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A cidade e o sangue – Episódio 1 – Luiz César Baptista

A cidade e o sangue

Episódio I- Como Katherine acorda os fantasmas de Hank Fisher

Escrito e criado por Luiz César Baptista

luizcesarbaptista.blogspot.com

Aquela mulher não devia estar ali.


Na rua já se cheira o sangue. A morte.
Os últimos passos são mais rápidos. Sente qualquer coisa que a persegue. As
sombras. As sombras rodeiam-na e surgem-lhe como sustos que lhe aceleram o
batimento cardíaco. Sente o galopar do coração como se este se quisesse soltar da
enclausura do peito. Olha constantemente para trás e a visão deturpa-lhe as noções de
tempo e espaço. Os cães ladram e parecem-lhe uivos de lobos. A sua consciência dos
factos está suspensa por fios quebradiços que ameaçam partir-se a cada instante.
A noite. Aquela noite não era para ela. Uma mulher como aquela não devia estar
ali numa noite como aquela. Podes fugir, mas não te podes esconder. Sente-se um rato
preso num labirinto indecifrável, uma presa fácil à espera que o predador fique farto de
brincar com ela e se decida finalmente a come-la. São os últimos instantes. Já sente o
toque da morte, já se despede da vida.
Enfim, sente-se agarrada por braços que a cobrem como se fossem de um
gigante. A sua presença esmaga-a. A força de dois ursos. Desiste de se tentar soltar
depois de perceber que assim tudo terminará mais rápido. A dor será menor. A morte
mais tranquila. Sente o toque do fogo nas costas, um grito que é reprimido por mãos
possantes que lhe envolvem o pescoço e lhe cortam o ar. À medida que o cérebro vai
ficando sem oxigénio os pensamentos tornam-se cada vez mais ténues. Esboços sem
sentido que se sobrepõem em peças esfumadas. Esgotam-se.
E enfim, a morte.

A manhã naquele dia parecia demorar mais a entrar pelas persianas mal cerradas
do que o habitual.
Lá fora, a cidade acordava como todos os dias parecia acordar. Um acordar
fingido, um acordar de quem nunca chegou verdadeiramente a adormecer. Nas ruas, um
espreguiçar em remoinhos sonoros indistintos. Os carros, os camiões do lixo, as pessoas
que se aglomeram em vincos desordenados.
No nº5 da rua S., o sol espreita, vai espreitando, aos poucos. Sobre a secretária
desarrumada de papéis, um corpo inanimado parece enterrar-se. Nas mãos, uma garrafa

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A cidade e o sangue – Episódio 1 – Luiz César Baptista

de gargalo aberto, vazia, tal como se fosse um náufrago agarrado à última bóia. No ar há
um cheiro, uma mistura de álcool e de velho. Sim, a idade também tem cheiro e ali o
cheiro da idade realça. No chão há vestígios de passos de lama. Nas paredes há
fotografias e há memórias. Nas paredes há fantasmas. Os fantasmas são sonhos e
atacam-no durante o sono. A respiração lenta e pesada aumenta de intensidade e
momentaneamente parece cessar quando ressoa o bater dos nós dos dedos na madeira da
porta. Na cabeça de Hank Fisher os sons da realidade e do sonho misturam-se. Na
cabeça de Hank Fisher cria-se um amontoado de formas que explodem, explodem e
fazem-no enfim regressar à consciência. O bater na porta continua. Hank Fisher tenta
levantar-se mas a cabeça pesa-lhe com a agudez da ressaca. Olha a garrafa que segura e
esconde-a atabalhoadamente numa gaveta fechada. Tenta olhar o relógio, mas os
ponteiros parecem rodopiar a uma velocidade vertiginosa. O bater na porta continua.
Hank enfim reúne as capacidades motoras para se levantar e arrasta-se para a porta.
- Já vai – resmunga no caminho, mas tão baixo que nem ele próprio se consegue
ouvir.
Os passos são rastejados e demoram. Por fim, a maçaneta roda e alguém surge-
lhe pela frente. O olhar arreganhado demora a definir-lhe as formas. É uma mulher.
Uma jovem. Os cabelos parecem-lhe escuros, pretos, castanhos-escuros talvez. São
compridos. Os olhos são claros, azuis ou verdes, talvez algo intermédio. Tem uma
estatura considerável. Tem uma presença agradável. Veste-se de forma inteligente.
Consegue ser ao mesmo tempo ter classe e ser informal. Suspensa no nariz, a armação
dos óculos dá-lhe uma personalidade subtil.
- Hank Fisher presumo – diz com voz decidida mas com uma entoação doce de
fundo. Depois estica-lhe a mão.
Hank olha-a por detrás do semblante ensonado, e responde, secamente,
ignorando-lhe o gesto:
- É o que está escrito na porta. E você quem é?
- Trata todos os seus clientes assim?
Hank já sentado de volta na sua secretária, olha-a de cima a baixo, pergunta-lhe
com visível desprezo:
- Assim? Assim como?
- Assim mesmo. Apresenta-se a todos os seus clientes com o aspecto de quem
desmaiou sobre a secretária depois de ter esvaziado todas as garrafas da cidade? Trata
todos os seus clientes com todo este desdém? A mim disseram-me que era uma lenda,
mas sinceramente agora que o vejo nos meus olhos fiquei com as minhas dúvidas.
- Lendas…ainda acredita em lendas? Que ingénua – Hank procura outra garrafa
em todas as gavetas, abre-as e fecha-as com desagrado, enquanto isto continua. – As
lendas não existem, aliás, existem, mas estão todas mortas. De qual forma sei que não é
uma cliente, e como tal não me interessa agradar-lhe, portanto, porque não me diz de
uma vez quem é e o que quer de mim que eu tenho muito que fazer.
Hank desiste de procurar a garrafa e olha-a nos olhos, pela primeira vez. Ela
aproxima-se e ainda de pé começa:
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- Pois bem, é justo. O meu nome é…


Hank interrompe-a bruscamente:
- Eu não lhe perguntei o nome, perguntei-lhe quem era.
Ela sorri, faz uma expressão de entendimento, e retoma a palavra:
- Chamo-me Katherine Usher. Sou estudante de jornalismo e sim, tem toda a
razão, não pretendo os seus serviços de detective privado. O que lhe quero é muito mais
do que isso.
Hank esboça um encolher de ombro, experimenta um semblante de menosprezo:
- Não sei se reparou, mas tenho idade para ser seu avô. As pessoas não iriam
achar nada bem um relacionamento entre nós. Não me leva a mal, até a acho girinha…
Katherine fita-o numa tentativa de avaliar se Hank falava a sério ou estava
apenas a ser sarcástico, mas a sua expressão é impenetrável, é impossível desvendar os
pensamentos por detrás dos seus olhos turvos da idade, das feições marcadas pelas rugas
escavadas pela enxada dos anos. Na dúvida acaba por ignorar o último comentário e
procura um envelope na mala que carrega no ombro. Encontra-o e atira-o com decidida
veemência para o tampo da secretária, na direcção de Hank:
- Acho que o conteúdo deste envelope lhe vai interessar.
Cria-se um momento de expectativa, um momento de análise mútua em que os
olhares se cruzam e os gestos são reprimidos. Enfim, Hank toma uma posição resolutiva
e sem mostrar qualquer interesse considerável, quase com desprezo, pega no envelope e
abre-o. De dentro retira algumas fotografias que depois de um olhar vago, têm
capacidade de lhe focar a atenção. Gera-se uma transformação drástica na fisionomia e
na disposição emocional de Hank. O aspecto altivo, arrogante, despegado de qualquer
tipo de sentimento mais profundo, dá lugar a um semblante carregado, as rugas tornam-
se mais profundas, o olhar mais cerrado. Hank analisa cada fotografia com a atenção de
quem vê alguma coisa que não acredita que possa existir, com a atenção de quem vê um
fantasma. De vez em quando desvia o olhar e fita Katherine com uma expressão de
incredulidade. Katherine mantém-se calma e na expectativa. Esperava já aquela reacção,
sabia que aquele envelope seria capaz de o transtornar da forma como na realidade fez.
Era um trunfo destinando a sair vencedor. Por fim, Hank pousa as fotografias na mesa e
encara Katherine:
- Onde é que arranjou isto? – pergunta com uma entoação imperativa.
Katherine exibe um sorriso vitorioso e aproveita para explorar a aparente
fragilidade de Hank:
- Pela sua reacção presumo que lhes são familiares, imagino que seja como ser
visitado pelo passado, uma visita vinda directamente do inferno.
Hank exalta-se. Ergue-se e bate com o punho na mesa:
- Ouve miúda, vais-me dizer onde arranjaste isto ou não?
O ambiente tornou-se mais pesado. Dois espíritos possantes que se confrontam.
- Tenha calma. Não se exalte – retomou Katherine sentando-se sem autorização
na cadeira colocada do lado oposto à de Hank. – Onde arranjei isto não interessa neste
momento, a seu tempo o saberá. O que importa agora é que preciso da sua ajuda e você
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precisa da minha. Por isso, apenas quero que me conte tudo o que sabe sobre este caso.
Presumo que seja muito.
Hank leva as mãos à cabeça, passa-as pela cara como que se quisesse convencer
que está acordado. Tenta acalmar-se e volta a sentar-se:
- Antes de mais – começa depois de inspirar possantemente. - Porque raio é que
eu haveria de precisar da tua ajuda? Segundo, porque raio é que eu te havia de ajudar?
Já saí da polícia há mais de trinta anos…
- Vinte e nove… – interrompe secamente Katherine.
- Vejo que estás bem informada, que sabes mais da minha vida do que eu
próprio, mas não me impressionas…
Katherine agarra no envelope e retira uma das fotografias, aponta:
- Está a ver esta mulher? Está morta. Foi encontrada assim ontem à noite junto
às docas. Está a ver as suas costas? Está a ver a marca de queimadura que tem? Parece
que foi marcada com um ferro em brasa, como se faz com o gado, não é? A marca não
lhe faz lembrar nada? Uma cruz…
- Um crucifixo – corrige Hank, depois continua em tom constrangido. - Vinte
por dez centímetros. A morte deu-se por asfixia, estrangulamento lento, e a marca foi
feita ainda com o corpo vivo. Depois de consumada a morte, o olho esquerdo foi
removido da órbita. Não foi assim?
Katherine acenou afirmativamente:
- Tal e qual como há trinta anos...
- Há trinta anos ainda nem eras nascida, quem interesse podes ter nisto…
- Interesse? Pessoal? Nenhum, mas sei que você tem, e sei que vai colaborar
comigo…
- O que é que tu sabes sobre o que aconteceu há trinta anos?
- O que toda a gente sabe. Que houve um assassino em série que matou quinze
pessoas, todas utilizando este mesmo procedimento. Sei que você estava na época no
departamento de homicídios da polícia metropolitana e que foi o detective responsável
pela investigação. Sei que apanharam o culpado, um padre, um tal de John Malone, e
que foi condenado à morte e executado. Sei que meses depois o Hank foi convidado a
sair da polícia e tornou-se detective privado.
Hank olhou-a com atenção enquanto Katherine falava. Era como se assistisse de
novo ao que já lhe tinha acontecido, há tantos anos. Aquilo que agora voltava para o
assombrar.
- Sim, tens razão, foi mesmo isto que aconteceu, mas este caso foi resolvido, o
assassino foi encontrado e agora está morto. Quem quer que tenha matado esta mulher,
das duas uma, ou é um imitador, e não seria o primeiro, ou…foi uma coincidência…
- Uma coincidência? – estranha Katherine. – Acredita mesmo nisto? Acha
mesmo provável que alguém trinta anos depois tenha realizado um assassinato com este
nível de complexidade por coincidência?
Hank encolhe os ombros:
- Não, mas assim ficamos só com a hipótese de ser um imitador…
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- Um imitador? Porquê haveria alguém de imitar um padre? Mas diga-me, com


que certezas é que condenaram o padre Malone. Tinham provas assim tão evidentes?
- Estás sequer a admitir a hipótese de que quem matou esta mulher, foi a mesmo
pessoa que matou as outras há trinta anos? Isto é realidade, não é fantasia…
- Por favor, responda à minha pergunta.
Hank experimenta a expressão facial de quem tenta desenterrar memórias que já
há muito estavam destinadas a ficarem enterradas, diz depois de uma hesitação:
- O padre Malone confessou o crime.
- E esta confissão, foi coerente? - insiste Katherine não convencida.
Hank responde com um olhar intimidatório.
- E a arma do crime, o crucifixo? Os olhos das vítimas? Foram encontrados?
Mais uma hesitação:
- Não. A condenação baseou-se apenas na sua confissão.
- E acha que foi suficiente?
Hank começa a mostrar sinais de impaciência:
- Ouve miúda, ainda não percebi onde queres chegar, nem o que queres de mim,
e já começo a perder a paciência para te continuar a aturar. Se a confissão foi suficiente
ou não, não sei, o que sei é que depois de o padre Malone ter sido preso os assassinatos
cessaram, isto para mim é mais do que razão para confiar que apanhámos a pessoa certa.
Katherine sorri com malícia:
- Não acredita realmente nisto, pois não? E mesmo que seja um imitador, não
acha que merece ser apanhado e condenado? Não acha que vale a pena pará-lo antes que
mate mais alguém?
A resposta demora. Hank levanta-se, caminha na direcção da janela, olha o
movimento da rua, observa as vidas que se atropelam e diz sem olhar Katherine:
- Para isso é que serve a polícia, para isso é que eu pago os meus impostos, para
que eles apanhem os “maus”.
- A polícia? Já se deu ao trabalho de ver quem está na polícia actualmente? Se
estivermos à espera deles…
- Ah sim? – Hank confronta-a. – E o que sugere? Que sejamos nós, um velho e
uma miúda a apanhar um assassino? Sabe-se lá quem ou quantos…E o que ganho com
isso? O que ganhas tu com isso?
Katherine levanta-se com calma, ostentado gestos de extrema graciosidade, tira
um cartão da algibeira do casaco e pousa-o em cima da secretária de Hank. Diz:
- O que eu ganho com isso? Muito, dá-me oportunidade de escrever talvez a
história do ano, da década, enfim, ganhar prestígio. O que você ganha com isso?
Resolve um caso complicado sozinho, humilha a polícia, enfim, recupera o prestígio
que tinha. Como vamos fazer isto? Não sei ao certo, mas digamos que tenho os meus
trunfos – pega no envelope com as fotografias e mete-o de novo na mala. - E sei que o
Hank também há-de ter os seus. De qualquer forma, não lhe tomo mais tempo. Deixo o
meu número deste cartão, se mudar de ideias sabe como me contactar.

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Hank não a vê sair, mantém-se virado para a janela e quando ouve a porta bater
volta-se. Pega o cartão que Katherine deixou e faz o gesto de quem o vai rasgar. Depois
ouve qualquer coisa dentro de si. Uma voz que o chama. Um apelo interior. Não percebe
o que é mas interrompe o movimento.
Guarda o cartão no bolso.

Luiz César Baptista Produções


2009
Todas as personagens e instituições citadas nesta narrativa são pura ficção. Qualquer
semelhança com a realidade é mera coincidência.

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