomas
de acordo com aquilo que representa de verdadeiro. Isso poderia significar que a doença
é intencional e involuntária ao mesmo tempo; há algum planejamento (inconsciente),
mas a pessoa não consegue libertar-se dele voluntariamente. (NASIO, 2007)

Charcot (2008, p. 25) defende que a histeria, da mesma forma que outros estados
mórbidos (as patologias neurológicas), tem regras e leis que podem ser depreendidas
por uma observação atenta. Diz ele que “é importante que se saiba que a histeria tem
suas leis, seu determinismo, exatamente como uma afecção nervosa com lesão
material”.

Há nessa forma de proceder uma reabilitação da histeria que a eleva ao mesmo


patamar de verossimilhança e interesse de toda e qualquer doença neurológica. As
regras e leis depreendidas pelo método charcotiano não só dão à histeria credibilidade e
veracidade, como também retiram os histéricos do rótulo de doentes detestáveis.
(ROUDINESCO, 2000)

Contudo, Charcot (2008, p. 28) não se dedicou a buscar a suposta causa orgânica da
histeria. Seu interesse não era propriamente etiológico, ou mesmo terapêutico, mas sim
descritivo e nosológico. Mas a concepção empregada por Charcot na investigação da
histeria rompe a dicotomia “fenômenos neurológicos inconscientes x fenômenos
psicológicos conscientes e mais ou menos simulados”. Ao propor que histeria apresenta
fenômenos psicológicos sem a consciência do doente, ele consegue demonstrar o
aspecto de falta de sinceridade dos doentes, isolar a histeria traumática, classificar os
sintomas positivos das manifestações histéricas e desfazer a correspondência entre a
histeria e o órgão genital feminino. Além disso, abre caminho para a hipótese freudiana
de fenômenos e mecanismos totalmente clivados da consciência, e, mesmo assim,
extremamente ativos.

Freud, que freqüenta Salpêtrière durante dezessete semanas, sente-se logo


impressionado pelo professor Charcot. No seu papel de professor, o médico era
absolutamente sedutor. Freud dizia que Charcot soubera impor um estilo pessoal, uma
maneira de abordar o doente com um interesse caloroso e vivo, muito diferente da
superficialidade serena a que os médicos vienenses tinham habituado Freud. (FREUD,
2000)

Embora Freud (2000) tenha relatado que ouviu de Charcot a afirmação, feita
informalmente a um colega, de que na histeria c`est toujours la chose génitale, seria
necessário esperar que o próprio Freud, ao teorizar a etiologia sexual da histeria e
fundar a psicanálise, pudesse comprová-la. Freud detectou no ataque histérico uma
fantasia encenada em que o sujeito é objeto sexual em um cenário fantasioso: o ataque
histeroepilético é, segundo ele, a encenação de um ato sexual. Efetivamente, mesmo
hoje não se pode deixar de ver a erogeneização do corpo durante o ataque histérico
epileptiforme.

De acordo com Antonio Quinet (2008), ataques histeroepiléticos, catalépticos,


letárgicos, paralisias, nevralgias, afonias, cegueiras histéricas são todos sintomas que
representam o sujeito para o outro, que está fundamentalmente implicado no desejo do
histérico, assim como os pacientes de Charcot respondiam a seu desejo de se mostrar.
Essa constatação não exclui a veracidade de seu sintoma, que sempre traz consigo algo
da facticidade própria da linguagem do desejo.

A idéia de que os sintomas histéricos são causados por lesões orgânicas é descartado
por Charcot. É seu mérito ter defendido a idéia de que não há uma correlação entre a dor
psíquica e um órgão supostamente lesionado. No entanto, afirma que a histérica
apresenta a sintomatologia definida por regras precisas para escapar da idéia de
simulação. Teorizador da neurose, Charcot carece de instrumentos para curá-la.
(ALONSO, 2004)

Neste quadro inseriu-se Freud, que mesmo sendo discípulo de Charcot, considerou
inadequado o tratamento da hipnose para os histéricos. Freud verificou que nem todas
as pessoas que exibiam sintomas histéricos podiam ser hipnotizadas. A partir de um
estudo crescente da compreensão clínica das neuroses, Freud (2000) afirmou que os
sintomas histéricos ocorriam quando um processo mental caracterizado por intensa
carga de afeto ficava bloqueado, impossibilitado de expressão através da via normal da
consciência e dos movimentos. Esse afeto estrangulado percorria vias inadequadas e
derramava-se sobre a inervação somática (conversão).

Freud (2000) afirmou que esses sintomas, substitutos de processos mentais normais,
tinham sentido e significado, sendo causados por desejos inconscientes e lembranças
soterradas. Dado que essas idéias patogênicas, descritas como traumas psíquicos, eram
oriundas de um passado remoto, as histéricas sofriam de reminiscências que não tinham
sido elaboradas.

Diante da fragilidade do diagnóstico da histeria por lesão cerebral, essa histeria,


separada do sexo por Charcot, volta a juntar-se ao sexo na conceituação de Freud no
século XX. Em Psicoterapia da Histeria, Freud relata que quando começou a analisar a
paciente, a Sra. Emmy Von N, a concepção de que a histeria fosse uma neurose sexual
ainda estava um pouco distante para Freud, pois ele acabara de sair da escola de
Charcot. Posteriormente, ao estabelecer a histeria com o tema da sexualidade, comentou
sobre o caso da paciente Emmy Von N: “Quando examino minhas notas sobre esse caso
hoje em dia, parece-me não haver nenhuma dúvida de que ele deve ser visto como um
caso grave de neurose de angústia que se originara da abstinência sexual e se combinara
com a histeria.” (FREUD, 2000, p. 65)

De acordo com Silvia Alonso (2004), a suposta lesão nervosa proposta por Charcot
não encontrou apoio nas pesquisas e foi abandonada por Freud, que preferiu acreditar
nas “feridas psíquicas”, nos traços mnêmicos (procedimento capaz de ajudar a memória
por associações mentais) deixados pelas experiências infantis, pelas fixações pulsionais,
pelos excessos das intensidades traumáticas ao longo da história da erogenização do
corpo.

Freud (2000) passou a considerar os casos de neurose de angústia como incluídos no


diagnóstico da histeria, sustentando que esses casos decorrem de um acúmulo de tensão
física seguida de reminiscências, que para ele, já representa uma origem sexual. Freud
comenta sobre um caso de uma paciente histérica cujos sintomas são de natureza
sexual:

A doença da irmã causara nela essa impressão tão profunda porque as duas
partilhavam um segredo; dormiam no mesmo quarto e, uma noite, ambas
sofreram as investidas sexuais de certo homem. A menção desse trauma sexual
na infância da paciente revelou não só apenas a origem de suas primeiras
obsessões como também o trauma que em seguida produziu os efeitos
patogênicos. (FREUD, 2000, p. 81)

A histeria com Freud (2000) deixa de ser uma doença nervosa para reafirmar-se
como uma doença psíquica de etiologia sexual. Guiado pelas próprias analisandas que
lhe solicitam que as deixem falar, contando os seus sonhos e resistindo a cair no sono
hipnótico, vai transformando sua forma de trabalho em cada atendimento, abrindo passo
ao método psicanalítico, esclarecendo a forma de erotismo presente na hipnopse e
substituindo a sugestão pela associação livre e pela atenção flutuante, convocando os
analisandos a participarem do processo de cura. Com isso, abre para as histéricas um
caminho: procurarem nelas próprias os caminhos do desejo. Silvia Alonso comenta
sobre as diferenças entre o método charcotiano e o freudiano:
Se Charcot as chamava a exibir-se e, com isso, fixava-as numa figura que
respondia à demanda do médico, Freud escutou-as no seu sofrimento,
descobriu com elas a transferência, inventou a psicanálise e deparou-se com os
limites do analisável. (ALONSO, 2004, p. 50)

Um dos textos famosos de Freud, Estudos sobre Histeria, reúne as construções


teóricas desenvolvidas à época e alguns dos relatos clínicos de seus atendimentos.
Elizabeth von R, paciente de Freud, é uma moça que sofre de dores nas pernas e tem
dificuldade para andar. Freud relata o atendimento que deu a Elizabeth:

Quando eu beliscava ou oprimia a pele e a musculatura hiperálgica da perna da


senhorita von R, o seu rosto refletia uma peculiar expressão, mais de prazer do
que de dor. Ela lançava uns gritinhos que eu podia interpretar como a raiz de
erotizadas cócegas. Seu rosto ficava vermelho, fechava os olhos, e se jogava
para trás. Tais reações não se harmonizavam com a dor que, supostamente,
sentia após meus estímulos. Provavelmente, combinavam melhor com o
conteúdo dos pensamentos escondidos atrás dessa dor e que eram despertados
ao se estimular uma parte do corpo. (FREUD, 2000, Estudos sobre a Histeria,
p. 153)

Entre a expressão prazerosa no rosto e a queixa de dor de Elizabeth, há algum


desencontro que conduzirá a paciente a pensamentos não conscientes e que levou Freud
a considerar a existência de um conflito, como também a existência sexual e da defesa
contra ela. (FREUD, 2000)

A zona que Freud estimulava na perna de Elizabeth é uma zona histerógena, conceito
que não é novo, pois já aparecia em Charcot. Contudo, para o médico francês essas
zonas faziam parte de uma topografia geral que, ao serem estimuladas, poderiam
produzir uma crise. Já para Freud (2000), essas zonas histerógenas eram zonas
erógenas, capazes de desprender uma excitação, que falam de um erotismo e de uma
topografia individual e histórica. Seu corpo expressa algo que não coincide com o
pensamento consciente, algo que vem de outro lugar.

Conforme defende Alonso (2004), a sexualidade infantil, o desejo inconsciente


recalcado e o sonho como retorno do inconsciente são três eixos que constroem a
perspectiva de Freud sobre a histeria e seus sintomas, quando analisa la petite
hysterie de sua paciente Dora, que foi beijada e agarrada pelos braços pelo Sr.K. Dora
sentiu asco, correu na direção da rua e, na sequência da cena, três sintomas formam-se:
o asco pelo beijo, uma sensação de pressão no peito e a impossibilidade de passar ao
lado de casais de namorados na rua.

A análise da cena do beijo e dos sintomas derivados conduz Freud a um ponto de


vista mais firme para a concepção de um corpo para o prazer que concerne à histeria,
mesmo se tratando de uma produção de prazer sujeita ao obstáculo. A transformação de
prazer em desprazer soma-se o outro traço característico, o deslocamento da sensação:
na cena do abraço, em lugar de sensações na área genital, produz-se a emergência do
asco, sensação de desprazer na entrada do aparelho digestivo. Finalmente, e derivada do
mesmo estímulo, instala-se um evitar sistemático, uma verdadeira fobia, ao passar perto
de qualquer homem envolvido numa terna conversa com uma mulher. O evitado,
conscientemente, é voltar a perceber o signo corporal da excitação masculina.
(ALONSO, 2004)
A inversão do afeto – onde deveria haver prazer, há repugnância – é produto do
recalque, e segundo Freud, caracteriza a histeria. Dora evita encontrar com casais de
namorados, pois assim evitaria reencontrar-se com a excitação, sentida por ela no
abraço. Por algum tempo, depois do episódio que desencadeou o sintoma histérico de
Dora (a cena do beijo), ela evitou ficar a sós com o senhor K, recusando-se a
acompanhá-lo com sua esposa, sem dar nenhuma razão. Verifica-se que na conversão, o
afeto se suprime e depois se desloca, anulando-se mediante o deslocamento para uma
parte do corpo que não é aleatória, mas naquela que guarda uma relação simbólica com
o conflito que motivou o deslocamento. (FREUD, 2000)

Para Freud, o comportamento de Dora, menina de 14 anos, já era total e


completamente histérico. Da sensação de desprazer e de repugnância de Dora diante da
cena do beijo, Freud tomaria por histérica “Qualquer pessoa em quem uma
oportunidade de excitação sexual lhe despertasse sentimentos preponderante ou
exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos.”
(FREUD, 2000, O Caso Dora, p. 34)

Freud começou a estudar a forma como uma pessoa se torna histérica e quais são as
manifestações apresentadas posteriormente por elas. Freud acreditava que o gerador de
uma neurose histérica seria quando a criança é vítima de uma sedução sexual
involuntária por um adulto. Consequentemente, essa criança apresentaria sintomas,
ficaria sem voz, paralisada, aparecendo a angústia na tomada de consciência de um fato
brutal, caracterizando um trauma. No momento do trauma, o impacto de tal sedução
destaca justamente a parte corporal que entrou em jogo, proveniente do fato traumático.
A imagem de um corpo sedutor adulto ou ainda do corpo da criança seduzida formam o
conteúdo imaginário da representação inscrita no inconsciente, onde o excesso de afeto
sexual se firma. Pode-se dizer que a partir daí, surge o sintoma histérico, considerando
assim que a violência que se infiltrou no eu e a impressão dessa imagem altamente
investida de afeto é muito forte para o eu e, portanto, considerada a fonte de tal sintoma.
(FREUD, 2000)

Portanto, Freud quando começou a tratar as primeiras histéricas, estava


fundamentalmente preocupado com a questão do trauma. Ele constatou que o
traumático não era a sedução em si, mas a recordação da cena. Isso levou-o a deduzir
que o que acaba tornando alguém histérico não é o trauma, mas sim, o fato de tal
vestígio pressionado pelo recalcamento ser sobrecarregado de afeto exacerbado,
gerando assim, um conflito que é o impulso essencial da histeria, que é o fato de uma
representação, com excesso de afeto, e, por outro lado, uma defesa, que acaba
desaguando em outros sintomas, a caso da histeria de conversão. Freud assim diz que o
histérico utiliza o corpo como representante fálico e não investe no corpo genital: “Os
sintomas histéricos derivados de lembranças que agem inconscientemente.” (FREUD,
2000, p. 99)

O caminho da identificação pelo qual os histéricos chegam a expressar os seus


sintomas, suas experiências com uma série de pessoas; esse percurso dos histéricos
aparece como se eles representassem os papéis de um drama, só que com seus recursos
pessoais. Os ataques histéricos permitem que eles sofram, em nome de uma multidão de
pessoas, fazendo com que desempenhem sozinhos os papéis de uma peça. A imitação e
a representação de “quaisquer sintomas de outras pessoas que possam ter despertado sua
atenção – solidariedade, por assim dizer, intensificada até o ponto da reprodução.”
(FREUD, 2000, p. 183)

Freud dirá que os sintomas são figurações convertidas de fantasias que se originam
nas zonas erógenas. A histérica para ele é alguém que deseja: “O desejo é o principal
traço da histeria, e a anestesia o seu principal sintoma” (FREUD, 2000, p. 309).
Protegida está Dora do seu próprio desejo pelo recalque; protegida da tentação de cair
nos braços do Sr. K, de entregar-se sexualmente. Então, o que a ameaça é o desejo e,
por intermédio dele, a sua condição moral.

A importância da fantasia na vida sexual dos histéricos aparece de forma marcante no


texto de Freud sobre o caso Dora. Freud (2000) afirma que os histéricos afastam-se do
caminho da satisfação buscado na realidade e refugiam-se na atividade fantasística, num
processo de introversão da libido. Cada histérico tem seu próprio teatro privado, sendo
que os fantasmas histéricos estão, no dizer de Freud, sempre dirigidos ao outro.

Enquanto para Charcot, o palco cênico em que se produzia o discurso sobre a


histeria, e onde aparecia em cena o corpo da histérica que era observado, escrito e
fotografado, para Freud, é o campo da escuta e não da mirada que permitirá incluir o
espaço psíquico como dimensão fundamental para uma nova concepção de histeria e da
corporeidade que lhe concerne. O reconhecimento da presença de um saber não
sabido do qual as histéricas são portadoras, no qual é um invisível o que ressoa na fala,
e que se acede pela escuta do analista, caminha como uma mudança de lugar do corpo
histérico, como bem afirma Silvia Alonso:

A opção pelo relato, em vez do exame semiológico, somada à idéia de um


saber inconsciente presente no paciente e à transferência como instrumento
fundamental da cura, permitem reconhecer o corpo histérico como lugar em
que se expressa o que vem de outro espaço, a outra cena, cena inconsciente,
lugar do fantasma. (ALONSO, 2004, p. 88)

Freud notou que, na maioria dos seus pacientes, o material mais frequentemente
reprimido estava relacionado às idéias perturbadoras referentes à sexualidade. Em 1887,
percebeu que, ao invés de serem lembranças de acontecimentos reais, esses eventos
eram resíduos de impulsos e desejos infantis (fantasias). E concluiu que a ansiedade era
conseqüência da libido reprimida, que encontrava expressão em vários sintomas.
(KEHL, 2008)

Em contato com vivências internas, num estado de regressão, o analisando passava a


se relacionar com o analista, como se esse fosse uma figura do seu passado
(transferência), frequentemente revivendo com grande intensidade emocional eventos
esquecidos de longa data.

No caso específico da histeria, o afeto, ou a soma de excitação são transpostos ao


corporal, mecanismo que propõe chamar de conversão. Esse termo pode ser
compreendido na fase em que a libido, desligada da representação recalcada, é
transformada em energia e inervação. Mas o que especifica os sintomas de conversão é
sua significação simbólica: eles exprimem pelo corpo representações recalcadas: por
meio desses sintomas as representações falam através do corpo. (ALONSO, 2004)
A histérica sofreria, segundo Freud (2000), de reminiscências e o sintoma é uma
forma de rememoração. As dores da paciente Elizabeth nos pontos de apoio das pernas
inchadas do pai doente representam a lembrança dolorosa e enlutada deste período de
sua vida e dos conflitos afetivos que a atravessavam. É possível afirmar que esses
sintomas são marcas deixadas no corpo por fragmentos de um passado parcialmente
esquecido, signos de uma história escrita pela metade.

Para Freud (2000), a histérica insere-se nas situações por meio do corpo e é afetada
pelo próprio corpo. Nesse histórico clínico, Freud mantém, inicialmente, as conclusões
extraídas do caso Elizabeth, explicitando a necessidade de participação do corpo na
produção do sintoma histérico:

Até onde alcanço vê-lo, todo sintoma histérico requer a contribuição de duas
partes. Não pode produzir-se sem certa situação somática, outorgada por um
processo normal ou psicológico acontecendo no interior de órgão do corpo, ou
relativo a esse órgão. Mas não se produz mais de uma vez só – e está no
caráter do sintoma histérico a capacidade de repetir-se – se não possui um
significado psíquico, um sentido. (FREUD, 2000, p. 37)

Freud aproximou-se das paralisias das histéricas com um olhar crítico que outros não
atingiram. Percebeu que as paralisias não acompanhavam o trajeto dos nervos, sendo ao
contrário, a expressão no corpo de uma problemática psíquica (a distinção
corpo/psiquismo que foi apropriada por Freud); a conversão de energia psíquica em
somática e não uma degeneração ou fraqueza dos nervos. (ALONSO, 2004)

Tanto Nasio (2007) quanto Alonso (2004) consideram que Freud foi o precursor de
uma forma de pensar com o corpo, afetivamente, dando expressão conceitual às
tensões, às quais ele mesmo estava exposto, iniciando seu percurso pensando o corpo
das histéricas.

Dando vazão à descoberta do inconsciente e à descoberta do corpo erógeno pelo viés


da crise histérica, Freud conceberá o psiquismo humano como um aparelho de
processamento de prazer, desprazer e angústia, em contraponto a uma concepção do
psiquismo como um aparelho neurológico, orgânico. O ataque histérico para Freud se
configura como uma atualização do erotismo com o próprio corpo: “Um ataque
histérico não se constitui somente como uma descarga, mas como uma ação que
conserva a característica inerente de toda a ação: ser um modo de se obter prazer.”
(FREUD, 2000, carta 52)

A definição de Freud (2000, p. 32) da crise da histeria “como fantasias traduzidas em


linguagem motora, projetadas sobre a motilidade e figuradas como pantomima”, aponta
para o fato de que, mesmo se a histeria é referida a um teatro da representação
inconsciente, a idéia da representação não está ligada a uma representação mental, mas
a um teatro do corpo.

Gilles Deleuze, filósofo francês pensador da “diferença”, escreveu, em colaboração


com Félix Guatarri, o livro Anti-Édipo, desvencilhando-se de um plano do corpo ainda
contaminado pela representação em relação ao corpo erógeno da histeria, privilegiando
a formulação do corpo sem órgãos de Artaud. Existe então para Deleuze uma
ressonância entre o corpo sem órgão e o corpo da histeria. (DELEUZE, 2000)
Encontramos no livro A Lógica da Sensação, o capítulo Histeria, onde Deleuze
retoma a idéia de Artaud, poeta francês surrealista, do corpo sem órgãos. Deleuze
propõe contra a hierarquia que unifica as sensações do corpo orgânico, outro corpo, que
suporte intensidades extremas. A hipótese da onda nervosa requer um corpo que não
desmorone quando submetido a tais intensidades, invisíveis pelo organismo. Corpo da
representação, o orgânico desorganiza-se quando atingido por sensações, no qual o
excesso de diferenças intensivas misturadas constitui o caos, ou como escreve
Deleuze, as potências da noite. Nesse sentido, o orgânico não passa de um atributo do
corpo, pois é acidente: é o filtro que faz tudo chegar ao corpo atenuadamente pela
representação organizadora. Desprovido do atributo da organização, o corpo sem órgãos
é o de órgãos desorganizados. Desorganizada e excessiva no que concerne ao corpo
orgânico, sensação não representada, a presença é associada por Deleuze à histeria.
(DELEUZE, 20000)

De acordo com Ruth Brandão (2008), a convulsão histérica ou epilética são


fenômenos ameaçadores, pois apresentam um corpo indomado. Essa desordem corporal
estaria intimamente ligada a um corpo submetido a leis ou regras que o comandam,
podendo ele tornar-se presa de um excesso, de um arrebatamento vital, como
verificamos na passagem abaixo em que Magda do romance O Homem de Aluísio de
Azevedo começa a manifestar um ataque histérico:

O pai quis contê-la. Magda fugiu-lhe, correndo pelo cemitério, saltando das
sepulturas, tropeçando aqui e ali, tão depressa caindo como se levantando , a
soltar gritos que pareciam uivos de fera esfaimada. Afinal, já sem forças, e
com as roupas em frangalhos, abateu por terra, ofegante, mas escabujando
ainda num rosnar convulsivo, até perder os sentidos. (AZEVEDO, 2000, p.
50)

A manifestação da sexualidade feminina apresenta-se como algo ameaçador,


perturbador do equilíbrio, como uma alteração do caráter, uma irritabilidade excessiva,
que Deleuze chamará de o excesso da histérica na desorganização corporal. O corpo
sem órgãos para Deleuze (2000, p. 34) se define por um órgão indeterminado, enquanto
o organismo se define por órgãos determinados: “Há muitas aproximações ambíguas na
vida, do corpo sem órgãos, o álcool, a droga, a esquizofrenia [...] mas a realidade viva
deste corpo podemos nomeá-la de histeria e em que sentido?”.

Deleuze (2000, p. 236) reporta ao quadro da histeria que se forma no século XIX – as
célebres contraturas e paralisias, as hisperestesias, os fenômenos de precipitação sempre
alternantes e migrantes segundo os efeitos da passagem da onda nervosa conforme as
zonas que ela investe. Nesse corpo inorgânico, sensação é vibração: “O corpo sem
órgãos traduz a histeria de suas imagens presentes na carne, que é o revelador que
desaparece no que revela: o composto de sensações.”

Freud (2000, p. 54) que ousou discordar das apresentações de Charcot, nos leva a
refletir sobre a definição de Deleuze do corpo sem órgãos da histeria como “uma série:
sem órgão – órgão indeterminado polivalente – órgãos temporários e transitórios”. A
análise deleuziana da histeria se assemelha às formulações de Freud em 1893 nos
Estudos comparativos entre as paralisias orgânicas e histéricas. Diz Freud:

Eu afirmo que a lesão das paralisias histéricas é totalmente independente da


anatomia dos sistemas nervosos, posto que a histeria se comporta nessas
paralisias como se a anatomia não existisse ou como se ela a desconhecesse
[...]. O sintoma histérico remete a uma outra realidade do corpo, expressando
uma realidade intensiva: o braço paralisado não remete a uma lesão funcional,
sendo expressão de um valor afetivo que lhe é conferido. (FREUD, 2000, p. 55
e 57)

Também para Deleuze (2000, p. 5), a sensação de um órgão afetado num ataque
histérico não é passivo de representação, uma vez que os órgãos intensivamente
determinados não se qualificam, petrificando-se numa função fixada. Para o autor “O
corpo é o corpo. Ele é único, e não necessita de órgãos. O corpo não é jamais um
organismo. Os organismos são inimigos do corpo.”

Segundo Brandão (2008) no romance O Homem, a personagem Magda, revestindo-se


dos trajes da feminilidade, vai perdendo também o controle do seu corpo, cada vez mais
presa a dores e convulsões que demonstram sua fragilidade. Seu corpo torna-se cada vez
menos humano, fazendo com que ela se assemelhe aos animais, por seus gestos
descontrolados. O narrador de O Homem refere-se a Magda como fera, com seus uivos
e seu rosnar convulsivo. Todo esse mundo animal repelente é a contrapartida da
sexualidade recalcada de Magda, impossível de ser vivenciada, a não ser através dos
ataques de sua doença. Essa doença, segundo o médico da família, é também de origem
animal, referindo-se à teoria platônica, segundo o qual o útero é uma fera que deve ser
satisfeito em suas necessidades instintivas.

Isso mostra o quanto o discurso médico mantinha-se preso aos preconceitos e


considerações morais. Apesar de descrever minuciosamente os sintomas da histeria – as
tosses nervosas, as convulsões, a irritabilidade, o tédio, os vômitos e a febre –, Aluísio
de Azevedo não deixou de criticar o médico e sua medicina tirânica, pois uma outra
visão da histeria já havia sido vista como subordinada aos fenômenos psíquicos.

A convulsão histérica representa um fenômeno ameaçador, pois apresenta um corpo


indomado, signo da desordem. Essa desordem estaria intimamente ligada a um corpo
submetido a leis ou regras que o comandam, podendo ele tornar-se presa de um excesso,
de um arrebatamento vital, de um transbordamento do desejo. A manifestação da
sexualidade feminina apresenta-se como algo ameaçador, perturbador do equilíbrio,
como uma alteração no caráter, uma irritabilidade excessiva. (BRANDÃO, 2008)

Deleuze (2000) no ensaio Histeria dirá que a histérica é ao mesmo tempo aquela que
impõe sua presença, mas também para quem as coisas e os seres estão presentes,
presentes demais, e que comunica a cada ser esse excesso de presença. Esse excesso de
presença faz com que os histéricos se afastem do caminho da satisfação buscado na
realidade e refugiando-se na atividade fantasística, num processo de introversão da
libido. Cada histérico tem seu próprio teatro privado. Exemplo claro é encontrado no
romance O Homem, quando Magda, após um desmaio é levada pelos braços do
cavouqueiro:

O rapaz passou um dos braços na cintura de Magda e com o outro a suspendeu


de mansinho pelas curvas dos joelhos, chamando-a toda contra o seu largo
peito nu. Ela soltou um longo suspiro e, na inconsciência de síncope, deixou
pender molemente a cabeça sobre o ombro do cavouqueiro [...]. Achava-se
muito bem no tépido aconchego daquele corpo de homem; toda ela se
penetrava no calor vivificante que vinha dele; Aquele calor de carne sã era
uma esmola atirada à fome do seu miserável sangue. (AZEVEDO, 2000, p. 71)

A encenação de um desejo alucinado pode ser analisada no romance Homem. Se os


sonhos de Magda representam o duplo de sua vida rotineira, a ela também se opõe e
denunciam seu caráter absurdo e opressor, na medida em que refletem uma sociedade
também absurda e repressora. Se Freud destaca o valor da verdade psíquica dos sonhos
e sua função de realizar os desejos, no romance de Aluísio de Azevedo, elas aparecem
no sentido de um desejo que não pode se manifestar socialmente. (BRANDÃO, 2008)

Torna-se possível para Magda ser desejada e amada na atmosfera psíquica do sonho.
Seus sonhos são produtos de um imaginário criador de fantasias relacionadas com uma
sexualidade que se direciona na busca de sensações e desejos não realizados.
(BRANDÃO, 2008)

Se na vida real de Magda, tudo é perda, no sonho a perda é reparada pela recuperação
do objeto amado. O que era ferida e doença cura-se e cicatriza-se, através do remédio do
amor, vivido no sonho. É pela via do discurso onírico de Magda que o romance de
Aluísio de Azevedo faz emergir a fala feminina, amordaçada por uma sociedade
patriarcal que não dá à mulher outro lugar de expressão do que os sintomas da histeria.
Na medida em que o autor zomba de uma sociedade que produz a histeria feminina, ele
denuncia a loucura de suas normas ou códigos. Se a mulher é privada daquilo que se
entende por sua feminilidade, ao mesmo tempo, estigmatiza-se o poder médico que
pode se revelar como metáfora da sociedade patriarcal. (BRANDÃO, 2008)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo mapeou superficialmente as manifestações corporais da histeria que se


mostram evidentes nas crises histéricas e no desejo sexual insatisfeito de Magda,
personagem central da obra O Homem de Aluizio de Azevedo.

Este estudo levou à confirmação da hipótese inicial, pois é possível considerar que as
preocupações científicas e também a reação contra os românticos, levaram Aluísio de
Azevedo a aproveitar as lições de Charcot e Freud sobre a histeria feminina. As funções
procriadoras eram as únicas que se concediam às mulheres. Os autores ressaltam que
desde que apenas formadas, não tivessem um marido para enchê-las de filhos, todas se
tornavam nervosas, desorientadas, infelizes.

Além da aproximação do tema sobre o mal do século XIX – a histeria – e seus


sintomas nas manifestações corporais da personagem Magdá, como desmaios, tremores,
falta de apetite, sonhos, analisamos a insatisfação sexual feminina, que levou a
personagem a produzir sintomas histéricos. O interesse de Aluisio em abordar a
insatisfação feminina pela via da histeria nos levou a fazer este estudo da personagem
histérica, onde de fato o corpo fala pelo acúmulo de sensações e desejos frustrados.

REFERÊNCIAS

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ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
AZEVEDO, Aluísio. O Homem. São Paulo: Martin Claret, 2000.

BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao Pé da Letra. Minas Gerais: UFMG, 2008.

CHARCOT, Jean-Martin. Grande Histeria. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2008.

Clement, Catherine. O feminino e o sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

DELEUZE, Gilles. Lógica das Sensações. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

FRANCO, Geminiano. Dicionário de Psicologia Moderna. Lisboa: Editora Lisboa,


1979.

FREUD, Sigmund. A Psicoterapia da Histeria. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

______. Fragmento da Análise de um Caso de Histeria (O Caso Dora). Rio de Janeiro:


Imago, 2000.

______. Histeria. Primeiros Artigos. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008.

NASIO, J. D. A Histeria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

QUINET, Antonio. Apresentação do livro “Histeria” de Jean-Martin Charcot. In:


CHARCOT, Jean-Martin. Grande Histeria. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2008.

ROUDINESCO, Elizabeth. Sobre o Erotismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

SODRÉ, Nelson Wernek. O Naturalismo no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

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