QVINTO IMPERIO: revista do Centro de Bstudos Portugueses
Casa Fernando Pessoa; Gabinete Portugués de Leitt-
ra.n?4, junho, 1995. Salvador: Bahia
208 pigs.
1, Petiddicos - I. Gabinete Portugués de Leitura -
Centro de Estudos Portugueses / Casa Fernando Pes-
soa.
eeAinda a carta de Pero Vaz De Caminha
Eneida Leal Cunha”
Entre 1992, data dos quinhentos anos da chegada dos euro-
eus ao novo mundo, € 0 préximo ano 2000, quando se completa-
tao cinco séculos da viagem de Pedro Alvares Cabral, 0 convite 4
reavaliagio do processo civilizatério que forjou as identidades
pés-coloniais nas Américas é permanente, e nos traz de volta,
inclusive, o interesse pelas narrativas de viagem - como a Carta de
Pero Vaz de Caminha - que proliferaram nos séculos XV e XVI.
Na tradigio dos estudos da Historia da Literatura Brasileira,
a Carta de Caminha chegou a estimular algumas polémicas. Co-
mhecida, lida e relida desde os primeiros momentos deempenhoem
construir a historiografia literdria, na perspectiva nacional e mo-
derna aqui instauradanosmeados doséculo XIX, ainda em décadas
tecentes deste século historiadores da literatura debatem-se com a
questio fundamental de identificé-la como um marco inicial para
a série de textos que, segundo eles, progressivamente, teriam se
articularizado, dando expressio as peculiaridades da colénia em
detrimento da hegemonia metropolitana. Entre os marcos de ori-
gem cogitados, a carta de Caminha sempre comparece, acompa-
nhada de ressalvas bvias: a carta ndo é um texto literétio, movido
poruma forga estética; é documento, ea sua incluso na historia da
literatura se deve, apenas, ao assunto tratado - a descrigao da novaterra -e a0 tom dominante dessa deserigao- 0 deslumbramento do
europeu que pfoduz 0 elogio da natureza e do exotismo dos
hhabitantes de além-mar.
‘Ao reiomar, hoje, & Carta de Pero Vaz de Caminha, ndo 0
fazemos com os mesmos olhos inocentes que se deslumbraram
‘com odeslumbramento europeu- os olhos romanticos eilustrados,
temanescentes do século passado, por exemplo; também jé nfo a
Jemos com os olhos ressentidos docolonizado, ou dahistoriografia
deinspiragao funcional e marxista, quenacarta enxergaram apenas
fa expressao do expansionismo ou da vontade mereantilista portu-
guesa, camuflados pelo discurso da cristianizagao.
“Ao relermos com interesse a Carta de Caminha, podemos jé
tera certeza de que nio estamos lendo um texto informative sobre
a terra - informagao alguma sobre a terra ¢ os seus habitantes que
1a se encontre nos ¢ necessaria, sabemos hoje muito mais do que
ele. Também nao é 0 fato relatado por Caminha (os primeiros
‘contatos do europeu portugués com os que aqui habitavam), o1 0
objeto das desctigdes (0 indio, a terra), que excitam 0 olhar nosso,
contemporineo, Sabemos jé que lemos tia carta uma versio unila-
total do primeiro encontro, a tiniea de que dispomos, uma versio
profunda e incontornavelmente mareada, Ouseja, imperta-nos ler,
yna Catta, como aquele homer europen do século XVI, civilizado,
cristio ¢ mercador, narra e desereve 0 seu espanto com seres
humanos radicalmente distintos de si, narra a experiéneia do
inteiramente novo.
Em A conquista da América, Todorov afisma:
A descoberta da Anérica - ou dos americanos - & sem
diivida o acomecinenta mais surpreendeute da nossa
histéria. No inieto do século XVI, os indios da América
esta ali, bem presentes, mas deles nada se sabe, ainda
‘que, como é de se esperar, sejam projetadas sobre os
‘eres recentemente descabertos imagens ¢ idéias relaci-
onadas a oniras populagdes distantes. O-encontro unica
nats otingird tal intensidact, se & que esta é a palavra
adequada,{pois) oséenlo XVI veria perpetrar-se omalor
genoeidio da histérta da humanicede.!