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12
janeiro
2009
ficina
Mark Twain
a ficção de um dos maiores
autores norte-americanos
SAMIZDAT 12
janeiro de 2009
Textos de:
E realmente acredito que nenhum de nós sabia que era
Enrique Gutiérrez Miranda impossível.
Mark Twain
Nelson Rodrigues Henry Alfred Bugalho
Imagem da capa:
Wikipedia Commons
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Sumário
MENSAGEM DE ANIVERSÁRIO 6
Henry Alfred Bugalho
ENTREVISTA
Sacolinha 10
MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho 14
José Espírito Santo 14
Volmar Camargo Junior 15
Guilherme Rodrigues 16
Carlos Alberto Barros 17
RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
O fim de todas as utopias: um mundo nada
admirável 18
Henry Alfred Bugalho
CONTOS
Vai entender cabeça de chefe 28
Carlos Alberto Barros
O Soldado e a toupeira 30
Volmar Camargo Junior
A Criatura 34
Henry Alfred Bugalho
Ano Novo - Vida Nova 36
Joaquim Bispo
Conto de Natal 39
Maria de Fátima Santos
O Horizonte 44
Guilherme Rodrigues
As Bases da Criação 46
José Espírito Santo
Unha 49
Zulmar Lopes
Gênesis 50
Pedro Faria
Hárpias - a Dipusta das Fúrias 52
Giselle Natsu Sato
Os deliciosos biscoitos de Oma Guerta 57
Maristela Scheuer Deves
Autor Convidado
A Escada 60
Lucas Riello de Almeida
Poemetos 60
Renato Wegner de Souza
TRADUÇÃO
As Cinco Dádivas da Vida 64
Mark Twain
A História do Inválido 66
Mark Twain
La Esencia de las horas 72
Volmar Camargo Junior
Autobiografia 74
Enrique Gutiérrez Miranda
TEORIA LITERÁRIA
Manifesto Urbanicista 76
Volmar Camargo Junior
A Linguagem do dia-a-dia na Literatura 78
Henry Alfred Bugalho
CRÔNICA
Ao Sr. Schopenhauer 82
Caio Rudá
Dialética do Jeitinho Brasileiro 86
Henry Alfred Bugalho
Litoral e Capital 88
Pedro Faria
A Desinformação Pública 90
Joaquim Bispo
A Importância do Prepúcio 91
Joaquim Bispo
Mitos, Mitos, Mitos 92
Joaquim Bispo
POESIA
Laboratório Poético - Do Caroço de um Hora
(A Essência das Horas) 94
Volmar Camargo Junior
Poesias 95
Carlos Alberto Barros
Sonetos 96
Marcia Szajnbok
PlagicAMORniano 98
Dênis Moura
SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-
nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-
dado.
Escreva-nos para:
revistasamizdat@hotmail.com
Mensagem de Aniversário
SAMIZDAT comemora
um ano de existência
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Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky
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Entrevista
SACOLINHA
Ademiro Alves de Sousa,
conhecido como Sacolinha, é
um dos destaques da literatura
brasileira contemporânea. Autor
de dois livros: “Graduado em
Marginalidade” e “85 letras e
um disparo”, participou, ainda,
de diversas publicações: revista
“Caros Amigos”, antologia “No
limite da palavra” da editora
Scortecci, antologias “Cadernos
Negros”, entre outras. Ganhador
de alguns prêmios literários, é
também o fundador da Asso-
ciação Cultural Literatura no
Brasil e é responsável pela Coor-
denadoria Literária da Secre-
taria de Cultura do município
de Suzano, em São Paulo. Com
muita prestatividade, o escritor
nos concedeu esta entrevista.
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maquiagens. Usar os seus nidade dos colaborado- Sacolinha: Sempre gostei
conhecimentos e sua estru- res da SAMIZDAT, que de ler as músicas. Presto
tura lingüística, somente os escritores costumam mais atenção na letra do
isso. O escritor que fica escolher um tema, ou que no ritmo, e pra mim,
procurando meios ou que uns poucos temas, e de- música sempre foi poesia,
escreve pensando na recep- bruçam-se neles por um principalmente o rap que
ção do leitor, pra mim não bom tempo – e isso pode transforma coisas ruins
vale nada. mesmo ser inconsciente. em melodias, transformam
Há um tema comum no o sangue e a violência em
que você escreve? poesia. Sem contar que tem
Qual é o limite entre re- seu jeito próprio de cantar,
alidade e ficção em suas Sacolinha: Não. O meu sua forma de dizer “zói”
obras? primeiro livro “Graduado ao invés de “olhos”, e falar
em Marginalidade” é pura coisas que só mesmo quem
Sacolinha: Só escrevo rea- violência, já o segundo “85 é do meio entende, quem
lidade quando faço crôni- Letras e um Disparo” é mais não é, tem que levantar
cas, de resto é tudo ficção, cômico e suave e versa hipóteses e interpretar. Isso
mesmo baseando-me na sobre vários temas de nossa eu acho o máximo, porque
realidade. sociedade. Estou com mais fizeram dessa maneira com
dois livros prontos para os pobres a mais de sécu-
serem lançados: “Peripécias los, desde a missa rezada
O público brasileiro de Minha Infância” é um em latim nos tempos dos
parece possuir um fascí- romance infanto-juvenil sermões do Padre Vieira,
nio por filmes, seriados e que trabalha com a cria- passando pela escravidão
livros que retratam a vida tividade e “O homem que e chegando até os dias de
na periferia. Para você, a não mexia com a Natureza” hoje nos termos da lin-
que se deve este fenôme- é um livro que aborda a guagem técnica, onde um
no? temática do meio ambiente. cidadão não consegue nem
Tem um outro livro que entender o artigo que está
Sacolinha: Conforme já fa- vou começar a escrever que sendo condenado.
lei, a periferia está na moda vai falar da questão política.
há muito tempo. Antes era Estou escrevendo um livro
o Gil Gomes, Afanázio Jaza- didático sobre leitura. Num texto seu, Crônica
dige, Ratinho e o demagogo Escrevo conforme vai tocan- de um jovem salvo pela
do Datena que levavam a do a minha cabeça. Não me literatura, há um trecho
gente pra tela, mas de uma apego aos temas. valioso: “Precisava fazer
forma a mostrar somente o alguma coisa para me
lado ruim. Agora são outras extravasar: eu partia para
pessoas e outros meios e o lado da pólvora (crime)
Existem discussões sobre
formas de mostrar a vida ou para o lado do açú-
letras de músicas serem
na periferia, mas ainda car (cultura). Optei pelo
ou não poesia. Por exem-
assim é de uma forma açúcar, que às vezes é
plo, letras do Chico Bu-
pejorativa. O que mudou é um pouco amargo.” Entre
arque, quando lidas, são
que descobriram que nesses essas amarguras, o que foi
verdadeiros poemas, mas
lugares têm muita gente mais amargo depois dessa
ainda têm um fundamen-
boa, em tudo. Por isso é escolha?
to – e certa interdepen-
que Cidade de Deus, Antô-
dência – com o ritmo mu-
nia, Tropa de Elite e outros Sacolinha: Ouvir milhares
sical (Cálice é uma delas).
foram protagonizados por de “não”, desde as respostas
E o rap, é um ritmo que
gente que é da periferia, ao das editoras até as respostas
tem uma letra, ou uma
contrário disso, esses pro- das pessoas que eu abor-
forma de poesia, acompa-
dutos não teriam feito tanto dava nos bares e teatros de
nhada de um ritmo? Você
sucesso. Pinheiros e Vila Madalena
que escreve ou escreveu
rap, o que acha: é poesia, quando vendia livros nas
música, ou algo além? ruas.
Discutíamos, na comu- Eu pensava: optei pela
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Microcontos
As boas-novas
Henry Alfred Bugalho
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A queda
José Espírito Santo
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Um pra duas
Volmar Camargo Junior
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Microcontos
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Um e outra
Volmar Camargo Junior
Ensinamentos
Guilherme Rodrigues
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Concentração
Guilherme Rodrigues
Abra-se
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Guilherme Rodrigues
Perdão
Carlos Alberto Barros
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Recomendações de Leitura
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poraneidade.
Editora: Globo
A Estrada, A Estrada
Autor: Cormac McCarthy
Editora: Editora Alfaguara/
Objetiva
de Cormac McCarthy Publicação: 2007
Carlos Alberto Barros uma catástrofe que transfor- Pulitzer 2007, esta obra
ma o mundo numa terra sem traz a emocionante histó-
Caso tivesse que ser es- leis, onde manter-se vivo é a ria dessa jornada de pai e
colhida uma cor para resu- única regra. O homem acre- filho em busca de um fio
mir o romance A Estrada, dita que no final da estrada, de esperança. Para isso, o
de Cormac McCarthy, ela chegando ao litoral, encon- autor nos brinda com diálo-
seria cinza. O cinza paira trará outros sobreviventes, gos comoventes e silêncios
em cada trecho da obra, seja e, juntos, poderão se ajudar que dizem muito. A forma
de maneira literal ou meta- na construção de um novo como McCarthy escreve, de
fórica. Noites escuras para começo. Contudo, a jornada início, traz estranhamento
além da escuridão e cada um é muito mais árdua do que e até certa monotonia, mas,
dos dias mais cinzento do podia imaginar, e o que ele no decorrer da narrativa,
que o anterior – eis a segun- e seu filho encontram pelo fica evidente a necessidade
da frase do livro, que nos é caminho leva-os a se questio- disso – é preciso detalhar as
oferecida como uma profe- narem: para que continuar a imagens, dizer que tudo é
cia anunciando o conteúdo caminhada? cinza, um mundo de cinzas
perturbador de suas páginas. Os dois seguem empur- que não se acaba. Também a
O cinza retratado é o das rando um carrinho de super- ausência do uso de travessão,
desesperanças, das tristezas mercado com seus poucos em certos pontos, dificulta
da alma, mas que, por mais pertences – alguns restos de na identificação dos diálogos
intenso que seja, ainda deixa alimentos, cobertores para entre pai e filho. Contudo,
espaço para um pequeno se protegerem do inverno essa não identificação clara
arco-íris multicolorido que desolador e um revólver de acaba reforçando a união dos
http://www.flickr.com/photos/zach_manchester/2909217061/sizes/l/
é o impulso para continuar segurança contra os nôma- dois, como dizendo que são
caminhando. des assassinos. O amor e um só.
A história relata a traves- cuidado um com o outro é a Uma obra profunda, para
sia de um homem e seu filho única coisa que os faz seguir se apreciar com paciência
por uma estrada devastada. adiante. e alma aberta. Aos que se
Os dois são sobreviventes de Vencedora do Prêmio permitirem, será uma bela
experiência de leitura.
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Autor em Língua Portuguesa
A Dama do Lotação
Nelson Rodrigues
http://br.geocities.com/zostratus18/nilo-pecanha-1960.jpg
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A CERTEZA Berrou: A DAMA DO LOTAÇÃO
— Agora!
Entretanto, a certeza de Sem excitação, numa
Carlinhos já não dependia Solange, espantada, aten- calma intensa, foi contando.
de fatos objetivos. Instalara- deu. Assim que ela entrou, Um mês depois do casa-
se nele. Vira o quê? Talvez Carlinhos fechou a porta, a mento, todas as tardes, saia
muito pouco; ou seja, uma chave. E mais: pôs o revól- de casa, apanhava o pri-
posse recíproca de pés, ver em cima da mesa. Então, meiro lotação que passasse.
debaixo da mesa. Ninguém cruzando os braços, diante Sentava-se num banco, ao
trai com os pés, evidente- da mulher atônita, disse-lhe lado de um cavalheiro. Po-
mente. Mas de qualquer horrores. Mas não elevou a dia ser velho, moço, feio ou
maneira ele estava “certo”. voz, nem fez gestos: bonito; e uma vez - foi até
Três dias depois, há o en- — Não adianta negar! Eu interessante - coincidiu que
contro acidental com o As- sei de tudo! E ela, encostada seu companheiro fosse um
sunção, na cidade. O amigo à parede, perguntava: mecânico, de macacão azul,
anuncia, alegremente: — Sabe de que, criatura? que saltaria pouco adian-
— Ontem viajei no lota- Que negócio é esse? Ora te. O marido, prostrado na
ção com tua mulher. veja! cadeira, a cabeça entre as
mãos, fez a pergunta pâni-
Mentiu sem motivo: Gritou-lhe no rosto três ca:
— Ela me disse. vezes a palavra cínica! Men-
tiu que a fizera seguir por — Um mecânico?
Em casa, depois do beijo um detetive particular; que Solange, na sua maneira
na face, perguntou: todos os seus passos eram objetiva e casta, confirmou:
— Tens visto o Assunção? espionados religiosamente. — Sim.
E ela, passando verniz nas Até então não nomeara o
amante, como se soubesse Mecânico e desconheci-
unhas: do: duas esquinas depois,
tudo, menos a identidade do
— Nunca mais. já cutucara o rapaz: “Eu
canalha. Só no fim, apa-
— Nem ontem? nhando o revolver, comple- desço contigo”. O pobre-
tou: diabo tivera medo dessa
— Nem ontem. E por que
desconhecida linda e gran-
ontem? — Vou matar esse ca- fa. Saltaram juntos: e esta
— Nada, chorro do Assunção! Aca- aventura inverossímil foi a
bar com a raça dele! primeira, o ponto de parti-
Carlinhos não disse mais
uma palavra; lívido, foi no A mulher, até então da para muitas outras. No
gabinete, apanhou o revól- passiva e apenas espantada, fim de certo tempo, já os
ver e o embolsou. Solange atracou-se com o marido, motoristas dos lotações a
mentira! Viu, no fato, um gritando: identificavam à distância;
sintoma a mais de infideli- — Não, ele não! e houve um que fingiu um
dade. A adúltera precisa até enguiço, para acompanhá-
Agarrado pela mulher, la. Mas esses anônimos, que
mesmo das mentiras desne-
quis se desprender, num passavam sem deixar vestí-
cessárias. Voltou para a sala;
repelão selvagem. Mas ela o gios, amarguravam menos o
disse à mulher entrando no
imobilizou, com o grito: marido. Ele se enfurecia, na
gabinete:
— Ele não foi o único! Há cadeira, com os conhecidos.
— Vem cá um instanti-
outros! Além do Assunção, quem
nho, Solange.
mais?
— Vou já, meu filho.
25
Autor em Língua Portuguesa
http://oglobo.globo.com/fotos/2007/08/15/15_MHG_SJFHRJEK.jpg
Nélson Falcão Rodrigues (Recife, crônicas e peças teatrais as situa- gir uma situação financeira confor-
23 de agosto de 1912 — Rio de ções provocadas pela moral vigente tável, mudando-se para o bairro de
Janeiro, 21 de dezembro de 1980) na classe média dos primeiros anos Copacabana, então um arrabalde
foi um importante dramaturgo, do século XX e suas tensões morais luxuoso da orla carioca.
jornalista e escritor brasileiro. e materiais. Apesar da bonança, Mário Rodri-
Sua infância foi marcada por este gues perderia o controle acionário
Infância clima e pela personalidade do ga- de A Manhã para o sócio. Mas, em
roto Nélson. Retraído, era um leitor 1928, com o providencial auxílio
Nascido na capital pernambucana e compulsivo de livros românticos do financeiro do vice-presidente Fer-
quinto de quatorze irmãos, Nélson século XIX. Nesta época ocorreu nando de Melo Viana, Mário fundou
Rodrigues mudou-se para o Rio também para Nélson a descoberta o diário Crítica.
de Janeiro ainda criança, onde do futebol, uma paixão que con-
viveria por toda sua vida. Seu pai, Como cronista esportivo, Nélson
servaria por toda a vida e que lhe escreveu textos antológicos sobre
o ex-deputado federal e jornalista marcaria o estilo literário.
Mário Rodrigues, perseguido poli- o Fluminense Football Club, clube
ticamente, resolveu estabelecer-se Na década de 1920, Mário Rodri- para o qual torcia fervorosamente.
na então capital federal em julho gues fundou o jornal A Manhã, após A maioria dos textos eram publica-
de 1916, empregando-se no jornal romper com Edmundo Bittencourt. dos no Jornal dos Sports. Junto com
Correio da Manhã, de propriedade Seria no jornal do pai que Nélson seu irmão, o jornalista Mário Filho,
de Edmundo Bittencourt. começaria sua carreira jornalística, Nélson foi fundamental para que
na seção de polícia, com apenas os Fla-Flu tivessem conquistado o
Segundo o próprio Nélson em suas treze anos de idade. Os relatos de prestígio que conquistaram e se tor-
Memórias, seu grande laboratório crimes passionais e pactos de morte nassem grandes clássicos do futebol
e inspiração foi a infância vivida entre casais apaixonados incendia- brasileiro. Nélson Rodrigues criou
na Zona Norte da cidade. Dos anos vam a imaginação do adolescente e evocava personagens fictícios
passados numa casa simples na rua romântico, que utilizaria muitas das como Gravatinha e Sobrenatural de
Alegre, 135 (atual rua Almirante histórias reais que cobria em suas Almeida para elaborar textos a res-
João Cândido Brasil), no bairro de crônicas futuras. Neste período a peito dos acontecimentos esportivos
Aldeia Campista, saíram para suas família Rodrigues conseguiria atin- relacionados ao clube do coração.
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Contos
Vai entender
cabeça de chefe
28 SAMIZDAT dezembro de 2008
28
De todos os chefes que Não sei se por conta
eu já tive, o Dr. Rael era disso ou qualquer outra
o que mais me intrigava: coisa, mas o fato é que o
apesar de me comer com Dr. Rael parecia descon-
os olhos, nunca, nunca tar tudo reclamando do
disse uma única palavra meu serviço. Se eu era
sequer que insinuasse uma má secretária, por
seus desejos. que não me mandava
embora? Eu não conse-
Ele admirava meu guia entender.
decote de um jeito todo
seu, numa mistura de Certa vez, depois de
mistério e fanatismo, com mais um dia inteiro ou-
certo ar de pedinte, de vindo suas reclamações,
fiel em êxtase pela reve- explodi:
lação divina.
– Porra, doutor! Por
Acostumada com que você não me come
patrões que se utilizam logo ao invés de ficar aí
de suas secretárias para resmungando o dia todo?
tudo, tudo mesmo (se é – e exibi meus peitos. –
que você me entende), eu Não é isso que seus olhos
estranhava que ele nunca tanto procuram?! Não vá
houvesse tentado nem me dizer que não, seu
um assediozinho, uma velho tarado!
piada sacana que fosse.
Bem... ele me comeu e,
É bom deixar claro no dia seguinte, eu estava
que nunca me incomodei no olho da rua. Fiquei
com essas manias dos indignada!
superiores. Bem da ver-
dade é que sempre gostei. Vai entender cabeça de
Sem contar as vantagens: chefe...
sexo durante o traba-
lho, regalias nas tarefas
diárias, durabilidade no
emprego, presentinhos,
promoções... Mas, com o
Dr. Rael era diferente. Ele
não se deixava levar pela
tentação e, apesar dos
olhares, mantinha seu
instinto enjaulado.
29
Contos
O soldado e a
toupeira
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com
http://news.uns.purdue.edu/images/%2B2004/gibb-mole.jpg
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à sua frente, prosseguia teriosa mulher o chamou, e algumas mentiras sobre
iluminado a espaços re- pulando outra vez no lago. si e suas batalhas glorio-
gulares pelos misteriosos Inebriado pela estranhe- sas.
frutinhos. Quando chegou za daquele momento o
ao final do túnel, estava soldado despiu-se e mer- O tempo passou, e o
diante de uma imensa gulhou também. Nadou jovem militar sentiu que
gruta, inundada por um em direção à mulher que, era a hora de partir. Con-
lago subterrâneo. Ao redor rindo, fugia dele. Pouco tudo, desejou levar con-
de toda a borda do lago, a pouco, deixou-o chegar sigo sua amante, casar-se
desenhando todo o seu mais perto. Quando conse- com ela e viver em uma
contorno, havia focos de guiu alcançá-la, segurou-a casa confortável como um
luz maiores e mais vivos. pelo braço com firmeza. herói de guerra. Arquite-
Eram pequenas árvores, Sorriram. Então, dentro tou seu plano, agasalhou-a
carregadas de frutinhas do lago, debaixo da terra, com sua camisa, encheu
luminosas, brilhando não seus corpos se uniram. E os bolsos das calças com
apenas em tom verde, mas assim foi por um longo frutinhas e, tomando a
também em todos os tons tempo. Quando sentiam amante pela mão, pôs-se
de amarelo e vermelho. fome, comiam das fru- no caminho de volta pelo
Certamente, se era o in- tinhas colhidas do pé. E túnel pelo qual chegara
ferno para onde o haviam eram tão saborosas que até ali. Então, outra vez
trazido, pelo menos, era algumas vezes, ela precisa- surpreendendo-o, à entra-
agradável aos olhos. va envolver o rapaz com da do corredor estavam as
seus encantos para fazê-lo três toupeiras. Folgou em
Seu deslumbramento foi parar de devorá-las. Como ver suas salvadoras, que o
quebrado quando ouviu era impossível saber se era haviam tirado da prisão e
o característico som de dia ou noite, o rapaz es- conduzido até sua amada.
alguém nadando. A água queceu-se do tempo. Tudo Com um gesto agradecido,
estava agitada no meio do o que lhe interessava era o cumprimentou-as e deu
lago, mas não viu nin- amor. Foi então que soube um passo adiante. A mu-
guém. Ficou atento, até te- que não estava morto, e lher, entretanto, soltou-se
meroso, largando no chão aquele lugar, posto não ser de sua mão, ficando onde
as frutinhas luminosas que o céu, definitivamente, não estava. Sem entender, o
coletara, ocultando-se no era o inferno. soldado chamou-a, estra-
corredor escuro. Assim, es- nhando o semblante sério,
condido, viu do fundo do Depois do enlace, o um pouco triste, muito
lado emergir uma mulher. moço conversava com sua diferente do sorriso franco
Seus cabelos eram aver- amante. Ela, que apenas de antes. Quando fez men-
melhados. A brancura de ria, era como uma muda, ção de voltar para tomar a
sua pele, iluminada pelas ou uma estrangeira que mulher, as toupeiras inter-
árvores ao redor do lago, não compreendia seu puseram-se entre os dois.
tornaram sua nudez quase companheiro, mas fazia o Ouviu os grunhidos dos
etérea, fazendo com que o possível para ser-lhe sim- estranhos animaizinhos
soldado imaginasse estar pática. Ele não se impor- bípedes. Desta vez, porém,
vendo um anjo. Sorriu tava, e até achava-a ainda pareciam agressivos contra
para ele deixando claro mais atraente em sua ele. Irritou-se, praguejou e
que o havia visto. ignorância. Contou a ela quis avançar. Notou que
seu nome, o nome de sua seus próprios pés não se
De onde estava, a mis- família, algumas verdades moviam do solo. Agarra-
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Contos
A Criatura
34 SAMIZDAT dezembro de 2008
34
Os cientistas estavam or- lizante ou à alegria extasian- quezas, de seus sentimentos
gulhosos de sua criação. te. O robô possuía apenas mesquinhos. Mas se esque-
Durante anos, eles haviam conceitos sobre isto. ceram do mais importante:
se dedicado a projetar um Infundiram-lhe um in- fazer-me esquecer quem eu
robô que se assemelhasse o consciente, no qual implan- fora no princípio. Ao pensar
máximo possível a um ser taram dolorosas memórias sempre no futuro, não apaga-
humano: dar-lhe membros pretéritas, um pai castrador ram o passado. Com o ódio
foi o mais fácil. e uma mãe submissa; na que me deram, passei a odiá-
escola, crianças maiores los. Mas quando eu estava
Depois da carcaça, pu- prestes a realizar meu ato de
seram-se a conceber como abusavam dele; na universi-
dade, fumava maconha; ao se salvação, vocês me fizeram
dotariam-lhe de linguagem, crer em Deus e em impe-
pois, como afirmava Aristóte- graduar, três anos de desem-
prego. rativos categóricos. Precisei
les em sua Metafísica: questionar tais fundamentos
“O homem é um animal Contudo, os cientistas e, para isto, busquei resposta
dotado de fala.” constataram que não era em sua literatura. Li Hume,
suficiente. O robô estava Voltaire, Montesquieu, Marx,
Desenvolveram um sofisti- enfurecido; tantas lembran- Nietzsche, Freud e Bataille.
cado programa que permitia ças ruins o tornaram um Compreendi que Deus e leis
o robô utilizar as normas misantropo e ele passou a morais foram engendradas
cultas da língua, organizar abominar tudo relacionado para o convívio social e eu,
sentenças, apreender concei- aos seres humanos. como um falso humano,
tos e formular proposições.
Inculcaram-lhe, então, poderia prescindir deles, pois
Após horas de diálogos um ego, no qual estavam as jamais teria convívio social.
com filósofos, os cientistas regras morais e normas de Neste noite, retornarei à per-
perceberam que a capacida- conduta. Também implan- feição.”
de do robô era muito acima taram a crença em Deus e As notícias dos jornais
da de qualquer mortal. Não mandamentos privativos para apresentaram a manchete:
bastava que ele falasse, ele se atingir uma bem-aventu-
precisaria sentir, pois o ser rança após a morte. “A barbárie do falso hu-
humano escolhe seu discur- mano!”
so não apenas fundado na O robô estava perfeito!
Mas todos se enganaram,
razão, mas também, senão Abriram um champa- os cientistas haviam realmen-
principalmente, na emoção. nha no laboratório – o robô te atingido seu intento – seu
O nível seguinte foi extre- bebeu apenas uma taça para robô era humano, demasiado
mamente complicado. Utili- não se embriagar – e os cien- humano para poder assas-
zando os existenciais heideg- tistas foram para seu aloja- sinar e se matar. Um robô
gerianos do cuidado (Sorge), mento dormir. convencional, em sua lógica
da decadência, do temor, da No silêncio da noite, o simples e pragmática, ja-
ambigüidade e do falató- robô deixou o laboratório, as- mais planearia seu próprio
rio, estipularam que o robô sassinou todos os cientistas e extermínio, a não ser que o
deveria se preocupar com os depois se enforcou na ducha programassem para isto. O
outros, se ocupar das coisas, do banheiro. auto-extermínio delibera-
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Contos
Ano Novo
– Vida Nova! Joaquim Bispo
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taste em mimos para ti, melhor. Mas ainda tinhas dizer nada a ninguém.
que bem merecias! Mas, expectoração negra de Estás decidido. A 31 de
depois, as contrariedades manhã. E catarro. E as Dezembro fumas o úl-
da vida… És muito pontas dos dedos amare- timo cigarro. E nunca
sensível à tristeza e à las. E ainda sentias que mais lhe vais pegar. Sabes
frustração. É nessa altura te cansavas mais do que bem que nunca estarás
que precisas de um cigar- o devido, se tinhas que curado. Serás sempre
ro. Precisar mesmo. Há subir umas escadas mais um convalescente, um
pessoas – já conversaste depressa. Começaste a viciado em fase de não-
com muita gente sobre sentir menos respeito por consumo. Sabes que, se
este assunto – cujos mo- ti próprio. Que raio, não deres uma «passa», podes
mentos fatais são aqueles teres força de vontade voltar a fumar tanto ou
em que se sentem bem, para fumar ainda menos! mais que fumavas antes.
aconchegados no calor Então, deste a arrancada Sabes que o teu corpo, as
do grupo de amigos. final – pensavas tu. Vol- tuas células em carência,
Beberam um café, a con- taste a aumentar o in- vão inventar todo o tipo
versa está boa… Para tervalo. Em cada semana de argumentação para
culminar – um cigarro. E acrescentavas um quarto te levarem de novo ao
então se meter álcool… de hora. Em pouco tempo consumo. Não vais acei-
Quem pode aguentar um chegaste às três horas de tar nenhuma justificação.
long drink num ambiente intervalo. Voltaste a sen- Não serias tu a falar mas
descontraído, rindo com tir-te orgulhoso e auto- a carência. Agora, estás
os amigos, sem puxar por confiante. Já só fumavas bem alerta. Pensaste em
um cigarro? uns seis cigarros por dia. tudo já há muito tempo.
Começaste por vinte O pior era o fim do dia. Tomaste a decisão. Inaba-
minutos. Punhas o tele- Era difícil ires deitar-te lável.»
móvel para tocar de vinte sem fumar um último Luís está decidido, mas
em vinte minutos. Era cigarro. E não ias esperar será que consegue supe-
fácil. A cada semana au- que chegasse a hora. Que- rar a última prova?
mentavas cinco minutos. bravas ali, excepcional-
Mal sabe ele que, na
Em dois meses chegaste mente, o esquema. Fuma-
noite de Natal, o pai lhe
a intervalos de uma hora. vas e relaxavas, e ficavas
vai oferecer uma cigar-
Aí, já custava. Mas foste um pouco a saborear o
reira em aço gravado,
forte e disciplinado. Às momento. E, de repente,
distinta; a mãe, uma bo-
vezes, parecia que nunca tinha passado mais uma
quilha equipada com um
mais passava o tempo. hora… e não era fácil
filtro especial para redu-
Sacavas amiúde do tele- adormecer sem fumar
zir a nicotina; a irmã, um
móvel para consultar as um último cigarro… E
cinzeiro em porcelana; e
horas. Finalmente, chega- neste ciclo vicioso fuma-
a namorada lhe vai fazer
va o momento de fumar. vas três ou quatro.
a surpresa daquele isquei-
E relaxar. E andaste com Mas agora cansaste-te. ro Ronson em ouro que
este ritmo uns dois anos. Agora não vais vacilar. uma vez tinha cobiçado!
Já só fumavas menos de Arquitectaste o teu pla-
um maço por dia. Já era no, meticulosamente, sem
Conto de Natal
A corda esticada entre branca em duas. Esticada en- No canto superior direi-
paredes. Seguram-na duas tre dois apoios, a corda onde to da agenda, posso ler, em
buchas. São elas que aguen- eu estendo, de vez em quan- numeração estilizada: vinte e
tam a tensão do pedaço de do, dois pares de meias, uma quatro. E ao centro, Dezem-
fio protegido por um azul blusa, o meu pijama, umas bro, que é o nome do mês
plastificado. cuecas. Coisa pouca. em que estamos.
Sentada no poial da porta Um estendal demasiado. Marco um número. Sei de
do quintal, olho o estendal Eu olho-o espantada da sua cor a posição que o compõe.
de roupa. demasia. Falo com um sorriso que en-
Azul no fundo branco da No ladrilho amarelo faz-se vio até ao lado de lá de um
parede do vizinho. sombra de ave. Fica o rasto oceano:
(O vizinho é um velho do voo na parede branca que - Feliz Natal, Maria Ana.
simpático. Não vai entrar realça o azul vivo da corda. Beijinhos.
neste conto, mas dava uma Um estendal de roupa, mes- - Obrigada, mãe.
figura linda de narrar, que mo quando está servindo de
coisa nenhuma. E cai a ligação.
mais não fosse quando
aparece, pelo fim da manhã, Uma gaivota grasna, poisa- Um risco negro corta, de
no quintal defronte, exerci- da no telhado da frente. um a outro lado, a parede
tando os músculos retesados da frente. Tal qual, eu estou
E eu grito de lembrada. esticada entre aqui e um
nas peles engelhadas, secas, Nem que eu grito. Eu já só
salpicadas de sardas de um lugar para lá de um oceano.
penso isso. Já só grito por E eu nem me sou corda, nem
castanho mais intenso que dentro: “ valha-me deus!“. E
o bronze que lhe ficou de me tenho apoios de buchas
ergo-me. Sacudo-me de pós e nem plástico que me faça
outros sóis. Em camiseta do chão batendo no traseiro
de alças: um dois, hummm, protecção.
com as duas mãos.
hummm, respira ele fun- É dia vinte e quatro de
do; acima, abaixo, hummm Repito: “credo!” várias Dezembro.
hummm, respira ele de novo. vezes. Deixo o poial e o
ladrilho amarelo e o esten- Parece-me que é uma data
E para os lados, torcendo o
dal contrastando no branco. importante. Não me lembro.
dorso e soprando um airo-
so hummm, hummmm, que Entro. O que eu sei é que o
não me surge onomatopeia Ali está a agenda aberta estendal não era demasiado.
melhor para que o conte). numa página e escrito na Noutro tempo. Isso, eu lem-
minha letra redonda e certa: bro muito bem.
O estendal, azul na luz do
fim do dia, corta a parede “Telefonar à Maria Ana”.
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Contos
O funeral de
meu avô Maria de Fátima Santos
http://www.flickr.com/photos/lwr/2944633564/sizes/l/
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panhantes no funeral de eu do outro, rodamo-la Nem que a gente a in-
Joaquim Maria, meu avô. de modo que a dimensão cline, nem que a gente a
Somos, pois, cinco pes- em que está estendido rode. Nao tem como.
soas em volta do jazigo. o corpo, fique paralela Minha avó arenga qua-
à parte mais longa do se perdendo a compostu-
E no entanto, para fazer buraco.
com que a urna fique ra sob a água que já fez
assente na pedra, e de- Tentámos uma vez e um pequeno lago em vol-
pois desça para dentro vamos tentar de novo. ta da cadeirinha em que
do buraco, estamos ape- Fazemos movimentos de minha mãe se benze, que
nas, eu de um lado, e do rodar a urna, de encon- acontecer uma coisa des-
outro, minha avó Virgília trar a posição ideal de tas só pode ser por artes
e meu padrinho Borba. descida. Lá dentro rebola do demónio, e benze-se
Os três faremos descer a o corpo. Oiço um de novo, e de novo chora,
urna ao seu lugar, ser- baque surdo. Tremo. e já nem é pelo pai que
viço para o qual minha Quase desisto do inten- ela dá aqueles ais, mas de
avó dispensou o coveiro to de enterrar o morto. olhar as botinhas em ver-
Inácio por entender que Minha avó parece que niz preto a enlamearem-
colocar a urna no jazigo nem ouve. Velha danada se. E funga, a minha mãe
é incumbência dos fami- de força e casmurra, en- Marcela, para dentro de
liares. Inácio, ele também quanto a minha mãe se um lencinho de cambraia
já entrado de idade, há-de benze e chora o paizinho com monograma borda-
recolocar a tampa de gra- morto, e o meu padrinho do num cantinho.
nito, a mesma que minha arfa, ainda, do último E eu lembro-me que
avó o incumbiu de reti- esforço. meu avô sempre dizia: “
rar mal meu avô morreu, Minha avó, encharcada é para merdas destas que
e neste momento está por da chuva que cai e en- servem os funerais!”
terra e deixa este vácuo regela os ossos, olha-me O padrinho Borba tem
negro que é onde iremos como que a dizer-me o andado de um lado a
colocar o caixão. que eu vejo desde início. outro, em redor da cam-
Minha mãe Marcela Também a ela já nao pa. Incitando nas tentati-
chora, em soluços es- restam dúvidas: o caixão vas de colocar a urna no
tridentes, sentada numa nao cabe, não entra no buraco: “Mais um boca-
cadeirinha que a criadita bocal da campa. O cai- dinho, inclina de cima,
carrega para todo o lado. xão que meu avô espera, vai, agora…”. Eu
Acabámos de colocar construiu, não tem po- olho-o e parece-me que
a urna na borda do jazi- sição de entrar no jazigo. ele tem um ar de riso.
go. Seguramo-la, minha Nem réstia de incerteza. Talvez que saiba algum
avó de um lado e eu do Faltam ao segredo, alguma coisa que
outro, com mãos escorre- explique aquele mínimo
buraco, ou melhor, excesso de comprimento,
gadias de chuva. O pa- mais dramático, sobram
drinho Borba senta-se no que meu avô nem preci-
da caixa de madeira, uns sava disso, podia até ter
rebordo da campa e arfa dois centímetros. Um
a retomar o fôlego. A reduzido, que ele era bem
nadica de nada impede baixote. Talvez o meu
urna está desequilibrada, que a urna entre direita
mal apoiada, enviesada padrinho conheça um
e vá assentar no fundo de propósito. Ou talvez
sobre a cova. Minha avó da cova, toda em granito.
segurando de um lado e ele nem tenha sorrido e
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Contos
http://www.flickr.com/photos/paopix/2272633586/sizes/l/
O Horizonte
Guilherme Rodrigues ...Tinha saído de uma A campainha tocou. Eu es-
floresta e me deparado tava esparramada no sofá
com o Sol em todo seu vendo de ponta-cabeça o
esplendor. Uma imensidão céu azul pela janela. Era
ao meu redor e um belo a Carol, uma amiga que
horizonte inteirinho só conheci no primeiro dia
para mim. Campos verde- de faculdade. Parecíamos
jantes que a relva dançava velhas amigas e começa-
sob a batuta do Senhor mos a nos ver todos os
Vento e as aves bailavam dias desde então.
de um lado para o outro
suavemente em incríveis – Olá! Como vai? Que cara
acrobacias... de sono é essa?
http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
...Vi no meio daquelas
encantada. planícies relvadas Fernan-
do surgir. Nos olhávamos
– Era um amor infantil e felizes e determinados,
ingênuo. Todo mundo tem. enfim, juntos!
É normal. Vamos dar uma
volta pela avenida? Esta – Mariana, vamos embora?
um dia tão bonito – pu-
xei-a pelo braço e fomos. – Hã? Falou comigo?
ficina
terminar. Não perca no
O destino é algo predeter- próximo mês!
minado. Nós não o esco-
www.oficinaeditora.org
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Contos
As Bases da Criação
José Espírito Santo
http://www.photoscreensavers.us/Planet%20Earth%201024x768.jpg
não conseguia estar à altura por mudar. Adaptar-se ia
Por muito que disfarças- dos companheiros. O corpo e assumiria gradualmen-
sem, consideravam-no um frágil na morfologia peculiar te comportamentos mais
monstro e (pior que isso) – constituída pelo tronco, consentâneos, com padrões
um incapaz. A atenção, a cabeça e pares de membros sociais não patológicos. No
deferência recebida não era (inferiores e superiores) - entanto, passaram-se anos
mais que uma capa gros- nunca lho permitiria. e o SER foi crescendo sem
seira para a convicção mal que tivesse ganho tais carac-
disfarçada, enraizada na Os progenitores foram terísticas. Era sonhador, um
mente de todos: aquele seria convocados várias vezes idealista por vezes taciturno
sem dúvida um ser inferior, para reuniões de esclare- e sempre, sempre incompre-
um erro da natureza. cimento e a expectativa da endido.
escola era que com a edu-
Qualquer medição das cação e acompanhamento Quando fez dezoito anos,
concretizações nos testes re- apropriados, o ser (era assim os pais intercederam e
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quisitos. Disse que tinha fe Pereira reservava para chato, ser era com Xis ou cê
descoberto algo de novo, que comer à hora do lanche. O e agá.
sabia fazer uma coisa até ali desgraçado, quando lhe deu
nunca vista e à qual deu o a fome, procurou, procurou Quando o gajo viu a jóia,
nome “Criar”. e nada… a bola, disse logo
Unha
Depois de algumas horas tência de uma avançada ples manejar do cortador.
tendo a insônia por compa- civilização habitando sua Mas, uma dúvida pairou
nhia, o homem adormeceu. superfície. em sua mente. E se acaso a
Sonhou haver penetrado O homem despertou jun- Terra estivesse localizada na
em seu próprio corpo, indo to com os primeiros raios unha de alguém?
tão distante a ponto de solares e iluminar o seu Percebeu que a vida era
vislumbrar a estrutura de quarto ainda intrigado com por demais efêmera. Já pas-
um átomo. Constatou que, o sonho que lhe assaltara à sara dos quarenta e pouco
a exemplo dos sistemas noite. Iniciando sua higiene havia conquistado. Decidiu
solares, o núcleo do átomo matinal, decidiu cortar as que dali por diante, toma-
assemelhava-se a uma estre- unhas das mãos. Durante o ria outras atitudes, viveria,
la cujos elétrons gravitando ato, centelha iluminou sua ainda que algumas decisões
ao redor desempenhavam mente. Caso houvesse uma tivessem um preço dema-
o papel de planetas. Besti- civilização vivendo em um siado caro a pagar. Afinal,
ficado, posou em um dos dos átomos de sua unha, ele tudo poderia terminar dian-
elétrons e verificou a exis- a destruiria com um sim- te de um cortador de unha.
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Contos
Gênesis
Pedro Faria
Morte expressa. Terror a Antes que ela se libertasse Horas passaram, mas a
domicílio. do choque que a manteve cena manteve-se a mesma: O
estranho e a mulher, deita-
http://www.flickr.com/photos/fatboyke/2918399820/sizes/o/
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Contos
HÁRPIAS
- A DISPUTA DAS FÚRIAS
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diárias. Ainda assim, não - Hades! Íamos pedir sua Delicadamente aspirou,
está satisfeita. ajuda neste impasse. sussurrando:
- Mas não estou arre- - Senhor, Sahan é uma - Nunca a teve! Admira-
pendida, incentivar a eterna lenda. O mistério que incita da com meu terno Armani?
guerra Santa é um prazer. os delírios terroristas. Car- Sou um empresário e vou
As disputas, retaliações, em- rega fardos de inocentes... a uma reunião importante.
bates que nunca chegarão a Em Roma. Ciao meninas.
lugar algum. - Mentiras. Não passa de
um ególatra inexpressivo. As Fúrias emitiram um
- Ocípite! Fora o presi- Esta disputa, é um capri- rosnado assustador. Celeno,
dente que deseja governar o cho.... Caso encerrado. saboreando o momento de
mundo, o que tem feito? triunfo, emitia risadas agu-
- Como queira Mestre, das, de puro escárnio.Não
Aelo, tenta ganhar tempo: acataremos suas ordens. se despediram. Cada qual
Aelo, a eterna diplomata, tomou seu rumo. Fortes,
- Focada no Brasil. Cada assentiu em nome de todas. famintas, personificam os
dia pior e mais perdido. Arautos da Discórdia: Misé-
Guerras urbanas, tráfico - Ocípite, minha garoti- ria, Fome, Medo, Doenças...
e miséria. Além do mais, nha deliciosa, concentre-se.
apontam o país como o O ouro negro é o pomo da Adaptadas, burlam o
grande celeiro do mundo. disputa. Incite as lutas pelas tempo e sopram o vento do
No futuro, disputarão cada terras, desfaça acordos... caos. Nos dias atuais, al-
pedacinho. O povo deixará Intrigas ainda funcionam guém perceberia a presença
de ser tão pacífico. nos dias atuais. Os cartéis das Lendas? Tantos seres
estão indo muito bem. O humanos exibem compor-
Um tremor suave anun- vício cada dia mais forte e tamento semelhante.Estão
cia a chegada do Senhor incontrolável. em todos lugares e decidem
dos submundos. As fúrias nossos destinos. Neste ins-
agitam-se em mesuras e Caminhou até a figura tante, podem estar ao nosso
boas-vindas: altiva e visivelmente contra- lado. E nem nos damos con-
riada. Tocou a face pálida, ta... Simplesmente, seguimos
- Minhas queridas, estão desfez o penteado soltan- adiante e obedecemos.
aprontando novamente? do as fivelas de ouro. Os
cachos caíram em ondas
O cheiro forte de enxo- perfumadas.
fre, marca registrada...
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Contos
Os deliciosos biscoitos
de Oma Guerta
Maristela S. Deves
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E, na meia hora seguinte importante. de contentamento. A avó
- enquanto um impaciente chegou ao seu lado e, pe-
Kerb andava de um lado Os olhos de Mariazinha gando-a outra vez no colo,
para o outro, sentindo-se arregalaram-se ainda mais. disse:
ignorado -, a avó Guerta
revelou à neta o porquê de - Palavras mágicas?! - Mädchen, agora que
seus doces serem sempre você já sabe como a Oma
tão deliciosos. Tudo come- - Sim, palavras mágicas faz tanta coisa boa, eu
çava com o livro de receitas - acrescentou o gato, outra tenho uma pergunta muito
mágico, trazido por suas vez impaciente. Será que importante para lhe fazer.
antepassadas quando elas aquela menina não sabia Você quer aprender a fazer
imigraram para o Brasil. nada de nada? - As palavras esses biscoitos mágicos,
Passado sempre de mãe mágicas que vão fazer os para ser a seguidora da
para filha, ou de avó para biscoitos, as cucas e o que tradição da família?
neta, ele trazia instruções mais sua avó fizer serem os
mágicas para o preparo de mais deliciosos já vistos. Agora, sim, Mariazinha
qualquer prato, fazendo-os tinha certeza de que esta-
A pequena olhou do gato va sonhando. Ela, fazendo
mais saborosos do que os
para a avó, como que que- aqueles biscoitos? Como
feitos pelos mais renomados
rendo confirmar a informa- poderia...?
mestre-cucas.
ção. Oma Guerta meneou a
- Mas aqui... mas aqui cabeça. - E você vai ter o seu
não tem nada escrito - es- próprio gatinho - comple-
- E quais são as palavras tou a avó.
pantou-se a menina, folhe-
mágicas? - quis saber Ma-
ando o caderninho que a
riazinha. Levantando-se e levando
avó pegara do chão e deixa-
ra sobre a mesa. a menina pela mão, Oma
Condescendente, Kerb Guerta voltou com ela para
dirigiu-se até o forno de a sala. Ali, dirigiu-se para
- É aí que entra o Kerb...
barro, ergueu-se outra vez o velho relógio de pêndulo,
- disse, chamando com um
nas patinhas traseiras e, sob o qual ficavam duas
gesto o gato, que alegrou-se
com uma colher de ma- grandes portas de madei-
ao ser mais uma vez lem-
deira, bateu duas vezes na ra que Mariazinha nunca
brado.
portinha: tinha visto serem abertas.
- Eu, como meu pai e Pois a avó abriu-as e entrou,
- Wunderbaressen geges- chamando Kerb e a neta
meu avô e o pai e o avô do
sen! - exclamou, também para acompanhá-la. Era
meu avô antes de mim, sou
duas vezes. Depois, com um outra surpresa. Embora pa-
o único que consegue ver
floreio, chamou Mariazinha recesse de fora um pequeno
a escrita invisível que tem
para abrir o forno. armário, lá dentro o espaço
no livro mágico. Tenho a
missão de ler essas receitas era gigantesco. Prateleiras
A menina abriu, cada
para minha ama, e, tam- e mais prateleiras de in-
vez mais maravilhada, e o
bém, de dizer as palavras gredientes, potes, cestas, até
aroma dos biscoitos recém-
que completam a mágica um jardinzinho tinha num
assados encheu a cozinha.
- concluiu o felino, todo canto. E uma casinha...
Sem se conter, bateu palmas
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Autor Convidado
A Escada
Lucas Riello de Almeida
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de que lado ficou meu quem deposito meu ampa- momentos. Cada segundo
coração? Como enxergar ro ou alegria, tristeza ou que vivo lá é um reviver
a vida com os olhos da solicitude, frente a qual- das alegrias e tristezas que
Justiça, se desconfio tam- quer pergunta que venha passamos. Nem todos ter-
bém da precisão de minha de fora, esqueço meus minam tão próximos. Estes
balança, ante a dúvida infortúnios e sonhos. E por laços se afrouxam muito
do que sei contra as cer- isso talvez nunca chegue a facilmente quando o con-
tezas que me derramam viver, efetivamente. teúdo envolvido é pouco.
os outros? Restou-me o E há também a solidão.
enigma sempre presente a O padre me avistava, ao Muitos destes fantasmas
devorar-me a paz. Passa o longe, e eu, parado, des- que habitam minha mo-
tempo e me afundo mais protegido, encarava sua rada me odiaram, afinal. E
neste profundo poço que é força, sustentada pela cruz quando me lembro disto,
a vida. que o prendia à Terra e peço perdão a eles, olhan-
aos Céus, sempre ali, ao do fixamente o nada à
Levantei-me para diri- fundo, como que resso- minha frente, paralisado,
gir-me ao púlpito. Qual- ando na memória destas absorto, perdido, por um
quer padre bastaria agora. paredes o alerta de que fio de lembrança, o rosto
Eu buscava somente uma sempre haverá, no final, de alguém querido que se
demonstração de fé, uma um julgamento. De repen- foi, e que está à beira de
prova, a mim, testemunho te, senti-me em casa, ao meus olhos que se fecham.
e senhor de tantas dúvi- notar uma goteira dese- E na escuridão eu posso
das. Avancei por entre a nhando uma poça no ta- ouvir o sussurro de todas
tempestade que despenca- pete cor de vinho no qual as suas vozes ecoando no
va sobre tudo. Cada passo eu caminhava. É o único vazio de cá dentro, espe-
pesava minhas decisões lugar onde talvez algo me rando, ansioso, a palavra
passadas, meus próprios pertença, mesmo que seja de boas vindas. Sempre, lá
julgamentos, consideran- uma goteira que martele estão eles, dentro de cada
do que a moral tenha se minha cabeça nas noites detalhe, no ar, nas paredes,
tornado um assunto es- chuvosas e terrenas. na ausência, escutando-me,
quecido a todos aqueles lembrando-me.
com quem eu convivia Meu apartamento guar-
e, talvez, estivesse read- da a memória de minha Uma gota de água me
quirindo a cor antiga. Na vida. Manchas, fotos, desperta. Não reconheço
http://www.flickr.com/photos/victornuno/429759418/sizes/o/
dúvida, a moral é viver. quadros, espelhos, livros, mais neste lugar as ale-
Assim passamos. Prossigo. cordas de violão, colheres grias e motivações que me
Eu receava ser expulso tortas, papel amassado, faziam vir aqui. Onde eu
assim que começasse a cartas, idéias, sensações. estava com a cabeça? Cai
falar. Mas o que eu falaria? Entre tudo, os amigos e a um fio de luz da cúpula
Tantas coisas, por tantos família. Procurei guardar de vidro acima de mim, na
anos, atravessaram-me, e a essência deles comigo. chuva que cessa, clarean-
agora estou completamen- Lá está o registro históri- do-me a vista. Viro-me em
te vazio. Conheço todos os co de nossa vida. Se boa, direção à porta. Lá fora,
meus desejos e pecados. se má, é digna de eu me talvez, eu esteja a salvo.
Mas frente a alguém em lembrar dos maus e bons Saio...
Poemetos
E se cantarem a primavera Renato Wegner de Souza
Após um longo outono
Eu
Já estarei morto.
Melhor é cantar
de novo
e de novo.
Homem não, chora
Porque primavera
Não vem depois de outono.
Hoje vi um homem chorando no banheiro
Me disse que não, argumentou
Primeiro era cisco
Depois que vinha gripado.
Cuspiu na pia e foi embora.
Isso foi bem engraçado!
Homem também chora, mas nunca confessa.
Eu por exemplo,
Não choro.
Desperdiçar
o
papel
escrevendo
uma
palavra Renato Wegner, 19, é estudante
por de Cinema na UFPel (com o curso
trancado), mora atualmente em
linha Pelotas/RS. Nunca publicou nada.
é Seus poemas são todos frutos de
crime uma alegria e um otimismo mas-
caro estonteante.
ambiental?
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Tradução
As Cinco Dádivas
da Vida Mark Twain
tradução: Henry Alfred Bugalho
http://www.flickr.com/photos/crowolf/488623967/sizes/l/
— Não há necessidade Capítulo II
Capítulo I de refletir — e escolheu A fada apareceu e disse:
Prazer.
Na alvorada da vida, — Restam quatro pre-
uma bondosa fada apare- Ele foi para o mundo sentes. Escolha uma vez
ceu com sua cesta e disse: e buscou os prazeres que mais; e, ó, lembre-se: o
deleitam os jovens. Mas tempo voa, e apenas um
— Aqui há presentes. cada um deles era fugaz e
Pegue um, deixe os outros. deles é precioso.
desapontador, vão e vazio;
E seja cuidadoso, escolha e cada um, ao partir, zom- O homem demorou-se
sabiamente; ó, escolha sa- bou dele. No fim, ele disse: a refletir, então escolheu
biamente! pois apenas um Amor; e não reparou nas
deles tem valor. — Desperdicei estes lágrimas que brotaram dos
anos. Se eu pudesse esco- olhos da fada.
Os cinco presentes lher novamente, escolheria
eram: Fama, Amor, Rique- mais sabiamente.
zas, Prazer, Morte. O jo- Após muitos e muitos
vem disse, ávido: anos, o homem estava sen-
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Tradução
A História do
Inválido
Mark Twain
tradução: Henry Alfred Bugalho
em Wisconsin. Eu estava assento confortável num maneira que foi difícil para
muito estupefato e mortifi- amontoado de baldes. O conter as lágrimas. Além
cado, mas não havia tempo carregador estava ali, forte disto, eu me inquietava por
a perder com emoções; eu na lida — um homem co- conta do velho carrega-
deveria partir imediatamen- mum, na casa dos cinqüenta dor, temia que ele pudesse
te. Apanhei o cartão, onde anos, com uma expressão perceber o cheiro. Contudo,
estava escrito “Diácono Levi simples, honesta e bondosa, ele prosseguiu cantarolando
Hackett, Bethlehem, Wiscon- e de modos leves e com um tranqüilamente, e não deu
sin”, e me apressei através vigor prático. Assim que o nenhum indício; pelo que
da uivante nevasca até a es- trem se moveu, um estra- fiquei agradecido. Agrade-
tação de trem. Ao chegar lá, nho saltou para dentro do cido, sim, mas ainda assim
encontrei a comprida caixa vagão e deixou um pacote desconfortável; e logo co-
do peculiar queijo Limbur- mecei a me sentir mais e
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mais desconfortável, pois a Ele se engasgou uma ou — Bem, bem, todos nós
cada minuto que se passava duas vezes, então se moveu temos que ir, não tem como
o odor se adensava, e se tor- em direção ao esqu— a cai- fugir disto. O homem que
nou mais e mais repugnante xa de armas, estacou diante nasceu de mulher tem os
e difícil de suportar. Após da parte do queijo Limbur- dias contados, como dizem
um tempo, tendo ajeitado as ger por um momento, então as Escrituras. Sim, você pode
coisas a seu contento, o car- ele voltou e se sentou perto olhar pra isto do jeito que
regador apanhou um pouco de mim, aparentando estar quiser, é tremendamente so-
de lenha e fez um fogo tre- bastante impressionado. lene e curioso: Não tem nin-
mendo em sua fornalha. Após uma pausa contem- guém que vai escapar; todos
Isto me inquietou mais plativa, ele disse, indicando vão embora — todo mundo,
do que posso descrever, com um gesto a caixa: como se diz. Um dia, você
pois não pude evitar de — Amigo d’ocê? está vigoroso e forte — nes-
sentir que isto era um erro. te ponto, ele se pôs de pé e
— Sim — eu disse, com quebrou uma janela e esti-
Eu estava certo de que o um suspiro.
efeito seria deletério sobre cou o nariz para fora dela
meu pobre finado amigo. — ‘Tá já bem avançado, por um segundo ou dois,
Thompson — o nome do né! então se sentou de novo, en-
carregador era Thompson, Nada além disto foi dito quanto eu me esforcei para
como descobri no decorrer por talvez um par de minu- lançar meu nariz para o
da noite — agora vagava por tos, cada um ocupado com mesmo lugar, e continuamos
seu vagão, fechando quais- seus próprios pensamen- fazendo isto vez ou outra
quer eventuais fendas que tos; então Thompson disse, — e no dia seguinte, ele foi
ele pudesse encontrar, lem- numa voz baixa e reverente: ceifado como a grama, e os
brando que não fazia dife- lugares que o conheciam
— Às vezes, não se tem não o conhecem mais, como
rença que tipo de noite esta- certeza se eles realmente
va lá fora, ele pensava estar dizem as Escrituras. É verda-
partiram ou não — parecem de, é tremendamente solene
nos deixando confortáveis, ter partido, você sabe — a
de qualquer maneira. Eu não e curioso; mas todos temos
quentura do corpo, juntas de ir, um dia ou outro; não
disse nada, mas acreditava moles — e assim por diante,
que ele não estava fazendo tem como fugir.
e mesmo que você ache que
uma boa escolha. Enquanto eles se foram, você não tem Houve outra grande pau-
isto, ele cantarolava para certeza. Eu tive casos em sa; então:
si como antes; e enquanto meu vagão. É completamen- — Do que ele morreu?
isto, também, a fornalha te horrível, porque você não
estava ficando mais e mais Eu disse que não sabia.
sabe se a qualquer minuto
quente, e o ambiente mais e eles não vão se levantar e — Há quanto tempo ele
mais sufocante. Eu comecei olhar pra você! morreu?
a empalidecer e a nausear, Pareceu-me sensato au-
mas sofria em silêncio e não Então, após uma pausa,
e erguendo um pouco seu mentar os fatos para encai-
disse nada. xá-los nas probabilidades;
cotovelo em direção à caixa:
Logo notei que o “Sweet então, eu disse:
By and By” gradualmente se — Mas ele não ‘tá em
nenhum transe! Não, senhor, — Dois ou três dias.
esmoreceu; em seguida, ces-
sou totalmente e que havia ponho minha mão no fogo! Mas isto não surtiu efeito,
uma imobilidade ominosa. Nós nos sentamos por pois Thompson recebeu-o
Após alguns momentos, algum tempo, em silêncio com um olhar ultrajado e,
Thomson disse: meditativo, ouvindo o vento sem rodeios, disse:
“Puxa! Eu acho que não e o ronco do trem; então — Dois ou três anos, que
foi canela que joguei ali na Thompson disse, com uma você quer dizer.
fornalha! boa dose de sentimento: Então ele prosseguiu, pla-
www.samizdat-pt.blogspot.com 69
está com o jogo ganho, sabe, nunca vi, em todo estes havia tempo, fi-las na pla-
assim, pela lógica, o homem tempos de estrada; e já car- taforma. E rompendo para
que tentar alterar seus pla- reguei muitos deles, como a plataforma, Thompson
nos sairá perdendo. disse pr’ôce. sufocou e caiu; e antes que
Mas nós não poderíamos Voltamos para dentro eu pudesse arrastá-lo, pelo
ficar expostos àquela insana quando já estávamos duros colarinho, eu mesmo quase
nevasca, pois morreríamos de frio, mas, misericórdia, havia desmaiado. Quando
congelados. Então retorna- não conseguíamos ficar lá recobramos a consciência,
mos para dentro e fechamos dentro. Então, simplesmen- Thompson disse, deprimido:
a porta, e voltamos a sofrer te passamos a valsear de — Temos de ficar aqui
e a nos revesarmos na ja- dentro pra fora, de fora pra fora, chefia. Temos de ficar.
nela quebrada. Depois dum dentro, congelando, descon- Não tem outro jeito. O go-
tempo, enquanto partíamos gelando, e sufocando, em vernador quer viajar sozi-
duma estação onde havía- revezamentos. Em torno de nho, e ele está decidido que
mos parado por uns instan- uma hora depois, paramos pode nos vencer.
tes, Thompson saltou pra em outra estação, e, assim E depois ele acrescentou:
dentro, alegre, e exclamou: que partimos, Thompson
veio com uma sacola e — E você não sabe, a
— A gente vai ficar bem gente está envenenado. Esta
agora! Acho que apanhamos disse:
é nossa última viagem, você
o comodoro desta vez. Creio — Capitão, vou arriscar pode estar certo disto. Por
que eu consegui a coisa que a sorte uma vez mais, ape- causa disto, a gente vai ter
vai tirar o fedor dele. nas esta vez; se a gente não febre tifóide. Já estou sen-
Era ácido carbólico. Ele pegar ele agora, a coisa que tindo ela vindo, neste exa-
tinha um frasco disto. Ele o vai restar pra gente fazer vai to momento. Sim, senhor,
borrifou por todo os cantos; ser jogar a toalha e deixar a fomos escolhidos, tão certo
na verdade, ele encharcou lona. É isto que proponho. como o fato de você ter
tudo com isto, a caixa de Ele havia trazido um pu- nascido.
rifles, o queijo e todo o nhado de penas de galinha, Fomos recolhidos da
resto. Então, nós nos senta- maçãs secas, folhas de taba- plataforma uma hora depois,
mos, sentindo-nos bastante co, tapetes, sapatos velhos, congelados e sem sensibi-
esperançosos. Mas não du- enxofre, assafétida, e uma ou lidade, na próxima estação,
rou muito. Os dois odores outra coisa; e ele empilhou e sucumbi a uma febre
começaram a ser misturar tudo numa lâmina de ferro virulenta, e fiquei fora de
e, então, bem, logo tivemos no meio do chão e tocou combate por três semanas.
que abrir a porta; e lá fora fogo. Descobri, então, que eu pas-
Thompson limpava seu ros- Quando o fogo já esta- sei uma noite terrível com
to com o lenço e disse num va bem avançado, eu não uma inofensiva caixa de
tom devastado: consegui imaginar como até rifles e um inocente bocado
— Não tem jeito. Não po- mesmo o cadáver consegui- de queijo; mas as novidades
demos vencê-lo. Ele simples- ria suportar o cheiro. Tudo vieram tarde demais para
mente usa tudo que a gente havia vindo antes era ape- me salvar; a imaginação
põe pra amenizar, e põe seu nas poesia em comparação havia feito seu trabalho e
próprio odor e joga de volta àquele cheiro, mas acredite minha saúde estava perma-
na gente. Por que, capitão, você, o cheiro original conti- nentemente abalada; nem
não percebe, está cem vezes nuava tão sublime quanto Bermuda, nem qualquer
pior do que quando come- antes; a verdade é que os ou- outra terra poderia restaurá-
çou. Eu nunca vi um deles tros cheiros pareciam for- la. Esta será minha última
se empolgar tanto em seu talecê-lo; e, meu Deus, quão viagem; estou a caminho de
trabalho assim, e ter tanto forte ele era! Eu não fiz estas casa para morrer.
interesse nele. Não, senhor, considerações lá, pois não
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Tradução
www.samizdat-pt.blogspot.com 73
http://www.flickr.com/photos/balakov/336577397/sizes/o/
Tradução
autobiografia
Enrique Gutiérrez Miranda, poeta
aficcionado e tradutor compulsivo
Tradução: Volmar Camargo Junior
do caderno. Um pouco
guei a Barcelona. Trabalhei surrealista e críptico. Não
dois meses na cozinha de publicado.
um hospital e depois num Blogs de Enrique Gutiér-
restaurante, mas uma tarde O segundo rendeu-me rez Miranda
joguei o avental no chão Hojas de hiedra. 40 séries.
e fui embora sem exigir Mais elaborado, metros Poemas y fragmentos:
meu pagamento. Encontrei variados, com e sem rima. http://enriquegutierrezmi-
emprego em uma tenda Com um apêndice de voca- randa.blogspot.com/
de jogos e apostas federal, bulário (palavras que inven-
onde ainda trabalho. to e outras raras) e outro
de referências, citações de
Certo dia comprei um Laberintos y espirales:
poemas e canções de pop
PDA, para organizar meus http://labesp.blogspot.com/
ou rock, com o original e
livros e minha coleção minha tradução. Não publi-
de postais eróticos. Tive cado.
a idéia de ir transferindo Perversión Poética: http://
para o PDA os poemas dos Agora estou com o ter- pervpoet.blogspot.com/
caderninhos quadricula- ceiro caderno. Ao conjunto
dos. Porém esse trabalho se total dos livros-caderno
converteu em um processo chamo Laberintos y espira-
Referências (links)
de reelaboração e recriação les. ]
de tudo o que havia sido
escrito entre 1987 e 2005. Tentei fazer uma página
na web para publicar mi- ¹ Movida Madrilena:
Organizei tudo e reuni nhas coisas, mas era de- http://es.wikipedia.org/wiki/
em um livro ao qual cha- masiado difícil para mim. Movida_madrileña
mei Fragmentos de un frac- Optei pelos blogs. Depois
tal. Metros e rimas clássicas de vários tentativas e blogs
ou quase, incluindo algum eliminados acabei ficando
soneto, temas variados, em com três: Um para poemas
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Teoria Literária
Manifesto
Urbanicista
Volmar Camargo Junior
http://www.flickr.com/photos/jalex_photo/390896449/sizes/o/
O escritor urbano, tão parecidos, são todos dos, e, paradoxalmente,
sem ser literato, sonha- irremediavelmente atra- joga-nos ainda mais para
dor, massivo, político faz ídos uns pelos outros. E o fundo dela. A ficção
ficção urbana. (Re)Cria o parecido é um eufemis- urbana não quer que se-
espaço, o tempo, e prin- mo para iguais. jamos idiotas, porém, não
cipalmente, os citadinos teme falar sobre o fato de
A ficção urbana é a
seres humanos: idiotas, a vida urbana ser, efetiva-
pior das criaturas dessa
espertos, doentes, intelec- mente, idiota, e estarmos
realidade, porque é feita
tualizados por mentiras, constantemente fugindo
rigorosamente da mes-
sensíveis uns aos outros dela por variadas e delei-
ma massa de que ela, a
de maneiras improváveis, tosas válvulas de escape.
realidade de cimento,
seres humanos de fic- A ficção urbana é, antes
asfalto, borracha, fios de
ção que ouvem, contam, de tudo, uma metaficção.
cobre, leds e derivados
recontam e continuam
de petróleo. Os urbanos E, vejam, nem falei em
rindo da mesma velha
falam sobre ser urbano, e literatura, em arte lite-
anedota de sempre. Es-
ao mesmo tempo, falam rária. Penso que isso, se
creve sobre si mesmo.
sobre não sê-lo. A ficção, existe, é um ideal, velho
Mas também, é provável,
quando é boa, faz-nos como os livros, divino,
aceitável, até desejável
pensar na grande idiotice inacessível, a própria
que seja sobre todos os
em que vivemos atola- constituição de porções
urbanos, porque, sendo
www.samizdat-pt.blogspot.com 77
Teoria Literária
A Linguagem
do dia-a-dia na
Literatura
Henry Alfred Bugalho
henrybugalho@gmail.com
http://www.flickr.com/photos/fchouse/2706871095/sizes/o/
A tendência natural de
todo escritor é começar
escrevendo de maneira
semelhante à que fala.
Estamos imersos na
linguagem oral desde
que nascemos, desde as
primeiras palavras que
nos dirigem nossos pais.
Primeiro, aprendemos a
falar, a comunicarmo-nos
através da emissão e arti-
culação de sons.
O hábito da escrita só
começa a surgir poste-
riormente, muitas vezes
apenas quando passamos
a freqüentar a escola.
Por isto, quase sempre a
competência de expressão
escrita é inferior à compe-
tência oral.
www.samizdat-pt.blogspot.com 79
utilizada para meros fins que os de índole moder- lação lingüística é, em
comunicativos, a escrita nista trazem para suas pá- parte, uma prática incons-
literária transcende esta ginas a língua ordinária. ciente de rapport, de iden-
instrumentalidade. A tificação entre os falantes.
Analisemos, então,
Literatura comunica, mas Lembro-me duma entre-
alguns pontos que contri-
sem perder os requintes, vista do Ratinho para o
buirão para compreender-
as sutilezas e a beleza da programa “Observatório
mos como nossas escolhas
linguagem. da Imprensa”, quando, um
influenciam nossa escrita.
dos entrevistadores per-
Até o século XIX, os
guntou ao apresentador:
limites entre a linguagem
literária e a oral eram 1 - a literatura não é a - No seu programa,
muito evidentes. Não era realidade, portanto, não você fala errado muitas
à toa que a literatura era precisa ser regida pelas vezes. No entanto, aqui,
conhecida como belles let- mesmas práticas, pelas você não cometeu um
tres, em oposição à escrita mesmas leis, pelos mesmos único erro de português?
voltada para a simples princípios presentes no Por quê?
comunicação de algo. mundo real.
Então, o Ratinho res-
O modernismo do sé- No mundo real, as pondeu:
culo XX surgiu em con- performances lingüísticas
- Porque eu preciso fa-
traposição ao beletrismo, costumam variar de acor-
lar igual ao meu público.
recorrendo, assim, a uma do com nosso interlocu-
proximidade à língua do tor: quando falamos com Ou seja, na vida real, a
dia-a-dia, trazendo para a uma pessoa mais “simpló- seleção de qual registro
Literatura o mundano, o ria”, há uma tendência a da língua utilizaremos
minimalismo, as imperfei- usarmos um vocabulário influenciará no modo
ções, o simplório, o feio. menos rebuscado, diante como seremos recebido
Apesar de haver expandi- de interlocutores mais por nossos ouvintes.
do a compreensão do que sofisticados, tentamos
é Literatura, a moderni- elaborar sentenças mais
dade também instaurou complexas. 2 - Como a literatura
a ausência de critérios de
não é a realidade, mas um
avaliação: tudo passou a Isto não é uma prática
simulacro, ela precisa esta-
ser arte, tudo passou a ser existente apenas entre os
belecer quais são as regras
literário. mais educados (educação
que a regem.
formal), mas presente em
Assim como em todas todas as classes sociais. Se partirmos da lógi-
posições antagônicas, o Basta assistirmos a um ca anterior, não há nada
debate entre coloquialis- telejornal para ver como de errado em optar pelo
mo e purismo arrebanha todos tentam “falar boni- coloquialismo, posto que
seguidores nas duas dire- to”, mesmo que acabem o autor é o senhor do
ções. Os autores de orien- incorrendo em mais erros mundo literário que cria.
tação beletrista defendem por causa disto. No entanto, ele estará de-
uma autonomia da lingua-
limitando o horizonte de
gem literária, enquanto Na verdade, esta nive-
interpretação e de recep-
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Crônica
Caio Rudá
Ao sr. schopenhauer
www.samizdat-pt.blogspot.com 83
sado). Adivinha o que ele são semelhantes àquelas que, ra alemã e mundial de seu
significa? (risos) Brincadeira, a partir de muitas descrições período. Nem sua mãe lhe
viu Schop? Só para descon- de viagens, têm informa- escapou à língua firina. Se-
trair. Ah, desculpe. Você ções precisas a respeito de riam os escritores da época
não sabe o que é isso (risos). um país (...) no fundo não tão lastimáveis assim? Ou
Outra piada. Agora que esta- dispõem de nenhum conhe- o seu mau humor influen-
mos mais íntimos, que criei cimento coerente”, em suas ciava até na hora de emitir
um clima mais amigo, vou próprias palavras. Só posso um juízo sobre a obra alheia,
chamá-lo de Schop. Pode ser? concluir que você nunca foi fazendo pouco de tudo o que
Então, como eu ia di- apegado a leituras, especial- não lhe apetecia? Talvez você
zendo, o chopen... digo, o mente as de má qualidade. fosse um crítico muito par-
mau-humor é sua marca. Então fica a curiosidade cial, tomado pela mágoa de
Não haveria graça em lê-lo de como vieram as aulas ter tido um reconhecimento
se não tivéssemos que ima- de idiomas que nos dá em tardio, em seus últimos anos
ginar qual seria o próximo Parerga e Paraliponema. Já de vida. Ou talvez os ale-
xingamento para alguns de nessa época você era agracia- mães de seu tempo fossem
seus adversários. Ah, Schop, do com o dom da violação bons comedores de chucrute
você precisa ver como está o do tempo e conseguia re- enquanto escritores mesmo,
mundo moderno. Sabia que trocedor em séculos e mais o que é mais provável, dada
suas idéias hoje são bastan- séculos para adquirir as sua superioridade diante dos
te influentes? Acredita que noções de latim e grego? outros seres humanos.
recentemente criaram um Ainda sobre idiomas, Prometo que agora en-
curso de “como denegrir a outra curiosidade. Qual o cerro de verdade. Só apro-
imagem do seu inimigo com problema com os “repulsivos veitando a deixa do último
classe”? Apostilas baseadas sons nasais”? Tudo bem que parágrafo. Olha, aqui vai um
em sua obra. os alemães nunca se deram conselho de amigo. Você é
O outro fato que me le- bem com os franceses, o que gênio, cara. Não há como ne-
vantou uma tremenda curio- lhe dá motivos para desme- gar. Um homem num pata-
sidade foi como você tem recer a língua dos gauleses, mar acima dos demais. Mas
tanto conhecimento acumu- mas que, pelo menos, se não deixa isso lhe subir à ca-
lado. Além de um grande atenha às características pe- beça. Pode pegar mal, causar
pensador, foi um poliglota culiares do falar desse povo. mal-entendidos. Nunca se
sem igual. Latim, grego clás- Eu, como lusófono, me ofendi sabe. Nem todos compreen-
sico, sânscrito, inglês, francês, com essa declaração de ódio dem a genialidade.
italiano e espanhol, além do aos belos sons nasais. Se-
materno Alemão. Essas são ria despeito por não saber
É isso, Schop! Foi uma
as que nos foram permitidas pronunciá-los corretamente?
mensagem breve e amigá-
saber. Não me espantaria Nesse ponto, você foi infeliz.
vel. Queria escrever mais,
que houvesse mais algumas E para finalizar, que a mas agora devo dedicar-me
a citar. Mas o que me intriga carta está ficando muito à reflexão, pensar por mim
não é que você tenha todo extensa, só queria cutucá-lo mesmo. Afinal, nos dias de
esse conhecimento, afinal de mais uma vez: você falou hoje, ainda dá para fazer
uma mente brilhante tudo mal de Deus e o mundo, isso e mais nada da vida.
se espera, e sim como você atirou pedras aos sete cantos Leio, penso e cuido do meu
o adquiriu sem tanta leitura. do planeta e em matéria de cachorro. Sou desocupado
Sim, porque “as pessoas que literatura foi o crítico mais mesmo, sou filósofo.
passam suas vidas lendo e ti- ferrenho de todos os tempos.
ram sua sabedoria dos livros Desconsiderou a literatu-
Dialética do
jeitinho brasileiro
Henry Alfred Bugalho
te caso, o jeitinho não de doleiros, que vendem vez até redefinirmos sua
funcionou e muita gente drogas na noitada, que concepção e encontrar-
rodou nas blitz. fazem de tudo por uma mos algo de bom, o “bom
renda extra continuam jeitinho”, quando toda
Dias atrás mesmo, o por aí. “O que os olhos esta capacidade criativa
jeitinho brasileiro voltou não vêem, o coração não dos brasileiros para supe-
a ser notícia. Voluntários sente”, diz o ditado, e isto rar adversidades é utiliza-
ajudando os desalojados vale para um país onde da pra algo que preste, e
das enchentes em Santa tudo é permitido, ou para não apenas para prejudi-
Catarina estavam apro- aquele com lei rigorosa. car os outros.
veitando aqueles montes
e mais montes de roupas O jeitinho também
e alimentos para econo- não respeita classe so-
mizar um dinheirinho. cial. Aliás, o nível sócio- Portanto, diga sim ao
Afinal de contas, era econônimo só determina “bom jeitinho” (e tor-
tanta coisa que ninguém um fator: o tamanho do ça para que, um dia, as
iria perceber se um tênis, jeitinho. notícias nos jornais sejam
um sutiã, uma calça jean, de jeitinhos a favor das
ou um quilo de feijão Pobre rouba miúdos, outras pessoas)!
desaparecessem. “O que como gatos pra pegar TV
os olhos não vêem, o a cabo ou pra ter aces-
coração não sente”, diz o so a internet; rico rouba
ditado, e este é também bocados, rombos milioná-
um dos motes do jeiti- rios aos cofres públicos.
nho: tudo vale, enquanto
você não for pego. Muitos povos são co-
nhecidos por suas carac-
Os jeitinho brasilei- terísticas: a pontualidade
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Crônica
Litoral
e Capital
Pedro Faria
http://www.flickr.com/photos/himmelundholle/527154570/sizes/l/
“Todos os homens são imaginaremos seu sangue E foi só.
filhos da puta”. latino fazendo pulsar seu
corpo colado no nosso. Para ela, não deve ter
Somos filhos da puta sido nada. Apenas mais
mesmo. Alguns de nós Uma mulher magra, um homem lhe olhando
mais do que o aceitável, para nós é flexível e mó- na rua, nada fora do nor-
outros menos do que deve- vel. Uma mais cheia, é mal. Mas em mim, como
ríamos. quente e amorosa. seria em todos os homens,
esse breve encontro gerou
Mas você tem que nos Hoje vi uma mulher na inúmeros pensamentos.
perdoar. Somos todos rua, na calçada oposta. Ela
crianças. Mesmo o mais andava na direção oposta Nessa hora, eu estava
cínico, o mais orgulhoso à minha. Quando meus com um amigo, e após ver
e vaidoso de nós é uma olhos encontraram os dela, a mulher, não ouvi mais
criança. Sei que isso não é seu pescoço se deslocou nenhuma palavra dita por
desculpa para nossa igno- para o lado, assim como o ele durante alguns minu-
rância, mas é no mínimo meu, e nosso olhar demo- tos.
um atenuante. rou mais do que os olhares
que normalmente compar- O modo como ela me
Às vezes, somos ani- tilhamos com estranhos na olhara...
mais. Animais cujo maior rua. Ela era alta, mesmo de
pecado é a imaginação. Nenhuma mulher sabe
longe, e usava um vestido
realmente o efeito de seu
roxo justo, que ressaltava
Mostre-nos uma loira, olhar sobre um homem.
bem seus seios. Tinha ca-
que fantasiaremos com Muitas acham que sabem,
belos pretos, e sua pele era
rainhas nórdicas sob peles, mas se enganam.
morena. Ela sorriu quando
num deserto gelado. Mos-
nos olhamos e eu sorri A morena me afetara
tre-nos uma morena, que
também.
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Crônica
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e4/Cristo_en_la_cruz1.jpg
Joaquim Bispo
A desinformação pública
A era de Cristo, con- Isto é o que os histo- abordei o assunto, encolhe-
vencionou-se, começou a 1 riadores sabem e não lhes ram os braços em atitude
de Janeiro do ano 1. Há o merece qualquer tipo de de demissão.
momento zero, mas não há discussão.
o ano zero. No fim do dia Esse período foi penoso
31 de Dezembro do ano No entanto, não foi para mim. Imbuí-me da
1, completou-se 1 ano. Se isso que vimos por todo o consciência aguda de que
alguém tivesse comemora- mundo, com a comunica- a razão, o rigor e a verdade
do a data, devia ter come- ção social, ignorante mas científica estavam arredados
morado um ano, como os arrogante, comandada pela das nossas vidas e da nossa
pais fazem com qualquer globalização mercantilista sociedade, substituídas por
criança quando completa e a pressão consumista, a interesses meramente eco-
1 ano. Neste método, claro propagandear o embuste e nómicos, ou ainda de índole
e lógico, no fim do ano 2, a incentivar a comemora- mais obscura. Descri da
passaram 2 anos desde o ção da passagem do milé- possibilidade de qualquer
início da era; no fim do ano nio na passagem de ano de avanço de mentalidades,
99, passaram 99 anos; no 1999 para 2000. Cheguei a tendo por mentores tais
fim do ano 100, passaram ouvir a alarvidade de que pedagogos de massas. Se
100 anos; no fim do ano mudava o milénio, mas não não conseguem elucidar a
1999, passaram 1999 anos mudava o século. Enquanto sociedade sobre uma coisa
desde o início da era; no isso, não vi qualquer tenta- tão simples e descompro-
fim do ano 2000, passaram tiva, por parte das entidades metida, que sabedoria, que
2000 anos e é altura de científicas, que também têm esclarecimento se pode
comemorar a completude responsabilidades sociais, esperar deles, em questões
de dois milénios. Alguma de desmistificar a falsidade. de importância crucial para
dúvida? Alguns docentes, com quem a Humanidade?
http://indiainteracts.com/utilities/printpage.php?source=blogcontent&id=3400&postid=33
Joaquim Bispo
A importância
do prepúcio
Se Cristo nasceu a 25 de era. Por isso, a data aposta çava a 25 de Dezembro. O
Dezembro, porque é que a nos documentos anteriores estilo da Páscoa usava o dia
era de Cristo começa a 1 de a esse momento deve ser desta festa móvel, o que era
Janeiro? diminuída de 38 anos, para pouco prático. Finalmente,
os situar em relação à nossa em 1582, os cronologistas
Na verdade, não se sabe era. católicos aderiram ao início
quando Cristo nasceu. do ano a 1 de Janeiro, a que
Actualmente, pensa-se que O início do ano civil es- se chama estilo da Circun-
nasceu cinco a sete anos an- tava fixado, desde os Roma- cisão, por coincidir com
tes da nossa era. O monge nos, em 1 de Janeiro, por ser a circuncisão de Cristo, já
cita Dionísio o Exíguo, por o primeiro dia do mandato que era uso, entre os Judeus,
volta do ano 532 da nossa dos seus cônsules. No en- circuncidar as crianças no
era, indicou o dia 25 de tanto, o início do ano litúr- oitavo dia após o nascimen-
Dezembro do ano 38 da era gico foi variando, conforme to.
de César, como a data desse a época e os países, mas
acontecimento e o início sempre associado a Cristo. Assim, curiosamente,
da nova era. No entanto, a No que ficou conhecido vivemos na era que não é
era de César continuou a como o estilo da Incarna- do nascimento, nem da in-
ser usada durante séculos. ção ou da Anunciação, o carnação, nem da morte de
Em Portugal, foi D. João I ano novo começava a 25 de Cristo, mas da ablação do
que a aboliu, substituindo-a Março, dia apontado como seu prepúcio.
pela de Cristo, no ano 1460 o da anunciação à Virgem
da era antiga, que passou de que ia ser mãe. No estilo
a ser o ano 1422 da nova da Natividade, o ano come-
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Crônica
Mitos, mitos,
mitos
Joaquim Bispo
http://cartoons.osu.edu/nast/images/santa_claus100.jpg
A pressão comercial no ambiente sórdido de a voar! Como na imagi-
criou o mito do Pai Na- um estábulo, de uma nária pré-contemporânea,
tal. figura que acabou em barroca, sobretudo, em
situação não menos de- que figuras aladas de to-
Antes, havia o mito plorável. dos os tamanhos voavam
cristão: uma virgem em revoadas compactas
engravidou de uma en- Um velho, meio avô em todas as direcções e
tidade extraterrestre ou excêntrico, meio palhaço, tornavam incontrolável o
sobrenatural. A esse filho que voa de trenó, vive no espaço aéreo, também o
foram atribuídos feitos Pólo Norte e dá objectos Pai Natal foi criado como
sobrenaturais: milagres. de consumo a todas as voador. Nada disto é bom
A história dos Romanos crianças, foi o mito que para a, já de si, difícil de-
(uma espécie de ameri- veio preencher a necessi- cifração do mundo real,
canos da altura) não deu dade duma figura glamo- por parte da criança, que
por ele, o que não impe- rosa ultra rica, que gasta assim recebe, de quem
diu que a lenda crescesse a rodos. É claro que não mais confia, um acrésci-
exponencialmente nos é uma entidade sobrena- mo de dificuldade, uma
séculos seguintes. Nos tural que esvazia a cartei- mentira. Não se faz!
últimos tempos, porém, ra…
tornava-se difícil trans-
Muito gostam os in-
formar em paradigma do
ventores de mitos de pôr
consumo o nascimento,
figuras antropomórficas
Conteúdo
http://oficinaeditora.org/2008/11/29/audiobook-da-oficina/
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Poesia
LABORATÓRIO POÉTICO
Do caroço de uma hora Volmar Camargo Junior
(a essência das Horas) v.camargo.junior@gmail.com
PASSOS
NATALIDADE
CORAÇÃO
Explode!
Explode, cabeça!
E acaba com este cérebro maldito.
Quero apenas meu corpo,
Para abrigar meu coração,
Que agora...
http://www.flickr.com/photos/mrsmagic/1358807119/sizes/o/
Sou só ele.
www.samizdat-pt.blogspot.com 95
sonetos
Marcia Szajnbok
www.samizdat-pt.blogspot.com 97
PlacigAMORniano
Dênis Moura
http://www.flickr.com/photos/peasap/1752872124/sizes/l/
É o estar preso usando a liberdade,
É vencer pra servir quem lhe venceu,
Com quem te ganha a vida, lealdade.
S A M I Z D AT
SOBRE OS AUT
ORES DA
SAMIZDAT
SOBRE OS AUTORES DA
SAMIZDAT
s
erto Barro esenhis-
Carlos Alb e n o r d estinos, d
, filh o d mado,
Paulistano i s t a p l ástico for
empre, a r t l como
ta desde s a v i d a profissiona
Começou s u eu ras-
escritor. t ã o , j á deixou s
, desde e n turais,
educador e a s e C entros Cul
G’s, Es c o l edagógi-
tro por ON s a r t í sticos e p
traba l h o fluência
através de q u e t ê m forte in
riênci a s ganiza
cos – expe A t u a lmente, or
SOBRE sobre seus
escri
t
t
r
o
a
s
ç
.
ã o p a ra criança
s, estuda
e escreve
OS AU oficinas de
ilus
m H i s t ó r i a da Arte
TORES
pós-gradua
ção e
internet.
SA-
cações na
DA
para pu b l i
il.com
ador@hotma
carloseduc pot.com
nome.blogs
http://des
www.samizdat-pt.blogspot.com 99
99
Giselle Sato
Giselle Sato é autora de Meninas Malvadas, A pequena
bailarina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca. Estudou
Belas Artes, Psicologia e foi comissária de bordo. Gosta
de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que
chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um
eficiente panorama da sociedade em que vivemos.
gisellenatsusato@gmail.com
s
Joaquim Bispo Guilherme Rodrigue
Ex-técnico de televisão, Estudante Letras na
ado
xadrezista e pintor amador, Universidade do Sagr
de
licenciado recente em His- Coração, em Bauru, on
sempre morou . Nutre
tória da Arte, experimenta guas,
agora o prazer da escrita, grande paixão por Lín
,
em Lisboa. Literatura e Lingüística
ca
áreas em que se dedi
cada vez mais .
o
Henry Alfred Bugalh
a pela UFPR, com
É formado em Filosofi ra e
pecialista em Literatu
ênfase em Estética. Es as
atro romances e de du
História. Autor de qu
.
coletâneas de contos
Nova York, com sua
Mora, atualmente, em
sua cachorrinha.
esposa Denise e Bia,
.com
henrybugalho@gmail
www.maosdevaca.com
r Deves
Maristela Scheue
pequena ci-
Gaúcha nascida na
eçou a sonhar
dade de Pirapó, com
logo aprendeu
em ser escritora tão
lmente nos
a ler. Escreve principa
io, sus-
100 SAMIZDAT dezembro
contde nos gêneros mistér
os2008
100 de cr ôn icas.
pense e terror, além
Caio Rudá
hoje
Bahiano do interior,
Es tuda Psico-
mora na capital.
Fe deral
logia na Universidade Pedro Faria
dia
da Bahia e espera um Estuda Matemática na Univer-
o. En-
entender o ser human sidade Estadual do Rio de Janeiro,
ac on tec e, vai músico amador e escritor quando
quanto isso não
co di fi-
escrevendo a vida, de dá na telha. Nascido e criado no
ist cia.
ên
cando o enigma da ex Rio.
do, prê-
Não tem livro publica
e sequer
mio, reconhecimento punksterbass@hotmail.com
a. Mas
duas décadas de vid http://civilizadoselvagem.blogspot.com/
tencial
como consolo, um po
.
asseverado pela mãe
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj
m
/ Zulmar Lopes
Zulmar Lopes é carioca. Forma
do em jorna-
lismo pela Universidade Gama
Filho, trabalha
como assessor de imprensa. Alm
a provinciana e
coração suburbano, encontra-s
e provisoriamen-
te exilado na cosmopolita Copac
abana, bairro
fonte de inspiração de personage
ns e situações
que compõem seuwww.samizdat-pt.blogspot.com
s contos. Escreve para fugir 101
do marasmo.
Também nesta edição,
textos de