Você está na página 1de 367
f Elk fe Casa do Psicélogo® - © 2002 Casa do PricGlogo Livraria ¢ Editore Leda. E protbida a reprodugaa total ou parcial desta publicagao, para qualquer finalidade, sem autorizagio por escrito dos editores. 3" Edigéo 2002 Editor Anna Elia de Villemor Amaral Gizntert Produgio Grafica Renata Vieira Nines Capa Yeoty Macambira Sobre obra de I. Ingres, Edipo e a Esfinge Efitoragio Bletrinica Angelica Gomes Borba Revistio Sandra Regina Souza Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mezan, Renato, 1950 ~ ‘A Vinganga da Esfinge : Ensaios de Psicandiise /Renato Mezan. — 3a. ed. —~ Sao Paulo : Casa do Psicdlogo, 2002. Bibliografia, ISBN 85-7396-171-6 1, Peicandlise 2. Psicandlise ~ Interpretacio 3. Pscoterapia 1 Téeulo 02-1573, CDD-150.195, Indices para catalogo sistema L. Psicandllise : Interpretacio 150.195, 2. Psicandlise : Psicoterapia 150.195 Impresso no Brasil Printed in Brazil Revervados todos os diteitos de publicagio em lingua portuguesa & GG Casa do Psicélogo® Livraria e Editora Ltda. Bz Rua Mourato Coelho, 1.059 — Vila Madalena ~ 05417-011 ~ Sao Paulo/SP ~ Bras Bw Tels (11) 3034.3600 ~ E-mail: casadopsicologo@casidopsicologo.com.br F — bup://wwwcasaiopsicologo.com.br SUMARIO Prefiicio P Psicandlise ¢ psicoterapia 23 Rumo a epistemologia da psicandlise. 47 A querela das interpretagdes_ _ 67 Desejo ¢ inveja Nostra culpa, nostra maxima culpa s Uma primeira sessio na poltrona Memoria e identidade A vinganga da Esfinge Pode-se ensinar psicanaliticamente a psicandlise?_ Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicandlise Inveja, narcisismo e¢ ca: Klein, Lacan: para além dos mondélogos cruzados Identidade ¢ cultura Viena imagindria _ Reinvencdo da psicanilise _ 5 O bati de Freud : Seis autores em busca de um personagem Indice de obras ¢ autores _ 2 429 Sobreoautor BT om direitos PREFACIO E ste livro retine textos redigidos entre 1982 e 1986, que me pareceram conservar algum interesse, para além do evento ou da publicagao que lhes deu origem. Raras sao as ocasides em que se escreve um ensaio por pura necessidade interior; 0 mais das vezes, prosaicamente, é em fungao do convite para participar de um coléquio ou de algum niémero de revista sobre determinado tema que nos decidimos a p6r em ordem certas idéias e damos nascimento a um texto... Nao ha entre estes escritos, assim, mais do que a unidade um tanto ficticia devida ao fato de serem assinados pela mesma pessoa; ¢ digo “um tanto ficticia”, porque hd sérios motivos para duvidar da “mesmidade” do autor. Pois, como mostrou Foucault em A arqueologia do saber, as idéias nao provém da subjetividade soberana de uma consciéncia, mas de um solo que torna possiveis certos recortes e impossiveis outros, que autoriza alguns a falar e a outros impée siléncio, que legitima certos objetos de pensamento e certos tipos de discurso, em detrimento de outros, desqualificados. Os temas a que se referem estes ensaios me foram ditados por esta configuragao, que é a da psicandlise no Brasil na década de oitenta. E claro que materializam interesses e preocupacdes que me s4o préprios, porém seria erréneo supor que devam sua origem apenas aeste fator. Ha que considerar ainda, no interior desta rede descrita por Foucault, que a prépria figura do autor nado coincide consigo 8 A VINGANGA DA Eseince mesma: suas idéias podem se modificar, em nenhum de seus textos ele esté completamente ec em todos esté de algum modo. Experiéncia mais ampla, leituras que tém o poder de desperta-lo de algum sono dogmiatico, encontros inopinados impostos pela Fortuna e que, no caso de um psicanalista, podem tomar a forma de momentos cruciais vividos no diva de outrem ou em sua propria poltrona — estes fatores e certamente outros vém a determinar modos de inserg4o de quem escreve no tecido do pensamento de uma época e de um lugar. E sobretudo, se admitirmos as descobertas da psicandlise, ha o fato de que nenhum de nés é “um”: somos varios, e, como disse Drummond, “das peles que visto / muitas ha que nao vi”. Tal constatagao é mais do que um artificio de retérica, destina- do a converter a necessidade em virtude: j4 que sdo dispares estes escritos, e que nado ha meio de apagar sua disparidade, mais vale reconhecer isso de saida e transformar o defeito em qualidade... E um lugar-comum da técnica de redigir prefacios a alegacao de que, ao se reunirem ensaios num volume, a heterogeneidade deles seja decretada apenas aparente, posto que, “‘no fundo”, obedecem a uma inspiragéo comum, a ldégica sinuosa que preside aos desdobramen- tos sucessivos de um mesmo percurso. Nao creio que este seja 0 caso da presente coletinea. Preferi, alids, deixar os textos na ordem cronolégica em que foram escritos, renunciando a uma sistemati- zagao artificiosa e inutil. Pois foram feitos para intervir em debates diferentes, destinaram-se originalmente a ptblicos diversos, e 0 ato de os apresentar em conjunto responde ao desejo de tornd-los aces- siveis a um circulo mais amplo, submetendo-os 8 critica e ao deba- te publicos sem os quais no existe cultura. KK Porque a psicanilise faz, é claro, parte da cultura, e nao apenas como parte num todo. A cultura também atravessa a psicanilise, tanto no sentido lato de que esta é uma pratica social que pressupde determinagGes nao geradas por ela mesma, quanto no sentido res- PREFACIO 9 trito de que as ideologias vigentes reverberam sobre nossa discipli- na de modos variados, quanto ainda no sentido especffico em que Sérvulo Figueira fala de uma “cultura psicanalitica’’', Figueira su- gere que uma cultura psicanalitica pode ser decomposta segundo trés eixos: um eidos ou légica para O pensamento, um ethos ou cédigo para as emogées, um dialeto ou forma de expressao codifi- cada que serve para a coesio e 0 controle de certos grupos no inte- rior da sociedade. Estas sao as categorias utilizadas pelo autor para dar conta daquilo que denomina “psicologismo” sobre variados com- portamentos sociais e sobre a producgo de conhecimentos tanto nas ciéncias sociais quanto na psicandlise. Neste dltimo caso, Figueira assinala a existéncia de um duplo desconhecimento: a recusa, pelos psicanalistas, de perceber que eles mesmos e sua disciplina sio um dos focos irradiantes do psicologismo, que contribuem ativamente para a instauracao de uma cultura psicanalitica; e a ago retroativa do psicologismo e da psicologizagéo sobre 0 campo psicanalitico, nele influenciando, de forma sutil, a produg&o de conhecimentos. Estas idéias de Sérvulo Figueira me parecem extremamente liteis para situar adequadamente o problema das relagoes entre a psicandlise e 0 meio no qual ela se implanta. Gostaria de acrescentar a elas um outro aspecto que me parece importante, e que diz respeito a uma faceta facilmente perceptfvel no campo psicanalitico brasileiro, embora esteja longe de se reduzir apenas a este setor da nossa sociedade. Refiro-me a algo que chamarei “vulnerabilidade ao dogmatismo”, ¢ que consiste na facilidade com que certas idéias adquirem valor de evidéncia axiomatica, como se desde sempre estivessem inscritas em nosso céu de anil. Um dos determinantes da cultura psicanalitica brasileira é que, entre nds, a psicandlise é uma planta exdtica, importada dos centros culturais hegemOnicos; que existam neste momento muitos analistas praticando-a, muitos pacientes se tratando e numerosas instituigdes (1) Figueira S. et alii, Cultura da psicandlise, Sio Paulo, Brasiliense, 1985. 10 A Vinoanga ba Esrsct que dispensam um ensino de psicandlise nao altera, ainda, este fato. Quando doutrinas ou praticas de origem estrangeira se instalam num meio sociocultural, é evidente que sua implantagdo e sua difusio virdo a se dar segundo prismas de refragio especificos a este meio. Entendo por “prismas de refragao” tanto as instituigdes formais € informais que servem de canal entre o que é importado e seus destinatérios, quanto os sistemas de representagdes formais e informais que vao filtrar este “algo”, o qual deverd se impor em face de tais sistemas e a tais instituigdes, acomodar-se em parte a eles, reformulé-los parcialmente para os torar compatfveis consigo proprio. Relativamente as instituigdes que a acolhem, nao é indiferente que a psicandlise se difunda em determinado pais através do vetor médico-psiquiatrico, ou da Universidade, ou dos meios literdrios e culturais em sentido amplo. Quanto aos sistemas de representagdo que atuam como filtro ou como peneira, podem ser formais (por exemplo teorias psiquidtricas, psicologicas ou filos6ficas vigentes e aceitas) ou informais (por exemplo, atitudes difusas porém socialmente s6lidas relativas 4 sexualidade, ao sofrimento psiquico, a loucura, as categorias que captam a vivéncia emocional, etc.). A respeito destes grandes prismas de refragao que operaram na difusio e no enraizamento da psicandlise no Brasil, pouco se sabe de concreto; hd pouquissimas pesquisas acerca desta questao, varias delas valiosas, mas que nao permitem ainda uma visdo de conjunto do processo que resultou na situagio atual.? Por (2) Algumas indicagées: R. aw: . “A psicandlise pioneira e os pioneiros da psicandlise em Sao Paulo”, in Cultura da psicandlise, R. Sagawa, “Durval Marcondes ¢ 0 inicio do movimento psicanalitico brasileiro”; Cadernos Freudo- Lacanianos, n° 2, S80 Paulo, Cortez, s. d.; M. Perestrello, Histéria da sociedade brasileira de psicandlise do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Imago, 1987; U. Tourinho, “Um processo em questo”, Ensaios de Psicandlise, n° 1, Salvador, 1981: U. Tourinho, “Psicandlise na Bahia”, Revirdo, n° 3, Riode Janeiro, Aoutra, s. d.: J. Freire Costa, Ordem médica e norma familiar, Rio de Janeiro, Graal, 1983; P. Lima Silva, Crénica da vida clinica, tese de doutorado na PUC-SP; ¢ outros trabalhos, poucos, mencionados na bibliografia destes que citei. PreeAcio UW esta razdo, as consideragdes que farei a seguir baseiam-se em hip6teses e em experiéncias pessoais, e portanto estao sujeitas a confixmagao ou refutagao ulteriores. O fato de a psicandlise nos chegar de fora tem uma conseqii- éncia cujo impacto é enorme, e que tende a crescer proporcional- mente ao aumento do nimero de pessoas com ela envolvidas: ficamos sabendo das coisas somente quando elas j4 atingiram um grau de complexidade e de sofisticagio tal, que as torna dignas de interesse fora do seu circulo de origem, e portanto artigo exportével. Em outras palavras, escapa-nos 0 mais das ve- zes © processo de constituigdo de uma teoria ou o trajeto de pensa- mento de um autor, aquilo a que temos acesso é, em intimeros casos, sua obra pronta ou pelo menos bem adiantada. Por razées ébvias, é comum iniciar-se a tradugao de um autor pelo seu livro “mais importante”, isto é, por aquele que normalmente nao é o primeiro, embora pressuponha este primeiro e uma série de ou- tros. A conseqiiéncia disso é que as idéias aparecem cortadas da sua origem, como verdades jd prestigiosas; a tendéncia natural é assimild-las jé neste estégio, sem que nos demos conta de que elas consistem em respostas a problemas que vém de longe, que tém uma dimensio de provisoriedade, e que muitas vezes foram acerbamente criticadas por outros autores, dos quais nem mesmo ouvimos falar. O que denomino “vulnerabilidade ao dogmatismo” tem aqui uma de suas rafzes: impossibilitados de reconstituir a génese do que nos é apresentado, resta-nos acatar cegamente 0 que estd escrito ou recusar-lhe cegamente nossa adesao. Tal situagdo nao é exclusiva dos estudantes de nossa discipli- na, mas no meio psicanalitico 6 agravada por uma circunstincia es- pecifica: o poder da transferéncia. E bastante claro que os individu- os empiricos que funcionam (e que funcionaram no passado) como veiculo de transmissdo dos conhecimentos e da pratica da psicand- lise niio sfio professores como os de literatura ou de filosofia, pela simples e boa raz4o de que freqiientemente sao (e foram no passado) 12 A VINGANCA DA EsrINGE também os analistas e os supervisores da primeira geraciio de pro- fissionais “nativos”. Nada mais natural que as concepgGes transmi- tidas por pessoas investidas deste prestigio sejam acolhidas com um misto de respeito e de cumplicidade que torna muito dificil 0 exercicio de um pensamento critico, o qual ainda por cima é difi- cultado pela inacessibilidade teérica e pelas hesitagGes da pratica inevitaveis em que comega a exercer a psicanilise. Historicamente, uma primeira onda de formagio psicanalitica deu-se em Sao Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre nas décadas de quarenta e de cingiienta, porém em condigées culturais e sociais que possivelmente tornavam menos dificil (6 uma hipéte- se) 0 exercicio deste pensamento aut6nomo. Uma nova vaga de formagao analitica, a meu ver qualitativamente diferente, vai ocor- rer em meados da década de setenta. No que diz respeito aos analis- tas das primeiras gerag6es, alguns puderam viajar para Londres e Buenos Aires, ali permanecendo por varios anos e trazendo consi- go, ao retomarem, uma nftida influéncia da escola kleiniana; outros foram formados por analistas europeus que aqui se fixaram, como Adelheid Koch em Sio Paulo e Werner Kemper no Rio de Janeiro. Aos poucos, 0 nimero de psicanalistas foi-se aproximando da casa das dezenas, e estes por sua vez formaram novos analistas, num movimento de transmissio que podera ser retrospectivamente estu- dado (e a meu ver seria urgente estud4-lo), e ao qual se deve a existéncia da psicandlise em nosso pais. O processo em questao, alids, nao se verificou de modo homogéneo: no Rio e em Porto Alegre, a monopolizacao da psicandlise por médicos interessados na manutengao de privilégios corporativos teve conseqiiéncias ne- fastas que nao ocorreram em Sao Paulo, cidade na qual, gracas 4 visio e 4 coragem de Durval Marcondes, a psicandlise acolheu pes- soas de diferentes formagGes profissionais e muito cedo se abriu ao contato com 0 servigo piblico e com a Universidade. O que desejo ressaltar é que esta primeira fase da psicandlise brasileira vai até, grosso modo, 1970. A partir de entao, novos PREFACIO. 13 elementos vao intervir no campo analitico, em grande parte deter- minados pela situagao social e politica do pais. Um destes fatores é oconsiderdvel aumento na escala do universo psicanalitico, até entdo restrito a poucos profissionais (algumas dezenas) e a pou- cos pacientes (talvez uns dois mil entre 1940 e 1970). O incremen- to de escala foi provocado por varios fatores: maior busca de tera- pias por parte da classe média “desmapeada” (termo utilizado por Figueira), aparente democratizagdo do ensino universitério (na verdade, destruigdo implacavel do que prestava na Universidade bra- sileira), ¢ outros aspectos bem estudados por autores que, de diver- sos Angulos, se ocuparam deste problema.’ A meu ver, tal incre- mento de escala teve um efeito qualitativo considerével sobre o campo psicanalitico, efeito dificil de precisar, mas que certamen- te é outro dos motivos que engendram o que denominei “vulnera- bilidade ao dogmatismo”. De maneira muito esquemitica, pode- mos dizer que se cruzam duas ordens de fendmenos. Por um lado, yém a se interessar pela formagao psicanalitica profissionais diplomados por escolas muito fracas, daquelas que brotaram feito cogumelos pelo pafs afora. A formagio universitaria nelas obti- da, por raz6es 6bvias, era em geral deficiente; os que vinham de faculdades sérias estavam em melhores condigdes, mas comparti- lhavam com os primeiros um dado essencial: quase nada se ensi- nava de psicandlise em seus respectivos cursos, fossem eles de psicologia, de psiquiatria ou outros. Confrontados com a pratica terapéutica, muitos destes ex-estudantes voltaram-se para novas tendéncias — nao exclusivamente para a psicandlise - em busca de fundamentagao teérica e de consisténcia clinica; assim houve 0 boom (3) L. Martins, “A geragao AI-S”, Ensaios de Opinido, n° 2. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; J. Freire Costa, “Violéncia e narcisismo”, in Violéncia e psicandlise, Rio de Jan 0, Graal, 1984; §. Figueira, O contexto social da psicandlise, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978; ha uma ttil bibliografia no artigo de P. Lima Silva “Anos de andlise”, Teoria da Prética Psicanalitica, n° 5, Rio de Janeiro, Campus, 1987, 14 A VINGANGA DA ESFINGE das terapias corporais, do psicodrama, e posteriormente da psica- nalise. Por que da psicandlise? Esta era, até 1970 mais ou menos, inacessivel para os que ndo se dispusessem a uma formagdo dispen- sada exclusivamente pelas sociedades psicanaliticas afiliadas 4 International Psychoanatlytical Association (IPA). E aqui que intervém a segunda ordem de fendmenos: esta demanda por formagdo vem se inscrever num campo atravessado por linhas de forga politicas e doutrinais conflitantes, o campo da psicandlise nos anos setenta. Linhas de forga politicas: as socieda- des filiadas 4 IPA comega a ser retirado o monopélio da formagio, devido 4 chegada ao Brasil de um numero ponderdvel de psicana- listas argentinos rompidos com a IPA em seu pafs de origem, e devido ao inicio da penetragao do lacanismo, na esteira das influ- €ncias culturais complexas que ligam o Brasil a Paris. Concreta- mente, a demanda por formag&o vem encontrar uma oferta de for- magdo, que se caracteriza inicialmente por seu aspecto fluido e capilar (grupos de estudo, semindrios, andlises pessoais e supervi- sdes), contrastando agudamente com o modelo rigido entao vi- gente nos Institutos de Psicandlise. Em termos econémicos, 0 custo crescente da formacio nestes Institutos torna vidvel o surgimento de redes alternativas de ensino em varias cidades do pais, tanto na Orbita lacaniana (os Centros de Estudos Freudianos) quanto fora dela (o Curso de Psicandlise, que entao tinha outro nome, no Ins- tituto Sedes Sapientiae de Sao Paulo). Grupos semelhantes surgi- ro em outros locais, como Salvador, ou ganharao novo impulso, como associagées ligadas aos Circulos Psicanalfticos em Belo Ho- rizonte ou em outras cidades. Isto resulta numa primeira conseqii- €ncia de grande alcance, que é a multiplicagao de oportunidades para que quem deseja tornar-se psicanalista possa fazé-lo; mas também implica uma primeira forma de “diaspora”, a didspora institucional, didspora na qual a luta pela clientela e a necessidade de estabelecer um perfil proprio virfo a criar um ambiente muito particular, impregnado de criticas reciprocas e em geral muito PREFACIO 15 acrimoniosas. Do ponto de vista doutrinal, a grande novidade dos anos setenta é a introducao das correntes psicanaliticas francesas, tanto a centrada em torno de Lacan quanto outras mais discretas, € que, sem ignorarem a contribuigdo lacaniana, nado se pautam exclusivamente pelo pensamento de Lacan. Ora, 0 cruzamento destas duas ordens de fenémenos — uma demanda especifica e uma oferta especifica, originalmente inde- pendentes uma da outra, mas que vém a se encontrar pelas astuci- as da Histéria -, este cruzamento determinara em grande parte 0 panorama analitico dos anos oitenta, ¢ em particular seré co-res- ponsavel por esta caracteristica precisa dele que estou denomi- nando “vulnerabilidade ao dogmatismo”. Pois se a demanda por formagio surge de profissionais muitas vezes dvidos de certezas e propensos a ver na psicandlise um meio para atingi-las; se estes profissionais se deparam com uma oferta de formacao de indole freqiientemente missiondria, carregada por tenses transferenciais, € portanto propensa a apresentar o contetido de seu pensamento tedrico-clinico como “‘o melhor”, “o mais avancado”, quando nao como “o Unico verdadeiramente psicanalitico” (modo eficaz de fulminar a concorréncia); e se a esta situagdo se acrescenta a im- possibilidade de efetuar a critica destas teorias, pelo desconheci- mento da origem delas e pela auséncia quase completa de instrumen- tos para /er que é 0 efeito muito comum do tipo de ensino dispen- sado nas escolas que haviam freqiientado os profissionais em busca desta formagio — se estes trés fatores se encontram, estio criadas as condig6es para que a formagio psicanalitica te- nha boas chances de se dar num clima de paixGes exacerbadas, de assimilacao fragmentada e parcial dos conhecimentos especifi- cos, e de crenga fandtica na veracidade das proposigGes enuncia- das pelo “mestre”, seja ele de que escola for. Em outras palavras, a fragilidade dos referenciais identificatérios tenderd a ser oculta- da pela assungao de um discurso oco, freqiientemente eivado de express6es em jargao incompreensfvel para os de fora, e que cum- 16 A VINGANGA DA Estince pre a mesma fungdo que a giria dos marginais ou dos adolescen- tes: “dialeto que, variando ao sabor da moda, € sustentado pelo uso por grupos que assim se mantém coesos, num infindavel exer- cicio de auto e alocontrole no qual o poder interpessoal se exerce através do equilibrio precdrio entre manipulagao autoritaria do outro e dosagem automanipulatoria da confissio” . E evidente que estas condiges no sao regra universal. Mas acredito que a descrig&o que propus corresponde, se nio a um lado bastante vis{vel da realidade psicanalftica no Brasil de hoje, ao menos a uma virtualidade nela contida, virtualidade que, para se atualizar e produzir efeitos, necessita de muito pouco. E este pouco é freqiientemente encontrado pelo pais afora. Nao penso que isto seja inevitdvel; e penso que uma das tarefas de quem escreve a psicandlise e sobre psicandlise consiste em procurar, na medida dos seus meios, diminuir o risco de que tal virtualidade se converta em “destino funesto”, para falar como Frangois Roustang num livro recentemente traduzido. Dos fatores que mencionei, existe um que me parece passivel de ser, em parte, neutralizado pelo trabalho da escrita e da leitura: trata-se da crenga no parto virginal das idéias, como se elas surgissem, 4 maneira de Palas Atena, prontas e acabadas da cabega de algum Zeus psicanalitico. E como abalar esta crenga? No que me concerne, creio ser possivel avangar na direcao que convém através de dois caminhos: 0 que passa pelos temas e 0 que passa pelo método. O que passa pelos temas: neste volume, o leitor encontraré questionamentos sobre alguns dos tépicos que ocupam atualmente o debate psicanalitico. Das diferengas entre psicandlise e psicoterapia a origem dos sistemas kleiniano e lacaniano, passando pelas relagGes entre singularidade individual e cultura ou pela discussdo de alguns argumentos levantados por Foucault, ou ainda pela avaliagao de certas criticas dirigidas 4 leitura psicanalitica (4) Figueira, Cultura... p.8. PREFACIO 17 das tragédias gregas, os artigos e conferéncias aqui reunidos procuram refletir sobre a situagao atual da psicandlise, por “atual” entendendo-se tanto sua posigao diante de outras disciplinas humanas quanto o fato de que a psicandlise de 1988 é tributaria, mais do que as vezes imaginamos, de uma histéria j4 quase centendria. Outros textos abordam questées surgidas da clfnica, em especial na dimensao das transferéncias e das identificagoes do psicanalista. Neste dominio, preocupam-me em especial as relagdes complexas que podem se estabelecer entre o analista e o fundador de sua disciplina, isto ¢, com a figura de Freud. E 0 leitor talvez se surpreenda ao encontrar diversos ensaios redigidos a partir da leitura de livros, resenhando-os criticamente; 6 que me parece impossivel compreender e praticar a psicandlise sem passar pelo didlogo com outros analistas, didlogo que pode — por que nao? — tomar a forma de uma leitura atenta do que eles escrevem. A leitura é sempre um trabalho, trabalho para suscitar novas significag6es a partir do encontro com 0 texto e com 0 seu autor; ao fazer a ambos perguntas determinadas e ao buscar construir com eles, ou a partir deles, respostas para aquelas, o leitor-analista ganha 0 acesso a um instrumento precioso para seu proprio questionamento. E isto me conduz ao segundo caminho, o do método. O que se pode ensinar da psicandlise? Num dos textos deste livro, ar- gumento que a resposta a esta questio pode ser: um método. Um método de andlise, isto 6, de decomposig&o de um discurso se- gundo suas linhas de forga, respeitando as sutilezas de sua orga- nizagao, a fim de descobrir com ele a que necessidade e a quais questées ele responde. Esta é a forma pela qual eu mesmo leio, penso e interpreto; os escritos aqui reunidos foram todos, sem excegao, construidos desta maneira. E verdade que este modo de questionar, de expor e de concluir exige paciéncia e cuidado; também é verdade que considero fundamental nado apagar o per- curso que, em cada caso, me levou As conclus6es atingidas. Pois, se queremos evitar a arrogancia e o dogmatismo, um dos meios 18 A VINGANCA DA ESFINGE de que dispomos é nao impedir quem 1é de examinar as premis- sas ¢ a ossatura de um raciocinio, de modo a poder segui-lo pas- SO a passo, e a poder conceder-lhe ou recusar-lhe sua adesao. Outro destes meios é nio esconder que, por vezes, tive de rever posigGes anteriores, que pareciam sélidas, mas se revelaram par- ciais ou simplesmente erradas. Assim, certos problemas retormam algumas vezes no decorrer destes ensaios, seja a referéncia a uma obra (por exemplo, La hataille des cent ans, de Elizabeth Roudinesco), seja o estudo de um problema clinico ou teérico (por exemplo, a inveja ou a maneira pela qual o analista ou o supervisor do psicanalista podem estar “presentes” no trabalho deste ultimo). E espero ter, no futuro, outras ocasides de realizar © mesmo exercicio, modificando meus pontos de vista sempre que me convencer de que tal modificacao é titil e justificada. a ok ok Disse atrds que uma das especificidades do campo psicanali- tico é 0 papel nele desempenhado pela transferéncia. Esta se en- contra, por certo, presente em inumeras relagdes humanas, em particular nas situagdes em que alguém acredita que outrem pode ajuda-lo seja no que for. A busca do conhecimento é uma destas situagdes, pois o aluno é levado a investir quem se dispde a acompanhé-lo nesta busca de uma aura originalmente atribuida a figuras arcaicas de sua infancia. Em meu trajeto pessoal, na época em que me iniciava na filosofia e depois na psicandlise, tive a sorte de encontrar pessoas que tinham, do seu papel de professo- res, uma concepgao que tomava em conta a dimensdo transferen- cial, porém sem que tal concepgao as autorizasse a se servir dos lagos afetivos para sujeitar seus alunos a eterna minoridade inte- lectual. Duas destas pessoas marcaram-me de modo excepcional: Marilena de Souza Chaui e Regina Chnaiderman. Marilena ensi- nou-me a pensar; assistindo a seus cursos, descobri que a filosofia

Você também pode gostar