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A cidade e o sangue
luizcesarbaptista.blogspot.com
A manhã naquele dia parecia demorar mais a entrar pelas persianas mal cerradas
do que o habitual.
Lá fora, a cidade acordava como todos os dias parecia acordar. Um acordar
fingido, um acordar de quem nunca chegou verdadeiramente a adormecer. Nas ruas, um
espreguiçar em remoinhos sonoros indistintos. Os carros, os camiões do lixo, as pessoas
que se aglomeram em vincos desordenados.
No nº5 da rua S., o sol espreita, vai espreitando, aos poucos. Sobre a secretária
desarrumada de papéis, um corpo inanimado parece enterrar-se. Nas mãos, uma garrafa
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A cidade e o sangue – Episódio 1 – Luiz César Baptista
de gargalo aberto, vazia, tal como se fosse um náufrago agarrado à última bóia. No ar há
um cheiro, uma mistura de álcool e de velho. Sim, a idade também tem cheiro e ali o
cheiro da idade realça. No chão há vestígios de passos de lama. Nas paredes há
fotografias e há memórias. Nas paredes há fantasmas. Os fantasmas são sonhos e
atacam-no durante o sono. A respiração lenta e pesada aumenta de intensidade e
momentaneamente parece cessar quando ressoa o bater dos nós dos dedos na madeira da
porta. Na cabeça de Hank Fisher os sons da realidade e do sonho misturam-se. Na
cabeça de Hank Fisher cria-se um amontoado de formas que explodem, explodem e
fazem-no enfim regressar à consciência. O bater na porta continua. Hank Fisher tenta
levantar-se mas a cabeça pesa-lhe com a agudez da ressaca. Olha a garrafa que segura e
esconde-a atabalhoadamente numa gaveta fechada. Tenta olhar o relógio, mas os
ponteiros parecem rodopiar a uma velocidade vertiginosa. O bater na porta continua.
Hank enfim reúne as capacidades motoras para se levantar e arrasta-se para a porta.
- Já vai – resmunga no caminho, mas tão baixo que nem ele próprio se consegue
ouvir.
Os passos são rastejados e demoram. Por fim, a maçaneta roda e alguém surge-
lhe pela frente. O olhar arreganhado demora a definir-lhe as formas. É uma mulher.
Uma jovem. Os cabelos parecem-lhe escuros, pretos, castanhos-escuros talvez. São
compridos. Os olhos são claros, azuis ou verdes, talvez algo intermédio. Tem uma
estatura considerável. Tem uma presença agradável. Veste-se de forma inteligente.
Consegue ser ao mesmo tempo ter classe e ser informal. Suspensa no nariz, a armação
dos óculos dá-lhe uma personalidade subtil.
- Hank Fisher presumo – diz com voz decidida mas com uma entoação doce de
fundo. Depois estica-lhe a mão.
Hank olha-a por detrás do semblante ensonado, e responde, secamente,
ignorando-lhe o gesto:
- É o que está escrito na porta. E você quem é?
- Trata todos os seus clientes assim?
Hank já sentado de volta na sua secretária, olha-a de cima a baixo, pergunta-lhe
com visível desprezo:
- Assim? Assim como?
- Assim mesmo. Apresenta-se a todos os seus clientes com o aspecto de quem
desmaiou sobre a secretária depois de ter esvaziado todas as garrafas da cidade? Trata
todos os seus clientes com todo este desdém? A mim disseram-me que era uma lenda,
mas sinceramente agora que o vejo nos meus olhos fiquei com as minhas dúvidas.
- Lendas…ainda acredita em lendas? Que ingénua – Hank procura outra garrafa
em todas as gavetas, abre-as e fecha-as com desagrado, enquanto isto continua. – As
lendas não existem, aliás, existem, mas estão todas mortas. De qual forma sei que não é
uma cliente, e como tal não me interessa agradar-lhe, portanto, porque não me diz de
uma vez quem é e o que quer de mim que eu tenho muito que fazer.
Hank desiste de procurar a garrafa e olha-a nos olhos, pela primeira vez. Ela
aproxima-se e ainda de pé começa:
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precisa da minha. Por isso, apenas quero que me conte tudo o que sabe sobre este caso.
Presumo que seja muito.
Hank leva as mãos à cabeça, passa-as pela cara como que se quisesse convencer
que está acordado. Tenta acalmar-se e volta a sentar-se:
- Antes de mais – começa depois de inspirar possantemente. - Porque raio é que
eu haveria de precisar da tua ajuda? Segundo, porque raio é que eu te havia de ajudar?
Já saí da polícia há mais de trinta anos…
- Vinte e nove… – interrompe secamente Katherine.
- Vejo que estás bem informada, que sabes mais da minha vida do que eu
próprio, mas não me impressionas…
Katherine agarra no envelope e retira uma das fotografias, aponta:
- Está a ver esta mulher? Está morta. Foi encontrada assim ontem à noite junto
às docas. Está a ver as suas costas? Está a ver a marca de queimadura que tem? Parece
que foi marcada com um ferro em brasa, como se faz com o gado, não é? A marca não
lhe faz lembrar nada? Uma cruz…
- Um crucifixo – corrige Hank, depois continua em tom constrangido. - Vinte
por dez centímetros. A morte deu-se por asfixia, estrangulamento lento, e a marca foi
feita ainda com o corpo vivo. Depois de consumada a morte, o olho esquerdo foi
removido da órbita. Não foi assim?
Katherine acenou afirmativamente:
- Tal e qual como há trinta anos...
- Há trinta anos ainda nem eras nascida, quem interesse podes ter nisto…
- Interesse? Pessoal? Nenhum, mas sei que você tem, e sei que vai colaborar
comigo…
- O que é que tu sabes sobre o que aconteceu há trinta anos?
- O que toda a gente sabe. Que houve um assassino em série que matou quinze
pessoas, todas utilizando este mesmo procedimento. Sei que você estava na época no
departamento de homicídios da polícia metropolitana e que foi o detective responsável
pela investigação. Sei que apanharam o culpado, um padre, um tal de John Malone, e
que foi condenado à morte e executado. Sei que meses depois o Hank foi convidado a
sair da polícia e tornou-se detective privado.
Hank olhou-a com atenção enquanto Katherine falava. Era como se assistisse de
novo ao que já lhe tinha acontecido, há tantos anos. Aquilo que agora voltava para o
assombrar.
- Sim, tens razão, foi mesmo isto que aconteceu, mas este caso foi resolvido, o
assassino foi encontrado e agora está morto. Quem quer que tenha matado esta mulher,
das duas uma, ou é um imitador, e não seria o primeiro, ou…foi uma coincidência…
- Uma coincidência? – estranha Katherine. – Acredita mesmo nisto? Acha
mesmo provável que alguém trinta anos depois tenha realizado um assassinato com este
nível de complexidade por coincidência?
Hank encolhe os ombros:
- Não, mas assim ficamos só com a hipótese de ser um imitador…
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Hank não a vê sair, mantém-se virado para a janela e quando ouve a porta bater
volta-se. Pega o cartão que Katherine deixou e faz o gesto de quem o vai rasgar. Depois
ouve qualquer coisa dentro de si. Uma voz que o chama. Um apelo interior. Não percebe
o que é mas interrompe o movimento.
Guarda o cartão no bolso.