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de Aluísio Azevedo
por
INTRODUÇÃO
Este trabalho traz em seu bojo a histeria, sua evolução, sua história psicanalítica e os
estudos desenvolvidos por Jean-Martin Charcot e Sigmund Freud sobre o tema. Tem
como idéia central a situação da histeria no panorama da psicopatologia do século XIX,
articulando à análise à pulsão sexual reprimida, que se manifesta no corpo das
histéricas.
Na mesma linha de pensamento, Serge André (1998) ressalta que a histeria nos
apresenta a questão de saber como a sexualização afeta o corpo, como, no ser humano,
se opera a transformação que privilegia o fato de se ter um corpo mais que o de ser um
organismo. Sendo assim, parte-se da hipótese de que se histérica, objeto da clínica,
encerra tais questionamentos, que pode-se dizer da histérica como ficção literária? Tem-
se, assim, como hipótese deste trabalho, a associação da histeria clínica com a
Psicanálise estudada por Charcot e seu seguidor Freud à análise da personagem histérica
do romance O Homem de Aluísio de Azevedo.
Abre-se este artigo com os conceitos de Charcot e Freud sobre a temática histeria. A
partir de então elabora-se um mapeamento das manifestações da histeria tendo como
base a literatura brasileira, adotando-se como modelo a obra O Homem de Aluizio de
Azevedo. O romance do defensor do Naturalismo foi analisado sob a ótica
psicanalítica.
DESENVOLVIMENTO
Jean Marie Charcot, médico francês, fundador da mais famosa escola de neurologia,
a partir de 1878, dedicou-se ao estudo da histeria e do hipnotismo. Suas aulas e
apresentações de doentes atraíram alunos de todo o mundo, dos quais o mais importante
foi Freud. O nome histeria relacionado ao útero dificulta seus estudos neurológicos.
Mas para separar a histeria do útero, ele a separa da sexualidade como causa,
mapeando-a como uma doença mental, que afeta tanto as mulheres quanto aos homens.
Fazendo da histeria uma doença mental – neurológica – Charcot libera as histéricas da
acusação de simulação, o grande fantasma da psiquiatria do século XIX. (ALONSO,
2004)
De acordo com Antonio Quinet (2008), na apresentação da obra Grande Histeria,
Charcot não era um teórico, mas sim, como ele próprio se designava, um visual que
aprofundava o estudo da nosografia (classificação e definição das doenças), com o
intuito de arrancar a histeria da confusão de espasmos, paralisias, anestesias e
convulsões. Sua pesquisa trouxe autenticidade e objetividade aos fenômenos histéricos
contra os preconceitos e a suposição de que eram apenas uma simulação dos doentes.
Seu esforço em sistematizar e ordenar as manifestações da excessiva e surpreendente
teatralidade do corpo histérico trouxe novas contribuições sobre a histeria, até então
considerada como variação de ataques epilépticos ou simples simulações que não
faziam jus às considerações médicas da época.
O efeito hipnótico presente no arsenal terapêutico fez com que o médico dispusesse
inteiramente do corpo do paciente. Esse domínio, segundo Sílvia Leonor Alonso (2004,
p. 33-4), permitiu tanto a supressão temporária dos sintomas quanto comportamentos
mais dóceis. A autora conta em seu livro que nas suas aulas, Charcot chama a histérica,
aperta nela um ponto histerógeno e ela começa a manifestar as crises. Os movimentos
epileptiformes clônicos e tônicos sucedem-se às contraturas e ao arco circular; depois
disso é o momento das paixões, com as expressões de alegria ou de horror que
acompanham a alucinação. Charcot usava a hipnose para demonstrar a solidez de suas
hipóteses. Hipnotizando, fabricava sintomas histéricos e os suprimia de imediato,
demonstrando o caráter neurótico da doença.
Segundo Alonso (2004) as histéricas oferecem seus corpos para confirmar o saber
médico. Charcot porém não escuta o sofrimento das histéricas e as convida a fixar-se na
cena, a repetir a fala da louca, a se mostrarem num exibicionismo que se ajusta à
fantasia do mestre. Temos o exemplo de Augustine, jovem mulher que fora estuprada
pelo amante da mãe aos 13 anos e que, alguns dias depois, apresentou ataques
convulsivos que repetia a pedido de Charcot nas apresentações. Nestas, Augustine
reproduzia a cena do estupro, com contorções acompanhadas de injúrias:
Charcot (2008, p. 25) defende que a histeria, da mesma forma que outros estados
mórbidos (as patologias neurológicas), tem regras e leis que podem ser depreendidas
por uma observação atenta. Diz ele que “é importante que se saiba que a histeria tem
suas leis, seu determinismo, exatamente como uma afecção nervosa com lesão
material”.
Contudo, Charcot (2008, p. 28) não se dedicou a buscar a suposta causa orgânica da
histeria. Seu interesse não era propriamente etiológico, ou mesmo terapêutico, mas sim
descritivo e nosológico. Mas a concepção empregada por Charcot na investigação da
histeria rompe a dicotomia “fenômenos neurológicos inconscientes x fenômenos
psicológicos conscientes e mais ou menos simulados”. Ao propor que histeria apresenta
fenômenos psicológicos sem a consciência do doente, ele consegue demonstrar o
aspecto de falta de sinceridade dos doentes, isolar a histeria traumática, classificar os
sintomas positivos das manifestações histéricas e desfazer a correspondência entre a
histeria e o órgão genital feminino. Além disso, abre caminho para a hipótese freudiana
de fenômenos e mecanismos totalmente clivados da consciência, e, mesmo assim,
extremamente ativos.
Embora Freud (2000) tenha relatado que ouviu de Charcot a afirmação, feita
informalmente a um colega, de que na histeria c`est toujours la chose génitale, seria
necessário esperar que o próprio Freud, ao teorizar a etiologia sexual da histeria e
fundar a psicanálise, pudesse comprová-la. Freud detectou no ataque histérico uma
fantasia encenada em que o sujeito é objeto sexual em um cenário fantasioso: o ataque
histeroepilético é, segundo ele, a encenação de um ato sexual. Efetivamente, mesmo
hoje não se pode deixar de ver a erogeneização do corpo durante o ataque histérico
epileptiforme.
A idéia de que os sintomas histéricos são causados por lesões orgânicas é descartado
por Charcot. É seu mérito ter defendido a idéia de que não há uma correlação entre a dor
psíquica e um órgão supostamente lesionado. No entanto, afirma que a histérica
apresenta a sintomatologia definida por regras precisas para escapar da idéia de
simulação. Teorizador da neurose, Charcot carece de instrumentos para curá-la.
(ALONSO, 2004)
Neste quadro inseriu-se Freud, que mesmo sendo discípulo de Charcot, considerou
inadequado o tratamento da hipnose para os histéricos. Freud verificou que nem todas
as pessoas que exibiam sintomas histéricos podiam ser hipnotizadas. A partir de um
estudo crescente da compreensão clínica das neuroses, Freud (2000) afirmou que os
sintomas histéricos ocorriam quando um processo mental caracterizado por intensa
carga de afeto ficava bloqueado, impossibilitado de expressão através da via normal da
consciência e dos movimentos. Esse afeto estrangulado percorria vias inadequadas e
derramava-se sobre a inervação somática (conversão).
Freud (2000) afirmou que esses sintomas, substitutos de processos mentais normais,
tinham sentido e significado, sendo causados por desejos inconscientes e lembranças
soterradas. Dado que essas idéias patogênicas, descritas como traumas psíquicos, eram
oriundas de um passado remoto, as histéricas sofriam de reminiscências que não tinham
sido elaboradas.
De acordo com Silvia Alonso (2004), a suposta lesão nervosa proposta por Charcot
não encontrou apoio nas pesquisas e foi abandonada por Freud, que preferiu acreditar
nas “feridas psíquicas”, nos traços mnêmicos (procedimento capaz de ajudar a memória
por associações mentais) deixados pelas experiências infantis, pelas fixações pulsionais,
pelos excessos das intensidades traumáticas ao longo da história da erogenização do
corpo.
A doença da irmã causara nela essa impressão tão profunda porque as duas
partilhavam um segredo; dormiam no mesmo quarto e, uma noite, ambas
sofreram as investidas sexuais de certo homem. A menção desse trauma sexual
na infância da paciente revelou não só apenas a origem de suas primeiras
obsessões como também o trauma que em seguida produziu os efeitos
patogênicos. (FREUD, 2000, p. 81)
A histeria com Freud (2000) deixa de ser uma doença nervosa para reafirmar-se
como uma doença psíquica de etiologia sexual. Guiado pelas próprias analisandas que
lhe solicitam que as deixem falar, contando os seus sonhos e resistindo a cair no sono
hipnótico, vai transformando sua forma de trabalho em cada atendimento, abrindo passo
ao método psicanalítico, esclarecendo a forma de erotismo presente na hipnopse e
substituindo a sugestão pela associação livre e pela atenção flutuante, convocando os
analisandos a participarem do processo de cura. Com isso, abre para as histéricas um
caminho: procurarem nelas próprias os caminhos do desejo. Silvia Alonso comenta
sobre as diferenças entre o método charcotiano e o freudiano:
Se Charcot as chamava a exibir-se e, com isso, fixava-as numa figura que
respondia à demanda do médico, Freud escutou-as no seu sofrimento,
descobriu com elas a transferência, inventou a psicanálise e deparou-se com os
limites do analisável. (ALONSO, 2004, p. 50)
A zona que Freud estimulava na perna de Elizabeth é uma zona histerógena, conceito
que não é novo, pois já aparecia em Charcot. Contudo, para o médico francês essas
zonas faziam parte de uma topografia geral que, ao serem estimuladas, poderiam
produzir uma crise. Já para Freud (2000), essas zonas histerógenas eram zonas
erógenas, capazes de desprender uma excitação, que falam de um erotismo e de uma
topografia individual e histórica. Seu corpo expressa algo que não coincide com o
pensamento consciente, algo que vem de outro lugar.
Freud começou a estudar a forma como uma pessoa se torna histérica e quais são as
manifestações apresentadas posteriormente por elas. Freud acreditava que o gerador de
uma neurose histérica seria quando a criança é vítima de uma sedução sexual
involuntária por um adulto. Consequentemente, essa criança apresentaria sintomas,
ficaria sem voz, paralisada, aparecendo a angústia na tomada de consciência de um fato
brutal, caracterizando um trauma. No momento do trauma, o impacto de tal sedução
destaca justamente a parte corporal que entrou em jogo, proveniente do fato traumático.
A imagem de um corpo sedutor adulto ou ainda do corpo da criança seduzida formam o
conteúdo imaginário da representação inscrita no inconsciente, onde o excesso de afeto
sexual se firma. Pode-se dizer que a partir daí, surge o sintoma histérico, considerando
assim que a violência que se infiltrou no eu e a impressão dessa imagem altamente
investida de afeto é muito forte para o eu e, portanto, considerada a fonte de tal sintoma.
(FREUD, 2000)
Freud dirá que os sintomas são figurações convertidas de fantasias que se originam
nas zonas erógenas. A histérica para ele é alguém que deseja: “O desejo é o principal
traço da histeria, e a anestesia o seu principal sintoma” (FREUD, 2000, p. 309).
Protegida está Dora do seu próprio desejo pelo recalque; protegida da tentação de cair
nos braços do Sr. K, de entregar-se sexualmente. Então, o que a ameaça é o desejo e,
por intermédio dele, a sua condição moral.
Freud notou que, na maioria dos seus pacientes, o material mais frequentemente
reprimido estava relacionado às idéias perturbadoras referentes à sexualidade. Em 1887,
percebeu que, ao invés de serem lembranças de acontecimentos reais, esses eventos
eram resíduos de impulsos e desejos infantis (fantasias). E concluiu que a ansiedade era
conseqüência da libido reprimida, que encontrava expressão em vários sintomas.
(KEHL, 2008)
Para Freud (2000), a histérica insere-se nas situações por meio do corpo e é afetada
pelo próprio corpo. Nesse histórico clínico, Freud mantém, inicialmente, as conclusões
extraídas do caso Elizabeth, explicitando a necessidade de participação do corpo na
produção do sintoma histérico:
Até onde alcanço vê-lo, todo sintoma histérico requer a contribuição de duas
partes. Não pode produzir-se sem certa situação somática, outorgada por um
processo normal ou psicológico acontecendo no interior de órgão do corpo, ou
relativo a esse órgão. Mas não se produz mais de uma vez só – e está no
caráter do sintoma histérico a capacidade de repetir-se – se não possui um
significado psíquico, um sentido. (FREUD, 2000, p. 37)
Freud aproximou-se das paralisias das histéricas com um olhar crítico que outros não
atingiram. Percebeu que as paralisias não acompanhavam o trajeto dos nervos, sendo ao
contrário, a expressão no corpo de uma problemática psíquica (a distinção
corpo/psiquismo que foi apropriada por Freud); a conversão de energia psíquica em
somática e não uma degeneração ou fraqueza dos nervos. (ALONSO, 2004)
Tanto Nasio (2007) quanto Alonso (2004) consideram que Freud foi o precursor de
uma forma de pensar com o corpo, afetivamente, dando expressão conceitual às
tensões, às quais ele mesmo estava exposto, iniciando seu percurso pensando o corpo
das histéricas.
O pai quis contê-la. Magda fugiu-lhe, correndo pelo cemitério, saltando das
sepulturas, tropeçando aqui e ali, tão depressa caindo como se levantando , a
soltar gritos que pareciam uivos de fera esfaimada. Afinal, já sem forças, e
com as roupas em frangalhos, abateu por terra, ofegante, mas escabujando
ainda num rosnar convulsivo, até perder os sentidos. (AZEVEDO, 2000, p.
50)
Deleuze (2000, p. 236) reporta ao quadro da histeria que se forma no século XIX – as
célebres contraturas e paralisias, as hisperestesias, os fenômenos de precipitação sempre
alternantes e migrantes segundo os efeitos da passagem da onda nervosa conforme as
zonas que ela investe. Nesse corpo inorgânico, sensação é vibração: “O corpo sem
órgãos traduz a histeria de suas imagens presentes na carne, que é o revelador que
desaparece no que revela: o composto de sensações.”
Freud (2000, p. 54) que ousou discordar das apresentações de Charcot, nos leva a
refletir sobre a definição de Deleuze do corpo sem órgãos da histeria como “uma série:
sem órgão – órgão indeterminado polivalente – órgãos temporários e transitórios”. A
análise deleuziana da histeria se assemelha às formulações de Freud em 1893 nos
Estudos comparativos entre as paralisias orgânicas e histéricas. Diz Freud:
Também para Deleuze (2000, p. 5), a sensação de um órgão afetado num ataque
histérico não é passivo de representação, uma vez que os órgãos intensivamente
determinados não se qualificam, petrificando-se numa função fixada. Para o autor “O
corpo é o corpo. Ele é único, e não necessita de órgãos. O corpo não é jamais um
organismo. Os organismos são inimigos do corpo.”
Deleuze (2000) no ensaio Histeria dirá que a histérica é ao mesmo tempo aquela que
impõe sua presença, mas também para quem as coisas e os seres estão presentes,
presentes demais, e que comunica a cada ser esse excesso de presença. Esse excesso de
presença faz com que os histéricos se afastem do caminho da satisfação buscado na
realidade e refugiando-se na atividade fantasística, num processo de introversão da
libido. Cada histérico tem seu próprio teatro privado. Exemplo claro é encontrado no
romance O Homem, quando Magda, após um desmaio é levada pelos braços do
cavouqueiro:
Torna-se possível para Magda ser desejada e amada na atmosfera psíquica do sonho.
Seus sonhos são produtos de um imaginário criador de fantasias relacionadas com uma
sexualidade que se direciona na busca de sensações e desejos não realizados.
(BRANDÃO, 2008)
Se na vida real de Magda, tudo é perda, no sonho a perda é reparada pela recuperação
do objeto amado. O que era ferida e doença cura-se e cicatriza-se, através do remédio do
amor, vivido no sonho. É pela via do discurso onírico de Magda que o romance de
Aluísio de Azevedo faz emergir a fala feminina, amordaçada por uma sociedade
patriarcal que não dá à mulher outro lugar de expressão do que os sintomas da histeria.
Na medida em que o autor zomba de uma sociedade que produz a histeria feminina, ele
denuncia a loucura de suas normas ou códigos. Se a mulher é privada daquilo que se
entende por sua feminilidade, ao mesmo tempo, estigmatiza-se o poder médico que
pode se revelar como metáfora da sociedade patriarcal. (BRANDÃO, 2008)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo levou à confirmação da hipótese inicial, pois é possível considerar que as
preocupações científicas e também a reação contra os românticos, levaram Aluísio de
Azevedo a aproveitar as lições de Charcot e Freud sobre a histeria feminina. As funções
procriadoras eram as únicas que se concediam às mulheres. Os autores ressaltam que
desde que apenas formadas, não tivessem um marido para enchê-las de filhos, todas se
tornavam nervosas, desorientadas, infelizes.
REFERÊNCIAS
ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
AZEVEDO, Aluísio. O Homem. São Paulo: Martin Claret, 2000.
DELEUZE, Gilles. Lógica das Sensações. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.