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O homem da pós-modernidade: A literatura em reunião
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Ebook622 pages10 hours

O homem da pós-modernidade: A literatura em reunião

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A literatura em reunião é uma obra crítica voltada aos estudos literários. Nela o leitor pode encontrar uma visão percuciente da ficção na pós-modernidade, quais as implicações na definição deste estilo literário, bem como perspectivas filosóficas e teóricas passíveis de se associar ao conhecimento da literatura atual. A autora investe na leitura crítica do romance O homem duplicado, de José Saramago fazendo da interpretação meticulosa uma leitura provocativa, uma viagem ao mundo literário atual, com precisão e originalidade em suas abordagens.
LanguagePortuguês
Release dateDec 16, 2015
ISBN9788581489001
O homem da pós-modernidade: A literatura em reunião

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    O homem da pós-modernidade - Madalena Aparecida Machado

    arte?

    Apresentação

    O livro que vem a público faz a junção entre ficção e teoria, tem por objetivo primordial buscar saber modos e configurações do homem presente na atual Literatura. Ao optarmos pelo texto de José Saramago, o fazemos por acreditar que sua escrita ficcional nos remete às interpelações bastante intensificadas na atualidade, resumidas em uma só: Quem sou eu? Ao centrar nossas inquietações no romance O homem duplicado, procuramos entabular um diálogo com a Filosofia em contraposição aos poucos trabalhos sobre o livro que apontam exclusivamente a questão identitária em seu bojo; entretanto, nosso nível de leitura procura extrapolar tal limite. O que parece à primeira vista uma espécie de ecumenismo teórico de nossa parte, interpõe-se na escrita a favor de uma visão literária afinada com o tempo presente e seu plano irresoluto. Em nossa escrita, entendemos como pós-modernidade um aspecto da cultura caracterizado pela incredulidade em relação ao metadiscurso filosófico-metafísico, especificamente com suas pretensões atemporais e universalizantes. A deslegitimação da noção de ordem é outro ponto a se destacar ao sublinharmos uma definição teórica para o que adotamos enquanto pós-modernidade. Se há o risco de nomeação para o pós-modernismo, enquanto período ou escola literária, também se faz necessário vê-lo como algo que organiza nossas vidas, nossas manifestações culturais e esforços somados no intuito de compreendê-lo. Quanto à seleção de autores tão díspares situados tanto na esfera filosófica como teórico/crítica, a duplicidade do pós-modernismo tem a nos ensinar que é o desafio da interrogação o motivo condutor. Conscientes de que estamos envolvidos com a própria ideia do pós-moderno no que se constitui o objeto da investigação, a liberdade proclamada de Kierkegaard, Kant a Sartre é estudada junto ao poder de questionar o presente conforme disponibiliza Adorno, Schopenhauer e Nietzsche. A procura por ser, ao constituir a indeterminação do homem segundo Heidegger, pressagia o conhecimento da subjetividade partindo-se do vazio, na visão de Foucault. A descontinuidade anotada por Baudrillard ganha contornos de abertura, observados na escrita de Derrida, os quais, considerado o lado problemático da vida, teoricamente são enfrentados por Deleuze. Enquanto avançamos na pesquisa do homem localizado no encontro com dilemas predispostos em Giddens, encontramos no questionamento do duplicado um corpo imerso no arbitrário de um sentido. Finalizando com Barthes ao assentir com a não escolha ou ver o sentido igualado à ausência, tecemos uma rede interpretativa com a ficção do romancista português entendendo-a como uma procura a qual o homem se lança. Nesta, depara-se primeiro com o silêncio, depois o vazio, sendo que não há um sentido específico que podemos determinar quando a intenção é conhecer o homem estampado na Literatura.

    Colocado o problema do valor humano face às diversas transformações em vias de se efetivar, tomamos o personagem Tertuliano Máximo Afonso que, na ausência de motivos para viver, abre-se à problematização do estar no mundo. Mediante a ausência de referência na qual situamos o romance, o homem da pós-modernidade envereda por onde não há convergência. Isso não significa que ele deixa de postular a necessidade de se conhecer ao se deparar com a indiferença tanto nos relacionamentos quanto no fato de angariar um significado no mundo. Algo gerador da crise da condição humana em meio ao mundo caotizado feito de sombras e simulacros a compor a distância abissal entre original e cópia. Sem chegar a ser uma possível homologia estrutural, o romance prima em transitar nessa questão a qual vem a ser o escopo de nossa pesquisa: como dimensionar o humano sabendo-o inapreensível às próprias representações, daí a duplicação permeada com a ideia de univocidade?

    O corpus literário de Saramago corrobora na compreensão do humano na medida em que se situa na instância controversa da questão. Não podemos deixar de mencionar o fato de O homem duplicado render tributo às diversas obras que trabalharam a temática do duplo. Com isso expõe sem rodeios o quanto emergem as dificuldades acerca da maneira de disponibilizar tal complexidade a se apresentar ao homem e a este se representar tendo por álibi o humano. No dissenso, o personagem realiza o deslocamento que tomamos pela reunião que a ficção faz com a teoria, consumando o pensar dialógico, nossa tenção maior de estudo. A conjunção entre as duas esferas postula uma leitura da figura humana cujo teor literário se sobressaia. Então, nossa proposição de entendimento grassa entre a oposição da claridade nos nomes dos protagonistas com a exata contrariedade na grandeza desmentida por suas vidas.

    Dentre os aspectos fundamentais em nossa pesquisa, salientamos a não polarização das questões referentes às hipóteses de trabalho; em contraposição a uma visão setorizada e restrita, preferimos um arcabouço teórico sem marcas contingenciais. Daí a explicação para as vozes plurais existentes na nossa escrita que, longe de constarem simplesmente com intuito de atender ao discurso de autoridade, procuram demonstrar nossa suspeição sobre as máscaras estimuladas pelo senso comum. Consoante ao propósito filosófico subjacente, mas não imperante, a partição do sujeito no nosso livro delega ao indeterminável devir, o atributo mais condizente para tratar a crise da condição humana pela qual passam os personagens de O homem duplicado. Para além do discutível conhecimento trocado pela informação numa cultura predominantemente consumista ou de um saber especializado a gerar a fragmentação do sujeito, essa narrativa testemunha o homem da pós-modernidade. Isto porque tanto nas ações quanto no ensimesmamento do protagonista, existe o intermédio que referenda nossa argumentação concernente ao lado labiríntico do questionar. Em face de tal diligenciar, este livro tem por peculiaridade sustentar o impasse, o não fechamento, a não resolução como meta referencial na composição de uma imagem do homem literário.

    N’O homem da pós-modernidade: a literatura em reunião, não é propósito abarcar um conhecimento humano que se queira limítrofe ou mesmo decisório, mas, sob o ponto de vista da experiência humana, apresentar uma ideia de homem cuja elaboração é feita a cada perspectiva. Os elos expressivos entre a plêiade de filósofos e teóricos com a Literatura, os quais nos encarregamos de encadear, se fazem por meio de outro olhar descomprometido com noções logocêntricas, procurando na imisção com a não identidade o esforço de configurar um novo sujeito mais condizente com qualquer pertencimento discutível. A retomada de diferenciadas apreciações, portanto, longe da pretensão de estabelecer um patamar mediante o caráter humano intrincado, almeja, isso sim, procurar associação visto tratar-se de um personagem em elaboração perene. De certa forma, confrangido por esta tarefa, se vê em plena disseminação. Então, se há unidade entre os personagens da narrativa no que se refere à apresentação humana na obra, esta advém da percepção da imanência do que, não retorna. Algo a nos fazer apropriar de algumas ideias teóricas, como as mencionadas, no sentido de dialogar e com isso fazê-las render, articulá-las a alguns pensadores que de certa maneira, podemos dizer serem partícipes da condição pós-moderna. O propósito do livro também não se restringe a polarizar questões relativas ao tema, como se os personagens tomados pela presença humana na Literatura pós-moderna pertencessem, sem restrições, a um mesmo paradigma de observação eleito. Ao contrário, o homem do romance capaz de ver um erro e com base nisso despertar para reflexões sobre si, contraria normas, encontra-se no caos performativo. Como parte de sua singularidade a vácuo, tal relação consigo produz o traço característico da alteridade. Com o nome e a vida expropriados, esse homem de papel se torna idêntico ao espelho e, dividido, expõe a necessidade de responder ao outro considerado não sujeito.

    As injunções do pensamento na nossa interpretação visam gerar um conhecimento partindo da identificação com o outro, no intuito de assimilá-lo, interiorizá-lo, compreendê-lo mesmo idealmente. O refinamento desse proceder pode entoar a pergunta, um marco por onde devemos avançar. Passado o utilitarismo moderno, a dialética instalada no decorrer da experiência humana, a qual nos imbuímos de investigar, se dá em termos da não conformidade a princípios universais. Nesse vão, o homem deixou de ser o sábio que vive de acordo com a razão. É, por outro lado, alguém na expectativa de encontrar sabedoria nas emoções pouco visíveis nos nossos tempos imediatistas. Em consequência, não há identificação com a atmosfera de perfectibilidade que, num primeiro momento, poderia sugerir a presença de dois homens aparentemente iguais na narrativa. A incompatibilidade surge na proporção direta de imperfeição tanto em ser e viver quanto de se posicionar no devir. Na duplicação, a completude suspeita por via do pragmatismo se estilhaça, uma vez que a moral no romance é cambiante e a falta de talento, seja no trabalho ou na vida, se apresenta a modo de faceta humana num tempo por se fazer.

    O percurso de interpretação adotado objetiva contemplar, sob diversos ângulos, o homem comum, sozinho, morador numa grande cidade, compelido por força de argumentos externos a princípio e, internos em definitivo, a desmerecer um conhecimento que do seu ponto de vista era irretocável. Com o nível de consciência mais apurado, da apatia, passamos ao deparar com vários caminhos a serem seguidos, dentre eles, o não achar caminho algum resultante da humanidade em realce. Em decorrência, a não compreensão aceita como forma de abordagem por onde transitam o provisório e o processo. Após a miragem do espelho, o escutar e se pôr à procura do crescimento humano exigem o cuidado imprescindível quando a capacidade de observação se pauta no abismo, nos fossos profundos encontrados ao desfazer modos de subjetivação.

    Num ritmo bastante particularizado, o homem situado na pós-modernidade exige um modo específico de pensamento, e encontrá-lo é nossa tarefa desde as páginas iniciais do livro até seu fecho. Desfeito o mundo da representação, a ruptura literária que enxergamos na performance do homem duplicado germina a potência de uma apresentação desvinculada. Na zona de indeterminação encontramos o Homo literatus com a interioridade desorganizada, através da rachadura em seu mundo o pensar experimenta a busca da unidade. Improvável? Sofrer a duplicação em si convoca a inconsequência (o caráter ambíguo) da Literatura, em se tratando de uma forma de conhecimento diametralmente oposta ao solo filosófico, a exigir a consequência sob pena de invalidez. Preferimos, antes, o encontro entre dois mundos.

    Capítulo 1: O homem duplicado – homem pós-moderno?

    Enquanto, soterrados sob a umidade da razão, os homens passam como espectros, debaixo do céu das constelações.

    Ricardo Guilherme Dicke

    Em O homem duplicado (2002), José Saramago narra a vida de Tertuliano Máximo Afonso, um professor de História. Sujeito comum, sem grandes expectativas, vive sozinho em seu apartamento; é pacífico, dócil e submisso. Entediado, um dia recebe do colega professor de Matemática a sugestão de assistir a fita do filme Quem Porfia Mata a Caça. Neste, Tertuliano repara num personagem secundário que mais tarde descobre ser Daniel Santa-Clara, nome artístico do ator António Claro, uma cópia idêntica sua. O professor arma toda uma situação para encontrar o ator e comparar-se a este, conduzido pelo senso comum que no romance atua como personagem; Tertuliano se vê num impasse e se mostra o homem portador da dificuldade de se apropriar de si.

    Na presente interpretação, não tencionamos entrar na discussão de gênero e sim tratar da presença do ser humano na Literatura de nossa época que, embora de difícil definição, adotamos como pós-moderna por se tratar de uma determinada maneira de compreender o mundo e a realidade propícios de atenção analítico-filosófica. A produção literária de José Saramago problematiza a subjetividade ou a subsistência dela, por isso ao pensar Tertuliano Máximo Afonso, o homem com nome e sobrenome, temos inicialmente a aparência de contornos nítidos. Fato logo superado porque o vemos imerso em uma angústia. Ele é voltado ao trabalho intelectual, tem vontade de mudar suas perspectivas, mas é barrado pela burocracia. Com a descoberta do filme se coloca em busca de algo que é maior do que o simples encontro com o ator Daniel Santa-Clara. O personagem principal do romance traz no nome a insígnia de um escritor eclesiástico, bem como a grandeza de quem paralisou as vitórias de Annibal encarnando o ideal do título do filme: Quem Porfia Mata a Caça. Assimilamos que aquele homem é quem porfia, mesmo interiormente, e porfiar segundo o dicionário Aurélio é discutir com calor, altercar, insistir, disputar. Embora notando a abrangência destes verbos, no sentido do significado convocar um interlocutor, a seu modo, o duplicado deseja demarcar território. O ator, objeto de sua busca frenética, sucumbe ao final da história, antes, porém, se torna motivo desencadeador de reflexões acerca da vida, do papel desempenhado por cada um. O objetar de ambos, frente à primazia do outro, já que são iguais na aparência, leva-os a entrar no mundo das dúvidas, das imensas interrogações. Ao indagar sobre o maior enigma de suas vidas, os personagens compactuam com a porção ainda não desvendada da existência humana.

    No início do romance parece-nos corriqueira e banal a vida do professor secundarista. Encontramos nessa primeira impressão elementos capazes de inúmeras assertivas, afinal, quem é Tertuliano, Daniel, António? Por que Tertuliano se transforma em Daniel e António em Tertuliano? O empenho em descobrir quem nasceu primeiro supera a busca de uma explicação científica para a situação. No intuito de se conhecer por meio daquele eu misterioso, o Daniel também sem identidade real, juntamente com Tertuliano e António, desperta a fim de um entendimento mais amplo de si mesmo. Iguais até nas marcas de nascença, os duplos e não gêmeos revelam-se unos quando querem conhecer um ao outro sem se denunciarem, motivo dos disfarces. Ao se esmerarem nessa intenção, deixam suas ocupações anteriores.

    Há algo em comum entre eles? Quem é o homem duplicado? Em qual dos dois pode-se dizer que haja uma subjetividade singularizante? No decorrer deste livro, encaminhamos uma abordagem da Literatura de José Saramago com vistas à dimensão possível do sujeito individual que perdeu terreno num tempo marcado pela ausência do sentimento e dominado por uma espécie de euforia por saber de si, uma vez desintegrada a subjetividade.

    Saramago coloca o homem em sua ficção a se perguntar quem é; embora isto não seja pioneirismo deste escritor, o topos do duplo seja recorrente em vários autores da Literatura Ocidental, dentre eles Shakespeare, Machado, Wilde e Poe que trabalharam com esta espécie de tradição literária; o que nos motiva na pesquisa é por entendermos que sua narrativa literária é eminentemente de caráter filosófico (com certo timbre ensaísta) atuando como uma espécie de provocação à racionalidade contemporânea. Portanto, fornece elementos para enriquecer nosso estudo acerca do tema. Importa considerar que, embora concentremos nossa leitura do romance por um prisma filosófico, vimos preponderar como meta a textualidade da ficção no que tange à emoção/sabedoria pulsante na Literatura. Se traçarmos um paralelo entre O homem duplicado e obras que giram em torno do assunto, veremos pontos de contato e afastamento sendo que o romance supracitado se destaca por situar o homem num mundo sem paisagem, história e objetivo, com um vazio em si muito mais que a suposta obrigatoriedade de encontrar alternativas para a desumanização segundo pensa Sandra Ferreira em seu estudo sobre o livro. Podemos, além do mais, perceber a invocação do duplo na apresentação comparativa de seu mais recente protagonista através do intradialogismo com outros personagens do próprio Saramago:

    [...] em dois casos, de afortunado desenlace, aquele pintor de retratos de quem nunca chegámos a conhecer mais que a inicial do nome, aquele médico de clínica geral que voltou do exílio para morrer nos braços da pátria amada, aquele revisor de imprensa que expulsou uma verdade para plantar no seu lugar uma mentira, aquele funcionário subalterno do registo civil que fazia desaparecer as certidões de óbito [...]. (Saramago, 2002, p. 10)

    Além daquelas influências diretas citadas pelo escritor na ocasião do lançamento do livro em Portugal (07/11/2002): Camões com A comédia dos anfitriões, Plauto, Antônio José da Silva e Molière, observamos junto a O homem duplicado certa relação ante à multivalência de imagens com o livro O duplo (2003). Publicado em 1846, por Fiódor Dostoiévski (1821-1881), acima da inovação literária estabelecida, põe na temática a discussão sobre a liberdade de ser. Apesar de ser um livro de juventude do autor, a narrativa com recursos estilísticos inovadores, apresenta a trajetória existencial de Iákov Petróvitch Goliádkin ou simplesmente Goliádkin que no seu emprego de conselheiro titular se vê preterido por um funcionário homônimo e idêntico fisicamente. Vive sozinho com um criado, Petruchka e quando se vê obrigado a se relacionar com outras pessoas, por ser tímido, se mostra embaraçado. Na distinção que o narrador faz entre o senhor Goliádkin sênior e júnior, destacamos que o primeiro demonstra todo o desagrado de ser duplo, ser usurpado de sua identidade. O fator que mais o intriga é porque as pessoas ao seu redor não observam, não fazem distinção entre ele, um cumpridor de seus deveres, um homem acima de qualquer suspeita e esse novo Goliádkin, de trejeitos vulgares que, ao atrair a atenção sobre si, tira a seriedade do ambiente.

    Goliádkin, com ar de alguém que queria esconder-se de si, portador de angústia e medo, tem o mesmo espanto e terror que Tertuliano. Perante o duplo, o incompreensível; o desconcerto da imaginação acompanha o resignar momentâneo, o calar-se mediante a força do desconhecido sendo igual a si. Original e cópia transitam entre um e outro sem que o leitor possa abrir um precedente diante da igualdade de imagens personificadas. Tal qual o duplo de Dostoiévski, o duplicado traz para além da angústia de em tudo ser igual como num espelho ou duas gotas de água, a sensação de não ter culpa nenhuma do que vem a ser um fenômeno passageiro. Dessa circunstância estranha, surge a proposta de viverem juntos como irmãos, algo impensável ao duplicado de Saramago. Como isso também não se efetiva na história do duplo, procurar o outro, saber do outro se faz tão necessário e mesmo imperioso por se tratar da identidade em questão. O disfarce para o duplicado e a máscara para o duplo perfazem o sentido procurado quando o assunto em pauta é ser. A necessidade de seu uso, questão suscitada pelos dois escritores, liga os personagens por um fio condutor. Além da tentação de deixar tudo como está e da urgência em ter de se decidir, somam-se a inutilidade das palavras diante da necessidade de agir. Além destes pontos específicos, observamos que Saramago é tributário de Dostoiévski quanto ao papel do senso comum na história de homens impulsionados a ser por conta própria. A carta investigativa segue o mesmo rumo, ousar saber.

    Enquanto o duplo se desespera por ver seu emprego, o lugar na vida sendo surrupiado por um eu atravessado, perde aos poucos a consciência do que ele mesmo é. Em contrapartida, a simpatia do narrador pela condição de humilhado do senhor Goliádkin é perceptível através da caracterização daquele outro eu. Ora é o homem ignóbil, o falso senhor Goliádkin, o falsamente nobre adversário, depravado e encarniçado inimigo, ao passo que o duplo ora é o sisudo senhor Goliádkin, ora o verdadeiro. Assim como é colocado pelo narrador que cada um tem o seu caminho e não se sabe qual nos será reservado, é o mesmo beco sem saída a que se vê exposto tanto o duplo quanto o duplicado. Embora a demência final do duplo marque a vida desse homem tão comum e tão especial, o que registramos de influência fica a cargo dos personagens se sentirem outros, um ser à parte, ambos são retratados à maneira de alguém que se coloca à espera. A autoconsciência exprime dos vários eus criados pela imaginação dos escritores, essa humanidade apesar de pequena consegue ser o ponto de reunião para os conflitos acontecerem.

    Tal atitude define a ansiedade existencial presente em Tertuliano, à beira da depressão porque lhe falta coragem para encarar a realidade. De início, a expressão de dúvida que o move vem da decisão entre gastar tempo em preparar algo comestível ou sair para jantar; continuar o trabalho em casa ou ler um estudo das antigas civilizações mesopotâmicas. Entretanto, não está contente, tem a sensação de incompletude. Conforme o narrador faz questão de enfatizar, ele é gente comum, tanto é corajoso quanto covarde. Ao assistir Quem Porfia Mata a Caça, o herói duplicado se impressiona com a visão semelhante do ator, isto o assombra porque na verdade existe um prenúncio de diversidade da vida, da qual ele fugira. Preso entre maneiras distintas de ser humano e viver a vida, o protagonista se debate com questões tais como: Quem é esse homem do filme? Qual o seu nome? Como ninguém reparou em tal semelhança? O professor então decide sobre a necessidade de encontrá-lo apesar do perigo que isso representa. Ele está localizado num mundo fragmentado, episódico e hostil, por isso tenta escolher, embora saiba dos limites, dos recursos escassos à mão. Na empreitada, vem uma sensação de vazio crescente até sacudi-lo com a revelação da existência de um homem visto como seu vivo retrato, a perturbação é inevitável. Fisicamente vê a possibilidade do ser humano repetir-se. Mas, a ideia de duplicação faz Tertuliano se espantar, logo ele que se enxerga como um erro. O quebra-cabeça emoldurado pelo curso da vida que se tem – eu mesmo – perfaz a insegurança existencial, nisso há um desmoronamento físico e moral, os problemas se aglomeram e o mais contundente é se responder: que é ser um erro? Aos poucos compreende que as escolhas à vista também significam a probabilidade de uma permanente ansiedade de estar errando. O homem duplicado, ao apresentar algumas das perplexidades do mundo contemporâneo, prioriza a aflição do homem atual não somente quanto às questões materiais, acima disso o se sentir vazio e aborrecido com tudo.

    A Literatura marcada pela presença do homem cujas vozes variadas aí se instalam fala de um indivíduo que perdeu o sustentáculo, adequado à angústia da incerteza. Esse dado extrapola a compreensão do romance um tanto reduzida de Sandra Ferreira (2007, p. 3), para quem o livro ecoa as antigas oposições binárias: original e cópia; amor e ódio; eu e outro; vida e morte. É importante ressaltar que nosso objetivo é estudar o personagem principal do romance enquanto representante de certo modelo de mentalidade, base de autocompreensão da contemporaneidade que é o pós-modernismo e, como tal, não é uma tarefa que possa se estabelecer de imediato ou de forma conclusiva. O escritor no conjunto de sua obra vê, no homem, a possibilidade de se encontrar, provocar mudanças. A narrativa ao fazer referência a questões como a individualidade, acirrada na pós-modernidade (período histórico específico), já se caracteriza como uma questão por si só filosófica. No livro Viagem a Portugal (1997), o viajante que perambula num país a se conhecer prioriza visitas a museus, castelos e igrejas. O impressionante para ele é a ação do homem, não o célebre, o reconhecido oficialmente, porém é o sujeito comum responsável por levantar paredes; aquele desconhecido da rua com sua história; o informante solícito; o guia despreocupado, mais ainda, o usuário imaginado de uma coleira se identificando como escravo de alguém. Este interesse do artista da palavra escrita repassado aos seus personagens perdura nas demais obras até chegar à duplicidade de Tertuliano Máximo Afonso. A problemática de se situar na vida é algo passível de extremos, inclusive de fazê-lo disfarçar-se no ator em quem se vê reproduzido. Por isso, perfaz uma ameaça por ser um eu bem definido na tela. Diferença explícita embora escamoteada. O comportamento e a solução são outros, o indivíduo atuando no mundo em mutação é um outro que não assimilou o mesmo enquanto sujeito. Dentro de si há ebulição porque sentido e significado passam a ser referências absurdas e por vezes inexpressivas.

    O senso comum é uma presença constante na vida do professor, suscetível às verdades sem pensar muito nelas; o colega dos números também o acompanha na vida diária; a namorada Maria da Paz é quase uma figuração; Carolina Máximo – a mãe –, mesmo morando em lugar distante, é alguém que o chama a assentar os pensamentos e António Claro, com sua esposa Helena, formam o núcleo no qual se desenvolverão as questões urgentes tecidas na legitimidade do eu que impulsionam o homem, móbil de duplicação. Se em casa o problema o martiriza, não há como dividi-lo com ninguém, em público, a máscara parece uma saída viável diante da supressão da profundidade que experimenta em si. Portanto, se a busca do significado é inócua, o fato de ir ao seu encalço coloca em exibição a faceta humana do personagem situado entre os mecanismos de verdade e falsidade, bem ao estilo pós-moderno.

    O professor de História antes submisso e amigável passa a ser outra pessoa. Quer se conhecer. Esta é uma mudança observada pelo narrador quando defende: o homem não havia mudado (Saramago, 2002, p. 43), é o mesmo de todos os tempos no sentido de se lançar ao desconhecido. O diferencial na narrativa contemporânea, esse algo que não muda, está na vida pessoal do protagonista de O homem duplicado, feito uma interrogação. Instaurada a crise da representação, o agravante é o desnorteio que o atinge na disjunção entre o seu corpo e o do outro num ambiente que já não é tão particular quanto imaginava. Na concepção da gente de seu convívio, o professor transmite uma imagem de serenidade, longe, portanto, daquele turbilhão que o atormenta. Pois bem, sabemos de sua intimidade, a esta altura estraçalhada pela aparência dividida com outro. Entretanto, não é possível dizer que podemos dotar o sujeito individual de um sentido assegurado de seu lugar no mundo, uma vez que a distância existencial entre eles é quase imperceptível, tal a semelhança.

    Comportamento este observado na individualidade em teste do personagem duplicado, por isso atormentado pela incompreensão. O dissenso que o protagonista representa dimana a afirmação da subjetividade descentrada a que o pós-modernismo problematiza. Tertuliano quer se sustentar enquanto não equivalência, ao mesmo tempo tenta recuperar a capacidade de agir e lutar em prol de seu objetivo. Embora isto fique mais no nível da discussão entre ele e a voz desconhecida, a estranha presença que o acompanha em momentos críticos, assim como a conversação com o senso comum. O que acaba num arremedo porque em cada máscara se descobre o sujeito provisório e plural.

    Diante dessa vida que não se explica, o homem está sempre imbuído mais de perguntas do que respostas. Característica intensificada no tempo repleto de contradições no qual se insere a escrita de Saramago. Ao tratar a pessoa, homem ou mulher em sua obra, muitas vezes o vê despedaçado no interior, cheio de solidão, desamparo e timidez. Como na constatação do narrador: Há coisas que nunca se poderão explicar por palavras (Saramago, 2002, p. 60), sendo assim, resta viver aquilo que elas não abarcam, como o faz o protagonista do romance ao lidar com a euforia e as intensidades de uma experiência sem par. Há na consciência arguta deste ser fictício, o valor e significado a serem respeitados no que concerne à diferença e alteridade característicos do pós-modernismo. De certa forma, o comportamento pacato e submisso do protagonista é interpelado como sujeição à condição de trabalhador ordeiro, dócil e cidadão obediente, atingido pela duplicação.

    O personagem principal em dobro se move entre a pouca confiança em si mesmo e a volubilidade dos sentimentos. Se não temos heroísmo a discutir, tampouco podemos cogitar de seus aparecimentos públicos como desvendamento da representação pessoal. Divorciado por causa de um contínuo definhamento do casamento, vive num retraimento suscetível de se envolver nas questões do eu. Mas por que não o faz, ou faz de forma inconsequente? Ou ainda, por que adia tanto? A fachada de civilidade que o afasta dos outros e ainda mais de si mesmo, gera uma opressão crescente à medida que parece inadiável voltar-se aos interesses da personalidade. No ensimesmamento em que está mergulhado, o ato de assistir o filme Quem Porfia Mata a Caça, ao invés de retirá-lo deste estado, provocará a sensação de divisão, perda de algo que nunca foi seu. A instabilidade, o paradoxo nos gestos empreendidos na procura do ator, faz o professor um homem do mundo pós-moderno dado à ruptura, deslocamento e descontinuidade – ao movimento mais da mente que do corpo –, portador de subjetividade delirante, ele é o sujeito desunificado no que há de horror nisso, também descentra o que vive, ama ou vilipendia.

    Descobrir a intimidade incrustada em outro homem pode representar uma autolibertação? As indagações suscitadas pelo desempenho do personagem principal de O homem duplicado nos conduzem a ver esta criatura como viva e expressiva, inclusive pelo fato de que a cultura pós-moderna atesta um esmaecimento do afeto. Ansiar pela individualidade fora dele, uma vez que experimenta o desaparecimento de si enquanto sujeito individual; propor-se o enigma e estendê-lo ao outro e com isso iniciar uma reviravolta no eu, são incumbências autoimpostas pelos seres ambientados nesse romance.

    Quando nos propomos a pensar o homem na obra do romancista português é devido ao nosso interesse pelo ser humano, o qual nos faz enxergar nos seres ficcionais criaturas que guardam muitas imagens de si sem, no entanto, se identificar a qualquer delas. Apesar ou mesmo por causa, como assinalamos anteriormente, de Tertuliano mostrar-se enfraquecido da vontade humana, experimenta ativamente a história que não teve oportunidade de ensinar: a sua. Afirma não saber o que é, somente quem é, assim mesmo de forma pouco apreensível. Como o encontramos no ir e vir à locadora de filmes e o contato inevitável com o atendente, irônico com o nome pouco comum do cliente. Cabe neste momento perguntar com Tertuliano: que fará depois de saber que esse homem entrou em quinze ou vinte filmes, [...]? Conhecê-lo (Saramago, 2002, p. 75) é a resposta que vemos enquanto atitude. Conhecimento sinônimo de trabalho, cogitações a respeito de um eu estranho ou de indícios de alguém que se vê, mas se retira de cena. Ao tratarmos do desnudamento interior de Daniel Santa-Clara, inferimos daí a ação direcionada ao mesmo Tertuliano. Este assume pela primeira vez correr riscos, por isso o tratamos enquanto ser humano apto a sentir com a percepção da personalidade. Ora, muitas vezes nos deparamos com esse personagem se vendo incapaz de produzir representações de sua própria experiência: como corpo pós-moderno duplicado no labirinto da cidade onde vive, interminável nas imagens repetidas.

    É de consenso nos textos teóricos apontar o sujeito pós-moderno eivado pelo provisório, variável e problemático não possuindo uma configuração fixa, essencial ou permanente. Entretanto, isto não é suficiente para a compreensão do Homo fictus. Nosso esforço inquiridor ao estudarmos as vicissitudes do protagonista da narrativa cujo homem encontra-se duplicado, é apreender que isso ocorre em relação direta com o senso comum. O mundo mais humano em que a cultura assume a forma de uma segunda natureza faz do pós-moderno a busca por rupturas, eventos ao invés de novos mundos. Por esta consideração, vemos que o protagonista pode ser visto na disjunção entre o corpo e o ambiente de tal forma que a distância, abolida, provoca o inebriamento na jornada existencial desse sujeito. O tempo vivido pelo homem na literatura do século XXI, enquanto lhe proporciona liberdade, traz a impotência para usufruí-la, tamanha sua falta de localização, não em termos geográficos, mas de se situar numa escala social e espacial passíveis da individuação que o sujeito pós-moderno se ressente, conforme defende Fredric Jameson (2004, p. 79).

    Entre os diversos sentimentos experimentados pelos personagens, há mais que desencantamento, é a questão irresoluta, a presença de uma verdade que tenta de início suplantar outra. Máximo possui a falsa consciência de si, preocupação intermitente sobre aquilo que lhe ocorrerá na vida, fato essencial para nos inteirarmos do contorno humano no livro. Como entender seus passos, a vacilação diante de decisões inadiáveis? A humanidade requerida ao longo da narrativa, o ir além da objetividade vai ao encontro de uma descrença normativa ou qualquer espécie de ordenamento, bem como da minorada extensão do pensamento entre os personagens. Visto por este ângulo chegamos à crítica ao homem duplicado, perdido por não entender seu lugar na vida, no caos, ainda assim está investido da necessidade de investigar a ordem que possa se encontrar aí. Das contradições que isto pode oferecer, surge o homem cônscio de que uma parte de si está ausente (Saramago, 2002, p. 157). Seriam as emoções, por vezes perturbadas? Esquecidas? Desnecessárias?

    O conhecimento haurido deste terreno escorregadio que é o eu desestabilizado já se anuncia por alguns títulos dos filmes – objeto da pesquisa do professor – tais como: Um Homem Como Qualquer Outro, Diz-me Quem és. A igualdade da espécie vista não com o olhar científico, caso contrário seria um tratado comprometido com alguma verdade; mas a narrativa literária, ao expor a vontade do homem em se conhecer, abre-se inclusive ao acolhimento da ignorância de seu destino (em várias passagens do texto, os personagens perguntam-se o que irá acontecer depois), da inconclusividade de opiniões, temperamentos, etc. Ressaltando que tanto recolhimento/transformação, ciúme, ódio ou vingança em determinadas ocasiões reforçam o elemento humano apreciado pela Literatura, elemento este que se destaca porque deslegitima a noção de ordem.

    Na discussão sobre quem seria o primeiro ou o segundo homem, quando há o encontro entre Tertuliano e António Claro, no instante em que se olharam desviaram a vista como se temessem encarar a realidade. Por causa disto nem o professor nem o ator serão os mesmos. Eles querem a diferença, até o minuto que os separam no nascimento. Podemos afirmar que esta atitude ou posição a demarcar vem questionar aqueles postulados éticos pretensamente universais de fazer do homem um conjunto de reações previsíveis. Ao contrário, depois do encontro dos protagonistas, o que emerge na narrativa é a luta pela particularidade sem grandeza a atingir, aguçados em sensibilidade para a diferença, ao mesmo tempo os personagens suportam o incomensurável.

    Entender e exprimir o mundo literário habitado pelo ente fictício é, além disso, vê-lo procurar se ver enquanto uno num mundo contrário a esta ideia. Como se fossem duas faces da mesma moeda, os personagens apresentam emoções plurais como a covardia de Tertuliano ou a vingança de António em tudo reveladoras da humanidade presente na Literatura de José Saramago. Não nos cabe aquilatar quanto há de emancipação na experiência ou na falta dela referente aos protagonistas de O homem duplicado, porém, aprender quanto as imagens podem ser reveladoras. Entregues a si mesmos, os homens literários adquirem a consciência de que isto não é o bastante.

    A vida de Tertuliano Máximo Afonso é um convite às dúvidas. Independente das virtudes nele encontráveis, o que coloca em questão é o princípio indispensável para distingui-lo da cópia. As circunstâncias de tempo e lugar corroboram a fim de pensarmos o delineamento do Homo literatus. Contudo, quais são os pressupostos capazes de individualizá-lo? É possível fazer julgamentos de valores extraídos de sua vivência? A incompreensibilidade apresentada no ato de o tomarmos como essencial para o discurso narrativo nos instiga a continuar na trilha deste herói que navega rumo ao canto das sereias, consciente do perigo que isso representa. Diríamos tratar-se de um entendimento argumentativo uma vez que a exterioridade do personagem é ponto de controvérsia na sua ambiência social, fato preocupante para ele. Do mesmo modo, considerar a igualdade como telos significativo é abordá-lo sob a ideia matriz de um pensamento ultrapassado, qual seja, o de fazer valer o universal em detrimento do particular, tão combatido no texto de José Saramago. A plenitude humana do homem descrito como máximo pelo escritor não significa, entretanto, o sistema representacional de alguma ideologia a ser implantada. Porém entendemos como um a priori dentro da narrativa cuja pretensão evidente é fazer o homem se pensar em tempos dominados pela objetividade. A conjugação do saber narrativo expõe desenvolvimento junto a não desenvolvimento com igual desenvoltura no que tange ao personagem em seu autoconhecimento.

    O professor que ensina História e se encontra enfadado por repetir os mesmos conteúdos do passado, deixa entrever que a História humana é por demais conhecida e a repetição do homem sendo previsível exige, contudo, interferência no presente. Quer ensinar invertendo os tempos dando ênfase na atualidade, mas é ridicularizado nas reuniões em que sua opinião é descartada. Quando finalmente o diretor solicita-lhe a confecção de um estudo defendendo seus pontos de vista, o trabalho é feito, apenas não vemos a execução devido ao envolvimento com o caso do duplicado. O mestre da sala de aula investiga, por fim encontra e conhece o ator Daniel Santa-Clara, o outro de António Claro, por sua vez é o mesmo Tertuliano. Todavia, o reconhecimento em pauta não visa num primeiro momento transformar e sim suplantar o igual a fim de garantir a sobrevivência unívoca. Afinal, haveria possibilidade de escolha se fosse o contrário? Podemos falar em sobrevivência?

    As imagens do homem em frente a uma porta fechada bem como daquele que se olha no espelho e não mais se envaidece a ponto de se inebriar com a própria visão, pelo contrário, desvia o olhar por ser insuportável, são ingredientes da Literatura envolta nos domínios da criatura ficcional. Fato motivador de interesse por causa do silêncio sobre a vastidão aberta ao imaginário. Seria a dissolução do eu um aforisma a combater? Ele é a causa da duplicação do homem? A expressão artística típica da Literatura observa os personagens na peculiaridade de inserção no mundo. Na ocorrência narrativa vem o sentir mais aguçado como em: [...] isto que agora estou a sentir poderia não ser mais que uma memória de mim mesmo histericamente activada (Saramago, 2002, p. 82), efetivamente não é? Se resgatarmos as palavras do narrador acerca do homem não ter mudado, veremos tratar-se de uma vivência repetida enquanto busca, contudo, se diferencia pela recusa das afinidades entre os personagens. Neste caso, os iguais se expelem.

    O que seria manifestação natural passa ser uma repetição indesejável, porque é como se a chocante conformidade de um tivesse roubado alguma coisa à identidade própria do outro (2002, p. 217). É exatamente este alguma coisa o objeto de nosso escrutínio interpretativo. A duplicação que se discute no livro ultrapassa dados meramente físicos. Tertuliano e António não admitem assumir uma função imitativa e assim proclamam suas defesas com um livro que não se articula. Justamente porque, no fundo, acreditam que o importante é a diferença deles. Vale salientar que após se conhecerem, não há abertura a uma relação harmoniosa, nem se veem como se fossem acessório um do outro. O saber narrativo se dá de maneira a que a argumentação suscitada pelos personagens não se baseia na administração de provas e sim de vivências separadas. Especulemos.

    Verdade, mentira, preciso ou relativo são pontos indicadores do apodrecimento das pessoas, segundo o professor de História – para quem o convívio é um empecilho para o homem se inteirar de si –, passamos então a questionar o que seria essencial ou provisório ad hominem nas concepções mutáveis do sujeito, encontradas na figura de Tertuliano. Como lhe atribuir um sentido? Se não há mais ordem a estabelecer, qual lugar podemos lhe assegurar? Pelo fato de se colocar em questionamento e de um possível sentido de si, faz do homem duplicado o sujeito humano cuja identificação se desloca à medida que se vê desvinculado da ideia de um modelo a seguir. Sozinho, vigilante, ele é alguém impactado pela necessidade de reinvenção das diferenças.

    O sujeito atravessado por muitos saberes, de quem a natureza universal vai além da identificação dos processos psíquicos, está ciente de falar muito quando se cala. Embora não haja a compreensão extensiva sobre. Para quem interpreta, o silêncio dos personagens torna-se um elemento a mais de inquirimento; dentro do abismo, entrar reticências afora é um recurso do qual não podemos nos abster. Entendendo estar bem próxima a meta a atingir pelos seres de papel, eles sentem sobre si um gesto indagador, são vítimas de isolamento. É preciso ressaltar o distanciamento da interpretação em relação à experiência dos personagens, restrita ao silêncio deles. Enquanto os homens na narrativa se debatem por entender-se nas lacunas da fala, também sofrem uma sensação de vigilância como aquela presença misteriosa perturbando Tertuliano em várias passagens do romance.

    Caso tenhamos em mente apenas a assertiva de que na pós-modernidade o homem é apresentado de forma inacabada, não teríamos resvalado nos sentidos presentes desta época tão polêmica. Com isso, queremos ressaltar a preponderância em O homem duplicado do fator contrastante com o passado: a ausência de certeza sobre si mesmo. O desconhecido acena com as possibilidades do mínimo de vida a solicitar a invenção imaginativa de si, intransferível. Há nesta narrativa a internalização da ideia de que a completude se existe é algo distante, isso se adotarmos tanto um ângulo de abordagem panorâmico quanto um mais aproximado. Certo é encontrar o topos do homem que evita o conflito, adia o contato, briga com o senso comum e troca de lugar para ser conhecido. Nisso, o intérprete fica em situação pouco confortável porque o homem do livro de Saramago em nada é previsível para se tomar como paradigma, até mesmo em sua reação díspare à identificação. A inferioridade sentida por Tertuliano quando se compara a António é este algo escondido pelo professor, age da mesma forma ao tirar a foto disfarçado de Daniel Santa-Clara, queima-a em seguida porque teme a padronização.

    É indiscutível tratar-se de um conflito interior extravasado na semelhança externa de dois seres na extensão do problema existencial. A audácia desse romance reside não só no testemunho da experiência, mas age por si só, com leis próprias abertas às verdades; aparências desmentidas são em princípio o leitmotiv do livro em que o homem à sua revelia foi duplicado. Portanto, na complexidade se instala o reconhecimento dos personagens cujo consenso de vida não ocorre. Como ser, fazer diferença se impõe como tarefa inadiável. Da duplicação até os momentos finais do romance, o personagem no ineditismo de si se pergunta: o que fazer de mim?

    Encontramos, no romance em estudo, Tertuliano Máximo Afonso na posição de pensador em sua nova fase de vida: de dorso curvado, cotovelos assentes nos joelhos e cabeça entre as mãos, [...] (Saramago, 2002, p. 116), o motivo da alta concentração é a existência em borbulhas fazendo-o pesar alternativas, medindo opções, estimando variantes, antecipando lances, como um mestre de xadrez (idem). Entretanto, o que importa não é a solução possivelmente resultante de tal atitude e sim o ato de meditar nelas, imiscuir-se no problema. Entendemos que, ao comportar-se dessa maneira, o personagem implica uma forma cadenciada de lidar com a desumanidade crescente, multíplice, ele perde a coerência fazendo-se a ressonância dupla.

    Percebemos em Tertuliano o desconcerto da situação, a confusão de sentimentos que o coloca errante ao encalço de António como uma sombra fugidia. A amargura recorrente em sua boca comumente associada ao sabor da derrota é semelhante ao impasse de Antoine Roquentin: No fundo, o que procuro? Não sei [...] Mas agora o homem... o homem começa a me entediar (Sartre, 1989, p. 29). Isso ocorre porque a resposta é difícil, por vezes inapreensível. O espelho refletindo Roquentin mostra um rosto do qual afirma não entender nada, originando assim o sentimento de sujeira, a náusea específica de quem como o duplicado procura-se.

    O eu cujas dimensões secretas ignora e quer se encontrar no outro deseja construir a subjetividade nas lembranças do presente. O professor ao altercar razões com o ator não ocasiona uma fuga de si mesmo, mas a tentativa de viver pela primeira vez a verdade que nunca teve oportunidade de ensinar; o ato de representar. A oposição neste contexto refere-se à subjetividade pautada pelo continuísmo.

    Não se trata de um dado ordinário, nem de algo a mensurar em meio a uma organização futura. Ser primeiro ou segundo na hierarquia existencial dos personagens está além da ordem, refere-se à condição humana colocada sob suspeita. O homem duplicado que estudamos não é um objeto cuja mudança de lugar adota nome diferente, mas é o indivíduo à cata do privilégio de se situar. Contudo, a constatação da existência de similaridade na aparência entre os seres da duplicação não explica nem resolve o caso de ambos.

    Assim, temos novamente Tertuliano no dilema de ligar ao ator Daniel, reconhece o absurdo disso que ele mesmo criou, para o que nem ao menos fora desafiado se encontra posto entre a espada e a parede [...] (Saramago, 2002, p. 133) bem como entre o elementar e a confecção da vida entendida sob a perspectiva por se fazer. Enquanto tratada como o silêncio a ser assimilado, resta-nos lê-lo ultrapassando qualquer espécie de escolha, tal o impasse do personagem sem destino. A existência dos duplicados ao experimentar a fragmentação do sentido não quer dizer opção ou o desenhar de si num futuro imediato, mas fugir da determinação. A grandeza anunciada pelo nome de Máximo, também a nitidez de Santa-Clara e Claro destoam da significação em nada imediata. Embora a vida dos dois tenha relação direta com o oposto de seus nomes, a clareza total não se apresenta nem a tomamos como causa final de nossa interpretação. O eu se destaca no romance por se mostrar incapaz de readaptar tensões antes neutralizadas; é preciso ainda ressaltar o abrasivo da irresolução quanto à individualidade.

    Prosseguir nos meandros da identidade do homem partido exige que esqueçamos a estrutura binária de pensar o sujeito. Mesmo se de início trabalharmos com esse referencial, prepondera a ameaça à ordem, a probabilidade de se atingir a distância que separa o hermetismo do homem por trás da aparente igualdade. A incongruência observada no caso do duplicado é um índice de entendimento. A resultante é o dissenso que se nota inclusive pela liberação do pensamento concentrado numa determinada conclusão. Nisso, o provisório e o plural do sujeito pós-moderno põem em xeque princípios de como representar ou se fazer representar perante o universo da diferença e a alteridade das quais é parte.

    O que abala Tertuliano é a inexistência de um passado particular, já em António há o receio de um futuro assombrado pela presença do duplicado. Menos provável é a convivência entre eles, tendo em vista o caso sui generis de se verem reproduzidos. A duplicidade envolve individualidade preocupante, estranheza que se tenta evitar, até mesmo o que o narrador chama de destino em várias passagens do romance: todas as razões do destino são humanas, unicamente humanas (Saramago, 2002, p. 247) com medos, dúvidas que surgem e se ampliam com o passar do tempo. E, se objetarmos que não há destino na vida desses homens especiais, há, por outro lado, uma decisão a ser tomada. Outra coisa não vemos na atitude tanto de Tertuliano quanto de António ao se inteirarem da condição de duplicados. Pois é da imagem de si desmontada que constroem um a priori agora sem raízes. Não é a visão de mundo de cada um o que nos cabe questionar, é, sim, a ilusão de si colocada em primeiro plano. Para se chegar a essa imagem múltipla de si, há de se levar em conta o anulamento da interioridade sentida por cada um dos personagens, fato este propulsor do desentendimento entre eles. O que à primeira vista parece uma condição em transe, é explorado pelo narrador como perfeição duvidosa capaz de causar abalos na vida daqueles homens tão iguais e tão diferentes ao mesmo tempo.

    Em O homem duplicado, o professor e o ator se recusam, eles são a mesma face do homem sabedor de portar uma vida substituta, dissimulada, por isso evitam o quanto podem a aproximação porque ela acarreta a antítese que preferiam evitar. Isto está dentro dos pressupostos da pós-modernidade, quando imaginar um eu desreferenciado é situá-lo num mundo onde a integridade ficou restrita ao passado. E, se o passado é desconhecido pelos homens em construção na narrativa, a forma de humanidade reivindicada por eles passa pelo aumento das tendências aflitivas encontradas ao começarem a atentar para o que realmente interessa em relação à vida. Passam a se conscientizarem que não são nem podem ser mais sujeitos autônomos cujo ego se volatiliza.

    A pluralidade temida pelo homem no romance pode ser aclarada junto à pós-modernidade que a admite e encoraja. Arquitetar um plano para conhecer o outro, se ver igual a ele no aspecto exterior depois não tolerá-lo; aparenta ser o oposto do que vínhamos defendendo. No entanto, isto se explica se no conjunto do romance percebermos que no acidente fatal do ator não houve interferência do professor. Sabemos que isto ainda não convence a favor da pluralidade. Mas, quando Tertuliano assume a vida de António – embora não o faça de forma definitiva – traz em si um vácuo. Para Carolina e Helena ele continua sendo quem é, para si continua um desconhecido. Em consequência disto, se vê obrigado a descobrir outra vida para si, também confusa? Inadequada? Diante do telefonema com a voz misteriosa se dizendo muito parecido com ele, volta ao final da narrativa ao primeiro passo a dar: decidir-se. Nesse ponto assinalamos a pluralidade, o diverso que se anuncia sempre que o homem quer solapá-lo. Ele entrou num caminho que deixara de ter princípio (Saramago, 2002, p. 290). Assim tematizado, o homem do meio se dá à interpretação problematizando-se. Ato contínuo, o duplicado estraçalha a distinção entre exterior e interior, não planifica fazendo-se invólucro e envolvido enquanto sugestão.

    A manifestação do que não se conhece passa a ser a abertura para a ampla possibilidade do humano presente no homem duplo em desordem existencial. De nome e comportamento exóticos, a abordagem não fica na origem e sim na incompletude do sujeito que se vê em multidão. Não por encanto, nem como um portento da natureza, porém alguém que não se enquadra no coletivo. Homem plural, caminha sem saber o que fazer de seu corpo, se acha sem qualidades. Considera-se meramente um acidente do qual não sabe a causa, teria uma chance de reinvenção? Deseja isso? Quem é Tertuliano Máximo Afonso que entrou sub-repticiamente na vida de António Claro, o ator que sempre foi coadjuvante e às vésperas de se tornar protagonista é ameaçado de perder o papel? Em questão, este homem, sem nos dar nenhum modelo ou explicação de si, prossegue em desnorteio. Entre os dois mundos não vemos possibilidade de fundi-los em uma síntese orgânica, justamente por se tratar do lado humano dos personagens. Então o problema – a duplicação – pode ser visto em dois níveis: o personagem coloca o próprio conteúdo interno como dilema ao passo que se representa como um problema.

    Não poderíamos afirmar de forma desavisada que seja uma história repetida ad nauseam, porque impressiona, prende o leitor chegando a atrapalhar. É ainda mais difícil deslindar um raciocínio que leve a unificar a personalidade do professor e o ator. Também não é nosso objetivo, já que de certa maneira trata-se da história do homem de todos os tempos em busca de si. A exemplo temos o escritor Robert Louis Stevenson (1850-1894), que ao publicar em 1886 O médico e o monstro (2002), debate a identidade trocada de acordo com a convenção. Embora o Dr. Henry Jekyll e Mr. Hyde sejam a mesma pessoa, a personalidade em causa divide-o entre o homem bem-sucedido, rico, virtuoso e elegante e o seu exato oposto: fisicamente mal proporcionado, ríspido, deselegante, de ocupação obscura e origem duvidosa. Hyde, apesar de ser a faceta do monstro, deriva do médico. Extravasa os desejos inconfessáveis deste. Stevenson também consegue, com sua história, criticar a sociedade de seu tempo e sua excessiva valorização à aparência. Com O homem duplicado, embora o título sugira tratar-se de mais uma história na qual se discuta a bipartição do sujeito ou de uma provável discussão científica, a alteridade

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