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ISSN 1679-5709

A ANTIGA CULTURA GREGA


WILSON A. RIBEIRO JR.
Grécia Antiga, São Carlos, v. 1, n. 1, p. 3-7, 1998

Pedimos ao leitor que aceite por agora, como afirmação plausível, que
numa parte do mundo, que durante séculos tinha sido civilizada, e em alto
grau de civilização, emergiu lentamente um povo não muito numeroso,
não muito forte, não muito bem organizado, que tinha uma concepção to-
talmente nova da finalidade da vida do homem, e que mostrou pela pri-
meira vez as possibilidades do espírito humano.
Humphrey D.F. Kitto, 1980.

Os gregos (ou helenos) viveram na extremidade meridional da península balcânica e sua


cultura se desenvolveu a partir da mistura das diversas populações que lá se estabeleceram nos
últimos 8000 anos. As mais antigas características culturais que podemos chamar de "gregas", no
entanto, apareceram somente depois de 2300 a.C.
A partir de 500 a.C. a cultura grega influenciou de tal forma o mundo mediterrâneo que,
sem exagero, acabou por constituir um dos mais sólidos fundamentos de toda a Civilização Oci-
dental. Não temos, em geral, consciência de quanto a cultura grega permeia nossas vidas; so-
mente em algumas áreas do conhecimento as contribuições são óbvias.
A presença da língua grega nos idiomas modernos, por exemplo, é sutil. Todas as palavras
que lemos contêm vogais (a, e, i, o, u...), cuja representação é uma invenção puramente grega;
e muitas palavras e expressões de uso corrente, como "parte do leão", "amor platônico", "Olimpí-
ada", "não falar mal dos mortos", "estóico", "herói", "lacônico", são originárias da Grécia Antiga.
O aproveitamento das narrativas lendárias criadas, reunidas ou divulgadas pelos gregos é
mais evidente; figuras míticas são comumente utilizadas na Literatura, na Arte, na Música, na TV
e no Cinema. Héracles ("Hércules"), por exemplo, foi tema de um famoso desenho de Walt Dis-
ney; o mito de Édipo foi modernizado e contado em uma das populares novelas da TV brasileira;
a lenda de Odisseu ("Ulisses") foi contada, recentemente, em uma mini-série da TV americana.
As soluções técnicas e os padrões de beleza estabelecidos pela arte grega há mais de
2000 anos ainda hoje guiam os cânones da Arte Ocidental. Os estilos arquitetônicos gregos conti-
nuam a ser usados com freqüência em igrejas cristãs, museus, bibliotecas, teatros, etc. Alguns
exemplos: o Museu do Ipiranga, em São Paulo, e a fachada da Imperial Academia de Belas-Artes
do Rio de Janeiro, reconstituída no Jardim Botânico.
Da Literatura Grega, a mais antiga da Europa, derivaram praticamente todos os estilos li-
terários cultivados ainda hoje no Ocidente: a poesia épica, a poesia lírica, a tragédia, a comédia,
o romance, a oratória, a sátira... Os temas tratados não perderam em nada sua atualidade: obras
escritas há vinte séculos ou mais são ainda lidas, representadas em teatros ou levadas às telas
pelo Cinema.
Os gregos não foram os primeiros a se dedicar ao reconhecimento e análise dos fenôme-
nos naturais, mas ninguém antes deles se preocupou em dar explicações racionais para os fatos
observados. Ainda são válidos diversos conceitos científicos descobertos pelos gregos, principal-
mente na Matemática e na Física. E a Medicina atual, a despeito de toda a tecnologia moderna,
ainda é, tanto na forma como no método, eminentemente grega.
Vêm da da Grécia, também, muitos dos conceitos atuais sobre a natureza do Universo e
do conhecimento, e sobre a maneira sábia de viver. Grande parte das doutrinas do cristianismo, a
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Grécia Antiga, S. Carlos, v. 1, n. 1, p. 3-7, 1998

religião de maior prestígio no Mundo Ocidental, deriva do pensamento dos filósofos gregos.
Conservam-se até hoje várias instituições implementadas pelos gregos ao longo de sua
longa História, como por exemplo a tirania e a democracia. Episódios inspiradores da história,
como a batalha das Termópilas, foram assunto até mesmo das HQs (histórias em quadrinhos).
Infelizmente, apenas alguns documentos de natureza musical bastante fragmentários so-
breviveram aos séculos; nosso conhecimento da música grega é, portanto, bastante precário.
Conseqüentemente, essa é ainda uma das poucas áreas mal conhecidas da cultura grega.

Alguns depoimentos modernos

Veja algumas passagens de Edgard Allan Poe, Fernando Pessoa e Italo Calvino a respeito
dos estudos clássicos.

Edgar Allan Poe

To Helen ("A Helena"), famoso poema de Edgar Allan Poe (1809/1849), é uma apóstrofe a
Helena de Tróia, famosa personagem das lendas gregas, datado de 1831. Segue uma tradução
bastante livre:

Helena, tua beleza é para mim


Como aqueles barcos vitoriosos1 de outrora
Que sobre o perfumado mar, gentilmente,
O saudoso, cansado, peregrino2 levavam
Para a sua terra natal.
Em mares desesperados por onde há muito erro,
Teu cabelo de jacinto, teu rosto clássico,
Teu ar de náiade3 trouxeram-me para casa
Para a glória que foi a Grécia
E a grandeza que foi Roma.
Olha! Na longínqüa e brilhante janela-nicho,
Como uma estátua, eu te vejo de pé,
A lâmpada de ágata em tua mão!
Ah, Psiquê4, das regiões que
São Terra Sagrada!

Há referências mitológicas sutis (ver Notas) e muita coisa, é claro, se perde na tradução;
mas os versos ilustram maravilhosamente a reverência que Poe, dotado de mente sensível e ao
mesmo tempo aguda e analítica, tinha pela cultura clássica.
Eis o texto original:

Helen, thy beauty is to me


Like those Nicean barks of yore,
That gently o'er a perfumed sea,
The weary, wayworn wanderer bore

1
Nicean, no original, é uma referência a Níke, deusa grega que persofinicava a vitória em combate.
2
Referência a Odisseu (latim: Ulisses), rei de Ítaca, personagem do poema épico Odisséia.
3
Divindade feminina de grande beleza, associada aos bosques e florestas.
4
Embora mortal, Psiquê era tão bela que o próprio Eros, deus do amor, se apaixonou por ela.
5
Grécia Antiga, S. Carlos, v. 1, n. 1, p. 3-7, 1998

To his own native shore.


On desperate seas long wont to roam,
Thy hyacinth hair, thy classic face,
Thy naiad airs have brought me home
To the glory that was Greece
And the grandeur that was Rome.
Lo! in yon brilliant window-niche
How statue-like I see thee stand,
The agate lamp within thy hand!
Ah, Psyche, from the regions which
Are Holy Land!

Fernando Pessoa

O poeta Fernando Pessoa (1888-1935) publicou em 1924 ou 1925 na efêmera Revista A-


thena, dirigida por ele e por Ruy Vaz, este notável artigo:

"Idéias Estéticas da Arte"

Tem duas formas, ou modos, o que chamamos cultura. Não é a cul-


tura senão o aperfeiçoamento subjetivo da vida. Esse aperfeiçoamento é
direto ou indireto; ao primeiro se chama arte, ciência ao segundo. Pela ar-
te nos aperfeiçoamos a nós; pela ciência aperfeiçoamos em nós o nosso
conceito, ou ilusão, do mundo.
Como, porém, o nosso conceito do mundo compreende o que faze-
mos de nós mesmos, e, por outra parte, no conceito, que de nós forma-
mos, se contêm o que formamos das sensações, pelas quais o mundo nos
é dado; sucede que em seus fundamentos subjetivos, e portanto na maior
perfeição em nós — que não é senão a sua maior conformidade com esses
mesmos fundamentos —, a arte se mistura com a ciência, a ciência se
confunde com a arte (...)
Se é lícito que aceitemos que a alma se divide em duas partes —
uma como material, a outra puro espírito —, de qualquer conjunto ou ho-
mem hoje civilizado, que deve a primeira à nação que é ou em que nas-
ceu, a segunda à Grécia antiga. Excetas as forças cegas da Natureza, dis-
se Sumner Maine, quanto neste mundo se move, é grego na sua origem.
Estes gregos, que ainda nos governam de além dos próprios túmulos
desfeitos, figuraram em dois deuses a produção da arte, cujas formas to-
das lhes devemos, e de que só não criaram a necessidade e a imperfeição.
Figuraram em o deus Apolo a liga instintiva da sensibilidade com o enten-
dimento, em cuja ação a arte tem origem como beleza. Figuraram em a
deusa Athena a união da arte e da ciência, em cujo efeito a arte (como
também a ciência) tem origem como perfeição. Sob o influxo do deus nas-
ce o poeta, entendendo nós por poesia, como outros, o princípio animador
de todas as artes; com o auxílio da deusa se forma o artista.
Com esta ordem de símbolos — e assim nesta matéria como em ou-
tras — ensinaram os gregos que tudo é de origem divina, isto é, estranho
ao nosso entendimento, e alheio à nossa vontade. Somos só o que nos fi-
zeram ser, e dormimos com sonhos, servos orgulhosos neles da liberdade
que nem neles temos. Por isso o nascitur que se diz do poeta, se aplica
também a metade do artista. Não se aprende a ser artista; aprende-se
porém a saber sê-lo. Em certo modo, contudo, quanto maior o artista na-
to, maior a sua capacidade para ser mais que o artista nato. Cada um tem
o Apolo que busca, e terá a Athena que buscar. Tanto o que temos, po-
rém, como o que teremos, já nos está dado, porque tudo é lógico. Deus
geometriza, disse Platão.
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Grécia Antiga, S. Carlos, v. 1, n. 1, p. 3-7, 1998

Italo Calvino

"Por que ler os clássicos", famoso ensaio de Italo Calvino (1923/1985), foi escrito em 1981
e nele o autor percorre, com brilho e acuidade invejáveis, as diversas motivações para a leitura
dos textos clássicos. Não reproduzo o texto na íntegra em respeito aos detentores dos direitos
autorais; vou apenas enumerar os quatorze conceitos de livros clássicos arroladas por Calvino,
que já dizem muita coisa...

"Por que ler os clássicos"

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer:


"Estou relendo..." e nunca "Estou lendo...".

2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para


quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor
para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores
condições para apreciá-los.

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando


se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas do-
bras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou indi-
vidual.

4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a


primeira.

5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha


para dizer.

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo
as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços
que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais
simplesmente na linguagem ou nos costumes).

8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de


discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir
dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados,
inéditos.

10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do


universo, à semelhança dos antigos talismãs.

11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve
para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.

12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem
leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na
genealogia.

13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de baru-


lho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse baru-
lho de fundo.
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Grécia Antiga, S. Carlos, v. 1, n. 1, p. 3-7, 1998

14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a
atualidade mais incompatível.

BIBLIOGRAFIA

CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

FERNANDO PESSOA. Página consultada em julho de 1997, disponível em


http://www.terravista.pt/Guincho/2482/pessoa.html.

FINLEY, M.I. (org.). O Legado da Grécia. Trad. Y.V. Pinto de Almeida. Brasília: Editora UnB, 1998.

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http://bau2.uibk.ac.at/sg/poe/.

GRAIEB, C. Apagão na Cultura. Revista Veja, São Paulo, v. 35, n. 14, p. 11-15, 10 de abril de
2002.

INSTITUTO CAMÕES, s.v. "Fernando Pessoa". Página consultada em julho de 1997, disponível em
http://www.instituto-camoes.pt/escritores/pessoa.htm.

JORNAL DE POESIA, s.v. "Fernando Pessoa". Página consultada em julho de 1997, disponível em
http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.html.

KITTO, H.D.F. Os Gregos. Trad. J.M. Coutinho e Castro. Coimbra: Arménio Amado, 3ª ed., 1980.

LLOYD-JONES, H. (coord.). O Mundo Grego. Trad. W. Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

O´SAGAE, P. Italo Calvino. Página consultada em julho de 1997, disponível em


http://caracol.imaginario.com/dobrasdaleitura/contopop/calvino.html

PESSOA, Fernando. Artigos e Idéias (selecta). Página consultada em julho de 1997, disponível em
http://www.lsi.usp.br/art/pessoa/artigos/.

ROCHA PEREIRA, M.H. Estudos de História da Cultura Clássica I. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 7ª
ed., 1993.

THE EDGAR ALLAN POE SOCIETY OF BALTIMORE. Página consultada em julho de 1997, disponível
em http://www.eapoe.org/.

THE ITALO CALVINO HOME PAGE. Página consultada em julho de 1997, disponível em
http://www.geocities.com/Athens/Forum/7504/calvino.html.

Artigo disponível em
www.greciantiga.org/outros.asp?num=0085

© Wilson A. Ribeiro Jr., 2008. Portal Graecia Antiqua (www.greciantiga.org).

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