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1. BACHARÉIS OU TARIMBEIROS?
Há uma frase atribuída a Gran Bell que diz “Nunca ande pelo caminho traçado,
pois ele conduz somente até onde outros foram”. Em outras palavras, sem ousadia e
inovação, as práticas e os pensamentos tendem a se repetir e o avanço do
conhecimento inexistirá. Na doutrina militar, esse aforismo é facilmente comprovado.
A repetição ou cópia de doutrinas de outros exércitos conduz à estagnação
profissional, à aridez intelectual e, invariavelmente, às derrotas em combate. Este
artigo busca andar por outros caminhos da doutrina, ousando e levando muito mais
a perguntas do que a respostas.
Ter respostas para todas as nossas incertezas doutrinárias é extremamente
perigoso. Beira a temerária unanimidade que sempre remete a soluções simples,
porém nem sempre adequadas ao problema militar. Não ter “a resposta”, em alguns
casos, pode ser a única saída intelectualmente honesta. Não ter “a resposta” e
incitar a pesquisa e o debate intelectual, é caminho aberto para o sucesso em
combate e para a excelência do ensino e da aprendizagem.
Daí, surge uma primeira indagação: se a Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército (ECEME) quer ser, conforme está escrito em sua visão de futuro1, uma
referência mundial acerca de doutrina, quais os caminhos a seguir? A priori,
existiriam dois.
Um, voltado para o estudo das práticas doutrinárias consagradas, com ênfase em
“o que fazer”, de caráter prático, objetivo, pragmático, mais fácil e menos inovador.
Outro, busca “o como fazer”; esse mais incerto e cujos resultados podem aparecer
somente no longo prazo, baseado na pesquisa acadêmica, na interpretação e na
confrontação de dados e seguindo uma metodologia científica. Será que esses dois
caminhos são inconciliáveis? Será que se está diante de uma decisão maniqueísta?
Recentemente, em debate ocorrido na ECEME, foi perguntado a um palestrante
se a importância que o Exército Brasileiro (EB) tem dado à pesquisa científica,
estimulando a formação de mestres e doutores, não seria um retorno aos tempos
dos “tarimbeiros versus bacharéis”. A idéia levantada, válida no sentido de suscitar o
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Acessar o site http://www.eceme.ensino.eb.br/
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“Desde o momento em que o corpo de oficiais soviéticos admitiu oficiais sem experiência de
combate, a pesquisa da História Militar no campo da tática torna-se extremamente importante” . Trad.
do autor.
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Na verdade, essa equação foi formulada por Dupuy em face das afirmações de Clausewitz. P (poder
de combate) = N (número de soldados) x V (circunstâncias variáveis em combate) x Q (qualidade da
força que combate). Daí saiu, muitos anos depois e fruto de inúmeros aperfeiçoamentos, o cálculo do
poder relativo de combate (PRC) que muitos exércitos utilizam no mundo atualmente.
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Em uma análise inicial, essa máxima poderia ser confirmada ou não por inúmeros
combates. Dupuy, por exemplo, utiliza três combates assim resumidos:
Combate Atacante Defensor Vencedor
Confederados União
Gettysburg União
(76.000) (90.000)
União
Confederados
Antietam Gen McClellan Confederados
Lee
(300% sobre Lee)
EUA
Itália (2ª GM) - Batalha
(300% sobre tropas Alemanha Alemanha
de Lanuvio
alemãs)
Quadro 2 – Exemplos históricos.
Fonte: o autor, baseado em dados fornecidos por DUPUY, p. 35.
“Given these facts, and in spite of the development of all means of transportation in
the thirty years since World War II, the speed of mobile operations cannot, in our
opinion, be expected to rise dramatically in the foreseeable future. It was
demonstrated in the Israeli-Egyptian campaign of 1967 that not even an army
operating under ideal conditions, enjoying complete superiority in the air and taking
a second rate opponent by surprise, stands much chance of covering more than
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forty miles per day. ”
Alcance
Dias Taxa de avanço
Campanha de penetração
de combate (km/dia)
(km)
Marengo, 1800 350 31 11
Jena, 1806 140 6 23
Somme II, 1918 110 16 17
Barbarossa, 1941 700 24 29
Caucasus, 1942 775 34 23
Mandchúria, 1945 300 6 50
Ofensiva da Coréia do Norte, 1950 560 42 13
Sinai, 1967 220 4 55
Samaria, 1967 80 3 27
Golan, 1967 35 2 18
Média - - 27
Quadro 3 – Taxa de avanço em campanhas do século XIX e XX (selecionadas).
Fonte: DUPUY, p.151.
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“Dado estes fatos, e apesar do desenvolvimento de todos os meios de transporte nos trinta anos
desde a 2ª GM, a velocidade das Op móveis não pode, em nossa opinião, ter aumento relevante no
futuro próximo. Demonstrou-se na campanha do Israel-Egito de 1967, que nem mesmo um exército
operando sob as circunstâncias ideais, gozando de superioridade completa no ar e confrontando um
oponente da segunda categoria pela surpresa, terá muita sorte se cobrir mais de 40 milhas por dia”.
Trad. do autor.
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3. CONCLUSÃO
DUPUY (p. xxii, apud Fuller), diz “[...] we must criticize ourselves, and criticize our
criticisms; we must experiment and explore”6. Acredito que ter humildade intelectual
para aceitar essa idéia é passo fundamental para que se possa avançar com a
doutrina. Respondendo ao mote inicial deste artigo, deve-se pesquisar com
profundidade para se combater com profissionalismo. Trata-se da busca de sinergia,
não de divisão de esforços. Como se vê, o episódio histórico conhecido como
“Tarimbeiros e Bacharéis”, não se aplica ao momento atual.
Sinteticamente, o objetivo deste artigo foi o de instigar o raciocínio doutrinário e
provocar intelectualmente o leitor, ousando com um novo enfoque sobre a aparente
dicotomia pesquisa versus combate. As respostas aos questionamentos feitos ao
longo desse trabalho não serão oferecidas na conclusão pelo simples fato de o autor
não as possuir. Cada pergunta pode gerar uma dissertação ou uma tese na ECEME
ou, ainda, um trabalho em grupo multidisciplinar, a fim de subsidiar a Escola na
busca de soluções e inovações doutrinárias para cada evento explorado, dentre os
muitos existentes.
Ser uma referência mundial em doutrina é um objetivo difícil mas factível. Não é
trabalho para uma única geração. Há que se manter a determinação diante dos
avanços e dos recuos naturais e saudáveis que o processo infere, quando se decide
por tal empreitada.
O caminho é longo e induz o domínio de aspectos fundamentais, como:
possibilidade cada vez maior de os instrutores e os alunos interagirem de maneira
franca, leal e disciplinada acerca de posições doutrinárias contrárias; ênfase em
disciplinas que embasem as discussões (metodologia, pesquisa operacional, História
Militar e Direito Internacional Humanitário, dentre outras) e na interdisciplinaridade
decorrente; busca do domínio, pela maior parte dos discentes e docentes, do idioma
inglês (as melhores e mais completas fontes estão nesse idioma e muitas não foram
traduzidas para o português); incremento na formação de mestres e doutores, sem
esquecer da qualidade e da pertinência dos trabalhos às necessidades do EB e, na
medida do possível, diminuir o peso do grau nos trabalhos escolares e nos
resultados dos cursos da ECEME, incentivando a criatividade responsável, mesmo
com a ocorrência de erros, que devem servir como aprendizado.
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“Nós devemos criticar nós mesmos e criticarmos nossas próprias críticas; nós devemos
experimentar e explorar”. Trad. do autor.
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Tudo isso, sem desviar-se do fulcro da Escola: o ensino das operações ofensivas
e defensivas nos níveis brigada, divisão de exército e Ex Cmp, além de manter suas
pesquisas coordenadas e coerentes com o que tem sido desenvolvido em outras
escolas, como a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), e, finalmente, o
incentivo ao pensamento crítico como cultura da Escola.
O Exército Brasileiro colocou para si este desafio: tornar-se referência mundial na
área de doutrina. É um objetivo ousado, profundo e exeqüível; portanto, coerente
com a estatura da ECEME na sua busca pela chamada “Doutrina Tupiniquim”, tão
propalada por Castello Branco.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Eduardo Leopoldino de. Introdução à pesquisa operacional. Rio de
Janeiro: LTC, 1990.192p.
CLAUSEWITZ, Carl von. Clausewitz, trechos de sua obra. Rio de Janeiro: Biblex,
1988. 195p.
DUPUY, T.N. Understanding war. History and theory of combat. London: Leo
Cooper, 1987. 292p.