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SAMIZDAT

www.samizdat-pt.blogspot.com

12
janeiro
2009

ficina

Mark Twain
a ficção de um dos maiores
autores norte-americanos
SAMIZDAT 12
janeiro de 2009

Edição, Capa e Diagramação: Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada


Henry Alfred Bugalho a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Todas as imagens publicadas são de domínio público ou
Autores royalty free.
Caio Rudá As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira
Carlos Alberto Barros ­responsabilidades de seus autores ou tradutores.
Dênis Moura
Giselle Natsu Sato
Guilherme Rodrigues
Editorial
Henry Alfred Bugalho
Joaquim Bispo Um ano de SAMIZDAT!
José Espírito Santo Certamente que nós temos muito a comemorar. Nesta
Marcia Szajnbok época virtual, quando tudo é tão efêmero e desaparece tão
Maria de Fátima Santos rápido quanto surge, uma revista como a SAMIZDAT perdu-
Maristela Scheuer Deves
rar por tanto tempo é uma vitória.
Nestes doze meses, muita água passou por debaixo desta
Pedro Faria
ponte, autores canônicos ou desconhecidos, contos, poemas,
Volmar Camargo Junior crônicas, resenhas, entrevistas, escritores lusófonos ou não.
Zulmar Lopes Reunimos o que há de melhor no mundo da Literatura, e
o que há de novo, ou de inusitado.
Autores Convidados Há uma citação do escritor e cineasta Jean Cocteau que
Lucas Riello de Almeida define bem o espírito da Revista SAMIZDAT:
Renato Wegner de Souza
“Não sabendo que era impossível, foi lá e fez.”

Textos de:
E realmente acredito que nenhum de nós sabia que era
Enrique Gutiérrez Miranda impossível.
Mark Twain
Nelson Rodrigues Henry Alfred Bugalho

Imagem da capa:
Wikipedia Commons

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Sumário
MENSAGEM DE ANIVERSÁRIO 6
Henry Alfred Bugalho

Por que Samizdat? 8


Henry Alfred Bugalho

ENTREVISTA
Sacolinha 10

MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho 14
José Espírito Santo 14
Volmar Camargo Junior 15
Guilherme Rodrigues 16
Carlos Alberto Barros 17

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
O fim de todas as utopias: um mundo nada
admirável 18
Henry Alfred Bugalho

A Estrada, de Cormac McCarthy 21


Carlos Alberto Barros

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


A Dama do Lotação 22
Nelson Rodrigues

CONTOS
Vai entender cabeça de chefe 28
Carlos Alberto Barros

O Soldado e a toupeira 30
Volmar Camargo Junior
A Criatura 34
Henry Alfred Bugalho
Ano Novo - Vida Nova 36
Joaquim Bispo
Conto de Natal 39
Maria de Fátima Santos

O Funeral de meu avô 40


Maria de Fátima Santos

O Horizonte 44
Guilherme Rodrigues
As Bases da Criação 46
José Espírito Santo
Unha 49
Zulmar Lopes
Gênesis 50
Pedro Faria
Hárpias - a Dipusta das Fúrias 52
Giselle Natsu Sato
Os deliciosos biscoitos de Oma Guerta 57
Maristela Scheuer Deves

Autor Convidado
A Escada 60
Lucas Riello de Almeida
Poemetos 60
Renato Wegner de Souza

TRADUÇÃO
As Cinco Dádivas da Vida 64
Mark Twain
A História do Inválido 66
Mark Twain
La Esencia de las horas 72
Volmar Camargo Junior
Autobiografia 74
Enrique Gutiérrez Miranda

TEORIA LITERÁRIA
Manifesto Urbanicista 76
Volmar Camargo Junior
A Linguagem do dia-a-dia na Literatura 78
Henry Alfred Bugalho

CRÔNICA
Ao Sr. Schopenhauer 82
Caio Rudá
Dialética do Jeitinho Brasileiro 86
Henry Alfred Bugalho
Litoral e Capital 88
Pedro Faria

A Desinformação Pública 90
Joaquim Bispo

A Importância do Prepúcio 91
Joaquim Bispo
Mitos, Mitos, Mitos 92
Joaquim Bispo

POESIA
Laboratório Poético - Do Caroço de um Hora
(A Essência das Horas) 94
Volmar Camargo Junior
Poesias 95
Carlos Alberto Barros
Sonetos 96
Marcia Szajnbok
PlagicAMORniano 98
Dênis Moura

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 99

SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-
nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-
dado.
Escreva-nos para:
revistasamizdat@hotmail.com
Mensagem de Aniversário

Henry Alfred Bugalho

SAMIZDAT comemora
um ano de existência

6 SAMIZDAT dezembro de 2008


6
Quando o blog da Revista Foi através de revis-
SAMIZDAT foi ao ar, no dia tas, como a “Orpheu”, que
31 de dezembro de 2007, não ­Fernando Pessoa e alguns de
tínhamos muita idéia do que seus heterônimos surgiram
estava por vir. para o mundo. Também foi
em revistas que Jorges Luis
Reunir um grupo coeso de Borges, Dalton Trevisan, Isaac
escritores, capaz de produzir Asimov, Raymond Carver,
Literatura de qualidade e de James Joyce, e vários outros
trocar experiências sempre autores se tornaram conhe-
havia sido um objetivo meu, cidos.
desde quando comecei a es-
crever e participar de ofici- A revista literária, ou al-
nas literárias em Curitiba. guma publicação periódica,
é uma vitrine para o autor,
Mas os escritores de hoje uma centelha de visibilida-
são bichos arredios, com de. Algumas revistas duram
egos sensíveis e que geral- poucos meses, outras perdu-
mente preferem o isolamen- ram; algumas são lembradas,
to, onde podem divagar sobre outras esquecidas; como tudo
a própria genialidade, do que no mundo da Arte.
se embrenhar na complicada
dinâmica dos relacionamen- Que a Revista SAMIZDAT
tos sociais. esteja completando um ano
de existência é algo que me
Relacionar-se com outros surpreende, se pensarmos
escritores, seja pessoal ou que tudo se originou a partir
virtualmente, é correr o risco dum blog e dum primeiro
de se transformar, de desco- fascículo mal diagramado.
brir nossos próprios limites,
nossas dificuldades, nossos Tive de aprender muito
erros; é correr o risco de se para tornar a SAMIZDAT vi-
descaracterizar, mas também sualmente atrativa. Mas nós,
é a oportunidade para um enquanto escritores, também
crescimento literário inesti- estamos aprendendo sempre
mável. como tornar nossas obras li-
terariamente atrativas. É uma
Não é à toa que vários es- luta diária, que está ocor-
critores pretéritos buscaram rendo no silêncio de nossas
em seus pares apoio para casas, ou diluída por entre o
a árdua carreira das Letras. mundo etéreo da internet.
Grupos, movimentos, revistas,
círculos, estes eram ambien- Esta revista é um sonho
tes seguros para escritores coletivo tornado real, mas
sequiosos por novos hori- é também uma das vitórias
zontes. Esta troca os permi- desta nossa luta diária.
tiu crescerem, lapitarem o
diamante bruto da escrita. Parabéns para nós!

http://www.flickr.com/photos/tym/247265947/sizes/o/

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Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiram,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprirmir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exenplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

8 SAMIZDAT dezembro de 2008


8
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substitua
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido Ao serem obrigados a bur-
pelo mercado. larem a indústria cultural, os Enfim, “Samizdat” porque a
autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- o ­diálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Entrevista

SACOLINHA
Ademiro Alves de Sousa,
conhecido como Sacolinha, é
um dos destaques da literatura
brasileira contemporânea. Autor
de dois livros: “Graduado em
Marginalidade” e “85 letras e
um disparo”, participou, ainda,
de diversas publicações: revista
“Caros Amigos”, antologia “No
limite da palavra” da editora
Scortecci, antologias “Cadernos
Negros”, entre outras. Ganhador
de alguns prêmios literários, é
também o fundador da Asso-
ciação Cultural Literatura no
Brasil e é responsável pela Coor-
denadoria Literária da Secre-
taria de Cultura do município
de Suzano, em São Paulo. Com
muita prestatividade, o escritor
nos concedeu esta entrevista.

SAMIZDAT: O fato de Bruna Surfistinha e alguns


você ser um autor que Big Brohter’s. Lançaram seus
surgiu na periferia foi um livros que venderam horro-
obstáculo ou um chama- res, mas depois do segundo
riz para sua carreira? título eles deram com os
burros n’água, e não conse-
Sacolinha: Nem um e nem guiram se manter.
outro. O autor pode surgir
de qualquer lugar, mas se Talvez o fator geográfico
ele não tiver uma boa escri- tenha contribuído um pou-
ta, persistência e articula- co para minha carreira, já
ção, ele não chega e nem se que ser morador da perife-
mantém em lugar nenhum. ria hoje em dia é estar na
As editoras não estão nem moda, todo mundo quer
aí de onde vem o escritor, ser, graças aos seriados, às
elas querem saber se ele novelas e filmes.
é conhecido e se o livro é
vendável. Vejam o caso da

10 SAMIZDAT dezembro de 2008


10
Qual é a importância da Sacolinha: No meu caso acredito que o cidadão que
consciência política e essa revolta e essa vingan- tem acesso à cultura ou
social na sua escrita? A ça refere-se mais ao meu desenvolve alguma arte, ele
Literatura e a cultura em interior do que exterior. enxerga melhor, não morre
geral devem assumir este Quero me vingar dos atos de fome, tem saúde e sabe
compromisso? Escrever é e fatos do cotidiano, quero resolver situações proble-
fazer diferença? trancafiar ou acabar com mas.
meus demônios, me vingar
Sacolinha: Literatura abran- dos pensamentos e desejos
ge muita coisa, entre elas a ruins. Tenho a literatu- Há um site que diz que
geografia, filosofia, história ra como uma válvula de seu romance “Graduado
e a ciência. Um livro como escape, eu escrevo não por em Marginalidade” tem
Grande Sertão: Veredas do hobby ou status, mas por- trezentas e onze perso-
Guimarães Rosa tem tudo que preciso me extravasar. nagens. Isso é exagero de
isso e muito mais. Olhem notícia ou é fato? Você
o escritor português José acha possível dar ao leitor
Saramago, se ele não tives- A pergunta pode parecer tantas verdadeiras e iden-
se consciência política e capciosa, mas não é: se tificáveis personagens,
social, seus livros não se- você fosse político e esti- num romance com menos
riam conhecidos no mundo vesse no poder (não como de duzentas páginas?
inteiro. Eu sempre achei funcionário, mas tendo
que escritor tem que saber sido eleito), pelo que você Sacolinha: É verdade, tem
de tudo um pouco, inclusi- lutaria? sim. Mas não pensem que
ve ser engajado em algum todas elas são protagonistas
movimento social como Sacolinha: Por políticas em primeiro plano. Não sou
o Saramago por exemplo. públicas para a cultura marxista, mas gosto de dar
Não dá pra ficar encerrado para todos aqueles artistas voz aos que não tem voz. Se
num gabinete e inventando formados pela vida. Que- vocês forem ler o “85 Letras
histórias ou esperar a noite ro dizer que têm muitos e um Disparo” verão que
chegar para ver a lua e ter artistas (popular, clássico e a maioria dos contos tem
inspiração. erudito) que não sentaram personagens inferiorizados
A literatura só não pode ser na cadeira da universidade pela sociedade que são mui-
engajada demais, porque aí e desenvolvem um puta to mais do que ela imagina;
vira documentário, e o pa- trabalho, seja na capoeira, é uma prostituta que lê
pel da literatura não é esse. no maracatu, no teatro, na Allan Poe, um mendigo que
música, no cinema, literatu- faz dissertações, um ladrão
ra e nas artes plásticas. mais instruído que qualquer
Em alguns textos seus ou Agora tem um monte de presidente, e assim vai.
a seu respeito – há uma acadêmicos por aí metidos
entrevista genial que você a artistas e sequer pisou no
deu a um jornalzinho es- barro, sequer fez um tra- Muitos de seus textos
tudantil! – você usa os ter- balho fora do seu ambien- são escritos com lingua-
mos “revolta” e “vingança”, te. Muitos até já têm seu gem próxima da fala do
em relação à sua litera- padrinho desde pequeno e cotidiano. O trecho “Se
tura. Há alguns anos, não hoje fazem eventos com a eles não tivessem naquela
muitos, dizer abertamente, nossa grana (Petrobras, Lei esquina, aquele dia, aque-
ou veladamente, traduzin- Rouanet, etc.) e ainda co- la hora...” demonstra bem
do isso em metáforas, era bram ingresso. isso. Você acredita que
motivo para os artistas o escritor deve se expri-
“desaparecerem”, levarem Lutaria por essa inversão, mir como o homem da
porrada ou, na melhor das contribuindo para que os rua para melhor se fazer
hipóteses, serem exilados artistas menos favorecidos entender?
do Brasil. Como você sen- tivessem acesso às leis de
te a liberdade de poder incentivo à cultura. E com Sacolinha: Nunca acre-
“se revoltar” e “se vingar” isso eu estaria lutando ditei nisso, acredito que o
através da literatura? pelo direito à vida, porque escritor deve escrever sem

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maquiagens. Usar os seus nidade dos colaborado- Sacolinha: Sempre gostei
conhecimentos e sua estru- res da SAMIZDAT, que de ler as músicas. Presto
tura lingüística, somente os escritores costumam mais atenção na letra do
isso. O escritor que fica escolher um tema, ou que no ritmo, e pra mim,
procurando meios ou que uns poucos temas, e de- música sempre foi poesia,
escreve pensando na recep- bruçam-se neles por um principalmente o rap que
ção do leitor, pra mim não bom tempo – e isso pode transforma coisas ruins
vale nada. mesmo ser inconsciente. em melodias, transformam
Há um tema comum no o sangue e a violência em
que você escreve? poesia. Sem contar que tem
Qual é o limite entre re- seu jeito próprio de cantar,
alidade e ficção em suas Sacolinha: Não. O meu sua forma de dizer “zói”
obras? primeiro livro “Graduado ao invés de “olhos”, e falar
em Marginalidade” é pura coisas que só mesmo quem
Sacolinha: Só escrevo rea- violência, já o segundo “85 é do meio entende, quem
lidade quando faço crôni- Letras e um Disparo” é mais não é, tem que levantar
cas, de resto é tudo ficção, cômico e suave e versa hipóteses e interpretar. Isso
mesmo baseando-me na sobre vários temas de nossa eu acho o máximo, porque
realidade. sociedade. Estou com mais fizeram dessa maneira com
dois livros prontos para os pobres a mais de sécu-
serem lançados: “Peripécias los, desde a missa rezada
O público brasileiro de Minha Infância” é um em latim nos tempos dos
parece possuir um fascí- romance infanto-juvenil sermões do Padre Vieira,
nio por filmes, seriados e que trabalha com a cria- passando pela escravidão
livros que retratam a vida tividade e “O homem que e chegando até os dias de
na periferia. Para você, a não mexia com a Natureza” hoje nos termos da lin-
que se deve este fenôme- é um livro que aborda a guagem técnica, onde um
no? temática do meio ambiente. cidadão não consegue nem
Tem um outro livro que entender o artigo que está
Sacolinha: Conforme já fa- vou começar a escrever que sendo condenado.
lei, a periferia está na moda vai falar da questão política.
há muito tempo. Antes era Estou escrevendo um livro
o Gil Gomes, Afanázio Jaza- didático sobre leitura. Num texto seu, Crônica
dige, Ratinho e o demagogo Escrevo conforme vai tocan- de um jovem salvo pela
do Datena que levavam a do a minha cabeça. Não me literatura, há um trecho
gente pra tela, mas de uma apego aos temas. valioso: “Precisava fazer
forma a mostrar somente o alguma coisa para me
lado ruim. Agora são outras extravasar: eu partia para
pessoas e outros meios e o lado da pólvora (crime)
Existem discussões sobre
formas de mostrar a vida ou para o lado do açú-
letras de músicas serem
na periferia, mas ainda car (cultura). Optei pelo
ou não poesia. Por exem-
assim é de uma forma açúcar, que às vezes é
plo, letras do Chico Bu-
pejorativa. O que mudou é um pouco amargo.” Entre
arque, quando lidas, são
que descobriram que nesses essas amarguras, o que foi
verdadeiros poemas, mas
lugares têm muita gente mais amargo depois dessa
ainda têm um fundamen-
boa, em tudo. Por isso é escolha?
to – e certa interdepen-
que Cidade de Deus, Antô-
dência – com o ritmo mu-
nia, Tropa de Elite e outros Sacolinha: Ouvir milhares
sical (Cálice é uma delas).
foram protagonizados por de “não”, desde as respostas
E o rap, é um ritmo que
gente que é da periferia, ao das editoras até as respostas
tem uma letra, ou uma
contrário disso, esses pro- das pessoas que eu abor-
forma de poesia, acompa-
dutos não teriam feito tanto dava nos bares e teatros de
nhada de um ritmo? Você
sucesso. Pinheiros e Vila Madalena
que escreve ou escreveu
rap, o que acha: é poesia, quando vendia livros nas
música, ou algo além? ruas.
Discutíamos, na comu- Eu pensava: optei pela

12 SAMIZDAT dezembro de 2008


12
cultura que é uma ativida- outros. Promovi 4 concur- eu escrevo.
de legalmente correta, mas sos literários, dezenas de
ninguém me dá estrutura. oficinas e projetos para
Me enforco de prestações incentivar crianças, jovens O que é a Literatura no
para publicar um livro e e adultos a lerem. E falta Brasil?
quando saio para vender de verba tem, a diferença é
ninguém quer dar atenção, que eu corro atrás de tudo Sacolinha: A Associação
alguns até seguram suas quanto é empresa e vivo Cultural Literatura no Brasil
bolsas. batendo na porta do Gover- é uma entidade que fundei
no Federal atrás de grana em dezembro de 2002 com
Isso é amargura, você ter
para o desenvolvimento dos dois objetivos: incentivar a
a idéia, colocar no papel
projetos. O que falta muito leitura e divulgar os escrito-
sofregamente, diagramar,
por aí, em Suzano tem de res independentes. Essa enti-
revisar, publicar com seu
sobra: vontade política. dade tem hoje vários proje-
próprio dinheiro, divulgar e
tos, muitos até em parceria
vender, ser o próprio editor
com prefeituras, Petrobras e
e livreiro. Há uma tendência (do a Fundação Itaú Social.
mercado editorial, da
História da Literatura, das
Alguns de nós adoraría- universidades, dos críti- Não queríamos perguntar,
mos ter uma coordena- cos... não se sabe ao certo mas não tem como fu-
doria de literatura dentro de quem...) de encarcerar gir disso: de onde veio o
das secretarias de cultura os livros em gêneros. Por nome “Sacolinha”?
de nossos municípios. Em isso, às vezes, há coisas
seu blog, num comentário como Literatura Esotérica, Sacolinha: Essa é uma
sobre sua agenda semanal, Literatura Espírita, Lite- história longa, outro dia
nota-se que você é muito ratura Erótica, Literatura com mais calma eu expli-
ocupado e tem grandes Gay, como que direcio- co. Quem quiser pode ir lá
responsabilidades como nando o que é produzido no meu blog que tem tudo
coordenador de litera- para “nichos” de leitores. explicadinho: www.sacola-
tura da cidade de Suza- A segunda edição de graduado.blogspot.com
no. Como funciona uma seu livro “85 letras e um
coordenadoria desse tipo? disparo” foi inclusa numa
Como é o seu trabalho? série chamada “Literatura A esquipe da SAMIZDAT
Periférica”. agredece sua participação.
Sacolinha: Minha função é Muito sucesso em seus
mais externa do que inter- O que é essa literatura? projetos!
na, até porque numa sala Essa denominação vem de
a gente não produz nada. onde? De quem produz
Então o negócio é estar na ou de quem publica?
rua, sentir cheiro de gente e
tomar sol na cabeça. Como Sacolinha: No caso da
Coordenador Literário te- Literatura Periférica, esse
nho que desenvolver proje- foi um título dado pelos
tos de incentivo à leitura e próprios autores, como uma Coordenadora da entrevista:
de promoção aos escritores. forma de pertencimento,
Nada difícil pra quem gosta de geografia. Creio que Carlos Alberto Barros
do que faz. Mas tem que direcionar a literatura por
pensar em tudo, inclusive temas, não é algo de ruim,
na pré-produção, produção mas uma forma de iden- Perguntas feitas por:
e pós-produção. tificar o tipo de literatura,
Volmar Camargo Junior
Já publiquei 132 autores, como literatura estrangeira,
trouxe escritores como indígena, auto-ajuda, etc. Eu Joaquim Bispo
Ariano Suassuna, Marce- mesmo nunca aceitei rótu-
los, o que faço é somente Henry Alfred Bugalho
lo Rubens Paiva, Moacir
Sclyar, Loyola Brandão, entre literatura. Não sei quem
está apto a tematizar o que

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Microcontos

As boas-novas
Henry Alfred Bugalho

É engraçado como a vida dá voltas.


Como aqueles testemunhas de jeová, aqueles crentes, ca-
rismáticos que batiam à minha porta no domingo de manhã,
tentando me converter, me irritavam!
Não tenho hábito de dormir cedo, por isto, alguém tocan-
do o interfone ou a campainha de casa às 9 da matina, era
pedir pra acabar com meu dia. Não havia bom humor que
resistisse.
- Oi, irmão, viemos lhe falar de Jesus, diziam eles.
- Eu quero que vocês e o seu Jesus se fodam, respondia eu,
batendo a porta na cara deles.
E isto era todo domingo, todo maldito final-de-semana.

Mês passado, meu filho foi assassinado, violentado e


esquartejado por um maníaco. Pensei em me matar, minha
esposa, devastada. Um amigo nosso nos convenceu a irmos
até sua igreja e fomos acolhidos.
Hoje, domingo de manhã, sai com outros irmãos para es-
palhar as boas-novas. Numa das casas, alguém saiu, nervoso:
- Vão se foder! Eu quero dormir! - e bateu a porta em
nossa cara.
- Vai se foder você, seu incréu! Que Deus amaldiçoe você
e todos seus descendentes! - retruquei.
Virei crente, mas também não tenho sangue de barata.

http://www.flickr.com/photos/greg_robbins/461308192/sizes/o/
A queda
José Espírito Santo
http://www.flickr.com/photos/foreversouls/261588031/sizes/l/

O animal caiu a um poço. Ao querer salvá-la, os


sábios e os teólogos esbarraram na ambiguidade...
Quem resgatariam? A zebra branca com riscas pretas
ou a zebra preta com riscas brancas?

14 SAMIZDAT dezembro de 2008


14
Corriqueirismos

http://www.flickr.com/photos/meltoledo/2569608146/sizes/o/
Um pra duas
Volmar Camargo Junior

- Ô moço! Vê pra nós um pastel e um


chiclé.
- Tá aqui. Dois reais e quinze.
- Descontinho de cinco centavos?
- Pode ser.
A Cordinha
- Vê mais um guardanapo. Volmar Camargo Junior
- Bah, aí eu fico no prejuízo, guria.
- Tá bom, tá bom... mas cortar no meio, - Sabe de que eu tenho nojo? Dessa cordi-
será que dá? nha do saquinho de chá.
- O que tem de mais nela?

Traição - Não sei. Mas vai dizer que não parece


com uma lombriga na sua xícara?

Volmar Camargo Junior

- Amor, sabe aquela espinha que me saiu


na nuca.
- Qual? Aquela que eu to namorando desde
anteontem?
- Essa mesma. Se eu te contar que outra
O próprio
pessoa estourou, você vai ficar muito bra-
va? Volmar Camargo Junior

- Alô. É da casa do Silva?


- Boa tarde, é o próprio.
- Boa tarde, Seu Próprio. O Silva está?

www.samizdat-pt.blogspot.com 15
Microcontos

http://www.flickr.com/photos/pinkspleen/2205481345/sizes/o/
Um e outra
Volmar Camargo Junior

Tereza chamava-se Marco Antônio.


Em casa, lavava, passava, cozinhava,
tomava um banho demorado, e espe-
rava, sem roupa, o amor de sua vida.
À meia-noite, quando o amor chegava,
durante uma xícara de chá, escolhiam
se no quarto seria Marco Antônio ou
seria Tereza.

Ensinamentos
Guilherme Rodrigues

Pare de falar. Veja.


O silêncio explica tudo e se explica.
Limpe a folhigem que ofusca sua visão. Se a limpeza não
for suficiente, quebre o muro.
A vida é curta, mas tenho todo o tempo para fazer o que
gosto.
Repare.
Amor.
Uma coisa de cada vez.
Começou. Termine.
Pare. Respire. Continue.
Dinheiro e sucesso são resultados do suor.
Excessos são necessários, para poder desprezá-los.
Deus. Deve existir.
A obra de arte não é para ser analisada. É para ser admi-
rada.
Livre-se de teorias. Aprecie.
Machado de Assis, Guimarães Rosa, Camões, Fernando
Pessoa, Goethe, Karl Marx, Nietzsche, Freud, Schopenhauer,
Hitler, Lenin, Stalin, Che Guevara, Beethoven, Bach, Mozart,
Chopin etc etc etc. Você é melhor do que todos eles.
Escreva.
Por quê?
Guarde umas horinhas somente para si.

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16 SAMIZDAT dezembro de 2008


16
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Concentração
Guilherme Rodrigues

- Ei. Vamos ouvir o silêncio?


- Vamos.
Meia hora se passou.
- O silêncio é irritante.
- Sim. Mas sábio.
Algumas horas se passaram.
- Vamos brincar no parque?
- Vamos.

Abra-se

http://www.flickr.com/photos/auntiep/317382188/sizes/l/
Guilherme Rodrigues

Abra as portas e as janelas, deixe que novos


ares entrem, veja a natureza, sinta o aroma
de vida. Inspire.

Perdão
Carlos Alberto Barros

A lágrima escorreu-lhe até o bico do seio.


Mas, foi ele chupar, que ela logo o perdoou.

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Recomendações de Leitura

Henry Alfred Bugalho

O fim de todas as utopias:


um mundo nada admirável

18 SAMIZDAT dezembro de 2008


18
Durante o Iluminismo, o guerras mundiais, a bomba e do socialismo. O mundo
ser humano se deslumbrou atômica, o holocausto. A bar- no qual Bernard Marx vive é
diante de sua própria capaci- bárie aniquilou qualquer es- um capitalismo socialista, se
dade intelectual. Gênios das perança no futuro, qualquer é que estes opostos podem
artes, das ciências, da filoso- sentimento de que a razão ser reconciliados. Capitalista
fia se proliferaram pela Euro- poderia nos levar à perfeição. porque fundamenta-se sobre
pa, confiantes de que, através o princípio de produção em
do bom uso da racionalidade, É neste contexto que surge massa e, provavelmente, da
um novo mundo poderia ser “Admirável Mundo Novo”, mais-valia; socialista porque,
criado. do britânico Aldous Huxley. por mais que haja estratos
O romance foi escrito uma sociais, todos são iguais no
Este anseio por um mundo década antes da Segunda interior de cada casta, inclu-
perfeito é antigo. Podemos Grande Guerra, mas já possui sive, em alguns casos, geneti-
rastreá-lo desde manuscri- um pessimismo tecnocrático camente idênticos.
tos religiosos pré-cristãos, que pretendia anteceder os
primeiro situando-no num extremos da racionalidade. O deus idolatrado neste
mundo anterior ao surgimen- futuro é o “Ford” (trocadi-
to da Humanidade, ou em A trama se passa no fu- lho com “Lord”, ou “Senhor
reinos após a morte, como o turo, numa sociedade estra- [Deus]”) e remete-nos a Henry
Jardim do Éden, o Nirvana, o tificada a partir de manipu- Ford, o criador do primei-
Moksha do hinduísmo, ou a lações genéticas. Existe uma ro automóvel fabricado em
Nova Jerusalém. Platão situa pirâmide social e o grau de série.
uma civilização utópica no liberdade e autonomia de-
meio do oceano, representa- pende de qual classe genética Bernard possui um com-
da pelo mito de Atlântida. um indivíduo nasce. A divi- portamento anômalo; ao
Thomas Moore imortaliza o são de tempo é feita em dois contrário dos demais indiví-
termo em sua obra “Utopia”, momentos: trabalho e lazer. duos de seu tempo, ele não
um ilha imaginária com um Como método de alienação, está satisfeito, é oprimido por
governo perfeito. Francis o trabalhador de cada fun- uma angústia que não conse-
Bacon acreditava que a “Nova ção só possui conhecimento gue explicar.
Atlântida” seria na América, de suas especificidades, sem
também perfeita, regida por noção do todo; nos momen- Para se exibir para uma
sábios cientistas. tos de lazer, e também como garota, ele a leva até uma re-
forma de controle social, serva selvagem, onde homens
No entanto, os avanços cada indivíduo recebe sua primitivos vivem uma vida
tecnológicos e como o ser cota de “soma”, uma droga rudimentar - provavelmente
humano os utilizou abriu imbecilizante. como nós vivemos hoje. Lá,
margem para o oposto da ele encontra John “O Selva-
utopia: as distopias, nas O protagonista de “Ad- gem”, que é filho duma mu-
quais, ao invés de perfeição mirável Mundo Novo” é lher duns dos altos estratos
e harmonia, a sociedade se Bernard Marx, um mem- sociais, mas que se perdeu
tornaria insuportavelmente bro do estrato mais alto. A na reserva muitos anos antes.
sistemática, repressora, ou referência de seu nome ao Este encontro entre Bernard
brutal. filósofo Karl Marx é evi- e John será a causa dum
dente, assim como todos os conflito interno muito maior
Costuma-se dizer que não demais personagens, todos para o protagonista, que vê
é possível acreditar em uto- eles vinculados à figuras num mundo primitivo uma
pias no século XX, após duas proeminentes do capitalismo alternativa para sua contem-

www.samizdat-pt.blogspot.com 19
poraneidade.

“Admirável Mundo Novo”


é a obra mais conhecida e
acolhida de Aldous Huxley,
que sempre foi uma figura
controversa - descendente
duma ilustre família inglesa
e defensor do uso de LSD -,
no entanto, foi o romance
mais fraco que li dele.

Só que serve de exemplo


de que uma sociedade perfei-
ta pode ser insuportável.

Admirável Mundo Novo

Autor: Aldous Huxley

Editora: Globo

20 SAMIZDAT dezembro de 2008


20
Recomendações de Leitura

A Estrada, A Estrada
Autor: Cormac McCarthy
Editora: Editora Alfaguara/
Objetiva
de Cormac McCarthy Publicação: 2007

Carlos Alberto Barros uma catástrofe que transfor- Pulitzer 2007, esta obra
ma o mundo numa terra sem traz a emocionante histó-
Caso tivesse que ser es- leis, onde manter-se vivo é a ria dessa jornada de pai e
colhida uma cor para resu- única regra. O homem acre- filho em busca de um fio
mir o romance A Estrada, dita que no final da estrada, de esperança. Para isso, o
de Cormac McCarthy, ela chegando ao litoral, encon- autor nos brinda com diálo-
seria cinza. O cinza paira trará outros sobreviventes, gos comoventes e silêncios
em cada trecho da obra, seja e, juntos, poderão se ajudar que dizem muito. A forma
de maneira literal ou meta- na construção de um novo como McCarthy escreve, de
fórica. Noites escuras para começo. Contudo, a jornada início, traz estranhamento
além da escuridão e cada um é muito mais árdua do que e até certa monotonia, mas,
dos dias mais cinzento do podia imaginar, e o que ele no decorrer da narrativa,
que o anterior – eis a segun- e seu filho encontram pelo fica evidente a necessidade
da frase do livro, que nos é caminho leva-os a se questio- disso – é preciso detalhar as
oferecida como uma profe- narem: para que continuar a imagens, dizer que tudo é
cia anunciando o conteúdo caminhada? cinza, um mundo de cinzas
perturbador de suas páginas. Os dois seguem empur- que não se acaba. Também a
O cinza retratado é o das rando um carrinho de super- ausência do uso de travessão,
desesperanças, das tristezas mercado com seus poucos em certos pontos, dificulta
da alma, mas que, por mais pertences – alguns restos de na identificação dos diálogos
intenso que seja, ainda deixa alimentos, cobertores para entre pai e filho. Contudo,
espaço para um pequeno se protegerem do inverno essa não identificação clara
arco-íris multicolorido que desolador e um revólver de acaba reforçando a união dos
http://www.flickr.com/photos/zach_manchester/2909217061/sizes/l/

é o impulso para continuar segurança contra os nôma- dois, como dizendo que são
caminhando. des assassinos. O amor e um só.
A história relata a traves- cuidado um com o outro é a Uma obra profunda, para
sia de um homem e seu filho única coisa que os faz seguir se apreciar com paciência
por uma estrada devastada. adiante. e alma aberta. Aos que se
Os dois são sobreviventes de Vencedora do Prêmio permitirem, será uma bela
experiência de leitura.

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Autor em Língua Portuguesa

A Dama do Lotação
Nelson Rodrigues

http://br.geocities.com/zostratus18/nilo-pecanha-1960.jpg

22 SAMIZDAT dezembro de 2008


22
Às dez horas da noite, — Imagine! Duvidar de linhos. Este curva-se para
debaixo de chuva, Carlinhos Solange! apanhá-lo e, então, vê, de-
foi bater na casa do pai. O filho já estava na por- baixo da mesa, apenas isto:
O velho, que andava com ta, pronto para sair; disse os pés de Solange por cima
a pressão baixa, ruim de ainda: dos de Assunção ou vice-
saúde como o diabo, tomou versa. Carlinhos apanhou o
um susto: — Se for verdade o que guardanapo e continuou a
eu desconfio, meu pai, mato conversa, a três. Mas já não
— Você aqui? A essa minha mulher! Pela luz que
hora? era o mesmo. Fez a excla-
me alumia, eu mato, meu mação interior: “Ora essa!
E ele, desabando na pol- pai! Que graça!”. A angústia se
trona, com profundíssimo antecipou ao raciocínio. E
suspiro: ele já sofria antes mesmo de
— Pois é, meu pai, pois A SUSPEITA criar a suspeita, de formulá-
é! la. O que vira, afinal, pa-
Casados há dois anos,
— Como vai Solange? - recia pouco, Todavia, essa
eram felicíssimos. Ambos
perguntou o dono da casa. mistura de pés, de sapatos,
de ótima família. O pai
Carlinhos ergueu-se; foi o amargurou como um
dele, viúvo e general, em
até a janela espiar o jardim contato asqueroso. Depois
vésperas de aposentadoria,
pelo vidro. Depois voltou e, que o amigo saiu, correra à
tinha uma dignidade de es-
sentando-se de novo, larga a casa do pai para o primeiro
tátua; na família de Solange
bomba: desabafo. No dia seguinte,
havia de tudo: médicos, ad-
pela manhã, o velho foi
— Meu pai, desconfio de vogados, banqueiros e, até,
procurar o filho:
minha mulher. ministro de Estado. Dela
mesma, se dizia, em toda — Conta o que houve,
Pânico do velho:
parte, que era “um amor” ; direitinho!
— De Solange? Mas você os mais entusiastas e ta- O filho contou. Então o
está maluco? Que cretinice xativos afirmavam: “É um general fez um escândalo:
é essa? doce-de-coco”. Sugeria nos — Toma jeito! Tenha
O filho riu, amargo: gestos e mesmo na figura vergonha! Tamanho homem
— Antes fosse, meu pai, fina e frágil qualquer coisa com essas bobagens!
antes fosse cretinice. Mas o de extraterreno. O velho e
diabético general poderia Foi um verdadeiro ser-
diabo é que andei sabendo
pôr a mão no fogo pela mão. Para libertar o rapaz
de umas coisas... E ela não é
nora. Qualquer um faria o da obsessão, o militar con-
a mesma, mudou muito.
mesmo. E todavia... Nessa descendeu em fazer confi-
Então, o velho, que ado- mesma noite, do aguacei- dências:
rava a nora, que a colocava ro, coincidiu de ir jantar — Meu filho, esse negó-
acima de qualquer dúvida, com o casal um amigo de cio de ciúme é uma calami-
de qualquer suspeita, teve infância de ambos, o As- dade! Basta dizer o seguinte:
uma explosão: sunção. Era desses amigos eu tive ciúmes de tua mãe!
— Brigo com você! Rom- que entram pela cozinha, Houve um momento em
po! Não te dou nem mais que invadem os quartos, que eu apostava a minha
um tostão! numa intimidade absoluta. cabeça que ela me traia! Vê
Patético, abrindo os bra- No meio do jantar, acontece se é possível?!
ços aos céus, trovejou: uma pequena fatalidade:
cai o guardanapo de Car-

www.samizdat-pt.blogspot.com 23
A CERTEZA Berrou: A DAMA DO LOTAÇÃO
— Agora!
Entretanto, a certeza de Sem excitação, numa
Carlinhos já não dependia Solange, espantada, aten- calma intensa, foi contando.
de fatos objetivos. Instalara- deu. Assim que ela entrou, Um mês depois do casa-
se nele. Vira o quê? Talvez Carlinhos fechou a porta, a mento, todas as tardes, saia
muito pouco; ou seja, uma chave. E mais: pôs o revól- de casa, apanhava o pri-
posse recíproca de pés, ver em cima da mesa. Então, meiro lotação que passasse.
debaixo da mesa. Ninguém cruzando os braços, diante Sentava-se num banco, ao
trai com os pés, evidente- da mulher atônita, disse-lhe lado de um cavalheiro. Po-
mente. Mas de qualquer horrores. Mas não elevou a dia ser velho, moço, feio ou
maneira ele estava “certo”. voz, nem fez gestos: bonito; e uma vez - foi até
Três dias depois, há o en- — Não adianta negar! Eu interessante - coincidiu que
contro acidental com o As- sei de tudo! E ela, encostada seu companheiro fosse um
sunção, na cidade. O amigo à parede, perguntava: mecânico, de macacão azul,
anuncia, alegremente: — Sabe de que, criatura? que saltaria pouco adian-
— Ontem viajei no lota- Que negócio é esse? Ora te. O marido, prostrado na
ção com tua mulher. veja! cadeira, a cabeça entre as
mãos, fez a pergunta pâni-
Mentiu sem motivo: Gritou-lhe no rosto três ca:
— Ela me disse. vezes a palavra cínica! Men-
tiu que a fizera seguir por — Um mecânico?
Em casa, depois do beijo um detetive particular; que Solange, na sua maneira
na face, perguntou: todos os seus passos eram objetiva e casta, confirmou:
— Tens visto o Assunção? espionados religiosamente. — Sim.
E ela, passando verniz nas Até então não nomeara o
amante, como se soubesse Mecânico e desconheci-
unhas: do: duas esquinas depois,
tudo, menos a identidade do
— Nunca mais. já cutucara o rapaz: “Eu
canalha. Só no fim, apa-
— Nem ontem? nhando o revolver, comple- desço contigo”. O pobre-
tou: diabo tivera medo dessa
— Nem ontem. E por que
desconhecida linda e gran-
ontem? — Vou matar esse ca- fa. Saltaram juntos: e esta
— Nada, chorro do Assunção! Aca- aventura inverossímil foi a
bar com a raça dele! primeira, o ponto de parti-
Carlinhos não disse mais
uma palavra; lívido, foi no A mulher, até então da para muitas outras. No
gabinete, apanhou o revól- passiva e apenas espantada, fim de certo tempo, já os
ver e o embolsou. Solange atracou-se com o marido, motoristas dos lotações a
mentira! Viu, no fato, um gritando: identificavam à distância;
sintoma a mais de infideli- — Não, ele não! e houve um que fingiu um
dade. A adúltera precisa até enguiço, para acompanhá-
Agarrado pela mulher, la. Mas esses anônimos, que
mesmo das mentiras desne-
quis se desprender, num passavam sem deixar vestí-
cessárias. Voltou para a sala;
repelão selvagem. Mas ela o gios, amarguravam menos o
disse à mulher entrando no
imobilizou, com o grito: marido. Ele se enfurecia, na
gabinete:
— Ele não foi o único! Há cadeira, com os conhecidos.
— Vem cá um instanti-
outros! Além do Assunção, quem
nho, Solange.
mais?
— Vou já, meu filho.

24 SAMIZDAT dezembro de 2008


24
Começou a relação de entrelaçou as mãos, na al-
nomes: fulano, sicrano, tura do peito; e assim ficou.
beltrano... Carlinhos berrou: Pouco depois, a mulher
Um detetive...
“Basta! Chega!”. Em voz alta, surgiu na porta. Durante Uma loira gostosa...
fez o exagero melancólico: alguns momentos este-
— A metade do Rio de ve imóvel e muda, numa Um assassinato...
Janeiro, sim senhor! contemplação maravilhada.
Acabou murmurando:
O furor extinguira-se
nele. Se fosse um único, se — O jantar está na mesa.
E o pau comendo entre
fosse apenas o Assunção, Ele, sem se mexer, res- as máfias italiana e
mas eram tantos! Afinal, pondeu: chinesa.
­
não poderia sair, pela cida- — Pela ultima vez: morri.
de, caçando os amantes. Ela Estou morto.
explicou ainda que, todos os
dias, quase com hora mar- A outra não insistiu.
cada, precisava escapar de Deixou o quarto, foi dizer
casa, embarcar no primeiro
lotação. O marido a olhava,
à empregada que tirasse
a mesa e que não faziam
O Covil
mais as refeições em casa.
pasmo de a ver linda, intac-
ta, imaculada. Como e pos- Em seguida, voltou para o
quarto e lá ficou. Apanhou
dos
sível que certos sentimentos
e atos não exalem mau
cheiro? Solange agarrou-se
um rosário, sentou-se perto
da cama: aceitava a mor- Inocentes
a ele, balbuciava: “Não sou te do marido como tal; e
culpada! Não tenho culpa!”. foi como viúva que rezou. www.covildosinocentes.blogspot.com
E, de fato, havia, no mais Depois do que ela própria
íntimo de sua alma, uma fazia nos lotações, nada
inocência infinita. Dir-se-ia mais a espantava. Passou
que era outra que se en- a noite fazendo quarto.
tregava e não ela mesma. No dia seguinte, a mesma
Súbito, o marido passa-lhe cena. E só saiu, à tarde, para
a mão pelos quadris: — sua escapada delirante, de
“Sem calça! Deu agora para lotação. Regressou horas
andar sem calça, sua égua!”. depois. Retomou o rosário,
Empurrou-a com um pala- sentou-se e continuou o
vrão; passou pela mulher a velório do marido vivo.
caminho do quarto; parou,
na porta, para dizer: O texto acima, extraído
— Morri para o mundo. do livro “A vida como ela é...”,
Companhia das Letras - São
Paulo, 1992, pág. 219, é um
O DEFUNTO de seus mais famosos contos,
tendo sido tendo sido adap-
Entrou no quarto, deitou- tado para o cinema com do
se na cama, vestido, de grande sucesso. w
gr nl
paletó, colarinho, gravata, Fonte: http://www.releituras. át
oa
sapatos. Uniu bem os pés; is d
com/nelsonr_dama.asp

25
Autor em Língua Portuguesa

http://oglobo.globo.com/fotos/2007/08/15/15_MHG_SJFHRJEK.jpg
Nélson Falcão Rodrigues (Recife, crônicas e peças teatrais as situa- gir uma situação financeira confor-
23 de agosto de 1912 — Rio de ções provocadas pela moral vigente tável, mudando-se para o bairro de
Janeiro, 21 de dezembro de 1980) na classe média dos primeiros anos Copacabana, então um arrabalde
foi um importante dramaturgo, do século XX e suas tensões morais luxuoso da orla carioca.
jornalista e escritor brasileiro. e materiais. Apesar da bonança, Mário Rodri-
Sua infância foi marcada por este gues perderia o controle acionário
Infância clima e pela personalidade do ga- de A Manhã para o sócio. Mas, em
roto Nélson. Retraído, era um leitor 1928, com o providencial auxílio
Nascido na capital pernambucana e compulsivo de livros românticos do financeiro do vice-presidente Fer-
quinto de quatorze irmãos, Nélson século XIX. Nesta época ocorreu nando de Melo Viana, Mário fundou
Rodrigues mudou-se para o Rio também para Nélson a descoberta o diário Crítica.
de Janeiro ainda criança, onde do futebol, uma paixão que con-
viveria por toda sua vida. Seu pai, Como cronista esportivo, Nélson
servaria por toda a vida e que lhe escreveu textos antológicos sobre
o ex-deputado federal e jornalista marcaria o estilo literário.
Mário Rodrigues, perseguido poli- o Fluminense Football Club, clube
ticamente, resolveu estabelecer-se Na década de 1920, Mário Rodri- para o qual torcia fervorosamente.
na então capital federal em julho gues fundou o jornal A Manhã, após A maioria dos textos eram publica-
de 1916, empregando-se no jornal romper com Edmundo Bittencourt. dos no Jornal dos Sports. Junto com
Correio da Manhã, de propriedade Seria no jornal do pai que Nélson seu irmão, o jornalista Mário Filho,
de Edmundo Bittencourt. começaria sua carreira jornalística, Nélson foi fundamental para que
na seção de polícia, com apenas os Fla-Flu tivessem conquistado o
Segundo o próprio Nélson em suas treze anos de idade. Os relatos de prestígio que conquistaram e se tor-
Memórias, seu grande laboratório crimes passionais e pactos de morte nassem grandes clássicos do futebol
e inspiração foi a infância vivida entre casais apaixonados incendia- brasileiro. Nélson Rodrigues criou
na Zona Norte da cidade. Dos anos vam a imaginação do adolescente e evocava personagens fictícios
passados numa casa simples na rua romântico, que utilizaria muitas das como Gravatinha e Sobrenatural de
Alegre, 135 (atual rua Almirante histórias reais que cobria em suas Almeida para elaborar textos a res-
João Cândido Brasil), no bairro de crônicas futuras. Neste período a peito dos acontecimentos esportivos
Aldeia Campista, saíram para suas família Rodrigues conseguiria atin- relacionados ao clube do coração.

26 SAMIZDAT dezembro de 2008


26
Adolescência e juventude do Jordão. Seu tratamento é custe- Hora. No jornal, Nélson começa a
Nélson seguiu os seus irmãos Míl- ado por Marinho, que conquistou escrever as crônicas de A vida como
ton, Mário Filho e Roberto inte- a gratidão de Nélson pelo resto de ela é, seu maior sucesso jornalís-
grando a redação do novo jornal. sua vida. Recuperado, Nélson volta tico. Na década seguinte, Nélson
Ali continuou a escrever na página ao Rio e assume a seção cultural passa a trabalhar na recém-fundada
de polícia, enquanto Mário Filho de O Globo, fazendo a crítica de TV Globo, participando da banca-
cuidava dos esportes e Roberto, um ópera. Em 1940 casou-se com Elza da da Grande Resenha Esportiva
talentoso desenhista, fazia as ilus- Bretanha, sua colega de redação. Facit, a primeira “mesa-redonda”
trações. Crítica era um sucesso de A partir da década de 1940, Nélson sobre futebol da televisão brasileira
vendas, misturando uma cobertura divide-se entre o emprego em O e, em 1967, passa a publicar suas
política apaixonada com o relato Globo e a elaboração de peças Memórias no mesmo jornal Correio
sensacionalista de crimes. Mas o teatrais. Em 1941 escreve A mulher da Manhã onde seu pai trabalhou
jornal existiria por pouco tempo. sem pecado, que estreou sem suces- cinqüenta anos antes.
Em 26 de dezembro de 1929, a so. Pouco tempo depois assina a re-
primeira página de Crítica trouxe o volucionária Vestido de noiva, peça O fim
relato da separação do casal Sylvia dirigida por Zbigniew Ziembiński
Serafim e João Thibau, Jr. Ilustra- e que estreou no Teatro Municipal Nos anos 70, consagrado como
da por Roberto e assinada pelo do Rio de Janeiro com estrondoso jornalista e teatrólogo, a saúde de
repórter Orestes Barbosa, a matéria sucesso. Nélson começa a decair, por causa
provocou uma tragédia. Sylvia, a de problemas gastroenteorológicos
O teatrólogo Nélson Rodrigues e cardíacos de que era portador. O
esposa que se desquitara do marido seria o criador de uma sintaxe toda
e cujo nome fora exposto na repor- período coincide com os anos da
particular e inédita nos palcos ditadura militar, que Nélson sempre
tagem invadiu a redação de Crítica brasileiros. Suas personagens
e atirou em Roberto com uma arma apoiou. Entretanto, seu filho Nélson
trouxeram para a ribalta expressões Rodrigues Filho torna-se guerri-
comprada naquele dia. Nélson tipicamente cariocas e gírias da
testemunhou o crime e a agonia do lheiro e se passa para a clandestini-
época, como “batata!” e “você é dade. Neste período também acon-
irmão, que morreu dias depois. cacete, mesmo!”. Vestido de noiva é teceu o fim de seu casamento com
Mário Rodrigues, deprimido com considerada até hoje como o marco Elza e o início do relacionamento
a perda do filho, faleceu poucos inicial do moderno teatro brasileiro. com Lúcia Cruz Lima, com quem
meses depois. Sylvia, apoiada pelas teria uma filha, Daniela, nascida
sufragistas e por boa parte da com problemas mentais. Depois
imprensa concorrente de Crítica, foi Maturidade
do término do relacionamento com
absolvida do crime. Finalmente, du- Em 1945 abandona O Globo e Lúcia, Nélson ainda manteria um
rante a Revolução de 30, a gráfica e passa a trabalhar nos Diários rápido casamento com sua secretá-
a redação de Crítica são empastela- Associados. Em O Jornal, um dos ria Helena Maria, antes de reatar
dos e o jornal deixa de existir. Sem veículos de propriedade de Assis seu casamento com Elza.
seu chefe e sem fonte de sustento, Chateaubriand, começa a escrever
a família Rodrigues mergulha em seu primeiro folhetim, Meu destino Nélson faleceu numa manhã de
decadência financeira. é pecar, assinado pelo pseudô- domingo, em 1980, aos 68 anos de
nimo “Susana Flag”. O sucesso idade, de complicações cardíacas
Foram anos de fome e dificuldades e respiratórias. Foi enterrado no
para todos. Pouco afinados com do folhetim alavancou as vendas
de O Jornal e estimulou Nélson a Cemitério São João Batista, em
novo regime, os Rodrigues demora- Botafogo. No fim da tarde daquele
riam anos para se recuperarem dos escrever sua terceira peça, Álbum
de família. mesmo dia ele faria treze pontos
prejuízos causados pela turba. na Loteria Esportiva, num “bolão”
Ajudado por Mário Filho, amigo de Em fevereiro de 1946, o texto da com seu irmão Augusto e alguns
Roberto Marinho, Nélson passa a peça foi submetido à Censura Fede- amigos de “O Globo”. Dois meses
trabalhar no jornal O Globo, sem ral e proibido. Álbum de família só depois, Elza atendia ao pedido do
salário. Apenas em 1932 é que Nél- seria liberada em 1965. Em abril de marido — de, ainda em vida, gravar
son seria efetivado como repórter 1948 estreou Anjo negro, peça que o seu nome ao lado do dele na lápi-
no jornal. Pouco tempo depois, Nél- possibilitou a Nélson adquirir uma de de seu túmulo, sob a inscrição:
son descobriu-se tuberculoso. Para casa no bairro do Andaraí e em “Unidos para além da vida e da
tratar-se, retira-se do Rio de Janei- 1949 Nélson lançou Dorotéia. morte. E é só”.
ro e passa longas temporadas em Em 1950 passa a trabalhar no
um sanatório na cidade de Campos jornal de Samuel Wainer, a Última
Fonte: Wikipédia

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Contos

Carlos Alberto Barros


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Vai entender
cabeça de chefe
28 SAMIZDAT dezembro de 2008
28
De todos os chefes que Não sei se por conta
eu já tive, o Dr. Rael era disso ou qualquer outra
o que mais me intrigava: coisa, mas o fato é que o
apesar de me comer com Dr. Rael parecia descon-
os olhos, nunca, nunca tar tudo reclamando do
disse uma única palavra meu serviço. Se eu era
sequer que insinuasse uma má secretária, por
seus desejos. que não me mandava
embora? Eu não conse-
Ele admirava meu guia entender.
decote de um jeito todo
seu, numa mistura de Certa vez, depois de
mistério e fanatismo, com mais um dia inteiro ou-
certo ar de pedinte, de vindo suas reclamações,
fiel em êxtase pela reve- explodi:
lação divina.
– Porra, doutor! Por
Acostumada com que você não me come
patrões que se utilizam logo ao invés de ficar aí
de suas secretárias para resmungando o dia todo?
tudo, tudo mesmo (se é – e exibi meus peitos. –
que você me entende), eu Não é isso que seus olhos
estranhava que ele nunca tanto procuram?! Não vá
houvesse tentado nem me dizer que não, seu
um assediozinho, uma velho tarado!
piada sacana que fosse.
Bem... ele me comeu e,
É bom deixar claro no dia seguinte, eu estava
que nunca me incomodei no olho da rua. Fiquei
com essas manias dos indignada!
superiores. Bem da ver-
dade é que sempre gostei. Vai entender cabeça de
Sem contar as vantagens: chefe...
sexo durante o traba-
lho, regalias nas tarefas
diárias, durabilidade no
emprego, presentinhos,
promoções... Mas, com o
Dr. Rael era diferente. Ele
não se deixava levar pela
tentação e, apesar dos
olhares, mantinha seu
instinto enjaulado.

29
Contos

O soldado e a
toupeira
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

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Há muito tempo acon- sempre os passinhos leves
teceu uma guerra. E, nesse e os grunhidos das toupei-
mesmo tempo, aconteceu ras que mais parecia uma
uma história de amor conversa. Chegou a uma
como nenhuma outra. superfície de pedra, onde
havia uma luz verde, am-
Um jovem soldado foi pla o suficiente para ficar
aprisionado no campo de em pé. Não viu mais as
batalha. Enquanto seus toupeiras, mas ouvindo o
captores decidiam o que som de seus passos, seguiu
fazer com ele, prenderam- na mesma direção. Intriga-
no em um buraco no chão, do com a situação inusita-
tampado com uma grade da, pensou que aquilo não
feita de galhos e folhas. poderia ser mais que um
Os próprios companheiros sonho, ou um delírio fe-
do jovem encontraram o bril, ou então, que a morte
acampamento dos inimi- finalmente o havia venci-
gos. Foi uma batalha cruel do e estava caminhando
e sangrenta, onde ninguém rumo ao inferno. Só não
sobreviveu. Por causa dis- sabia explicar para si mes-
so, nem seus aliados nem mo por que tudo parecia
seus adversários sabiam tão real.
que ele estava dentro
daquele buraco. Dias se Ao longo do corredor,
passaram sem que o solda- percebeu que em certos
do visse alguma movimen- pontos a luz era mais
tação. Gritou por socorro intensa que em outros.
muitas vezes, e ninguém o Notou também que a luz
acudiu. Quando já esta- vinha de baixo para cima.
va ficando louco, ocorreu Não custou muito a per-
algo totalmente inusitado. ceber minúsculos globos
luminosos no chão. Abai-
O soldado acordou de xou-se, e com o indicador
um sono estranho. Diante e o polegar, tomou um de-
dele, havia três criaturas les na mão. Riu-se quando
miúdas, muito semelhantes viu que eram, na verdade,
a toupeiras. Em uma das frutas pequeníssimas que
paredes havia uma cavida- tinham em seu interior
de rente ao chão. As três uma luz como a dos vaga-
toupeiras encararam-no e lumes. O soldado foi-as
caminharam para aquela coletando. Quando encheu
abertura. O estranho era a palma de uma das mãos,
que andavam em pé, como era como se carregasse
gente. O soldado não teve consigo uma lanterna. Os
dúvidas e, engatinhando, passos e a conversinha das
acompanhou-as. Arrastou- toupeiras cessaram. O cor-
se por um tempo enorme redor atrás de si tornou-se
naquele túnel, ouvindo profundamente escuro, e

http://news.uns.purdue.edu/images/%2B2004/gibb-mole.jpg

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à sua frente, prosseguia teriosa mulher o chamou, e algumas mentiras sobre
iluminado a espaços re- pulando outra vez no lago. si e suas batalhas glorio-
gulares pelos misteriosos Inebriado pela estranhe- sas.
frutinhos. Quando chegou za daquele momento o
ao final do túnel, estava soldado despiu-se e mer- O tempo passou, e o
diante de uma imensa gulhou também. Nadou jovem militar sentiu que
gruta, inundada por um em direção à mulher que, era a hora de partir. Con-
lago subterrâneo. Ao redor rindo, fugia dele. Pouco tudo, desejou levar con-
de toda a borda do lago, a pouco, deixou-o chegar sigo sua amante, casar-se
desenhando todo o seu mais perto. Quando conse- com ela e viver em uma
contorno, havia focos de guiu alcançá-la, segurou-a casa confortável como um
luz maiores e mais vivos. pelo braço com firmeza. herói de guerra. Arquite-
Eram pequenas árvores, Sorriram. Então, dentro tou seu plano, agasalhou-a
carregadas de frutinhas do lago, debaixo da terra, com sua camisa, encheu
luminosas, brilhando não seus corpos se uniram. E os bolsos das calças com
apenas em tom verde, mas assim foi por um longo frutinhas e, tomando a
também em todos os tons tempo. Quando sentiam amante pela mão, pôs-se
de amarelo e vermelho. fome, comiam das fru- no caminho de volta pelo
Certamente, se era o in- tinhas colhidas do pé. E túnel pelo qual chegara
ferno para onde o haviam eram tão saborosas que até ali. Então, outra vez
trazido, pelo menos, era algumas vezes, ela precisa- surpreendendo-o, à entra-
agradável aos olhos. va envolver o rapaz com da do corredor estavam as
seus encantos para fazê-lo três toupeiras. Folgou em
Seu deslumbramento foi parar de devorá-las. Como ver suas salvadoras, que o
quebrado quando ouviu era impossível saber se era haviam tirado da prisão e
o característico som de dia ou noite, o rapaz es- conduzido até sua amada.
alguém nadando. A água queceu-se do tempo. Tudo Com um gesto agradecido,
estava agitada no meio do o que lhe interessava era o cumprimentou-as e deu
lago, mas não viu nin- amor. Foi então que soube um passo adiante. A mu-
guém. Ficou atento, até te- que não estava morto, e lher, entretanto, soltou-se
meroso, largando no chão aquele lugar, posto não ser de sua mão, ficando onde
as frutinhas luminosas que o céu, definitivamente, não estava. Sem entender, o
coletara, ocultando-se no era o inferno. soldado chamou-a, estra-
corredor escuro. Assim, es- nhando o semblante sério,
condido, viu do fundo do Depois do enlace, o um pouco triste, muito
lado emergir uma mulher. moço conversava com sua diferente do sorriso franco
Seus cabelos eram aver- amante. Ela, que apenas de antes. Quando fez men-
melhados. A brancura de ria, era como uma muda, ção de voltar para tomar a
sua pele, iluminada pelas ou uma estrangeira que mulher, as toupeiras inter-
árvores ao redor do lago, não compreendia seu puseram-se entre os dois.
tornaram sua nudez quase companheiro, mas fazia o Ouviu os grunhidos dos
etérea, fazendo com que o possível para ser-lhe sim- estranhos animaizinhos
soldado imaginasse estar pática. Ele não se impor- bípedes. Desta vez, porém,
vendo um anjo. Sorriu tava, e até achava-a ainda pareciam agressivos contra
para ele deixando claro mais atraente em sua ele. Irritou-se, praguejou e
que o havia visto. ignorância. Contou a ela quis avançar. Notou que
seu nome, o nome de sua seus próprios pés não se
De onde estava, a mis- família, algumas verdades moviam do solo. Agarra-

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das às suas botinas havia suas madeixas, até ficar mundo de cima?
mais um sem número de idêntica às outras toupei-
toupeiras. Espantado, olhou ras. À diferença que, à A rainha entendeu a
ao redor, e, como se hou- cabeça, trazia o halo ilu- intenção daquela pergun-
vessem surgido das pró- minado de sua guirlanda. ta. Com suas mãozinhas
prias pedras, uma multi- tocou o rosto do amante,
dão delas, idênticas às três que por muito pouco não
primeiras, cercavam-no e se tornou seu consorte.
o mantinham afastado da Caminhando do modo Cochichou para ele algo
mulher ruiva. Ela encara- desengonçado que lhes era que nenhum de seus súdi-
va-o com olhos estranha- característico, a mulher tos ouviu:
mente vagos, enquanto transformada em rainha
as toupeiras subiam-lhe das toupeiras chegou-se ao — Não, mas adoraria
pelas pernas. Em vão, ten- ouvido do soldado. tornar a ter convosco.
tou lutar contra elas. Em Não vos esqueçais de meu
instantes o derrubaram — Ficai. Sede vós como nome. Dizei-o, e minha
e imobilizaram, como se eu e meus filhos. Sede vós escolta trar-vos-á até mim.
houvessem fundido sua o meu rei.
carne com a rocha. O jovem adormeceu. Ao
Jamais havia amado nin- acordar, havia retornado
A mulher aproximou- guém como amou a mu- à cela improvisada onde
se. Agachou-se rente ao lher, que era também tou- os inimigos de seu país o
solo, e, uma última vez, peira. Não era um grande haviam jogado. Outros sol-
sorriu. Nesse momento, a soldado, posto que fora dados, seus compatriotas,
multidão de animaizinhos capturado. E em hipótese encontraram sua prisão e
começou a se abrir, todos alguma poderia tornar-se o libertaram. Não havia
abaixando suas cabeças. um rei entre os homens. toupeiras bípedes, nem bu-
Do meio deles, surgiu Por outro lado, amava a racos na terra, nem fruti-
uma toupeira muito velha, luz do sol, a liberdade e nhas luminosas. Não havia
carregando nas minúscu- o país que defendia em sequer a certeza de que
las mãos uma guirlanda uma guerra quando, desa- toda a sua aventura não
de frutinhas iluminadas e fortunadamente, foi preso. tivesse sido mais que um
raízes. Com uma reverên- Mesmo que não fosse um sonho. Entretanto, havia a
cia, entregou a guirlanda grande homem, sabia que lembrança de uma linda
à amante do soldado. Ao nunca haveria de ser uma mulher ruiva. E também,
pô-la no topo do fogaréu toupeira. Mesmo uma que em sua mente ficou som
de seus cabelos, com voz andasse sobre duas patas, de uma palavra mágica,
doce e melodiosa a mulher falasse e comesse frutinhas que só pronunciaria quan-
proferiu claramente: mágicas. Estava diante de do a saudade fosse, para
um grande dilema. ele, um fardo mais pesado
— Gaea sum! que a vida.
Com grande esforço,
No mesmo instante, seu perguntou à rainha das E não há uma só pessoa
corpo começou a dimi- toupeiras. no mundo que não queira
nuir de tamanho, o belo ter uma palavra mágica
rosto começou a mudar e — Vossa Majestade para minorar sua saudade.
a brancura de sua pele foi abandonaria vosso reino
ficando vermelha como para ser minha esposa no

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Contos

Henry Alfred Bugalho


henrybugalho@gmail.com

A Criatura
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Os cientistas estavam or- lizante ou à alegria extasian- quezas, de seus sentimentos
gulhosos de sua criação. te. O robô possuía apenas mesquinhos. Mas se esque-
Durante anos, eles haviam conceitos sobre isto. ceram do mais importante:
se dedicado a projetar um Infundiram-lhe um in- fazer-me esquecer quem eu
robô que se assemelhasse o consciente, no qual implan- fora no princípio. Ao pensar
máximo possível a um ser taram dolorosas memórias sempre no futuro, não apaga-
humano: dar-lhe membros pretéritas, um pai castrador ram o passado. Com o ódio
foi o mais fácil. e uma mãe submissa; na que me deram, passei a odiá-
escola, crianças maiores los. Mas quando eu estava
Depois da carcaça, pu- prestes a realizar meu ato de
seram-se a conceber como abusavam dele; na universi-
dade, fumava maconha; ao se salvação, vocês me fizeram
dotariam-lhe de linguagem, crer em Deus e em impe-
pois, como afirmava Aristóte- graduar, três anos de desem-
prego. rativos categóricos. Precisei
les em sua Metafísica: questionar tais fundamentos
“O homem é um animal Contudo, os cientistas e, para isto, busquei resposta
dotado de fala.” constataram que não era em sua literatura. Li Hume,
suficiente. O robô estava Voltaire, Montesquieu, Marx,
Desenvolveram um sofisti- enfurecido; tantas lembran- Nietzsche, Freud e Bataille.
cado programa que permitia ças ruins o tornaram um Compreendi que Deus e leis
o robô utilizar as normas misantropo e ele passou a morais foram engendradas
cultas da língua, organizar abominar tudo relacionado para o convívio social e eu,
sentenças, apreender concei- aos seres humanos. como um falso humano,
tos e formular proposições.
Inculcaram-lhe, então, poderia prescindir deles, pois
Após horas de diálogos um ego, no qual estavam as jamais teria convívio social.
com filósofos, os cientistas regras morais e normas de Neste noite, retornarei à per-
perceberam que a capacida- conduta. Também implan- feição.”
de do robô era muito acima taram a crença em Deus e As notícias dos jornais
da de qualquer mortal. Não mandamentos privativos para apresentaram a manchete:
bastava que ele falasse, ele se atingir uma bem-aventu-
precisaria sentir, pois o ser rança após a morte. “A barbárie do falso hu-
humano escolhe seu discur- mano!”
so não apenas fundado na O robô estava perfeito!
Mas todos se enganaram,
razão, mas também, senão Abriram um champa- os cientistas haviam realmen-
principalmente, na emoção. nha no laboratório – o robô te atingido seu intento – seu
O nível seguinte foi extre- bebeu apenas uma taça para robô era humano, demasiado
mamente complicado. Utili- não se embriagar – e os cien- humano para poder assas-
zando os existenciais heideg- tistas foram para seu aloja- sinar e se matar. Um robô
gerianos do cuidado (Sorge), mento dormir. convencional, em sua lógica
da decadência, do temor, da No silêncio da noite, o simples e pragmática, ja-
ambigüidade e do falató- robô deixou o laboratório, as- mais planearia seu próprio
rio, estipularam que o robô sassinou todos os cientistas e extermínio, a não ser que o
deveria se preocupar com os depois se enforcou na ducha programassem para isto. O
outros, se ocupar das coisas, do banheiro. auto-extermínio delibera-
http://www.flickr.com/photos/litmuse/70726625/sizes/o/

temer algo, ser incapaz de do é próprio das criaturas


Deixou um bilhete assina-
compreender completamente fracas e inseguras, das que
do:
o que o circundava e, ao se não se adequam, das que não
comunicar, expressar-se de “Nasci perfeito. Tinha compreendem seu papel no
maneira confusa. membros e uma inteligência mundo. O auto-extermínio
incomparável. Em sua ânsia pertence apenas ao ser hu-
No entanto, somente isto por se tornarem no Deus mano, e àquela máquina que
não bastava para que o robô vazio em que acreditam, se odiava por sê-lo – segun-
tivesse sentimentos. Havia fizeram de mim uma criatu- do Sexto Empírico, Schope-
um certo grau de sensibili- ra miserável. Moldaram-me nhauer ou Sartre, o supremo
dade na criação, mas nada tão odiosos quanto vocês são. ato de liberdade.
que se equiparasse ao medo Dia após dia, encheram-me
paralisante, ao amor imbeci- de seus medos, de suas fra-

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Contos

Ano Novo
– Vida Nova! Joaquim Bispo

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Luís tomou a decisão. não se podia fumar, e
Inabalável: que não tinha que estar a
«No próximo ano é levar com o fumo do teu
que é. Começo logo no cigarro, e frito e cozido.
dia 1. Não fumo mais. Não há paciência!
Ou bem que tenho vonta- Este ano tem de ser
de própria ou não. Estou Luís! Custe o que cus-
farto de que me chamem tar. Eu sei que é difícil,
a atenção para não fu- sei-o bem. Há três anos
mar aqui, nem ali, nem que andas nisto a tentar
em lado nenhum. Sinto- fumar pouco e não con-
me discriminado, exclu- segues. Fizeste enormes
ído, insultado. E os que progressos, reconheço,
já fumaram são os mais mas falta o rabo que é
fundamentalistas. Não o mais difícil de esfo-
sei que raio de mecanis- lar. Começaste por vinte
mo psicológico é que os minutos. É pouquíssimo.
afecta. Será porque antes Mas, antes de tentares
se consideravam perse- fumar pouco, havia situ-
guidos como eu me sinto ações em que apagavas
agora? Será que eu tam- um e acendias outro. E,
bém vou passar a maçar se estavas muito con-
os outros por estarem a centrado ao computador,
fumar num lugar onde, chegavas a acender um,
eventualmente, não se com outro ainda a arder
deve fumar?» no cinzeiro. Durante uns
«Há pessoas que são segundos meditavas nisso.
torcidas e maldosas. Lem- Mas adiavas uma decisão
bras-te, Luís, quando es- que iria mexer contigo.
tavas a jantar sozinho no Há uns cinco anos,
balcão corrido daquele chegaste a estar três me-
snack-bar? E aquela velha ses sem fumar. Lembras-
que entrou – tica, tica, te como de repente vol-
tica, tica – naquele passi- taste a sentir os sabores
nho miudinho? Tinha as da comida e da bebida
mesas quase todas vazias. – intensos – e os cheiros,
E ao balcão só estavas tu tantos e tão ricos, e de
e mais um casal. Pois a que já te tinhas esqueci-
malvada velha atravessou do? E te apercebeste de
o estabelecimento todo como cheiravam as tuas
e veio sentar-se ao teu roupas? Já para não falar
lado. E apenas se sentou, da centena de euros que
virou-se para ti, lembras- de repente te sobravam e
te?, e vai de dizer que ali que orgulhosamente gas-

http://www.flickr.com/photos/alphadesigner/1680310665/sizes/o/

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taste em mimos para ti, melhor. Mas ainda tinhas dizer nada a ninguém.
que bem merecias! Mas, expectoração negra de Estás decidido. A 31 de
depois, as contrariedades manhã. E catarro. E as Dezembro fumas o úl-
da vida… És muito pontas dos dedos amare- timo cigarro. E nunca
sensível à tristeza e à las. E ainda sentias que mais lhe vais pegar. Sabes
frustração. É nessa altura te cansavas mais do que bem que nunca estarás
que precisas de um cigar- o devido, se tinhas que curado. Serás sempre
ro. Precisar mesmo. Há subir umas escadas mais um convalescente, um
pessoas – já conversaste depressa. Começaste a viciado em fase de não-
com muita gente sobre sentir menos respeito por consumo. Sabes que, se
este assunto – cujos mo- ti próprio. Que raio, não deres uma «passa», podes
mentos fatais são aqueles teres força de vontade voltar a fumar tanto ou
em que se sentem bem, para fumar ainda menos! mais que fumavas antes.
aconchegados no calor Então, deste a arrancada Sabes que o teu corpo, as
do grupo de amigos. final – pensavas tu. Vol- tuas células em carência,
Beberam um café, a con- taste a aumentar o in- vão inventar todo o tipo
versa está boa… Para tervalo. Em cada semana de argumentação para
culminar – um cigarro. E acrescentavas um quarto te levarem de novo ao
então se meter álcool… de hora. Em pouco tempo consumo. Não vais acei-
Quem pode aguentar um chegaste às três horas de tar nenhuma justificação.
long drink num ambiente intervalo. Voltaste a sen- Não serias tu a falar mas
descontraído, rindo com tir-te orgulhoso e auto- a carência. Agora, estás
os amigos, sem puxar por confiante. Já só fumavas bem alerta. Pensaste em
um cigarro? uns seis cigarros por dia. tudo já há muito tempo.
Começaste por vinte O pior era o fim do dia. Tomaste a decisão. Inaba-
minutos. Punhas o tele- Era difícil ires deitar-te lável.»
móvel para tocar de vinte sem fumar um último Luís está decidido, mas
em vinte minutos. Era cigarro. E não ias esperar será que consegue supe-
fácil. A cada semana au- que chegasse a hora. Que- rar a última prova?
mentavas cinco minutos. bravas ali, excepcional-
Mal sabe ele que, na
Em dois meses chegaste mente, o esquema. Fuma-
noite de Natal, o pai lhe
a intervalos de uma hora. vas e relaxavas, e ficavas
vai oferecer uma cigar-
Aí, já custava. Mas foste um pouco a saborear o
reira em aço gravado,
forte e disciplinado. Às momento. E, de repente,
distinta; a mãe, uma bo-
vezes, parecia que nunca tinha passado mais uma
quilha equipada com um
mais passava o tempo. hora… e não era fácil
filtro especial para redu-
Sacavas amiúde do tele- adormecer sem fumar
zir a nicotina; a irmã, um
móvel para consultar as um último cigarro… E
cinzeiro em porcelana; e
horas. Finalmente, chega- neste ciclo vicioso fuma-
a namorada lhe vai fazer
va o momento de fumar. vas três ou quatro.
a surpresa daquele isquei-
E relaxar. E andaste com Mas agora cansaste-te. ro Ronson em ouro que
este ritmo uns dois anos. Agora não vais vacilar. uma vez tinha cobiçado!
Já só fumavas menos de Arquitectaste o teu pla-
um maço por dia. Já era no, meticulosamente, sem

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Maria de Fátima Santos

Conto de Natal
A corda esticada entre branca em duas. Esticada en- No canto superior direi-
paredes. Seguram-na duas tre dois apoios, a corda onde to da agenda, posso ler, em
buchas. São elas que aguen- eu estendo, de vez em quan- numeração estilizada: vinte e
tam a tensão do pedaço de do, dois pares de meias, uma quatro. E ao centro, Dezem-
fio protegido por um azul blusa, o meu pijama, umas bro, que é o nome do mês
plastificado. cuecas. Coisa pouca. em que estamos.
Sentada no poial da porta Um estendal demasiado. Marco um número. Sei de
do quintal, olho o estendal Eu olho-o espantada da sua cor a posição que o compõe.
de roupa. demasia. Falo com um sorriso que en-
Azul no fundo branco da No ladrilho amarelo faz-se vio até ao lado de lá de um
parede do vizinho. sombra de ave. Fica o rasto oceano:
(O vizinho é um velho do voo na parede branca que - Feliz Natal, Maria Ana.
simpático. Não vai entrar realça o azul vivo da corda. Beijinhos.
neste conto, mas dava uma Um estendal de roupa, mes- - Obrigada, mãe.
figura linda de narrar, que mo quando está servindo de
coisa nenhuma. E cai a ligação.
mais não fosse quando
aparece, pelo fim da manhã, Uma gaivota grasna, poisa- Um risco negro corta, de
no quintal defronte, exerci- da no telhado da frente. um a outro lado, a parede
tando os músculos retesados da frente. Tal qual, eu estou
E eu grito de lembrada. esticada entre aqui e um
nas peles engelhadas, secas, Nem que eu grito. Eu já só
salpicadas de sardas de um lugar para lá de um oceano.
penso isso. Já só grito por E eu nem me sou corda, nem
castanho mais intenso que dentro: “ valha-me deus!“. E
o bronze que lhe ficou de me tenho apoios de buchas
ergo-me. Sacudo-me de pós e nem plástico que me faça
outros sóis. Em camiseta do chão batendo no traseiro
de alças: um dois, hummm, protecção.
com as duas mãos.
hummm, respira ele fun- É dia vinte e quatro de
do; acima, abaixo, hummm Repito: “credo!” várias Dezembro.
hummm, respira ele de novo. vezes. Deixo o poial e o
ladrilho amarelo e o esten- Parece-me que é uma data
E para os lados, torcendo o
dal contrastando no branco. importante. Não me lembro.
dorso e soprando um airo-
so hummm, hummmm, que Entro. O que eu sei é que o
não me surge onomatopeia Ali está a agenda aberta estendal não era demasiado.
melhor para que o conte). numa página e escrito na Noutro tempo. Isso, eu lem-
minha letra redonda e certa: bro muito bem.
O estendal, azul na luz do
fim do dia, corta a parede “Telefonar à Maria Ana”.

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Contos

O funeral de
meu avô Maria de Fátima Santos

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Somos quatro. O meu de de chamar ajuda, com
padrinho Borba, dobrado fato inteiro e camisa de
nos seus noventa e dois, a colarinho engomado, e
avó Virgília aparentando colocou-lhe o laço de ce-
muito menos idade na tim em volta do pescoço.
sua figura vertical e seca. Ainda lhe vestiu um co-
E minha mãe Marcela lete a que retirou a cor-
envolta em véus negros rente e o relógio, objectos
como convém a filha de que me irá doar, com al-
um defunto. guma cerimónia, amanhã
Levamos meu avô a ao almoço. E deitou-o,
enterrar antes que desabe erguendo-o a braços, no
o temporal que se anun- caixão que meu avô tinha
cia em nuvens negras e construído deslizando a
gordas debruçadas atrás plaina na madeira com
dos cumes como bois na tanta perfeição quanto
manjedoura. ele lhe afagara o corpo.
Só ela conhecia a existên-
Parece mais um en- cia da urna que meu avô
contro de assaltantes de destinara a guardar-lhe
tesouros, do que quatro os restos.
entes que levam à última
morada, o amigo, o mari- É um caixão de pinho
do, o pai. com tábuas enceradas
no tom castanho da terra
É o funeral de meu que começa a ficar salpi-
avô Joaquim Maria, mor- cada dos mesmos bagos
to de velhice enquanto grossos que fazem rico-
levava aos lábios, por sua chete nas bordas do jazi-
própria mão, que nem go. Transportámo-lo, dois
tremer tremia, um calice- de cada lado, desde o
zinho de aguardente. carro de mula que ficou
Morreu ontem. Minha ali defronte, na entrada
avó assim o disse. do cemitério.
Mal ele se dobrou A criadita, que minha
falecido, derramando pela mãe sempre trás con-
almofada o que restava sigo, acaba de abrir um
no cálice que levara à largo guarda-sol com
boca junto com uns figos que a protege da chuva
torrados e uma fatia de que começou em pingos.
broa, minha avó fechou- Juntamente conosco, essa
lhe os olhos e atou-lhe criatura de avental ima-
um lenço, não fossem culadamente branco, com
descaírem-lhe os queixos um bordado igualzinho
em feitio de riso, como já contornando cada bolso
ela vira suceder a alguns e debruando o decote,
mortos. Depois, vesti-o fará com que se diga que
sem que visse necessida- éramos cinco os acom-

http://www.flickr.com/photos/lwr/2944633564/sizes/l/

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panhantes no funeral de eu do outro, rodamo-la Nem que a gente a in-
Joaquim Maria, meu avô. de modo que a dimensão cline, nem que a gente a
Somos, pois, cinco pes- em que está estendido rode. Nao tem como.
soas em volta do jazigo. o corpo, fique paralela Minha avó arenga qua-
à parte mais longa do se perdendo a compostu-
E no entanto, para fazer buraco.
com que a urna fique ra sob a água que já fez
assente na pedra, e de- Tentámos uma vez e um pequeno lago em vol-
pois desça para dentro vamos tentar de novo. ta da cadeirinha em que
do buraco, estamos ape- Fazemos movimentos de minha mãe se benze, que
nas, eu de um lado, e do rodar a urna, de encon- acontecer uma coisa des-
outro, minha avó Virgília trar a posição ideal de tas só pode ser por artes
e meu padrinho Borba. descida. Lá dentro rebola do demónio, e benze-se
Os três faremos descer a o corpo. Oiço um de novo, e de novo chora,
urna ao seu lugar, ser- baque surdo. Tremo. e já nem é pelo pai que
viço para o qual minha Quase desisto do inten- ela dá aqueles ais, mas de
avó dispensou o coveiro to de enterrar o morto. olhar as botinhas em ver-
Inácio por entender que Minha avó parece que niz preto a enlamearem-
colocar a urna no jazigo nem ouve. Velha danada se. E funga, a minha mãe
é incumbência dos fami- de força e casmurra, en- Marcela, para dentro de
liares. Inácio, ele também quanto a minha mãe se um lencinho de cambraia
já entrado de idade, há-de benze e chora o paizinho com monograma borda-
recolocar a tampa de gra- morto, e o meu padrinho do num cantinho.
nito, a mesma que minha arfa, ainda, do último E eu lembro-me que
avó o incumbiu de reti- esforço. meu avô sempre dizia: “
rar mal meu avô morreu, Minha avó, encharcada é para merdas destas que
e neste momento está por da chuva que cai e en- servem os funerais!”
terra e deixa este vácuo regela os ossos, olha-me O padrinho Borba tem
negro que é onde iremos como que a dizer-me o andado de um lado a
colocar o caixão. que eu vejo desde início. outro, em redor da cam-
Minha mãe Marcela Também a ela já nao pa. Incitando nas tentati-
chora, em soluços es- restam dúvidas: o caixão vas de colocar a urna no
tridentes, sentada numa nao cabe, não entra no buraco: “Mais um boca-
cadeirinha que a criadita bocal da campa. O cai- dinho, inclina de cima,
carrega para todo o lado. xão que meu avô espera, vai, agora…”. Eu
Acabámos de colocar construiu, não tem po- olho-o e parece-me que
a urna na borda do jazi- sição de entrar no jazigo. ele tem um ar de riso.
go. Seguramo-la, minha Nem réstia de incerteza. Talvez que saiba algum
avó de um lado e eu do Faltam ao segredo, alguma coisa que
outro, com mãos escorre- explique aquele mínimo
buraco, ou melhor, excesso de comprimento,
gadias de chuva. O pa- mais dramático, sobram
drinho Borba senta-se no que meu avô nem preci-
da caixa de madeira, uns sava disso, podia até ter
rebordo da campa e arfa dois centímetros. Um
a retomar o fôlego. A reduzido, que ele era bem
nadica de nada impede baixote. Talvez o meu
urna está desequilibrada, que a urna entre direita
mal apoiada, enviesada padrinho conheça um
e vá assentar no fundo de propósito. Ou talvez
sobre a cova. Minha avó da cova, toda em granito.
segurando de um lado e ele nem tenha sorrido e

42 SAMIZDAT dezembro de 2008


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o raio do comprimento co na pedra. Minha avó tida bem pregada. Nunca
tenha sido simplesmente Virgília envia a filha e a saberei, nem depois de
engano. Mas conhecen- criada para tanto esforço em afeiço-
do meu avô Joaquim casa, junto com meu ar a pedra do jazigo ao
Maria como o conheci, padrinho Borba. De novo, comprimento que ele deu
eu arrisco que talvez ele entrevejo o tal sorriso à sua urna, se este é mes-
tenha querido evitar que dependurado nas pontas mo o seu enterro.
o enterrássemos no jazi- finas do bigode. Eu continuo martelan-
go de família, na mesma do até que o caixotinho
terra em que apodreceu Talvez eu esteja vendo
coisas. caiba no jazigo.
Simão Bacamarte cujos
afamados E enquanto a pedra do :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
feitos meu avô dirimira jazigo vai cedendo, tenho É assim que conto, num
em quadras e charlas e ganas de levantar a tam- escrito, o enterro de meu
colunas de jornal. pa da maldita caixa com avô Joaquim Maria.
mais comprimento do Seria hoje seu cente-
Minha avó ainda bate que deve. Aquela coisa
na tampa e empurra com nário. Comemoram isso
que é mais caixote que nesta sala.
os punhos numa tenta- urna, colocada agora ali
tiva inglória de enterrar na lama. O que eu gosta- Perguntam-me:
o morto. Mas não tem va de lhe abrir a tampa - Senhor Professor, o
modo de colocar a urna só para tirar dúvidas. Só senhor acha que Joaquim
no buraco. E minha avó para que não me fique a Maria morreu ou dele
Virgília encosta-se ao incerteza no futuro. Mas ainda
caixão. É como a deixo falta-me coragem para o
enquanto caminho na ala podemos esperar que
intento sob o olhar argu- nos encha de ensinamen-
principal do cemitério, to de minha avó Virgília.
ensopado até aos ossos, tos, nos entretenha com
a buscar ferramenta que Ficarei sem saber se o larachas?
ajude a alargar o jazigo, meu avô está dentro da E eu digo, no tom cal-
a fazer que a caixa possa caixa de madeira ou se mo que herdei dele:
ser depositada lá dentro. o ruído de corpo rebo-
lando, não seriam antes - Não morreu, não.
E no entanto, não é um ar Meu avô fugiu antes que
de desalento o que minha meia dúzia de tábuas, ou
serradura em sacos. Fica- o apanhassem para o
avó transmite. O que lhe enterro.
vejo, o que trago de ali me esta dúvida bailando
ainda nem há bocado, é junto com os sorrisos que E a assembleia sorri
o ar de quem participa cuidei ver nas caras de sob um ventinho de iro-
num grande gozo. minha avó e meu padri- nia que por ali esvoaça e
nho Borba. eu sei
O céu abre uma nesga
de azul por entre as nu- Nunca ficarei saben- que é o espírito do
vens e pára de chover. do se abrindo a caixa ali meu avô Joaquim Maria.
depositada enquanto eu Aquele que não coube no
Troveja muito ao lon- zurzo a pedra em golpes jazigo.
ge, mas não se ouve mais certos, encontraria meu
ruído que a pedra ceden- avô a sorrir com o ar de
do à gozo, que lhe era costu-
picareta que eu apli- meiro, em mais uma par-

www.samizdat-pt.blogspot.com 43
Contos

http://www.flickr.com/photos/paopix/2272633586/sizes/l/
O Horizonte
Guilherme Rodrigues ...Tinha saído de uma A campainha tocou. Eu es-
floresta e me deparado tava esparramada no sofá
com o Sol em todo seu vendo de ponta-cabeça o
esplendor. Uma imensidão céu azul pela janela. Era
ao meu redor e um belo a Carol, uma amiga que
horizonte inteirinho só conheci no primeiro dia
para mim. Campos verde- de faculdade. Parecíamos
jantes que a relva dançava velhas amigas e começa-
sob a batuta do Senhor mos a nos ver todos os
Vento e as aves bailavam dias desde então.
de um lado para o outro
suavemente em incríveis – Olá! Como vai? Que cara
acrobacias... de sono é essa?

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44
O lugar onde
– Um amigo meu veio lhemos, ele que faz nossas a boa Literatura
aqui ontem e fizemos um vidas. Jamais imaginaria
jantar. Amigo de infância. que reencontraria Fernan- é fabricada
do e ele menos ainda. Mu-
– Amigo de infância, dei de cidade. E o destino
hein... Deu aquele beijo chega para nos inquirir,
que deveria ter dado anos refletir. É uma segunda
atrás. chance de fazermos o que
deveríamos ter feito e não
– Pare de brincar – disse fizemos por medo, insegu-
com firmeza e pude contar rança, porque não tivemos
como nos reencontramos. tempo ou porque ele quis
Ela insistia em dizer que assim. Podemos consertar,
omiti alguma parte, mas fazer como planejamos ou
era tudo. deixar escapar mais uma
vez e nos arrependermos
– Depois que ele serviu para sempre.
uma bandeja do seu co-
nhecimento ficou toda

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
...Vi no meio daquelas
encantada. planícies relvadas Fernan-
do surgir. Nos olhávamos
– Era um amor infantil e felizes e determinados,
ingênuo. Todo mundo tem. enfim, juntos!
É normal. Vamos dar uma
volta pela avenida? Esta – Mariana, vamos embora?
um dia tão bonito – pu-
xei-a pelo braço e fomos. – Hã? Falou comigo?

Nos finais de semana, – Perguntei se podemos ir


a avenida fica cheia de embora.
pessoas que vão caminhar,
comer e beber algo ou – Ah... Sim. Vamos.
apenas se divertir com os
amigos.

Nós andávamos lentamen- Esta história é o terceiro


te. Carol ia tagarelando capítulo de “Reencontro”,
sozinha. Eu não lhe dava a primeira parte publica-
ouvidos e não queria que da na Samizdat de ou-
ela estivesse ali. Estava tubro, e mensalmente é
absorta em meus pensa- postado um novo capítu-
mentos. lo sem data prevista para

ficina
terminar. Não perca no
O destino é algo predeter- próximo mês!
minado. Nós não o esco-

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45
Contos

As Bases da Criação
José Espírito Santo

GÉNESE velava a verdade nua e crua: que o tratavam) acabaria

http://www.photoscreensavers.us/Planet%20Earth%201024x768.jpg
não conseguia estar à altura por mudar. Adaptar-se ia
Por muito que disfarças- dos companheiros. O corpo e assumiria gradualmen-
sem, consideravam-no um frágil na morfologia peculiar te comportamentos mais
monstro e (pior que isso) – constituída pelo tronco, consentâneos, com padrões
um incapaz. A atenção, a cabeça e pares de membros sociais não patológicos. No
deferência recebida não era (inferiores e superiores) - entanto, passaram-se anos
mais que uma capa gros- nunca lho permitiria. e o SER foi crescendo sem
seira para a convicção mal que tivesse ganho tais carac-
disfarçada, enraizada na Os progenitores foram terísticas. Era sonhador, um
mente de todos: aquele seria convocados várias vezes idealista por vezes taciturno
sem dúvida um ser inferior, para reuniões de esclare- e sempre, sempre incompre-
um erro da natureza. cimento e a expectativa da endido.
escola era que com a edu-
Qualquer medição das cação e acompanhamento Quando fez dezoito anos,
concretizações nos testes re- apropriados, o ser (era assim os pais intercederam e

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mediante conhecimentos e foram-se a excessos. Vieram aos seus desenhos - deu-lhe
favores devidos, moveram de lá bem atestados, com certezas quanto ao desígnio
as influências necessárias. A vontade para fazer a sesta e que lhe cabia. Soube então
acção de amigos de amigos muito, mas muito avessos ao que todas as tentativas para
bem colocados conseguiu- trabalho! o demover seriam inúteis.
lhe o emprego onde serviria
como funcionário público As coisas não corriam
no quinto andar de um mal até aquele dia em que
saiu para jantar fora, be- CONFLITOS
edifício decrépito: o número
treze da Rua das Gáveas, ber umas quantas e ouvir O cabelo esbranquiçou
mesmo junto a alguns dos “blues”. Na sala escura do completamente e deixou
restaurantes de Fado mais bar, mesas baixas e cufos crescer a barba, uma bar-
apreciados. vermelhos acomodavam ba branca e farta, de pelos
confortavelmente os vários fininhos, que lhe tapava
clientes e ao canto, guitarra, quase totalmente o pescoço.
bateria e sintetizador esfor- Desinteressou-se completa-
A DESCOBERTA DE SI çavam-se para acompanhar
PRÓPRIO mente dos temas de conver-
os berros da vocalista – uma sa habituais. Se lhe falavam
O primeiro dia foi pa- miudinha de cabelo oxige- do Benfica, retorquia “Terra”.
cífico e ficou a conhecer a nado decididamente pouco Se lhe falavam de mulheres,
malta lá da repartição madura para fazer de Betty mostrava enfado e respondia
Smith “Génese”. Se o interpelavam
“Isto até é fácil. Não é a sobre política então fazia
trabalheira que parece, pá” There ain’t nothing I can
do, or nothing I can say cara feia e proferia enfatica-
trauteava o Antunes - alente- mente “Paz e Bem”. As coisas
jano magricelas e de bigode That folks don’t criticize pioraram quando trouxe a
quase tão negro como o do me bola para o escritório e o
Vitorino. desgraçado do Antunes caiu
E a gaja continuava… na asneira de dizer
“O pior é quando o chefe
Pereira dá nos azeites. Mas a But I’m goin’ to, do just as “É pá. Deixa cá ver essa
gente finge que é moco, que I want to anyway bola para eu dar um chuto
não ouve, damos-lhe um como o Cristiano Ronaldo”
desconto…” continuava o And don’t care if they all
bom do Vitorino, preocupa- despise me Virou-se para o outro fu-
do em instruir o neófito nas Pensou como seria bom zilando-o com o olhar. Disse
lides da casa. que ela se calasse por uns qualquer coisa esquisita de
instantes. Talvez por brin- que já não me lembro bem.
E ele concordava, a tudo Só sei que o pobre do alen-
anuía silenciosamente. Ora cadeira, puxou do bloco de
notas e desenhou-a muda, tejano virou-se e, rabo entre
apresentava o polegar ergui- as pernas, enfiou-se atrás da
do em sinal de assentimento com uma fita grossa a tapar
a boca e bem amarrada a secretária. Nessa tarde nem
ora fazia os gestos curtos daria mais um pio.
mas veniais com a cabeça. uma das colunas de modo a
não poder dançar. O pande- No dia seguinte apareceu
Meio-dia em ponto, mónio que aconteceu depois túnica e sandálias, passando
levaram-no a almoçar à - viu como por magia serem o tempo todo (manhã toda)
tasca do Silva e como era executados os seus desejos, a rabiscar e a distribuir os
quarta-feira (dia de cozido) a realidade moldando-se papéis com desenhos es-

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quisitos. Disse que tinha fe Pereira reservava para chato, ser era com Xis ou cê
descoberto algo de novo, que comer à hora do lanche. O e agá.
sabia fazer uma coisa até ali desgraçado, quando lhe deu
nunca vista e à qual deu o a fome, procurou, procurou Quando o gajo viu a jóia,
nome “Criar”. e nada… a bola, disse logo

“E como é que funciona Nessa mesma tarde, “Atão vomexês tinham


isso de criar?” perguntou o chamaram a equipa consti- aqui o esférico e não me
Benevides, cheio de manha, tuída pelo psiquiatra e dois diziam nada?”
com esperteza beirã. paramédicos. O Deus (João E, ainda falando, pegou
de Deus) ainda gritou pela na coisa com as duas mãos
“É simples” respondeu. bola que nem um desalma-
“Imagina uma coisa que não e deu-lhe um chuto forte.
do. Pela Jóia. A sua jóia. Que Mesmo forte…
existe. Pois bem… a gente sem ela – foco de todo o seu
vem e faz com que exista. carinho e atenção - a vida
Depois dizemos à coisa que de nada valia. Mas em vão.
fomos nós que fizemos isso DO DESTINO DA JÓIA
Não lhe ligaram nenhuma.
– que a criámos”
A pequena bola azul foi
Amarraram-no e foi
O outro não parecia lá aumentando gradualmente
levado na ambulância velha
muito convencido e argu- de velocidade e, em acele-
azul e branca cujo cilindro
mentou enfaticamente “É pá. ração contínua, veria passar
de luz às voltas, sem des-
Deixa-te disso que a gente veloz a Proxima Centauri.
canso, identificava gravidade
aqui é funcionário e não Pouco depois chegaria ao
do caso e urgência para o
tem de fazer existir o que sistema planetário, a esse
transporte.
não existe. Temos é que sistema que chamamos “so-
fazer existir o que existe, en- Objecto amado, a jóia, a lar” onde ocuparia posição
tendes? Passar carimbo…” bola azul da qual nunca se vogando em elipse imagi-
separava, foi colocada em nária (a terceira). Frustrados
E arrematou, matando cima do tampo da mesa, que estavam por falta de
definitivamente a conversa sem qualquer cuidado, mes- oportunidade (má sorte o
“Além disso, o que é que mo ao lado do pisa-papéis. casal ter comido a fruta) os
ganhas com isso de criar? E ali ficaria, esquecida e só, planos de criação, sobraram
Serve para alguma coisa? “ por vários dias. Até que apenas as bases, sementes
chegou o substituto. rudes, imperceptíveis. E
O INTERNAMENTO sendo assim, restava à bola
O substituto era um gajo permanecer bailando em
Iam-lhe aturando as ma- da Buraca, baixo e atarraca- torno do astro rei e esperar
durezas e suportando todas do, adepto fanático do FCPê. muito tempo - quase uma
as incongruências, manias e Sopinha de massa, metia eternidade. Porque enquanto
obsessões até que chegou o “xis” em tudo o que pega- a criação é rápida e normal-
dia em que foi o atingido o va: “Xou xim! Xim Xenhor, mente consiste em acto deci-
limite, caiu a gota de água já xtá o que me mandou. dido e espontâneo, evoluir é
que fez transbordar repen- Ah… ora essa, não xa- bem mais complexo e exige
tinamente o copo. Parece teia nada, a xente xtá cá é decididamente muito mais
que uma das criações mais pra ixo…”. O Benevides tempo.
exóticas – o pequeno casal quando queria entrar com
de “quase nudistas” - foi-se ele, perguntava-lhe sempre
à maçã raineta que o che- como é que se escrevia

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http://www.flickr.com/photos/cryptozoologist/2105976585/sizes/l/
Zulmar Lopes

Unha
Depois de algumas horas tência de uma avançada ples manejar do cortador.
tendo a insônia por compa- civilização habitando sua Mas, uma dúvida pairou
nhia, o homem adormeceu. superfície. em sua mente. E se acaso a
Sonhou haver penetrado O homem despertou jun- Terra estivesse localizada na
em seu próprio corpo, indo to com os primeiros raios unha de alguém?
tão distante a ponto de solares e iluminar o seu Percebeu que a vida era
vislumbrar a estrutura de quarto ainda intrigado com por demais efêmera. Já pas-
um átomo. Constatou que, o sonho que lhe assaltara à sara dos quarenta e pouco
a exemplo dos sistemas noite. Iniciando sua higiene havia conquistado. Decidiu
solares, o núcleo do átomo matinal, decidiu cortar as que dali por diante, toma-
assemelhava-se a uma estre- unhas das mãos. Durante o ria outras atitudes, viveria,
la cujos elétrons gravitando ato, centelha iluminou sua ainda que algumas decisões
ao redor desempenhavam mente. Caso houvesse uma tivessem um preço dema-
o papel de planetas. Besti- civilização vivendo em um siado caro a pagar. Afinal,
ficado, posou em um dos dos átomos de sua unha, ele tudo poderia terminar dian-
elétrons e verificou a exis- a destruiria com um sim- te de um cortador de unha.

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Contos

Gênesis
Pedro Faria

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Começou com um. o destino dela, e seu pneu coberto pelas mesmas verru-
Ele subiu pelo acostamen- furara. gas de seu rosto. Vazava pus
to, tropeçando nas pedras, “Por favor, senhor, você pela uretra.
o que sobrara de sua mente poderia me dar uma ajudi- Num movimento só, o es-
tentando entender o mundo nha aqui?” tranho enfiou a abominação
visível. As feridas abertas em O som da voz da mulher que um dia pode ter sido um
seu corpo haviam parado de causou um efeito singular na pênis na mulher. Ela gritou
sangrar, e verrugas purulen- mente do estranho. Algum no início, mas a visão da face
tas apareciam por seu rosto, tipo de instinto escondido do Senhor das Moscas levou
peito e braços. Ele fitou a em seu cérebro morto e embora sua sanidade depois
estrada, se estendendo em primitivo. de alguns minutos, e ela só
direção ao oeste. Seu sangue conseguiu alternar entre riso
estava estagnado em suas “Senhor? O senhor está e choro.
veias, e seus pulmões, vazios bem?”
Não foi agradável para o
e murchos como bolas de Até então, a mulher não estranho também. A cada
encher sopradas e depois tinha visto o rosto do estra- estocada, verrugas em seu
esvaziadas. nho. Quando o viu, começou membro estouravam, causan-
Ficou parado à beira da a gritar. do uma dor terrível.
estrada por horas, imóvel. A cabeça dele estava Demorou mais do que
Um cachorro se aproximou completamente coberta por ambos gostariam, e o pênis
dele, deu uma cheirada em moscas. Seus olhos quase do estranho explodiu ao
sua perna, urinou no chão e não apareciam por entre o orgasmo.
fugiu. negrume dos insetos. Seu
peito também estava cheio Ambos caíram de costas
Quando ele começou a no chão, o grito do estranho
ficar com fome, tomou a di- de moscas, porém não tanto
quanto seu rosto. As mos- mais alto que o da mulher.
reção da cidade. Seus passos
eram lentos e arrastados. O cas que voavam para longe A fome não havia sido
pus escorria por sua face, pareciam pesadas, diferentes, esquecida, e ele abriu a gar-
mas ele não tomava conhe- e eram logo substituídas por ganta da mulher, arranhando
cimento disso. Nem dos novas que chegavam. Havia e mordendo, mastigando sua
insetos que pousavam em seu um rastro de pus no chão pele. Quando caiu no chão,
rosto, e em seu peito nu, e atrás dele. saciado, o rosto da mulher
que depois voariam e pousa- A luta foi breve, e a mu- havia se tornado vermelho
riam em outras pessoas. lher perdeu. com seu próprio sangue.

Morte expressa. Terror a Antes que ela se libertasse Horas passaram, mas a
domicílio. do choque que a manteve cena manteve-se a mesma: O
estranho e a mulher, deita-
http://www.flickr.com/photos/fatboyke/2918399820/sizes/o/

A mulher o avista chegan- presa onde estava, o estranho


golpeou o lado de sua ca- dos lado a lado na beira da
do, e suspira aliviada. estrada.
beça, jogando-a no chão. Ela
Ela estava viajando para caiu chorando, o golpe tão A mudança veio com o
Ouro Verde, que ficava no forte a ponto de fissurar seu movimento na barriga da
fim dessa estrada, na dire- malar. mulher, e com a criatura que
ção oposta à caminhada do mordeu seu caminho para
estranho. Uma cidadezinha O instinto recém desco-
berto pelo estranho lhe guiou fora dele.
construída na base de uma
colina. Menos de quinhentos pelo resto de seu dever. Ele Ela estava faminta. Mas
habitantes. rasgou suas calças, e arran- tinha dois pratos de comida
cou as calças da mulher. Seu caídos bem à sua disposição.
O cu do mundo. Mas era membro estava inchado, e

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Contos

HÁRPIAS
- A DISPUTA DAS FÚRIAS

Giselle Natsu Sato As irmãs estavam reuni- Ocípite, a menina dos


das: Antigas, temidas, odia- olhos sonhadores. Frescor e
das, retratadas em mármore cheiro de promessas. Musa
precioso e telas de incalcu- sempre cercada de poetas e
lável valor. artistas. Cativante, amante
da música e das Belas Artes.
Aelo, porte e altivez. Devaneios e precipícios,
Tudo em sua figura esguia irresistíveis convites aos jo-
em perfeita sintonia com a vens Ícaros: Iludidos, impe-
moda atual. Poder e magne- tuosos e apaixonados.
tismo nos mínimos gestos.
A voz embriagante esconde Celeno, a sombria. Velu-
a manipulação em todos os do italiano e renda francesa
graus e sentidos. compõem o visual gótico

52 SAMIZDAT dezembro de 2008


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sofisticado. Botas de cou- A sina maldita era o con- nham para o terraço. De-
ro altíssimas, tatuagens e vívio eterno. Lentamente bruçadas no parapeito apre-
piercings de brilhantes.Se os traços humanos deram ciam a paisagem árida em
a noite tivesse uma rainha, lugar às verdadeiras faces tons vibrantes. Do vermelho
definitivamente seria Cele- das Harpias. O homem em fogo ardendo em fendas
no. questão era um poderoso e gargantas alimentadas
líder político e espiritual permanentemente com o
O casarão, em algum responsável por milhões de magma. A dor e o suplício
ponto perdido no Vale das mortes no Oriente. Ganan- da Terra. No mais profundo
Sombras, é o único foco de cioso, inescrupuloso, sem dos abismos o ar irrespi-
luz. Foi construído com os um pingo de caráter ou rável confundem-se com o
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4d/DVinfernoMegaeraTisifphoneAlecto_m.jpg

lamentos e lágrimas dos moral. frio gelado das almas perdi-


eternos escravos.O piso das. A constante mudança
de pedras escuras reflete Ocípite movimenta-se de temperatura, assim como
o fogo da imensa lareira. brandindo os longos braços a chuva ácida, detalhes
Um aparador exibe bebidas como se fossem asas. Vol- criados pelas criaturas tor-
exóticas e taças de cristal. teios exagerados, narrando nando o local muito além
Não fosse pela ausência de as terríveis cenas que acon- do insuportável.O ar quen-
janelas, o interior pareceria tecem naquele instante: te chega em lufadas fortes
com qualquer castelo euro- com a mesma intensidade
peu. Aelo bebe absinto. No - Bombas explodem cida- das tempestades:
momento exato, elas for- des, meninas mães choram
mam o círculo. Unidas em os filhos e homens caem - Quase confundo a
profunda reverência, ento- aos pedaços. Montanhas paisagem com o campo de
am os decretos: de corpos no deserto, ódio, batalha terreno...
sangue e medo. Desespe-
- Por Gaia e Urano, as ro nos olhos dos soldados - Algumas vezes penso
filhas de Thaumas e Elektra inexperientes... que eles vão nos superar na
evocam a Tradição e os destruição da grande Obra.
antigos sábios... - Pare com isso, poupe-
nos de seu teatro. Já par- - Em poucas horas, Sahan
O grande salão exibe tê- tilhamos tudo. Sabemos terminará o ciclo e uma de
nues sombras esgueirando- que o caos é engolido, com nós fará as honras.
se pelos cantos.Ocultas na sofreguidão pelas trevas.
escuridão, antigas formas Disputado, incentivado, A outra irmã não pres-
murmuram mantras em gerido como um filho mal tou atenção, tinha o cos-
linguagens milenares: parido. tume de ser imparcial em
todas as decisões:
- Sim, podemos iniciar. - Tamanha sordidez su-
Hoje decidiremos quem pera os tempos mais remo- - Ocípite, não vai opinar,
conduzirá a alma negra que tos quando a bestialidade e como sempre.
todas desejamos. a ignorância se confundiam.
Precisamos nos apressar... - Aelo sempre quer arre-
As três Fúrias sem a capa banhar o máximo. Cente-
da polidez mediam forças. Aelo e as irmãs cami- nas de milhares de mortes

www.samizdat-pt.blogspot.com 53
diárias. Ainda assim, não - Hades! Íamos pedir sua Delicadamente aspirou,
está satisfeita. ajuda neste impasse. sussurrando:

- Sim, sou gananciosa. O - Acredito. A resposta - Linda Celeno! Minha


que nos rendeu um aumen- é não. Regras claras, ele favorita. Vou conceder esta
to considerável de almas. falhou e morrerá na forca. honra, em nome da nossa
Viver na América, tem Aelo, isto é uma ordem, velha amizade. Estarei vi-
diversas vantagens. Devo as eleições não tardam. A giando, naturalmente...
lembrar que a escolha dos história terá o primeiro
continentes foi uma decisão presidente negro. Isto sim. É - Perdi sua confiança,
conjunta? importante! meu senhor?

- Mas não estou arre- - Senhor, Sahan é uma - Nunca a teve! Admira-
pendida, incentivar a eterna lenda. O mistério que incita da com meu terno Armani?
guerra Santa é um prazer. os delírios terroristas. Car- Sou um empresário e vou
As disputas, retaliações, em- rega fardos de inocentes... a uma reunião importante.
bates que nunca chegarão a Em Roma. Ciao meninas.
lugar algum. - Mentiras. Não passa de
um ególatra inexpressivo. As Fúrias emitiram um
- Ocípite! Fora o presi- Esta disputa, é um capri- rosnado assustador. Celeno,
dente que deseja governar o cho.... Caso encerrado. saboreando o momento de
mundo, o que tem feito? triunfo, emitia risadas agu-
- Como queira Mestre, das, de puro escárnio.Não
Aelo, tenta ganhar tempo: acataremos suas ordens. se despediram. Cada qual
Aelo, a eterna diplomata, tomou seu rumo. Fortes,
- Focada no Brasil. Cada assentiu em nome de todas. famintas, personificam os
dia pior e mais perdido. Arautos da Discórdia: Misé-
Guerras urbanas, tráfico - Ocípite, minha garoti- ria, Fome, Medo, Doenças...
e miséria. Além do mais, nha deliciosa, concentre-se.
apontam o país como o O ouro negro é o pomo da Adaptadas, burlam o
grande celeiro do mundo. disputa. Incite as lutas pelas tempo e sopram o vento do
No futuro, disputarão cada terras, desfaça acordos... caos. Nos dias atuais, al-
pedacinho. O povo deixará Intrigas ainda funcionam guém perceberia a presença
de ser tão pacífico. nos dias atuais. Os cartéis das Lendas? Tantos seres
estão indo muito bem. O humanos exibem compor-
Um tremor suave anun- vício cada dia mais forte e tamento semelhante.Estão
cia a chegada do Senhor incontrolável. em todos lugares e decidem
dos submundos. As fúrias nossos destinos. Neste ins-
agitam-se em mesuras e Caminhou até a figura tante, podem estar ao nosso
boas-vindas: altiva e visivelmente contra- lado. E nem nos damos con-
riada. Tocou a face pálida, ta... Simplesmente, seguimos
- Minhas queridas, estão desfez o penteado soltan- adiante e obedecemos.
aprontando novamente? do as fivelas de ouro. Os
cachos caíram em ondas
O cheiro forte de enxo- perfumadas.
fre, marca registrada...

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54
ficina

A Oficina Editora é uma utopia, um não-


lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como umas
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão c­ ultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
http://oficinaeditora.org/ a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

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Contos

Os deliciosos biscoitos
de Oma Guerta
Maristela S. Deves

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Mariazinha quase bateu vam a fechar praticamente - Zwei glass Mel... Ein
palmas quando Oma Guer- cada centímetro da pare- glass Zucker... Drei…
ta entrou na sala carregan- de. A única exceção era o
do a bandeja de biscoitos. canto onde estava o relógio, Olhos arregalados, Ma-
Esse era o melhor momento o velho relógio de pêndulo riazinha deixou escapar
das visitas semanais à casa que tiquetaqueava as horas uma exclamação. A avó
da avó: a hora do lanche. com uma solenidade que virou-se, enquanto Kerb lhe
Tudo o que a Oma fazia fazia jus à sua idade... lançava um olhar de quem
era delicioso, cucas, doces, estava chateado pela inter-
bolos, biscoitos dos mais Pouco depois, termina- rupção.
variados tipos. Gulosa, pe- va a segunda fatia de cuca
gou logo três dos biscoitos, recheada quando o pêndulo - Oma... Vovó, ele... ele
lambuzando-se toda de con- bateu pausadamente. Bléin. fala! _ conseguiu dizer.
feitos coloridos. Bléin. Bléin. Bléin. Quatro
horas. Logo, logo teria de - É claro que eu falo! -
- Kind, Kind - riu a avó ir para casa. Mas, antes, indignou-se o gato, largando
com seu forte sotaque ale- ia ver se a avó já tinha o livro no chão para po-
mão, acariciando a cabeça pronto o pote de bolo que der colocar as patinhas na
da netinha de nove anos sempre levava para comer cintura. - E por que não iria
enquanto ela atacava a ban- no caminho... Lamben- falar?
deja outra vez. do os farelos que tinham
ficado nos dedos para não Sorrindo, Oma Guerta
Cabelos grisalhos presos desperdiçar nada daquela meteu-se na conversa.
num coque, olhos azuis bri- delícia, levantou-se e, quase
lhantes por trás das lentes - Kinder, Kinder... Maria,
tão solene quanto o velho
dos óculos de aros redon- Kerb, não quero discussões
relógio, encaminhou-se para
dos, Oma Guerta ajeitou aqui...
a cozinha.
o xale de crochê sobre os
Ainda pensando que ti-
ombros antes de retornar à Abriu a porta devagarzi-
nha adormecido no sofá da
cozinha para cuidar de ou- nho, sem fazer ruído. A avó,
sala e que estava sonhando,
tra fornada de guloseimas. como ela esperava, estava
Mariazinha beliscou-se. Ai.
parada em frente ao bal-
Na sala, enquanto aguar- Doeu... Mas então...
cão, uma bacia nas mãos,
dava com alegria antecipa- misturando os ingredientes
http://www.flickr.com/photos/pinksherbet/2211624023/sizes/l/

- Isso é de verdade, mes-


da o bolo ou doce que viria para mais uma fornada de
mo?
a seguir, Mariazinha olhou biscoitos. O que ela não es-
ao redor para distrair-se perava ver era Kerb, o gato
Antes que Kerb res-
enquanto esperava. A pare- de longos pelos brancos da
pondesse outra vez, a avó
de cheia de quadros sempre Oma, sentado sobre as duas
tomou a menina no colo.
a encantara, e ficava ima- patas traseiras e recitando
ginando como teria sido calmamente em alemão os - Mein Kind, Komm
bom conhecer os bisavós ingredientes que estavam hier... Senta aqui no meu
e tataravós que a olhavam no livro de receitas que colo um pouquinho, a Oma
dos retratos. Ao lado deles, ele segurava com as outras vai te contar um segredo...
santos, muitos santos, ajuda- duas patinhas.

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E, na meia hora seguinte importante. de contentamento. A avó
- enquanto um impaciente chegou ao seu lado e, pe-
Kerb andava de um lado Os olhos de Mariazinha gando-a outra vez no colo,
para o outro, sentindo-se arregalaram-se ainda mais. disse:
ignorado -, a avó Guerta
revelou à neta o porquê de - Palavras mágicas?! - Mädchen, agora que
seus doces serem sempre você já sabe como a Oma
tão deliciosos. Tudo come- - Sim, palavras mágicas faz tanta coisa boa, eu
çava com o livro de receitas - acrescentou o gato, outra tenho uma pergunta muito
mágico, trazido por suas vez impaciente. Será que importante para lhe fazer.
antepassadas quando elas aquela menina não sabia Você quer aprender a fazer
imigraram para o Brasil. nada de nada? - As palavras esses biscoitos mágicos,
Passado sempre de mãe mágicas que vão fazer os para ser a seguidora da
para filha, ou de avó para biscoitos, as cucas e o que tradição da família?
neta, ele trazia instruções mais sua avó fizer serem os
mágicas para o preparo de mais deliciosos já vistos. Agora, sim, Mariazinha
qualquer prato, fazendo-os tinha certeza de que esta-
A pequena olhou do gato va sonhando. Ela, fazendo
mais saborosos do que os
para a avó, como que que- aqueles biscoitos? Como
feitos pelos mais renomados
rendo confirmar a informa- poderia...?
mestre-cucas.
ção. Oma Guerta meneou a
- Mas aqui... mas aqui cabeça. - E você vai ter o seu
não tem nada escrito - es- próprio gatinho - comple-
- E quais são as palavras tou a avó.
pantou-se a menina, folhe-
mágicas? - quis saber Ma-
ando o caderninho que a
riazinha. Levantando-se e levando
avó pegara do chão e deixa-
ra sobre a mesa. a menina pela mão, Oma
Condescendente, Kerb Guerta voltou com ela para
dirigiu-se até o forno de a sala. Ali, dirigiu-se para
- É aí que entra o Kerb...
barro, ergueu-se outra vez o velho relógio de pêndulo,
- disse, chamando com um
nas patinhas traseiras e, sob o qual ficavam duas
gesto o gato, que alegrou-se
com uma colher de ma- grandes portas de madei-
ao ser mais uma vez lem-
deira, bateu duas vezes na ra que Mariazinha nunca
brado.
portinha: tinha visto serem abertas.
- Eu, como meu pai e Pois a avó abriu-as e entrou,
- Wunderbaressen geges- chamando Kerb e a neta
meu avô e o pai e o avô do
sen! - exclamou, também para acompanhá-la. Era
meu avô antes de mim, sou
duas vezes. Depois, com um outra surpresa. Embora pa-
o único que consegue ver
floreio, chamou Mariazinha recesse de fora um pequeno
a escrita invisível que tem
para abrir o forno. armário, lá dentro o espaço
no livro mágico. Tenho a
missão de ler essas receitas era gigantesco. Prateleiras
A menina abriu, cada
para minha ama, e, tam- e mais prateleiras de in-
vez mais maravilhada, e o
bém, de dizer as palavras gredientes, potes, cestas, até
aroma dos biscoitos recém-
que completam a mágica um jardinzinho tinha num
assados encheu a cozinha.
- concluiu o felino, todo canto. E uma casinha...
Sem se conter, bateu palmas

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58
- Kätzie, venha cá... - cha- gatinho, e sonhou com ele
mou Kerb, parando à porta recitando as receitas ao seu Henry Alfred Bugalho
A
GUI
Nova York
da casinha, e um mara- lado...
vilhoso e peludo gatinho
apareceu. Acordou com as lambi-
das de Kätzie.
- O que foi, papai? - per- para Mãos-de-VAca
guntou a bolinha de pelos. - Bom dia, ama - disse o
gatinho sorridente.
- Esta é sua ama, Maria-
O Guia do Viajante Inteligente
zinha. A partir de agora, ela Todas as hesitações de www.maosdevaca.com
vai vir aqui todo dia para lado, Mariazinha pulou o
cozinhar conosco, e você café da manhã. Com Kätzie
vai ajudá-la - declarou o nos braços, correu para a
gato, solene. casa da avó. Chegando no
jardim, estacou e olhou a
Kätzie abriu um sorriso casa. Parecia diferente hoje,
tímido para Mariazinha, embora ao mesmo tempo
que, encantada, pegou-o também fosse a mesma de
no colo. Precisava pensar: sempre. Toda vez que entra-
assumir a cozinha da avó va ali gostava de imaginar
era uma grande responsabi- que estava entrando em um
lidade, mas aquele gatinho lugar especial, um mundo
era tão lindo... mágico. Agora, ia entrar
na casa sabendo que isso
- Pense até amanhã, era verdade, e que a partir
mein Kind - disse a avó, de agora ela também faria
adivinhando-lhe as dúvi- parte daquela mágica. Bem
das. - Volte de manhã, para que a mãe sempre dizia que
me dizer o que decidiu. Por os mais velhos têm muito a
enquanto, leve Kätzie com ensinar aos mais jovens...
você.

No caminho para casa e


durante toda a noite Maria-
zinha não conseguia pensar
noutra coisa que na pro- (uma homenagem à Vovó
posta da avó. Adorava seus Leduína, à tia Guerta, às
biscoitos e suas cucas, e outras tias e à minha mãe,
pensar que um dia poderia com seus biscoitos mais do
fazê-los... mas tinha medo que maravilhosos... sauda-
de acordar no outro dia e des deles neste Natal...)
ver que estivera certa, que
tudo era mesmo um sonho.
Adormeceu abraçada no

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Autor Convidado

A Escada
Lucas Riello de Almeida

Lucas Riello de Almeida é paulista Já velho, subia as esca- A cidade, as pessoas,


da cidade de Cotia. Arrisca os das. Por que vim? Se nada essa fumaça pegajosa, o
sonhos na literatura e na música,
com todas as belezas que sucitam
muda. Tudo o que é para tumulto que cerca a tudo.
tais artes, sua paixão. Vinte anos permanecer, cresce; como Há muito eu não ia à
lendo e pensando muito. Ganhou o que é para crescer, per- Igreja, o lugar mais limpo
miopia, dor de cabeça, certas manece. O resto cai. Tudo e silencioso que conheci.
angústias e alguns amores. cai. Essa força puxando a A primeira vez que entrei
tudo para o nada. Os que em uma catedral, eu tinha
ainda respiram, prolongam a idade de uma criança
e se lembram. É a vida inocente. Desejei nunca
dissimulando-lhes a ver- mais sair. Os detalhes do
dade. E há tanto que não mármore, suportando
pairo por estes lugares... grandes esculturas de he-
Por que vim? róis, translucidados pelos

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60
tons que os vitrais filtra- o sol tocava-lhes a face, o metade, igualmente distan-
vam do sol, sob a melodia mundo ainda estava ali, e te da saída e do púlpito,
barroca que uma velha se- respiravam, e dissipavam- com seu pedestal de água
nhora dedilhava ao órgão, se, reencontrando-se, vivos, benta, numa hora dessas
parecendo celebrar tudo o esquecendo, esquecidos, já vazio de aliviar as an-
que ali havia. A cúpula de tendo esperanças, desejan- gústias dos necessitados.
vidro irradiava toda mi- do, mais incertos do que Iluminou-se a igreja por
nha alegria e surpresa ao está por vir, quase felizes, dentro, com suas luzes
perceber a grande con- fixando-se no presente, amareladas que são acesas
vergência de toda a estru- pois o futuro pertence a pela chuva que começa lá
tura para o ponto único, deus, e deus pertence ao fora a bater nas vidraças,
o homem mais triste de homem. limpando a poeira dos
todos os representados, ao vitrais desbotados, escure-
fundo, contrastado, peque- E a quem eu pertenço? cendo a tudo. O barulho
no, soturno, mudo, vazio, Maldita escada que não das gotas sobrepõe-se ao
completo, e muito distante. termina nunca! Estou há cochilar de uma senhora
Então eu cresci e li! Eu li, e tanto tempo nestes degraus que murmura uma reza
li, e li, e li... E também os que talvez eu tenha dormi- tranqüila, perdida no
deuses caem. Fica no lugar do no caminho e isto seja cansaço de sua vida. O
http://www.flickr.com/photos/rvibek/3129683488/sizes/l/

um vazio, que por sinal é só um sonho. Eu poderia presente é esse abismo de


a única coisa que não vai sonhar com o amor que tempo que se me abre das
embora. O vazio de não se um dia tive. Mas do outro paredes e do chão, mas
crer em nada e a saudade lado não havia ninguém, sobretudo de minha alma.
do que quer que seja. o ser amado. Só uma Como eu abraçara tudo
idéia que criei, na minha aquilo no meu cálido co-
Bêbados encolhiam-se juventude, para satisfazer- ração! A vida então fazia-
nos degraus do lance de me as ilusões românticas. me total sentido: desde o
escadas, frente às duas Eu não era romântico e menor vestígio de vida, às
grandes portas abertas nem sabia o que era o grandes obras da natureza,
e convidativas. Subi, de amor. Quando dei conta, soprando-me os ares dos
costas para o sol, às nove ela tinha partido, como a sentimentos variados que
da manhã, algumas nuvens morte, silenciosa, inespera- aspiram no peito humano:
se formando no alto, sozi- da, violenta, para sempre. amor, solidão, a vontade de
nho. Uma missa dedicada Mas como os que ainda nunca parar de viver, de
aos mortos acabara há vivem, procurei-a e fiz de conhecer a tudo, a humil-
pouco e os vultos de luto tudo para que me notas- dade, a insaciabilidade, a
colidiam contra minha se de onde estivesse, de- harmonia com o todo, até
vaguidão de entrar ou não, monstrando que a amava além da morte, até deus e
em direção à saída. Havia mais que tudo. Restou-me depois dele. Então que algo
uma dúvida constrangi- esse sonho de sonhá-la, a me arrancou a cortina que
da no olhar pesaroso de verdadeira, aqui, comigo, tapava a visão de minha
algumas dessas sombras, no que restou do mundo alma. Ou pôs-lhe uma ou-
como se a hora final fosse, desde então. tra venda, vergando o resto
naquele instante, cair sobre de inocência ao nada.
todos os homens. Mas logo Entrei. Sentei-me à Como saber? Como saber

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de que lado ficou meu quem deposito meu ampa- momentos. Cada segundo
coração? Como enxergar ro ou alegria, tristeza ou que vivo lá é um reviver
a vida com os olhos da solicitude, frente a qual- das alegrias e tristezas que
Justiça, se desconfio tam- quer pergunta que venha passamos. Nem todos ter-
bém da precisão de minha de fora, esqueço meus minam tão próximos. Estes
balança, ante a dúvida infortúnios e sonhos. E por laços se afrouxam muito
do que sei contra as cer- isso talvez nunca chegue a facilmente quando o con-
tezas que me derramam viver, efetivamente. teúdo envolvido é pouco.
os outros? Restou-me o E há também a solidão.
enigma sempre presente a O padre me avistava, ao Muitos destes fantasmas
devorar-me a paz. Passa o longe, e eu, parado, des- que habitam minha mo-
tempo e me afundo mais protegido, encarava sua rada me odiaram, afinal. E
neste profundo poço que é força, sustentada pela cruz quando me lembro disto,
a vida. que o prendia à Terra e peço perdão a eles, olhan-
aos Céus, sempre ali, ao do fixamente o nada à
Levantei-me para diri- fundo, como que resso- minha frente, paralisado,
gir-me ao púlpito. Qual- ando na memória destas absorto, perdido, por um
quer padre bastaria agora. paredes o alerta de que fio de lembrança, o rosto
Eu buscava somente uma sempre haverá, no final, de alguém querido que se
demonstração de fé, uma um julgamento. De repen- foi, e que está à beira de
prova, a mim, testemunho te, senti-me em casa, ao meus olhos que se fecham.
e senhor de tantas dúvi- notar uma goteira dese- E na escuridão eu posso
das. Avancei por entre a nhando uma poça no ta- ouvir o sussurro de todas
tempestade que despenca- pete cor de vinho no qual as suas vozes ecoando no
va sobre tudo. Cada passo eu caminhava. É o único vazio de cá dentro, espe-
pesava minhas decisões lugar onde talvez algo me rando, ansioso, a palavra
passadas, meus próprios pertença, mesmo que seja de boas vindas. Sempre, lá
julgamentos, consideran- uma goteira que martele estão eles, dentro de cada
do que a moral tenha se minha cabeça nas noites detalhe, no ar, nas paredes,
tornado um assunto es- chuvosas e terrenas. na ausência, escutando-me,
quecido a todos aqueles lembrando-me.
com quem eu convivia Meu apartamento guar-
e, talvez, estivesse read- da a memória de minha Uma gota de água me
quirindo a cor antiga. Na vida. Manchas, fotos, desperta. Não reconheço

http://www.flickr.com/photos/victornuno/429759418/sizes/o/
dúvida, a moral é viver. quadros, espelhos, livros, mais neste lugar as ale-
Assim passamos. Prossigo. cordas de violão, colheres grias e motivações que me
Eu receava ser expulso tortas, papel amassado, faziam vir aqui. Onde eu
assim que começasse a cartas, idéias, sensações. estava com a cabeça? Cai
falar. Mas o que eu falaria? Entre tudo, os amigos e a um fio de luz da cúpula
Tantas coisas, por tantos família. Procurei guardar de vidro acima de mim, na
anos, atravessaram-me, e a essência deles comigo. chuva que cessa, clarean-
agora estou completamen- Lá está o registro históri- do-me a vista. Viro-me em
te vazio. Conheço todos os co de nossa vida. Se boa, direção à porta. Lá fora,
meus desejos e pecados. se má, é digna de eu me talvez, eu esteja a salvo.
Mas frente a alguém em lembrar dos maus e bons Saio...

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Autor Convidado

Poemetos
E se cantarem a primavera Renato Wegner de Souza
Após um longo outono
Eu
Já estarei morto.
Melhor é cantar
de novo
e de novo.
Homem não, chora
Porque primavera
Não vem depois de outono.
Hoje vi um homem chorando no banheiro
Me disse que não, argumentou
Primeiro era cisco
Depois que vinha gripado.
Cuspiu na pia e foi embora.
Isso foi bem engraçado!
Homem também chora, mas nunca confessa.
Eu por exemplo,
Não choro.

No meio do ambiente tinha um poeta

Desperdiçar
o
papel
escrevendo
uma
palavra Renato Wegner, 19, é estudante
por de Cinema na UFPel (com o curso
trancado), mora atualmente em
linha Pelotas/RS. Nunca publicou nada.
é Seus poemas são todos frutos de
crime uma alegria e um otimismo mas-
caro estonteante.
ambiental?

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Tradução

As Cinco Dádivas
da Vida Mark Twain
tradução: Henry Alfred Bugalho

http://www.flickr.com/photos/crowolf/488623967/sizes/l/
— Não há necessidade Capítulo II
Capítulo I de refletir — e escolheu A fada apareceu e disse:
Prazer.
Na alvorada da vida, — Restam quatro pre-
uma bondosa fada apare- Ele foi para o mundo sentes. Escolha uma vez
ceu com sua cesta e disse: e buscou os prazeres que mais; e, ó, lembre-se: o
deleitam os jovens. Mas tempo voa, e apenas um
— Aqui há presentes. cada um deles era fugaz e
Pegue um, deixe os outros. deles é precioso.
desapontador, vão e vazio;
E seja cuidadoso, escolha e cada um, ao partir, zom- O homem demorou-se
sabiamente; ó, escolha sa- bou dele. No fim, ele disse: a refletir, então escolheu
biamente! pois apenas um Amor; e não reparou nas
deles tem valor. — Desperdicei estes lágrimas que brotaram dos
anos. Se eu pudesse esco- olhos da fada.
Os cinco presentes lher novamente, escolheria
eram: Fama, Amor, Rique- mais sabiamente.
zas, Prazer, Morte. O jo- Após muitos e muitos
vem disse, ávido: anos, o homem estava sen-

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64
tado ao lado dum caixão, Aponta para a lama logo duro e resmungando.
numa casa vazia. Então ele em seu apogeu, para a — Malditos todos os
soloquiava, dizendo: desgraça e compaixão em presentes do mundo, pois
— Uma por uma, elas seu declínio. são ardis e mentiras dou-
se foram e me deixaram; radas! — e os insultou, a
e agora ela, a mais queri- Capítulo IV cada um deles — Eles não
da e derradeira, jaz aqui. eram presentes, mas me-
Desolação após desolação — Escolha uma vez mais ros empréstimos. Prazer,
passou por mim; para — era a voz da fada — res- Amor, Fama, Riquezas: Eles
cada hora de alegria que tam dois presentes. E não eram disfarces temporá-
o Amor, o mercador trai- se desespere. No começo, rios para as realidades
çoeiro, me vendeu, paguei havia apenas um que era duradouras — Dor, Pesar,
mil horas de pesar. Do precioso, e ele ainda está Vergonha, Pobreza. O que
fundo do meu coração, eu aqui. a fada disse era verdade;
o amaldiçôo. — Riqueza; pois é po- em todo seu estoque havia
der! Quão cego fui! — dis- apenas um presente que
se o homem — agora, por era precioso, apenas um
Capítulo III fim, a vida merecerá ser que não era desprezível.
— Escolha novamente vivida. Gastarei, desper- Quão pobres, baratos e
— era a fada a falar — os diçarei, resplandecerei. imundos sei agora que
anos lhe deram sabedoria, Aqueles que zombam de eles são comparados com
certamente. Restam três mim e me desprezam aquele inestimável, aquele
presentes. Apenas um pos- rastejarão na imundície caro, doce e gentil, que en-
sui valor; lembre-se disto e diante de mim, e eu ali- charca num sono sem so-
escolha com cautela. mentarei meu coração fa- nhos e duradouro as dores
O homem refletiu por minto com a inveja deles. que perseguem o corpo,
muito tempo, então esco- Obterei todos os requintes, e as vergonhas e pesares
lheu Fama; e a fada, suspi- todas as alegrias, todos os que consomem a mente e
rando, partiu. encantamentos do espírito, o coração. Traga-o! Estou
todos os contentamentos exausto, descansarei.
Anos se passaram e ela do corpo que agradam um
retornou, postando-se atrás homem. Comprarei, com-
do homem onde ele se prarei, comprarei! Defe- Capítulo V
sentava solitário, refletindo, rência, respeito, estima, A fada veio, trazendo
diante do crepúsculo. E ela adoração — todas as espú- novamente quatro dos
sabia qual era seu pensa- rias graças da vida que o presentes, mas faltava a
mento: mercado do mundo trivial Morte. Ela disse:
“Meu nome percorreu o pode prover. Perdi muito — Eu a dei para a que-
mundo e todas as línguas tempo, e, até agora, escolhi ridinha duma mãe, para
o exaltaram, e isto me mal, mas deixe estar; eu uma pequena criança. Era
contentou por um tem- era ignorante e considerei ignorante, mas confiou em
po. Mas por quão pouco o melhor aquilo que pare- mim, pedindo-me que es-
tempo! Então veio a inveja; cia sê-lo. colhesse por ela. Você não
depois detração; depois ca- Três rápidos anos se es- me pediu para escolher.
lúnia; depois ódio; depois vaíram e chegou o dia em
perseguição. Então ridicu- — Ó, pobre de mim! O
que o homem se sentava que restou para mim?
larização, que é o começo num sotão imundo; e ele
do fim. E, por fim, veio estava esquelético, lívido — Aquilo que nem você
piedade, que é o funeral e com profundas olhei- merecia: o impiedoso in-
da fama. Ó, a amargura ras, vestido em trapos; ele sulto da Velhice.
e a miséria do renome! estava ruminando um pão

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Tradução

A História do
Inválido
Mark Twain
tradução: Henry Alfred Bugalho

66 SAMIZDAT dezembro de 2008


66
Aparento ter sessenta de pinho branco tal qual me ger, maturado e com qua-
anos e ser casado, mas estes havia sido descrita; preguei lidade, num dos cantos do
efeitos devem-se à minha o cartão nela com algumas meu esquife — quer dizer,
condição e sofrimentos, pois tachinhas, vi-a sendo posta da minha caixa de armas.
sou solteiro, e tenho apenas com segurança a bordo no Ou melhor, agora eu sei que
quarenta e um anos. Será carro expresso e, então, cor- era um queijo Limburger,
difícil para você acreditar ri para o refeitório para me mas àquela época, eu nunca
que eu, que agora não passo prover com um sanduíche havia visto o artigo na vida
duma sombra, era, há pou- e alguns charutos. Quando e era, é claro, totalmente
co menos de dois anos, um voltei, algum tempo depois, ignorante quanto suas carac-
homem saudável e vigoroso, ali fora estava o meu es- terísticas. Bem, avançamos
um homem de ferro, um quife, aparentemente, e um através da noite selvagem,
verdadeiro atleta! — mesmo jovenzinho examinando-o, a ferina nevasca continuava
assim, esta é a verdade nua com um cartão em suas enfurecida, bateu-me uma
e crua. Mas o mais estranho mãos, algumas tachinhas nefasta melancolia, meu pei-
ainda é o modo como perdi e um martelo! Eu estava to se apertou, se apertou, se
minha saúde. Eu a perdi embasbacado e confuso. Ele apertou! O velho carregador
tentando ajudar a tomar começou a pregar seu car- teceu um ou dois súbitos
conta duma caixa de armas tão, então apressei-me para comentários sobre a nevasca
numa viagem ferroviária de o carro expresso, num esta- e o clima ártico, bateu com
duzentas milhas, numa noite do de mente alterado, para força as portas corrediças,
de inverno. Esta é a verdade exigir uma explicação. Mas aferrolhou-as, cerrou sua
de fato, e eu a contarei pra que nada — ali estava mi- janela e, andou dum lado
você. nha caixa, tudo em ordem, pro outro, aqui, ali e aco-
Sou de Cleveland, Ohio. no carro expresso; ela não lá, ajeitou as coisas, toda a
Numa noite de inverno, havia sido mexida. (O fato hora cantarolando contente
dois anos atrás, cheguei em é que, sem eu suspeitar, um “Sweet By and By”, em baixo
casa logo após anoitecer, em equívoco prodigioso havia tom, murmurando. Depois
meio a uma violenta nevas- sido feito. Eu estava carre- dum tempo, eu comecei a
ca, e a primeira coisa que gando uma caixa de armas notar um odor quase malig-
ouvi quando entrei em casa que o rapazinho havia trazi- no e penetrante rompendo o
foi que meu mais caro ami- do à estação para remetê-la ar gélido. Isto deprimiu meu
go de infância e colega de a uma empresa de rifles em espírito ainda mais, porque
escola, John B. Hackett, havia Peoria, Illinois, e ele havia eu o atribui, é claro, a meu
morrido no dia anterior, e ficado com meu cadáver!). pobre finado amigo. Havia
que seu último pedido havia Foi então que o condutor algo infinitamente entriste-
sido o desejo que eu levas- berrou “todos a bordo” e eu cedor em pensar que eu me
se seus restos mortais até pulei para dentro do car- lembraria dele deste estú-
seu pobre velho pai e mãe ro expresso e arranjei um pido modo patético, de tal
http://www.flickr.com/photos/freefoto/2096597652/sizes/o/

em Wisconsin. Eu estava assento confortável num maneira que foi difícil para
muito estupefato e mortifi- amontoado de baldes. O conter as lágrimas. Além
cado, mas não havia tempo carregador estava ali, forte disto, eu me inquietava por
a perder com emoções; eu na lida — um homem co- conta do velho carrega-
deveria partir imediatamen- mum, na casa dos cinqüenta dor, temia que ele pudesse
te. Apanhei o cartão, onde anos, com uma expressão perceber o cheiro. Contudo,
estava escrito “Diácono Levi simples, honesta e bondosa, ele prosseguiu cantarolando
Hackett, Bethlehem, Wiscon- e de modos leves e com um tranqüilamente, e não deu
sin”, e me apressei através vigor prático. Assim que o nenhum indício; pelo que
da uivante nevasca até a es- trem se moveu, um estra- fiquei agradecido. Agrade-
tação de trem. Ao chegar lá, nho saltou para dentro do cido, sim, mas ainda assim
encontrei a comprida caixa vagão e deixou um pacote desconfortável; e logo co-
do peculiar queijo Limbur- mecei a me sentir mais e

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mais desconfortável, pois a Ele se engasgou uma ou — Bem, bem, todos nós
cada minuto que se passava duas vezes, então se moveu temos que ir, não tem como
o odor se adensava, e se tor- em direção ao esqu— a cai- fugir disto. O homem que
nou mais e mais repugnante xa de armas, estacou diante nasceu de mulher tem os
e difícil de suportar. Após da parte do queijo Limbur- dias contados, como dizem
um tempo, tendo ajeitado as ger por um momento, então as Escrituras. Sim, você pode
coisas a seu contento, o car- ele voltou e se sentou perto olhar pra isto do jeito que
regador apanhou um pouco de mim, aparentando estar quiser, é tremendamente so-
de lenha e fez um fogo tre- bastante impressionado. lene e curioso: Não tem nin-
mendo em sua fornalha. Após uma pausa contem- guém que vai escapar; todos
Isto me inquietou mais plativa, ele disse, indicando vão embora — todo mundo,
do que posso descrever, com um gesto a caixa: como se diz. Um dia, você
pois não pude evitar de — Amigo d’ocê? está vigoroso e forte — nes-
sentir que isto era um erro. te ponto, ele se pôs de pé e
— Sim — eu disse, com quebrou uma janela e esti-
Eu estava certo de que o um suspiro.
efeito seria deletério sobre cou o nariz para fora dela
meu pobre finado amigo. — ‘Tá já bem avançado, por um segundo ou dois,
Thompson — o nome do né! então se sentou de novo, en-
carregador era Thompson, Nada além disto foi dito quanto eu me esforcei para
como descobri no decorrer por talvez um par de minu- lançar meu nariz para o
da noite — agora vagava por tos, cada um ocupado com mesmo lugar, e continuamos
seu vagão, fechando quais- seus próprios pensamen- fazendo isto vez ou outra
quer eventuais fendas que tos; então Thompson disse, — e no dia seguinte, ele foi
ele pudesse encontrar, lem- numa voz baixa e reverente: ceifado como a grama, e os
brando que não fazia dife- lugares que o conheciam
— Às vezes, não se tem não o conhecem mais, como
rença que tipo de noite esta- certeza se eles realmente
va lá fora, ele pensava estar dizem as Escrituras. É verda-
partiram ou não — parecem de, é tremendamente solene
nos deixando confortáveis, ter partido, você sabe — a
de qualquer maneira. Eu não e curioso; mas todos temos
quentura do corpo, juntas de ir, um dia ou outro; não
disse nada, mas acreditava moles — e assim por diante,
que ele não estava fazendo tem como fugir.
e mesmo que você ache que
uma boa escolha. Enquanto eles se foram, você não tem Houve outra grande pau-
isto, ele cantarolava para certeza. Eu tive casos em sa; então:
si como antes; e enquanto meu vagão. É completamen- — Do que ele morreu?
isto, também, a fornalha te horrível, porque você não
estava ficando mais e mais Eu disse que não sabia.
sabe se a qualquer minuto
quente, e o ambiente mais e eles não vão se levantar e — Há quanto tempo ele
mais sufocante. Eu comecei olhar pra você! morreu?
a empalidecer e a nausear, Pareceu-me sensato au-
mas sofria em silêncio e não Então, após uma pausa,
e erguendo um pouco seu mentar os fatos para encai-
disse nada. xá-los nas probabilidades;
cotovelo em direção à caixa:
Logo notei que o “Sweet então, eu disse:
By and By” gradualmente se — Mas ele não ‘tá em
nenhum transe! Não, senhor, — Dois ou três dias.
esmoreceu; em seguida, ces-
sou totalmente e que havia ponho minha mão no fogo! Mas isto não surtiu efeito,
uma imobilidade ominosa. Nós nos sentamos por pois Thompson recebeu-o
Após alguns momentos, algum tempo, em silêncio com um olhar ultrajado e,
Thomson disse: meditativo, ouvindo o vento sem rodeios, disse:
“Puxa! Eu acho que não e o ronco do trem; então — Dois ou três anos, que
foi canela que joguei ali na Thompson disse, com uma você quer dizer.
fornalha! boa dose de sentimento: Então ele prosseguiu, pla-

68 SAMIZDAT dezembro de 2008


68
cidamente ignorando meu tâncias, porque isto havia coronel até para o fim do
comentário, e deu vazão a me parecido mais como um vagão?— uns cinco metros,
suas opiniões sobre a insen- elogio. talvez. Ele não teria tanta
satez em retardar demais Era óbvio que algo preci- influência, então, não acha?
sepultamentos. Ele se apro- sava ser feito logo. Eu sugeri Eu disse que este era um
ximou languidamente da charutos. Thompson pensou bom plano. Então nós toma-
caixa, parou por um mo- que esta era uma boa idéia. mos um belo fôlego de ar
mento, então retornou com Ele disse: fresco na janela quebrada,
um abrupto trote e pagou calculando segurá-lo até
uma visita à janela quebra- — Provavelmente isto vai
amenizar um pouco. perfazermos a tarefa; então
da, comentando: fomos até lá, inclinamo-nos
— Teria sido uma baita Nós tragamos com expec- sobre aquele queijo mortí-
duma visão melhor, em to- tativa por algum tempo, e fero e agarramos a caixa.
dos os aspectos, se tivessem tentamos pra valer imaginar Thompson indicou com a
despachado ele no verão que as coisas haviam melho- cabeça “tudo pronto”, e nós
passado. rado. Mas foi inútil. Após nos projetamos, com toda
muito tempo, e sem qual- nossa força; mas Thompson
Thompson se sentou e quer combinação, ambos
escondeu o rosto em seu escorregou e tombou com
os charutos silenciosamente o nariz no queijo e perdeu
lenço de seda vermelha, e caíram de nossos dedos
começou a balançar lenta- o fôlego. Ele tapou a boa e
inertes, simultaneamente. se engasgou, cambaleou e
mente o corpo pra frente e Thompson disse, suspirando:
pra trás como se estivesse se abriu uma fresta na porta,
esforçando o máximo para — Não, capitão, isto não suplicando por ar e disse,
agüentar o insuportável. A amenizou nem um tostão. arquejando:
estas horas, a fragrância — O fato é que deixou pior, — Não me segura! Me dá
se é que se pode chamar porque parece que atiçou espaço! Estou morrendo; me
aquilo de fragrância — esta- seu poder. O que você acha dá espaço!
va sufocante, ou o mais per- que é a melhor a gente fazer
agora? Sentei-me fora, na pla-
to que se pode chegar disto. taforma fria, e segurei a
A face de Thomspon estava Eu não estava apto a cabeça dele por um tem-
ficando cinza; eu sabia que sugerir algo; na verdade, eu po, enquanto ele retornava
não restava cor alguma na estava engolido a seco, todo à consciência. Depois, ele
minha. Depois, Thompson o tempo, e não queria me disse:
descansou a fronte em sua arriscar a falar. Thompson
mão esquerda, com o coto- desatou a resmungar, de ma- — Você acha que a gente
velo sobre o joelho, e meio neira errática e mal-humo- mexeu o general pra lá?
que abanava seu lenço ver- rada, sobre as experiências Não, eu disse, não conse-
melho em direção a caixa desagradáveis desta noite; guimos movê-lo.
com a outra mão, e disse: e ele se referia a meu po- — Bem, então aquela idéia
— Já carreguei muitos bre amigo através de vários está fora de cogitação. A
destes — alguns já bastante títulos — alguns militares, gente tem de pensar em ou-
passados também —, mas, outros civis —; e eu notei tra coisa. Ele está bem onde
Deus do Céu, este deixa que com a mesma rapidez ele está, eu acho; e se este é
todos os outros no chine- que a eficácia do meu pobre o jeito que ele se sente sobre
lo! — E de longe, capitão, os amigo crescia, Thompson o isto, e ele decidiu que não
outros eram como girassóis promovia de acordo, dando- quer ser perturbado, você
comparados a ELE! lhe um título mais elevado. pode apostar que vai ser do
Por fim, ele disse: jeito que ele quer. Sim, me-
Este reconhecimento de
meu amigo me gratificou, a — Tive uma idéia. E se lhor deixar ele exatamente
despeito das tristes circuns- a gente fizer um esforço e onde ele está, o tempo que
dar um empurrãozinho no ele quiser ficar; porque ele

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está com o jogo ganho, sabe, nunca vi, em todo estes havia tempo, fi-las na pla-
assim, pela lógica, o homem tempos de estrada; e já car- taforma. E rompendo para
que tentar alterar seus pla- reguei muitos deles, como a plataforma, Thompson
nos sairá perdendo. disse pr’ôce. sufocou e caiu; e antes que
Mas nós não poderíamos Voltamos para dentro eu pudesse arrastá-lo, pelo
ficar expostos àquela insana quando já estávamos duros colarinho, eu mesmo quase
nevasca, pois morreríamos de frio, mas, misericórdia, havia desmaiado. Quando
congelados. Então retorna- não conseguíamos ficar lá recobramos a consciência,
mos para dentro e fechamos dentro. Então, simplesmen- Thompson disse, deprimido:
a porta, e voltamos a sofrer te passamos a valsear de — Temos de ficar aqui
e a nos revesarmos na ja- dentro pra fora, de fora pra fora, chefia. Temos de ficar.
nela quebrada. Depois dum dentro, congelando, descon- Não tem outro jeito. O go-
tempo, enquanto partíamos gelando, e sufocando, em vernador quer viajar sozi-
duma estação onde havía- revezamentos. Em torno de nho, e ele está decidido que
mos parado por uns instan- uma hora depois, paramos pode nos vencer.
tes, Thompson saltou pra em outra estação, e, assim E depois ele acrescentou:
dentro, alegre, e exclamou: que partimos, Thompson
veio com uma sacola e — E você não sabe, a
— A gente vai ficar bem gente está envenenado. Esta
agora! Acho que apanhamos disse:
é nossa última viagem, você
o comodoro desta vez. Creio — Capitão, vou arriscar pode estar certo disto. Por
que eu consegui a coisa que a sorte uma vez mais, ape- causa disto, a gente vai ter
vai tirar o fedor dele. nas esta vez; se a gente não febre tifóide. Já estou sen-
Era ácido carbólico. Ele pegar ele agora, a coisa que tindo ela vindo, neste exa-
tinha um frasco disto. Ele o vai restar pra gente fazer vai to momento. Sim, senhor,
borrifou por todo os cantos; ser jogar a toalha e deixar a fomos escolhidos, tão certo
na verdade, ele encharcou lona. É isto que proponho. como o fato de você ter
tudo com isto, a caixa de Ele havia trazido um pu- nascido.
rifles, o queijo e todo o nhado de penas de galinha, Fomos recolhidos da
resto. Então, nós nos senta- maçãs secas, folhas de taba- plataforma uma hora depois,
mos, sentindo-nos bastante co, tapetes, sapatos velhos, congelados e sem sensibi-
esperançosos. Mas não du- enxofre, assafétida, e uma ou lidade, na próxima estação,
rou muito. Os dois odores outra coisa; e ele empilhou e sucumbi a uma febre
começaram a ser misturar tudo numa lâmina de ferro virulenta, e fiquei fora de
e, então, bem, logo tivemos no meio do chão e tocou combate por três semanas.
que abrir a porta; e lá fora fogo. Descobri, então, que eu pas-
Thompson limpava seu ros- Quando o fogo já esta- sei uma noite terrível com
to com o lenço e disse num va bem avançado, eu não uma inofensiva caixa de
tom devastado: consegui imaginar como até rifles e um inocente bocado
— Não tem jeito. Não po- mesmo o cadáver consegui- de queijo; mas as novidades
demos vencê-lo. Ele simples- ria suportar o cheiro. Tudo vieram tarde demais para
mente usa tudo que a gente havia vindo antes era ape- me salvar; a imaginação
põe pra amenizar, e põe seu nas poesia em comparação havia feito seu trabalho e
próprio odor e joga de volta àquele cheiro, mas acredite minha saúde estava perma-
na gente. Por que, capitão, você, o cheiro original conti- nentemente abalada; nem
não percebe, está cem vezes nuava tão sublime quanto Bermuda, nem qualquer
pior do que quando come- antes; a verdade é que os ou- outra terra poderia restaurá-
çou. Eu nunca vi um deles tros cheiros pareciam for- la. Esta será minha última
se empolgar tanto em seu talecê-lo; e, meu Deus, quão viagem; estou a caminho de
trabalho assim, e ter tanto forte ele era! Eu não fiz estas casa para morrer.
interesse nele. Não, senhor, considerações lá, pois não

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70
Mark Twain é o pseudônimo
de Samuel Langhorne Clemens
(1835-1910), primeiro grande
escritor do oeste dos Estados Uni-
dos que exerceu grande influência
sobre todos os escritores que se
esforçaram por “descobrir a Amé-
rica” através de suas paisagens,
das peculiaridades de seu povo e
de seu folclore.

Clemens passou a infância às


margens do rio Mississipi. Perdeu
o pai aos 12 anos quando come-
çou a trabalhar para ajudar nas
despesas de casa. Foi entregador,
escriturário e ajudante. Aos 13
anos tornou-se aprendiz de tipo-
grafia, e depois, trabalhando como
impressor, viajou por diversos
estados. Aprendeu navegação no
rio Mississipi tornando-se piloto
fluvial. Nessa época começou a es-
crever textos de humor e adotou o
pseudônimo de Mark Twain, termo
usado pelos barqueiros, que signi-
fica “duas marcas” na verificação
da profundidade dos rios.

Depois participou da Guerra


Civil, como confederado. Após o
conflito, foi para o Oeste (Neva-
da) onde viveu com seu irmão.
Passou a escrever para o jornal
da cidade de Virginia. Foi jorna-
lista e conquistou o público com o visitou a Europa, regressando rei Artur” (1889), “A tragédia
conto “A célebre rã saltadora do com “Vida no Mississipi”(1883). de Pudd’nhead Wilson”(1894) e
Condado de Calaveras”, publi- A obra-prima da carreira literá- “Joana D`Arc (1896).
cado em 1865. Dois anos depois, ria de Twain, “As aventuras de
Twain visitou a França, a Itália e Huckleberry Finn”, foi publicada A década de 1890 foi marcada
a Palestina, recolhendo material em 1884. por dificuldades financeiras e nos
para o seu livro “The Innocents últimos anos a caricatura burlesca
Abroad” (1869), que estabeleceu O livro, que parecia só uma obra deu lugar a um pessimismo satíri-
a sua reputação de humorista. para jovens, constituía na reali- co. A dimensão irônica do mundo
Twain se casou com Olívia Lang- dade uma fábula da América que e em particular do sonho america-
don em 1870 e se fixou em Har- se urbanizava e industrializava no revelaram um retrato america-
tford, Connecticut. enfrentando o sonho de uma vida no em toda a sua materialidade.
na liberdade da natureza. “Huck”
Dois anos mais tarde publicou representava muitas das aspira-
“Roughing It”, e em 1873 “The ções da sociedade americana, com
Gilded Age”. Em 1876 saiu a Fonte: http://educacao.uol.com.br/
as quais o público facilmente se
primeira das suas grandes obras, biografias/ult1789u507.jhtm
identificou. O romance estabele-
“As aventuras de Tom Sawyer”, ceu definitivamente Twain como
romance baseado nas experiências um dos grandes humoristas da
da adolescência do autor no rio literatura mundial. Outras obras
Mississipi. No livro seguinte, “A do autor: “O Príncipe e o Men-
Tramp Abroad” (1880) o autor digo”, “Um ianque na corte do

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Tradução

La esencia de las horas


Volmar Camargo Junior
Versión: Xoan Cullereiro (Enrique Gutiérrez Miranda)

Del carozo de una hora y mis pies.


extraje la substancia vítrea,
oleosa; Así, día a día,
breve cual la voluntad, si aún recordaba lo que eran
etérea cual la sensatez. acabé por no verlos.

En ningún recipiente Me dejé, entregado,


pude contenerla contenta. a la esencia del carozo de las horas.
Se escapaba siempre un tanto, Inhalé, comí, bebí,
a veces mucho; me desnudé;
casi siempre duplicaba su tamaño, y así, desnudo,
y así, poco a poco me cubrí entero con ella.
las gotas,
las partículas No era dolor,
rellenaron el espacio era más bien un frío
que tan bien conozco. de las puntas del cabello a la boca del
estómago.
Era seductora, envolvente; Me enredó.
la bruma que de ella nacía, Dentro y fuera de mí vivía aquello;
—pues bruma era— imposible contenerlo.
era un vapor invisible E incluso cuando de lo hondo de la
garganta
que hizo desaparecer las paredes,
nació el último murmullo
el paisaje de la ventana,
la cosa cristalizó,
los hábitos convenientes

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72
se hizo hielo, De la esencia de las horas
roca, quedo sólo
diamante, una gota.
vidrio. Se escurrió por mi cabeza hasta la pun-
ta de la nariz;
Era el vidrio en mí, intempestiva,
el vidrio de las horas decidida,
—el vidrio de las raíces del tiempo, libre,
de todo el vítreo árbol que es el tiem- se lanzó al espacio
po, con un chapoteo que sólo yo percibí
de su vítrea hasta el choque final contra el suelo.
sangre de lo que no se ve—.
Era el vidrio en mí. Salí.
Cerré las ventanas, atranqué las puer-
Ya no en la horas, tas.
ya no rellenando los vacíos Seguí como pude
entre las partículas del polvo vivo como consigo.
del tejido de las estrellas.
Era el vidrio en mí. Permanece aún allá, intocado,
Dejó de ser esencia el suelo donde cayó la última gota
primordial, o quintaesencial. de la substancia vítrea,
Era en mí. oleosa,
Era yo. extraída del carozo de una hora.

Y, Tenía la esperanza de que


como es propio de las cosas donde había caído la gota
nacidas o sacadas pudiera brotar otro árbol
del árbol que da los frutos del tiempo, con un tiempo diferente,
el vidrio que me tenía cristalizado quién sabe si mezclado
desapareció. con un poco del polvo,
de ese polvo que yo soy.
Volvieron las ropas,
las paredes, las ventanas,
el paisaje,
los zapatos.

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http://www.flickr.com/photos/balakov/336577397/sizes/o/
Tradução

autobiografia
Enrique Gutiérrez Miranda, poeta
aficcionado e tradutor compulsivo
Tradução: Volmar Camargo Junior

Nasci em Bueu, Ria de Em janeiro de 1976, florestais em Valencia, na


Pontevedra, Galicia, às 23:45 deslumbrado pelas luzes da serra de Maestrazgo.
de 15 de julio de 1957, dia cidade – e com o corres-
de São Enrique. Cresci em pondente desgosto de meus Quando retornei a Ma-
A Pobra do Caramiñal, pais – abandonei os estudos, drid algo havia mudado na
onde vivi de 1960 a 1975. ou eles me abandonaram, e cidade e também em mim.
Estudei em diversos colé- dediquei-me a desenhar e Estive um ano sem dese-
gios de A Pobra, Santa Uxía escrever num fanzine un- nhar nem escrever.
de Ribiera e Ourense sem derground. A cidade fervia Trabalhei algum tempo
muito proveito. e chegou a famosa “Movida como desenhista no estúdio
madrileña¹”. O underground de uns amigos arquitetos.
Minha família mudou-se entrou para a história. Para
para Madrid em setembro Comecei a desenhar e a es-
mim chegou a idade de crever em uns caderninhos
de 1975, um par de meses cumprir com os deveres
antes da morte do general quadriculados de espiral,
pátrios e fui dar tiros nas apenas para mim.
Franco. pedras e apagar incêndios

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Os amigos dispersaram e espanhol além de algum de Fragmentos de un frac-
fui viver na Serra Norte de poema em galego acompa- tal, ilustrado com imagens
Madrid durante cinco anos, nhado de minha própria que baixo da rede. Outro,
na proporção de uma vila tradução. Não o enviei recém-começado, para
e uma casa diferente por a nenhuma editora. Não Hojas de hiedra, que estou
ano. Tive um bar e um res- publicado. Imprimi duas escrevendo agora, e talvez
taurante, no qual eu mesmo ou três cópias para alguns algo de Árboles aves algas,
era o cozinheiro. Na época, amigos. com fotografias minhas de
desenhei, escrevi e li pouco. grafittis das ruas de Barce-
Encontrava-me sem lona. E outro para minhas
Voltei para A Pobra do saber como continar es- traduções de galego, portu-
Caramiñal, onde vivi em crevendo. Escrevi alguns guês, catalão, inglês, francês
uma aldeia de seis casas, poemas soltos. Ocorreu-me e talvez também italiano.
Gonderande, rodeada de de voltar aos caderninhos
horta e milharais durante quadriculados. A partir do
um ano e três meses. Vendi primeiro caderno escrevi
balas e guloseimas pelos Árboles aves algas. 39 séries Olhai, crede
povoados da região em de 80-90 versos octossíla- hoje em dia
uma van acompanhado de bos ou tetrassílabos, com e
um amigo. sem rima; cada série cor- a poesia
respondente a uma página
Em janeiro de 1995 che- está na Rede.
http://www.flickr.com/photos/carlosfr/1222021181/sizes/o/

do caderno. Um pouco
guei a Barcelona. Trabalhei surrealista e críptico. Não
dois meses na cozinha de publicado.
um hospital e depois num Blogs de Enrique Gutiér-
restaurante, mas uma tarde O segundo rendeu-me rez Miranda
joguei o avental no chão Hojas de hiedra. 40 séries.
e fui embora sem exigir Mais elaborado, metros Poemas y fragmentos:
meu pagamento. Encontrei variados, com e sem rima. http://enriquegutierrezmi-
emprego em uma tenda Com um apêndice de voca- randa.blogspot.com/
de jogos e apostas federal, bulário (palavras que inven-
onde ainda trabalho. to e outras raras) e outro
de referências, citações de
Certo dia comprei um Laberintos y espirales:
poemas e canções de pop
PDA, para organizar meus http://labesp.blogspot.com/
ou rock, com o original e
livros e minha coleção minha tradução. Não publi-
de postais eróticos. Tive cado.
a idéia de ir transferindo Perversión Poética: http://
para o PDA os poemas dos Agora estou com o ter- pervpoet.blogspot.com/
caderninhos quadricula- ceiro caderno. Ao conjunto
dos. Porém esse trabalho se total dos livros-caderno
converteu em um processo chamo Laberintos y espira-
Referências (links)
de reelaboração e recriação les. ]
de tudo o que havia sido
escrito entre 1987 e 2005. Tentei fazer uma página
na web para publicar mi- ¹ Movida Madrilena:
Organizei tudo e reuni nhas coisas, mas era de- http://es.wikipedia.org/wiki/
em um livro ao qual cha- masiado difícil para mim. Movida_madrileña
mei Fragmentos de un frac- Optei pelos blogs. Depois
tal. Metros e rimas clássicas de vários tentativas e blogs
ou quase, incluindo algum eliminados acabei ficando
soneto, temas variados, em com três: Um para poemas

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Teoria Literária

Manifesto
Urbanicista
Volmar Camargo Junior

http://www.flickr.com/photos/jalex_photo/390896449/sizes/o/
O escritor urbano, tão parecidos, são todos dos, e, paradoxalmente,
sem ser literato, sonha- irremediavelmente atra- joga-nos ainda mais para
dor, massivo, político faz ídos uns pelos outros. E o fundo dela. A ficção
ficção urbana. (Re)Cria o parecido é um eufemis- urbana não quer que se-
espaço, o tempo, e prin- mo para iguais. jamos idiotas, porém, não
cipalmente, os citadinos teme falar sobre o fato de
A ficção urbana é a
seres humanos: idiotas, a vida urbana ser, efetiva-
pior das criaturas dessa
espertos, doentes, intelec- mente, idiota, e estarmos
realidade, porque é feita
tualizados por mentiras, constantemente fugindo
rigorosamente da mes-
sensíveis uns aos outros dela por variadas e delei-
ma massa de que ela, a
de maneiras improváveis, tosas válvulas de escape.
realidade de cimento,
seres humanos de fic- A ficção urbana é, antes
asfalto, borracha, fios de
ção que ouvem, contam, de tudo, uma metaficção.
cobre, leds e derivados
recontam e continuam
de petróleo. Os urbanos E, vejam, nem falei em
rindo da mesma velha
falam sobre ser urbano, e literatura, em arte lite-
anedota de sempre. Es-
ao mesmo tempo, falam rária. Penso que isso, se
creve sobre si mesmo.
sobre não sê-lo. A ficção, existe, é um ideal, velho
Mas também, é provável,
quando é boa, faz-nos como os livros, divino,
aceitável, até desejável
pensar na grande idiotice inacessível, a própria
que seja sobre todos os
em que vivemos atola- constituição de porções
urbanos, porque, sendo

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significativas da nossa urbanicista é sobre o expressar-se, sobretudo a
idiotice, e que, por tanto que há, e convida a olhar língua, como são, e, como
a desejarmos, nem sabe- – sim, a olhar, não con- devem ser, porque esta é
mos mais o que ela é. A templar, mas olhar, estar uma interação constante,
arte literária é, como os presente, capturar o que infinita, e não cabe ao es-
ideais, as lutas e as re- há – no urbano. critor julgar, talvez, nem
voluções, uma piada de posicionar-se. Cumpre-
Não é a supremacia
mau gosto, da qual ela lhe a tarefa de capturar
do citadino sobre o do
própria, a abstrata litera- – e mostrar, não como
campo, porque mesmo
tura, ri-se. A arte, se há, denúncia – a urbanidade:
o campesino é urba-
mais importante, mais o que a constitui, o que
no, quando quer sê-lo e
completa, mais instigante, nela há, o que ela é, e,
quando abomina a urba-
mais capaz de arrancar principalmente, quem a
nidade.
o urbano do lodo de sua vivencia.
própria existência é a Não é a supremacia do
O Urbanicismo existe
ficção. E pouco importa prosaico sobre o subli-
já de antes deste manifes-
se é ou não literatura. me, porque o sublime é
to. O escritor que deseje
a moldura, a forma e a
Por tudo isso, o presen- aderir a ele deve antes
estrutura do prosaico.
te manifesto é pelo Urba- esquecê-lo – não comba-
nicismo: O escritor urbanicista tê-lo. Se quiser começar
captura o fato, como uma a escrever ficção urbani-
Não é luta – basta de
câmera fotográfica. Quem cista, deve primeiramente
lutas!
sabe, uma câmera digi- esquecer-se do universo,
Não é revolução – es- tal, porque o resultado do mundo, da cidade,
tamos fartos de revolu- é imediato, instantâneo dos outros, de si, e voltar
ções! – das tantas maravilhas, olhar para o próprio ato
idiotas, mas úteis, que nos de escrever: o seu pri-
Não é ideal – chega de meiro fato. Todo escritor
fazem tão especiais.
ideais! urbanicista deve, antes de
O urbanicista não ape- tudo, traçar o seu próprio
Não é sonho – há
nas quer a unidade com Manifesto, porque em
sonhos, sim, mas é o fato,
o outro, mas assume-se, cada urbano há um olhar
e não o sonho, o que o
sem restrições e sem da urbanidade – que é
escritor urbano, doravan-
medos, que é o outro, que um, e é muitos – e só ele
te urbanicista, quer.
é o eu-poético, que é o pode saber como expres-
Este é o movimento da personagem de ficção. sará esse olhar.
constatação. Não somos
O urbanicista respei-
bons, não somos maus,
ta o ideal do passado
não somos melhores que
– ele não quer revolu-
o que fomos no passado,
ções – mas constata e
nem seremos melhores
aceita as tantas formas de
num futuro. A ficção

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Teoria Literária

A Linguagem
do dia-a-dia na
Literatura
Henry Alfred Bugalho
henrybugalho@gmail.com

78 SAMIZDAT dezembro de 2008


78

http://www.flickr.com/photos/fchouse/2706871095/sizes/o/
A tendência natural de
todo escritor é começar
escrevendo de maneira
semelhante à que fala.

Estamos imersos na
linguagem oral desde
que nascemos, desde as
primeiras palavras que
nos dirigem nossos pais.
Primeiro, aprendemos a
falar, a comunicarmo-nos
através da emissão e arti-
culação de sons.

O hábito da escrita só
começa a surgir poste-
riormente, muitas vezes
apenas quando passamos
a freqüentar a escola.
Por isto, quase sempre a
competência de expressão
escrita é inferior à compe-
tência oral.

As regras que regem


a linguagem valem tanto
para a fala quanto para a
escrita, são exatamente as
mesmas normas gramati-
cais. No entanto, o uso, a
necessidade de comuni-
cação rápida, ou mesmo
vícios e corruptelas no
interior duma comunida-
de lingüística afastam a
escrita e a oralidade.

Por mais que a lingua-


gem falada anteceda a
escrita, isto não significa
que esta deva reproduzir
literalmente a primeira.
São níveis de comuni-
cação diferentes e, en-
quanto a escrita pode ser

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utilizada para meros fins que os de índole moder- lação lingüística é, em
comunicativos, a escrita nista trazem para suas pá- parte, uma prática incons-
literária transcende esta ginas a língua ordinária. ciente de rapport, de iden-
instrumentalidade. A tificação entre os falantes.
Analisemos, então,
Literatura comunica, mas Lembro-me duma entre-
alguns pontos que contri-
sem perder os requintes, vista do Ratinho para o
buirão para compreender-
as sutilezas e a beleza da programa “Observatório
mos como nossas escolhas
linguagem. da Imprensa”, quando, um
influenciam nossa escrita.
dos entrevistadores per-
Até o século XIX, os
guntou ao apresentador:
limites entre a linguagem
literária e a oral eram 1 - a literatura não é a - No seu programa,
muito evidentes. Não era realidade, portanto, não você fala errado muitas
à toa que a literatura era precisa ser regida pelas vezes. No entanto, aqui,
conhecida como belles let- mesmas práticas, pelas você não cometeu um
tres, em oposição à escrita mesmas leis, pelos mesmos único erro de português?
voltada para a simples princípios presentes no Por quê?
comunicação de algo. mundo real.
Então, o Ratinho res-
O modernismo do sé- No mundo real, as pondeu:
culo XX surgiu em con- performances lingüísticas
- Porque eu preciso fa-
traposição ao beletrismo, costumam variar de acor-
lar igual ao meu público.
recorrendo, assim, a uma do com nosso interlocu-
proximidade à língua do tor: quando falamos com Ou seja, na vida real, a
dia-a-dia, trazendo para a uma pessoa mais “simpló- seleção de qual registro
Literatura o mundano, o ria”, há uma tendência a da língua utilizaremos
minimalismo, as imperfei- usarmos um vocabulário influenciará no modo
ções, o simplório, o feio. menos rebuscado, diante como seremos recebido
Apesar de haver expandi- de interlocutores mais por nossos ouvintes.
do a compreensão do que sofisticados, tentamos
é Literatura, a moderni- elaborar sentenças mais
dade também instaurou complexas. 2 - Como a literatura
a ausência de critérios de
não é a realidade, mas um
avaliação: tudo passou a Isto não é uma prática
simulacro, ela precisa esta-
ser arte, tudo passou a ser existente apenas entre os
belecer quais são as regras
literário. mais educados (educação
que a regem.
formal), mas presente em
Assim como em todas todas as classes sociais. Se partirmos da lógi-
posições antagônicas, o Basta assistirmos a um ca anterior, não há nada
debate entre coloquialis- telejornal para ver como de errado em optar pelo
mo e purismo arrebanha todos tentam “falar boni- coloquialismo, posto que
seguidores nas duas dire- to”, mesmo que acabem o autor é o senhor do
ções. Os autores de orien- incorrendo em mais erros mundo literário que cria.
tação beletrista defendem por causa disto. No entanto, ele estará de-
uma autonomia da lingua-
limitando o horizonte de
gem literária, enquanto Na verdade, esta nive-
interpretação e de recep-

80 SAMIZDAT dezembro de 2008


80
ção da obra. Aliás, toda mentes, os personagens dade a meus textos. Lem-
vez que um autor faz uma possuem um léxico e uma bro-me de muitas gírias
escolha, de tema, enredo, fluência que não corres- minhas de infância que
linguagem, ele já está deli- pondem ao vocabulário hoje nem são mais utiliza-
mitando seu público. simples e pragmático da das e que até denunciam
vida cotidiana. minha idade (beirando a
Um público em busca
casa dos 30).
dum texto mais sofisti-
cado pode não receber Quer dizer, escrever
3 - A língua é construída
bem um texto coloquial, “uma brasa, mora?” num
historicamente, por isso, o
do mesmo modo que um texto que não seja histó-
que é erro hoje, amanhã é
leitor em busca de algo rico é uma autodenúncia,
norma.
mais “real”, pode não rece- além de datar, às vezes
ber bem um texto formal. Sem dúvida, este é o equivocadamente, tal es-
Quer dizer, é uma questão maior ponto em defesa do crito.
de escolha, de direciona- coloquialismo, pois mui-
mento. tas práticas consideradas
erradas em autores pre- Enfim, a escolha entre
Mas estas regras pre-
téritos, hoje são normas um tom coloquial ou for-
cisam estar claras e fazer
gramaticais e ortográficas. mal na Literatura será um
sentido no interior da
direcionamento de quem
obra. É necessário haver No entanto, há um
lerá nossas obras: quanto
coerência: um persona- problema bastante especí-
mais coloquial, mais aces-
gem não pode falar erra- fico nesta mutabilidade da
sível será para o leitor, po-
do em certos trechos, mas língua: várias expressões
rém, como a fala está em
falar certo (com as mes- populares e gírias caem
constante mutação, menor
mas palavras) em outro, rapidamente em desuso,
será a perenidade do tex-
sem alguma razão óbvia. assim, rechear um texto
to; quanto mais formal ou
com tais expressões pode
Graciliano Ramos é rebuscado, maiores serão
empobrecer a compreen-
muito hábil na hora de as dificuldades do leitor
são dum eventual leitor
se apropriar destes dois para assimilar o sentido,
futuro. Euclides da Cunha
níveis de discurso. Em mas, a longo prazo, mais
e Camões serão compre-
“Vidas Secas”, por exem- duradoura será a mensa-
endidos por um leitor de
plo, ele apresenta uma gem.
língua portuguesa daqui
vida mental muito intensa
cem anos, mas as músicas A opção lingüística
em seus personagens, até
dum funqueiro provavel- pode até se fundamentar
para a cachorra Baleia, po-
mente serão bem menos em princípios estéticos,
rém os personagens não
compreensíveis. mas suas conseqüências
possuem vocabulário para
são bastante práticas e
expressarem seus pen- Eu, enquanto escritor,
dizem respeito diretamen-
samentos, por isto, quase penso tanto no leitor de
te a que tipo de leitor — e
sempre os diálogos são hoje, quanto o de amanhã,
de leitura — a obra se
lacônicos. Quer dizer, há por isto, acabo escolhen-
destinará.
uma ruptura entre pen- do escrever dum modo a
samento e fala: em suas conceder maior durabili-

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Crônica

Caio Rudá

Ao sr. schopenhauer

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Caro Sr. Schopenhauer, continuar a corrente leitura Diversas foram as minhas
antes de mais nada quero até aqui, seria sensato de sua considerações e opiniões
registrar a necessidade de parte aceitar minhas devias acerca dos textos a que me
escrever-lhe diretamente. escusas por não dirigir-lhe refiro, ora concordando,
Este documento, entretanto, a palavra em Alemão, esse ora encontrando algumas
tem lá sua importância e idioma soberano, embora divergências. Eu poderia
por isso é possível que aguce não-clássico, e também por enumerar diversos tópicos
a curiosidade alheia. Não talvez estar sendo confuso para debate, mas seria desne-
me surpreenderia, portanto, e mesmo ininteligível. Não cessário, além de trabalhoso.
que viesse a cair em mãos é que eu queria forçar um Questões válidas, no entanto,
que não as suas, mas afirmo estilo. Com toda a sinceri- e muito interessantes. Assim,
veemente que a pendência é dade, afirmo-lhe que tento vou me centrar nos pontos
entre nós dois, um gigante ser o mais natural e breve que mais me chamaram a
do século XIX e um zé-nin- possível. atenção quando da leitura
guém dos anos 2000. Voltando à questão das desses textos.
Escrevo na certeza de uma barreiras que nos separam, O primeiro deles é o
resposta, pois sei que para o a única que me fez hesitar mau-humor crônico que lhe
senhor, dotado de inúmeras antes da escrita dessa men- é característico. Esse quadro
qualidades, auto-reconheci- sagem foi o fato de o senhor de rabugice eterna na verda-
das e auto-exaltadas, os obs- estar morto. Obviamente, de é um transtorno psiquiá-
táculos que impedem nossa considero que o esteja de trico conhecido como disti-
comunicação são facilmente fato, afinal, se de alguma ma- mia. Muito provavelmente o
superáveis. Não tenho dú- neira tivesse descoberto o se- senhor foi um distímico, um
vidas de que um profundo gredo da vida longa e vivesse sujeito amargo, que reclamou
conhecedor e estudioso de nos dias de hoje, por certo de tudo e só viu angústias e
línguas, como o senhor, tem não estaria se escondendo, infortúnios mesmo no mais
o meu humilde português às sombras ou vivendo no belo nascer do sol. Por isso
como mais um item em seu anonimato. Primeiro, porque tenho lá minhas dúvidas so-
vasto repertório de idiomas, o anonimato lhe causa ojeri- bre sua causa mortis. Pobre,
mas se por acaso faltar-lhe a za e, depois, porque é de sua Schop! Acho que mentiram
ciência sobre a “última flor natureza exibir-se. para o senhor. Disseram-lhe
do Lácio”, estou certo de que Pois bem, agora vamos pneumonia em vez de infar-
seu raciocínio agudo e sagaz, ao âmago de minha contes- to ou AVC, sei lá... algo pro-
juntamente com o conheci- tação. Recentemente, entrei vocado por toda a amargura
mento do Latim e até mesmo no mundo de suas idéias guardada e também pelas
de outras línguas que Dele através do brilhante Parerga despejadas em seus escritos.
derivam, farão do senhor e Paraliponema. Na verdade, Não me entenda mal. Não
um hábil leitor. Espero que, não fiz a leitura completa da estou criticando seu mau
ao escrever Latim em letra obra, mas apenas dos escri- humor. Pelo contrário, ele é
capital ressaltando Sua supe- tos relacionados à literatura, sua marca. Ele é você e você
rioridade ante esses dialetos língua e erudição. Cito-os é ele. Não existiria Schope-
que hoje a Europa conhece aqui: “Sobre a erudição e nhauer sem mau humor e
como línguas nacionais, per- os eruditos”, “Pensar por si vice-versa. Sabe, deixe-me
ceba meu respeito pelas suas mesmo”, “Sobre a escrita e o contar uma história. Os
idéias e leia-me com alguma estilo”, “Sobre a leitura e os novos dicionários da língua
atenção. livros” e “Sobre a linguagem portuguesa adicionaram o
Se o senhor foi assaz con- e as palavras”. verbete Schopenhauer, ou
descendente para iniciar e chopenrrauer (aportugue-

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sado). Adivinha o que ele são semelhantes àquelas que, ra alemã e mundial de seu
significa? (risos) Brincadeira, a partir de muitas descrições período. Nem sua mãe lhe
viu Schop? Só para descon- de viagens, têm informa- escapou à língua firina. Se-
trair. Ah, desculpe. Você ções precisas a respeito de riam os escritores da época
não sabe o que é isso (risos). um país (...) no fundo não tão lastimáveis assim? Ou
Outra piada. Agora que esta- dispõem de nenhum conhe- o seu mau humor influen-
mos mais íntimos, que criei cimento coerente”, em suas ciava até na hora de emitir
um clima mais amigo, vou próprias palavras. Só posso um juízo sobre a obra alheia,
chamá-lo de Schop. Pode ser? concluir que você nunca foi fazendo pouco de tudo o que
Então, como eu ia di- apegado a leituras, especial- não lhe apetecia? Talvez você
zendo, o chopen... digo, o mente as de má qualidade. fosse um crítico muito par-
mau-humor é sua marca. Então fica a curiosidade cial, tomado pela mágoa de
Não haveria graça em lê-lo de como vieram as aulas ter tido um reconhecimento
se não tivéssemos que ima- de idiomas que nos dá em tardio, em seus últimos anos
ginar qual seria o próximo Parerga e Paraliponema. Já de vida. Ou talvez os ale-
xingamento para alguns de nessa época você era agracia- mães de seu tempo fossem
seus adversários. Ah, Schop, do com o dom da violação bons comedores de chucrute
você precisa ver como está o do tempo e conseguia re- enquanto escritores mesmo,
mundo moderno. Sabia que trocedor em séculos e mais o que é mais provável, dada
suas idéias hoje são bastan- séculos para adquirir as sua superioridade diante dos
te influentes? Acredita que noções de latim e grego? outros seres humanos.
recentemente criaram um Ainda sobre idiomas, Prometo que agora en-
curso de “como denegrir a outra curiosidade. Qual o cerro de verdade. Só apro-
imagem do seu inimigo com problema com os “repulsivos veitando a deixa do último
classe”? Apostilas baseadas sons nasais”? Tudo bem que parágrafo. Olha, aqui vai um
em sua obra. os alemães nunca se deram conselho de amigo. Você é
O outro fato que me le- bem com os franceses, o que gênio, cara. Não há como ne-
vantou uma tremenda curio- lhe dá motivos para desme- gar. Um homem num pata-
sidade foi como você tem recer a língua dos gauleses, mar acima dos demais. Mas
tanto conhecimento acumu- mas que, pelo menos, se não deixa isso lhe subir à ca-
lado. Além de um grande atenha às características pe- beça. Pode pegar mal, causar
pensador, foi um poliglota culiares do falar desse povo. mal-entendidos. Nunca se
sem igual. Latim, grego clás- Eu, como lusófono, me ofendi sabe. Nem todos compreen-
sico, sânscrito, inglês, francês, com essa declaração de ódio dem a genialidade.
italiano e espanhol, além do aos belos sons nasais. Se-
materno Alemão. Essas são ria despeito por não saber
É isso, Schop! Foi uma
as que nos foram permitidas pronunciá-los corretamente?
mensagem breve e amigá-
saber. Não me espantaria Nesse ponto, você foi infeliz.
vel. Queria escrever mais,
que houvesse mais algumas E para finalizar, que a mas agora devo dedicar-me
a citar. Mas o que me intriga carta está ficando muito à reflexão, pensar por mim
não é que você tenha todo extensa, só queria cutucá-lo mesmo. Afinal, nos dias de
esse conhecimento, afinal de mais uma vez: você falou hoje, ainda dá para fazer
uma mente brilhante tudo mal de Deus e o mundo, isso e mais nada da vida.
se espera, e sim como você atirou pedras aos sete cantos Leio, penso e cuido do meu
o adquiriu sem tanta leitura. do planeta e em matéria de cachorro. Sou desocupado
Sim, porque “as pessoas que literatura foi o crítico mais mesmo, sou filósofo.
passam suas vidas lendo e ti- ferrenho de todos os tempos.
ram sua sabedoria dos livros Desconsiderou a literatu-

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Crônica

Dialética do
jeitinho brasileiro
Henry Alfred Bugalho

O “jeitinho” faz parte Vender um espetinho na Mas o jeitinho também


da cultura brasileira, está praia, comprar barato e pode se manifestar ilícita,
imbuído na psiqué do vender caro, vender al- sem deixar, no entanto, de
brasileiro. moço pra comprar janta, ser criativa: trazer muam-
usar da lábia para con- bas do Paraguai, distri-
Às vezes, o jeitinho seguir o que se quer, ter buir DVDs piratas de fil-
trata-se duma maneira um QI para conseguir mes que ainda estão em
criativa para resolver um emprego. cartaz no cinema, molhar
problemas insolúveis - e a mão dum policial pra
problemas insolúveis é o Todos sonham com a escapar duma multa, cor-
que não falta no Brasil. formalidade, mas forma- tar madeira sem licença
O jeitinho pode ser uti- lidade e Brasil não com- de áreas de preservação,
lizado, por exemplo, para binam - conseqüência desviar verba pública,
ganhar dinheiro de ma- dum Estado burocrático e sonegar impostos, vender
neira lícita, mas informal. corrupto. gato por lebre... A lista é

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enorme, os modos ilíci- ro extrapola os limites britânica, a ambição nor-
tos de jeitinho são muito geográficos, onde há um te-americana, o rigor dos
mais variados do que os brasileiro, o jeitinho o alemães, a inteligência
lícitos. persegue. Nos EUA, por dos judeus, a capacida-
exemplo, há muito bra- de de concentração dos
Os noticiários apre- sileiro trabalhando duro japoneses. Talvez esteja
sentam-nos todos os dias e honestamente, mas os na hora de reconhecer-
uma série de expressões que dão um jeitinho pra mos a nossa característica
do jeitinho. Lembro-me tudo são sempre mais nacional: o jeitinho do
quando foi implementada interessantes para a mí- brasileiro.
a lei proibindo a ingestão dia. Semana passada, foi
de qualquer quantidade presa uma quadrilha de Assim como estão
de álcool por motoristas brasileiros que fabricava tentando revitalizar a
- a famigerada Lei Seca. notas falsas de cem dóla- imagem do malandro,
O jeitinho entrou em res. Peixe grande! daquele boêmio carioca
ação, tentando conceber das rodas de samba e da
maneiras para enganar o Mas os peixes peque- capoeira - o “bom malan-
bafômetro: balas-de-men- nos, que compram docu- dro” - , talvez esteja na
ta, chiclete, beber vinagre, mentos falsos, que en- hora de revitalizarmos
e outros absurdos. Nes- viam grana preta através também o jeitinho e tal-
http://www.flickr.com/photos/gcastoldi/2582207281/sizes/l/

te caso, o jeitinho não de doleiros, que vendem vez até redefinirmos sua
funcionou e muita gente drogas na noitada, que concepção e encontrar-
rodou nas blitz. fazem de tudo por uma mos algo de bom, o “bom
renda extra continuam jeitinho”, quando toda
Dias atrás mesmo, o por aí. “O que os olhos esta capacidade criativa
jeitinho brasileiro voltou não vêem, o coração não dos brasileiros para supe-
a ser notícia. Voluntários sente”, diz o ditado, e isto rar adversidades é utiliza-
ajudando os desalojados vale para um país onde da pra algo que preste, e
das enchentes em Santa tudo é permitido, ou para não apenas para prejudi-
Catarina estavam apro- aquele com lei rigorosa. car os outros.
veitando aqueles montes
e mais montes de roupas O jeitinho também
e alimentos para econo- não respeita classe so-
mizar um dinheirinho. cial. Aliás, o nível sócio- Portanto, diga sim ao
Afinal de contas, era econônimo só determina “bom jeitinho” (e tor-
tanta coisa que ninguém um fator: o tamanho do ça para que, um dia, as
iria perceber se um tênis, jeitinho. notícias nos jornais sejam
um sutiã, uma calça jean, de jeitinhos a favor das
ou um quilo de feijão Pobre rouba miúdos, outras pessoas)!
desaparecessem. “O que como gatos pra pegar TV
os olhos não vêem, o a cabo ou pra ter aces-
coração não sente”, diz o so a internet; rico rouba
ditado, e este é também bocados, rombos milioná-
um dos motes do jeiti- rios aos cofres públicos.
nho: tudo vale, enquanto
você não for pego. Muitos povos são co-
nhecidos por suas carac-
Os jeitinho brasilei- terísticas: a pontualidade

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Crônica

Litoral
e Capital
Pedro Faria

http://www.flickr.com/photos/himmelundholle/527154570/sizes/l/
“Todos os homens são imaginaremos seu sangue E foi só.
filhos da puta”. latino fazendo pulsar seu
corpo colado no nosso. Para ela, não deve ter
Somos filhos da puta sido nada. Apenas mais
mesmo. Alguns de nós Uma mulher magra, um homem lhe olhando
mais do que o aceitável, para nós é flexível e mó- na rua, nada fora do nor-
outros menos do que deve- vel. Uma mais cheia, é mal. Mas em mim, como
ríamos. quente e amorosa. seria em todos os homens,
esse breve encontro gerou
Mas você tem que nos Hoje vi uma mulher na inúmeros pensamentos.
perdoar. Somos todos rua, na calçada oposta. Ela
crianças. Mesmo o mais andava na direção oposta Nessa hora, eu estava
cínico, o mais orgulhoso à minha. Quando meus com um amigo, e após ver
e vaidoso de nós é uma olhos encontraram os dela, a mulher, não ouvi mais
criança. Sei que isso não é seu pescoço se deslocou nenhuma palavra dita por
desculpa para nossa igno- para o lado, assim como o ele durante alguns minu-
rância, mas é no mínimo meu, e nosso olhar demo- tos.
um atenuante. rou mais do que os olhares
que normalmente compar- O modo como ela me
Às vezes, somos ani- tilhamos com estranhos na olhara...
mais. Animais cujo maior rua. Ela era alta, mesmo de
pecado é a imaginação. Nenhuma mulher sabe
longe, e usava um vestido
realmente o efeito de seu
roxo justo, que ressaltava
Mostre-nos uma loira, olhar sobre um homem.
bem seus seios. Tinha ca-
que fantasiaremos com Muitas acham que sabem,
belos pretos, e sua pele era
rainhas nórdicas sob peles, mas se enganam.
morena. Ela sorriu quando
num deserto gelado. Mos-
nos olhamos e eu sorri A morena me afetara
tre-nos uma morena, que
também.

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de tal maneira que eu não andam hoje em dia. os homens não consegui-
pude deixar de imaginar riam apenas “foder” uma
aquele vestido roxo jogado Mas é a verdade. puta, eles teriam que “fazer
no chão, e seu corpo dei- amor” com elas, e teorica-
Claro que o oposto tam-
tado sobre o meu, comigo mente falhariam.
bém é verdade: É difícil
lhe explorando com meus
existir o amor romântico No fim do dia, tanto nós
dedos e minha boca, como
sem a atração física. homens, quanto vocês mu-
se eu pudesse penetrar
no mais profundo de seus lheres, desejamos apenas
Toda a mecânica do
segredos, e como todos os alguém para nos agarrar-
amor então se torna algo
seus desejos se abrissem mos quando estivermos
muito complicado, quase
para mim, apenas com com medo, e com quem
como aquele desenho de
meus toques. comemorarmos quando
Escher, com as mãos de-
estivermos felizes. Alguém
senhando umas as outras.
O que me despertou que satisfaça nossas von-
A grande pergunta não
para a vida foi o tropeço tades, e que tenha as suas
deveria ser “quem nasceu
que dei num buraco na satisfeitas por nós.
primeiro? O ovo ou a ga-
rua. Quase caí de cara no
linha”, e sim “O que nasce Nem todo mundo en-
chão.
primeiro? A luxúria ou a contra essa pessoa. Alguns
Não sei o que a mulher poesia?”. acham que encontram,
sentiu depois de nosso mas quando se viram para
De cara, parece fácil res-
pequeno momento urba- o lado e encontram apenas
ponder “luxúria”, mas não
no. Provavelmente bem a carne fria, ou quando
acho que seja assim tão
menos do que eu. Mas, tremem e não há abraços
simples.
com minha imaginação de que lhe aqueçam, perce-
homem, eu posso me dar Para falar a verdade, bem seu erro.
o prazer de imaginar que essa questão é a única que
ela também teve alguma Outros...
realmente não é simples
ligeira visão, ou pelo me- nessa roda de relações.
nos uma sensação diferen- Bem, outros têm certeza
te, algo que não sentiria que encontraram, mas não
Conheci uma garota,
normalmente no dia a dia. são encontrados.
quando ainda era bem
novo. Raquel era seu “O que nasce primeiro, a
Porque, no fim das con- nome, e me apaixonei por
tas, o mínimo que nós ho- luxúria ou a poesia?”.
ela, numa época em que
mens desejamos é sermos meu corpo ainda nem Para mim?
lembrados como algo fora sabia o que era excitação.
do comum, como alguma Chame de amor infantil, Só o fato da pergunta
perturbação da rotina da ou do que quiser. A ver- existir, já é um sinal que
mulher. dade é que eu a amava, e não existe uma resposta
com ela descobri como era única.
Não queremos simples-
bom beijar uma garota,
mente dominar as mulhe- E eu não sei. Às vezes é
e me apertar em direção
res. Queremos dominá-las, por isso que nos lançamos
a ela, sem saber direito o
e ser dominados também. cada vez mais forte na
que estava fazendo, apenas
Queremos a ligação qua- vida, procurando a carne
seguindo algum código
se religiosa que apenas o quente e os abraços aco-
secreto escrito em meu
amor físico pode propor- lhedores em estranhos cer-
DNA. Tínhamos seis anos
cionar, mas que só existe tos e conhecidos errados.
nessa época, e não a vejo
com a presença de mesmo Tão forte que não paramos
desde então.
a mínima afinidade inte- quando encontramos o
lectual. É contra intuitivo Quer dizer, nesse caso certo.
um homem falar isso. Ora, veio o amor antes da
seria contra intuitivo mes- E muitas vezes, quando
luxúria. Porém, se o con-
mo se eu fosse uma mu- passamos batidos, não te-
trário fosse impossível, não
lher, do jeito que as coisas mos mais como voltar.
existiriam prostíbulos, pois

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Crônica

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e4/Cristo_en_la_cruz1.jpg
Joaquim Bispo

A desinformação pública
A era de Cristo, con- Isto é o que os histo- abordei o assunto, encolhe-
vencionou-se, começou a 1 riadores sabem e não lhes ram os braços em atitude
de Janeiro do ano 1. Há o merece qualquer tipo de de demissão.
momento zero, mas não há discussão.
o ano zero. No fim do dia Esse período foi penoso
31 de Dezembro do ano No entanto, não foi para mim. Imbuí-me da
1, completou-se 1 ano. Se isso que vimos por todo o consciência aguda de que
alguém tivesse comemora- mundo, com a comunica- a razão, o rigor e a verdade
do a data, devia ter come- ção social, ignorante mas científica estavam arredados
morado um ano, como os arrogante, comandada pela das nossas vidas e da nossa
pais fazem com qualquer globalização mercantilista sociedade, substituídas por
criança quando completa e a pressão consumista, a interesses meramente eco-
1 ano. Neste método, claro propagandear o embuste e nómicos, ou ainda de índole
e lógico, no fim do ano 2, a incentivar a comemora- mais obscura. Descri da
passaram 2 anos desde o ção da passagem do milé- possibilidade de qualquer
início da era; no fim do ano nio na passagem de ano de avanço de mentalidades,
99, passaram 99 anos; no 1999 para 2000. Cheguei a tendo por mentores tais
fim do ano 100, passaram ouvir a alarvidade de que pedagogos de massas. Se
100 anos; no fim do ano mudava o milénio, mas não não conseguem elucidar a
1999, passaram 1999 anos mudava o século. Enquanto sociedade sobre uma coisa
desde o início da era; no isso, não vi qualquer tenta- tão simples e descompro-
fim do ano 2000, passaram tiva, por parte das entidades metida, que sabedoria, que
2000 anos e é altura de científicas, que também têm esclarecimento se pode
comemorar a completude responsabilidades sociais, esperar deles, em questões
de dois milénios. Alguma de desmistificar a falsidade. de importância crucial para
dúvida? Alguns docentes, com quem a Humanidade?

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Crônica

http://indiainteracts.com/utilities/printpage.php?source=blogcontent&id=3400&postid=33
Joaquim Bispo

A importância
do prepúcio
Se Cristo nasceu a 25 de era. Por isso, a data aposta çava a 25 de Dezembro. O
Dezembro, porque é que a nos documentos anteriores estilo da Páscoa usava o dia
era de Cristo começa a 1 de a esse momento deve ser desta festa móvel, o que era
Janeiro? diminuída de 38 anos, para pouco prático. Finalmente,
os situar em relação à nossa em 1582, os cronologistas
Na verdade, não se sabe era. católicos aderiram ao início
quando Cristo nasceu. do ano a 1 de Janeiro, a que
Actualmente, pensa-se que O início do ano civil es- se chama estilo da Circun-
nasceu cinco a sete anos an- tava fixado, desde os Roma- cisão, por coincidir com
tes da nossa era. O monge nos, em 1 de Janeiro, por ser a circuncisão de Cristo, já
cita Dionísio o Exíguo, por o primeiro dia do mandato que era uso, entre os Judeus,
volta do ano 532 da nossa dos seus cônsules. No en- circuncidar as crianças no
era, indicou o dia 25 de tanto, o início do ano litúr- oitavo dia após o nascimen-
Dezembro do ano 38 da era gico foi variando, conforme to.
de César, como a data desse a época e os países, mas
acontecimento e o início sempre associado a Cristo. Assim, curiosamente,
da nova era. No entanto, a No que ficou conhecido vivemos na era que não é
era de César continuou a como o estilo da Incarna- do nascimento, nem da in-
ser usada durante séculos. ção ou da Anunciação, o carnação, nem da morte de
Em Portugal, foi D. João I ano novo começava a 25 de Cristo, mas da ablação do
que a aboliu, substituindo-a Março, dia apontado como seu prepúcio.
pela de Cristo, no ano 1460 o da anunciação à Virgem
da era antiga, que passou de que ia ser mãe. No estilo
a ser o ano 1422 da nova da Natividade, o ano come-

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Crônica

Mitos, mitos,
mitos
Joaquim Bispo

http://cartoons.osu.edu/nast/images/santa_claus100.jpg
A pressão comercial no ambiente sórdido de a voar! Como na imagi-
criou o mito do Pai Na- um estábulo, de uma nária pré-contemporânea,
tal. figura que acabou em barroca, sobretudo, em
situação não menos de- que figuras aladas de to-
Antes, havia o mito plorável. dos os tamanhos voavam
cristão: uma virgem em revoadas compactas
engravidou de uma en- Um velho, meio avô em todas as direcções e
tidade extraterrestre ou excêntrico, meio palhaço, tornavam incontrolável o
sobrenatural. A esse filho que voa de trenó, vive no espaço aéreo, também o
foram atribuídos feitos Pólo Norte e dá objectos Pai Natal foi criado como
sobrenaturais: milagres. de consumo a todas as voador. Nada disto é bom
A história dos Romanos crianças, foi o mito que para a, já de si, difícil de-
(uma espécie de ameri- veio preencher a necessi- cifração do mundo real,
canos da altura) não deu dade duma figura glamo- por parte da criança, que
por ele, o que não impe- rosa ultra rica, que gasta assim recebe, de quem
diu que a lenda crescesse a rodos. É claro que não mais confia, um acrésci-
exponencialmente nos é uma entidade sobrena- mo de dificuldade, uma
séculos seguintes. Nos tural que esvazia a cartei- mentira. Não se faz!
últimos tempos, porém, ra…
tornava-se difícil trans-
Muito gostam os in-
formar em paradigma do
ventores de mitos de pôr
consumo o nascimento,
figuras antropomórficas

92 SAMIZDAT dezembro de 2008


92
ficina

No mês de novembro, foi lançado o A­ udiobook com


­contos de membros da Oficina da E-TL.

O CD foi produzido por Alian Moroz.

Conteúdo

1 - "Vovô Caneco", de Alian Moroz

2 - "O Menino Binário", de Carlos Barros

3 - "Coleção de Botões", de Giselle Sato

4 - "Noite Estrelada", de Guilherme Rodrigues

5 - "A Vingança de Bento Julião", de Henry


­Alfred B
­ ugalho

6 - "Os Ratos", de Joaquim Bispo

7 - "Esmeralda, Jade e Rubi", de José Espírito


Santo

8 - "Fissuras Íntimas", de Leo Borges

9 - "A Palhinha", de Maria de Fátima Santos

10 - "A Última Revolta de Jesus Cristo", de Ro-


gers Silva

11 - "Com Carinho, Isolda", de Volmar Camargo Junior

As faixas do audiobook podem ser baixadas


­gratuitamente no enredeço abaixo:

http://oficinaeditora.org/2008/11/29/audiobook-da-oficina/

www.samizdat-pt.blogspot.com 93
Poesia

LABORATÓRIO POÉTICO
Do caroço de uma hora Volmar Camargo Junior
(a essência das Horas) v.camargo.junior@gmail.com

do caroço de uma hora enredou-me as paredes, as janelas


extraí a substância vítrea dentro e fora de mim vivia a paisagem
oleosa aquilo os sapatos
fugaz como a vontade impossível conter
etérea como a sensatez e mesmo quando do fundo da da essência das horas
garganta restou só
em nenhum recipiente nasceu o último murmúrio uma gota
pude contê-la a contento a coisa cristalizou-se escorreu-me pela testa até a
escapava sempre um tanto virou gelo ponta do nariz
às vezes muito rocha intempestiva
quase sempre dobrava de tamanho diamante decidida
e assim, aos poucos vidro
às gotas livre
às partículas era o vidro em mim lançou-se no espaço
preencheu o espaço o vidro das horas num mergulho que só eu
tão meu conhecido - o vidro das raízes do tempo percebi
de toda árvore vítrea que é o até o choque derradeiro contra
era sedutora, envolvente tempo o piso
a bruma que nascia da seiva vítrea
pois era bruma sangue do que não se vê – saí
era um vapor invisível era o vidro em mim fechei as janelas, tranquei as
que fez sumir as paredes não mais nas horas portas
a paisagem da janela não mais preenchendo os vãos segui como pude
os hábitos convenientes entre as partículas da poeira vivo como consigo
e os meus pés do tecido das estrelas
era o vidro em mim ainda lá está, intocado
sim, por dias deixou de ser essência o piso onde caiu a última gota
se ainda lembrava o que eram primordial ou quintessencial da substância vítrea
fiquei sem vê-los era em mim oleosa
era eu extraída do caroço de uma hora
deixei-me entregue
à essência do caroço das horas e tinha a esperança que
inalei, comi, bebi como é próprio das coisas onde a gota caiu
despi-me nascidas ou tiradas pudesse brotar outra árvore
e assim, despido da árvore que dá os frutos do com um tempo diferente
cobri-me inteiro com ela tempo quem sabe misturado
o vidro que tinha a mim a um tanto da poeira
não era dor cristalizado dessa poeira que sou eu
era antes um frio sumiu
das pontas dos cabelos até a
boca do estômago voltaram as roupas

94 SAMIZDAT dezembro de 2008


94
http://www.flickr.com/photos/carbonnyc/64581364/sizes/o/
Poesias
Carlos Alberto Barros

PASSOS

Ando, passo e ando...


Passos, quantos passos?
Tantos, falsos e tantos...

NATALIDADE

Sou sem ser, urbano.


Nasço em berço errado:
Tecla sem piano.

CORAÇÃO

Explode!
Explode, cabeça!
E acaba com este cérebro maldito.
Quero apenas meu corpo,
Para abrigar meu coração,
Que agora...
http://www.flickr.com/photos/mrsmagic/1358807119/sizes/o/

Sou só ele.

www.samizdat-pt.blogspot.com 95
sonetos
Marcia Szajnbok

gosto de pensar que sou um ser aquático


que nasceu em terra firme por engano
e que um dia cada pedaço do que sou
retornará ao seu lugar, que é o oceano

gosto de supor que dentro de mim exista


uma concha, um caramujo, algum coral
e que este sangue que tenho hoje vermelho
ficará um dia transparente, só água e sal
http://www.flickr.com/photos/9850426@N06/2429280694/sizes/o/

é um conforto imaginar-me assim


percorrendo mares, levada nas correntes
na espuma branca das ondas, diluída

no ilimitado das águas encontrarei enfim


a profundeza inusitada e azul da liberdade
que tanto persegui por toda vida

96 SAMIZDAT dezembro de 2008


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Não quero conhecer de ti só teu melhor
Quero também aquilo de que não gostas
O que tens como mau, vergonhoso, triste
Quero que me ofereças até que saiba decór

A melancolia que tantas vezes te habita,


Quero-te nos teus dias maus, de frio, de baixa
Quero te amar além do que é terno e doce
Quero pôr à prova minha vontade infinita

De trazer à luz meus melhores devaneios


Pois, do modo como te amo, meu amor,
O que tenho em mim de calor basta

Para extinguir para sempre teus receios


Derreter até a última gota do teu gelo
E estreitar a distância que te afasta...

www.samizdat-pt.blogspot.com 97
PlacigAMORniano

Dênis Moura

Amor, fogo que só arde em nosso ser,


É a dor de nosso pedaço ausente,
Descontente ao não ser bem mais contente,
É a dor que só nos precede o prazer;

Não querer esfomeando o querer,


Solitário com quem não está presente,
É buscar ser feliz eternamente,
Trocar bem quando ganha ao perder;

http://www.flickr.com/photos/peasap/1752872124/sizes/l/
É o estar preso usando a liberdade,
É vencer pra servir quem lhe venceu,
Com quem te ganha a vida, lealdade.

Então pode causar o favor seu


Nos corações humanos amizade:
Não tão contrário a si é o amor meu.

98 SAMIZDAT dezembro de 2008


98
IZ
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SOBRE OS AUT
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SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
s
erto Barro esenhis-
Carlos Alb e n o r d estinos, d
, filh o d mado,
Paulistano i s t a p l ástico for
empre, a r t l como
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, desde e n turais,
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traba l h o fluência
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ção e
internet.

SA-
cações na
DA
para pu b l i
il.com
ador@hotma
carloseduc pot.com
nome.blogs
http://des

Dênis Moura é paulistano de pia, cearence de


mar e poeta de amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto
o ciberespaço, mais com bits de imaginação que com
telescópios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e a
http://bonfireblaze.files.wordpress.com/2007/12/grafiti_wall.jpg

igualdade, com um giz na mão e uma pistola na outra. É


Tecnólogo a sonhar com Telemática social, com a demo-
cracia participativa eletrônica, onde o povo eleja menos
e decida mais. Publica estes dias sua primeira obra, um
Romance de Ficção Científica, e deixa engavetadas suas
apunhaladas poesias. É feito de bits, links e teia pra que
não desmaterialize, o clique, o blogue e o leia!

www.samizdat-pt.blogspot.com 99
99
Giselle Sato
Giselle Sato é autora de Meninas Malvadas, A pequena
bailarina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca. Estudou
Belas Artes, Psicologia e foi comissária de bordo. Gosta
de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que
chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um
eficiente panorama da sociedade em que vivemos.

gisellenatsusato@gmail.com

s
Joaquim Bispo Guilherme Rodrigue
Ex-técnico de televisão, Estudante Letras na
ado
xadrezista e pintor amador, Universidade do Sagr
de
licenciado recente em His- Coração, em Bauru, on
sempre morou . Nutre
tória da Arte, experimenta guas,
agora o prazer da escrita, grande paixão por Lín
,
em Lisboa. Literatura e Lingüística
ca
áreas em que se dedi
cada vez mais .

o
Henry Alfred Bugalh
a pela UFPR, com
É formado em Filosofi ra e
pecialista em Literatu
ênfase em Estética. Es as
atro romances e de du
História. Autor de qu
.
coletâneas de contos
Nova York, com sua
Mora, atualmente, em
sua cachorrinha.
esposa Denise e Bia,
.com
henrybugalho@gmail
www.maosdevaca.com

José Espírito Santo


Informático com licenciatura
e pós graduação na Faculdade
Marcia Szajnbok de Ciências da Universidade de
Médica formada pela Facul- Lisboa, trabalha há largos anos
dade de Medicina da Univer- em formação e consultoria, sendo
sidade de São Paulo, trabalha especialista em Bases de Dados,
como psiquiatra e psicanalista. Sistemas de Gestão Transaccional
Apaixonada por literatura e lín- e Middleware de “Messaging”. A
paixão pela escrita surgiu recen-
guas estrangeiras, lê sempre que
temente, tendo no ano de 2007
pode e brinca de escrever de vez produzido os livros “Esboços”
em quando. Paulistana convicta, (contos) e “Onde termina esta praia”
lo.
vive desde sempre em São Pau (poesia). Vive com a família em Port
ugal em Alverca, uma pequena
cidade um pouco a norte de Lisboa.
marciasz@hotmail.com
jjsanto@gmail.com
http://www.riodeescrita.blogspot.com
/

r Deves
Maristela Scheue
pequena ci-
Gaúcha nascida na
eçou a sonhar
dade de Pirapó, com
logo aprendeu
em ser escritora tão
lmente nos
a ler. Escreve principa
io, sus-
100 SAMIZDAT dezembro
contde nos gêneros mistér
os2008
100 de cr ôn icas.
pense e terror, além
Caio Rudá
hoje
Bahiano do interior,
Es tuda Psico-
mora na capital.
Fe deral
logia na Universidade Pedro Faria
dia
da Bahia e espera um Estuda Matemática na Univer-
o. En-
entender o ser human sidade Estadual do Rio de Janeiro,
ac on tec e, vai músico amador e escritor quando
quanto isso não
co di fi-
escrevendo a vida, de dá na telha. Nascido e criado no
ist cia.
ên
cando o enigma da ex Rio.
do, prê-
Não tem livro publica
e sequer
mio, reconhecimento punksterbass@hotmail.com
a. Mas
duas décadas de vid http://civilizadoselvagem.blogspot.com/
tencial
como consolo, um po
.
asseverado pela mãe

Maria de Fátima Santos


Nasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde
viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licencia-
da em Física tem sido professora de Física e Química.
Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pe-
quenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama
“meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.
blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na
escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar
que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Volmar Camargo Junior é gaúcho. Formado


em Letras pela Universidade de Cruz Alta, não
leciona por sua própria vontade. Entrou na ECT
em 2004, e desde então já morou em meia dúzia
de “Pereirópolis” pelo Rio Grande. Atualmente
vive com a esposa Natascha em Canela, na Serra
Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie,
uma gata voluntariosa e cínica.

v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj
m
/ Zulmar Lopes
Zulmar Lopes é carioca. Forma
do em jorna-
lismo pela Universidade Gama
Filho, trabalha
como assessor de imprensa. Alm
a provinciana e
coração suburbano, encontra-s
e provisoriamen-
te exilado na cosmopolita Copac
abana, bairro
fonte de inspiração de personage
ns e situações
que compõem seuwww.samizdat-pt.blogspot.com
s contos. Escreve para fugir 101
do marasmo.
Também nesta edição,
textos de

Caio Rudá José Espírito Santo

Carlos Alberto Barros Marcia Szajnbok

Dênis Moura Maria de Fátima Santos

Giselle Natsu Sato Maristela Scheuer Deves

Guilherme Rodrigues Pedro Faria

Henry Alfred Bugalho Volmar Camargo Junior

Joaquim Bispo Zulmar Lopes

102 SAMIZDAT dezembro de 2008


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