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PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
DO DIREITO PENAL

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3.1 INTRODUÇÃO

A Constituição é a base – o alicerce – do Estado e da sociedade. É nela que estão


insertas as normas básicas de organização estatal e os princípios fundamentais sobre os
quais se assentam todas as relações entre os indivíduos. Na Constituição do Estado,
estão estabelecidos os primados sobre os quais tudo o mais existe.

É na Carta Magna que está dito: república ou monarquia, parlamentarismo ou


presidencialismo; propriedade privada sobre os meios de produção ou propriedade
coletiva, estatizada: capitalismo ou socialismo. Desde as questões mais complexas aos
mecanismos mais simples da vida, do sistema financeiro à relação de emprego, todos
encontram, na Carta Constitucional de um Estado, suas origens, suas bases, suas raízes,
suas diretrizes e regras.

Na Constituição Federal brasileira, estão estabelecidos todos os princípios que


regem o Direito Civil, o Direito Administrativo, o Comercial, Trabalhista, Tributário,
Processual e, não podia ser diferente, também o Direito Penal.

Nela está determinado que a base da sociedade é a família, a qual também se


constitui por meio da união estável entre homem e mulher. Ali está escrito que nenhum
tributo será estabelecido senão para ser cobrado no exercício seguinte. E está definido
que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Está inscrito, felizmente, que
ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

São os fundamentos, os alicerces, que sustentam a vida da sociedade brasileira, do


homem. Todas as demais normas do direito devem harmonizar-se com os princípios
constitucionais, sob pena de se tornarem inválidas.

Todo o Direito Penal, igualmente, é construído com base em princípios inseridos


na Constituição Federal, os quais norteiam sua construção e a sua vida, devendo, de
conseqüência, ser respeitados. As normas penais ordinárias que vierem a ser
2 – Direito Penal – Ney Moura Teles

elaboradas em dissonância com os princípios constitucionais simplesmente não terão,


em substância, nenhum valor, ainda que sejam votadas, promulgadas, publicadas etc.
Tudo aquilo que colidir com o preceito constitucional será banido do ordenamento
jurídico, ainda que formalmente nele tiver ingressado.

Por isso, para se estudar o Direito Penal, o ponto de partida deve ser o estudo de
suas bases, seus alicerces, seus princípios mais importantes, os quais, por essa razão,
estão escritos na Constituição Federal. São eles: o princípio da legalidade, o princípio da
extra-atividade da lei penal mais favorável, o princípio da individualização da pena, o
princípio da responsabilidade pessoal, o princípio da limitação das penas, o princípio do
respeito ao preso e o princípio da presunção da inocência.

3.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

3.2.1 Enunciado e breve histórico

O inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal estabelece: “Não há crime


sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”,
preceito repetido no art. 1º do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o
defina. Não há pena, sem prévia cominação legal”, que já se encontrava no art. 153, §
16 da Carta Constitucional de 1967, no § 27 do art. 141 da Constituição de 1946, no art.
122 da Constituição de 1937, no § 26 do art. 113 da Constituição de 1934, no § 15 do art.
72 da Constituição de 1891 e que constava do § 11 do art. 179 da Constituição do
Império, de 1824, assim: “ninguém será sentenciado senão por autoridade competente
e em virtude de lei anterior e na forma por ela prescrita”.

Já o art. 1º do Código Criminal do Império, de 1830, dizia: “não haverá crime, ou


delito sem uma lei anterior que o qualifique”, e o art. 33,

“nenhum crime será punido com penas que não estejam estabelecidas nas leis,
nem com mais, ou menos, daquelas que estiverem decretadas para punir o
crime no grau máximo, médio ou mínimo, salvo o caso em que aos juízes se
permitir o arbítrio”.

O Código Penal de 1890, no art. 1º, consignava:

“Ninguém poderá ser punido por fato que não tenha sido anteriormente
qualificado crime, e nem com penas que não estejam previamente
estabelecidas. A interpretação extensiva por analogia ou paridade não é
admissível para qualificar crimes, ou aplicar-lhes penas.”
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 3

O princípio, apesar de expressar-se, comumente, na fórmula latina nullum crimen,


nulla poena sine lege, não tem, como muitos pensam, sua origem no Direito Romano.
Aí, apesar da existência de definições de crimes e penas, a punição sem lei anterior era
permitida, a não ser num pequeno tempo, o de Silla, e com a ordo judiciorum
publicorum, em que a analogia passou a ser proibida1. No mais, todo o Direito Romano
aceitou a aplicação de penas sem prévia definição legal de crimes.

Durante toda a Idade Média, em que prevaleceu o direito consuetudinário,

“permitiu-se o plenum arbitrium dos juízes. Foi a idade de ouro das penas
arbitrárias. Ao juiz só era vedado, quando muito, excogitar uma espécie nova
de pena. E ao lado do arbítrio do juiz ainda havia o arbítrio do rei, de que
foram atestado, em França, as célebres lettres de cachet”2.

JOSÉ FREDERICO MARQUES ensina que

“as raízes do princípio de reserva legal nas normas punitivas encontram-se no


Direito medieval, mormente nas magníficas instituições do Direito ibérico.
Nas Cortes de Leão, em 1186, declara AFONSO IX, sob juramento, que não
procederia contra a pessoa e propriedade de seus súditos, enquanto não
fossem chamados ‘perante a Curia’. E nas Cortes de Valladolide foi
proclamado, em 1299, que ninguém pode ser privado da vida ou propriedade
enquanto sua causa não for apreciada segundo o ‘fuero’ e o Direito. Em 1351,
essas mesmas Cortes pediram a Pedro I que ninguém fosse executado ou preso
sem investigação do foro e direito, no que acedeu o rei. E essa promessa foi
depois renovada com ênfase por Henrique II, nas Cortes de Toro, em 1371”3.

Na Inglaterra, o princípio constou, pela vez primeira, na Magna Charta de 1215,


ao tempo de João Sem Terra, com a proibição da analogia para definir crimes e aplicar
penas. Aí também se inscreveu o gérmen da idéia de limitar-se o poder do Estado em
face da liberdade do indivíduo que, mais tarde, ganharia foros de princípio maior de
todas as nações civilizadas.

A fórmula latina foi elaborada por Feuerbach, no princípio do século XIX, mas o
princípio constou dos Bills of Rights, as constituições das colônias inglesas na América
do Norte, e foi incluído entre os direitos fundamentais do homem no Congresso de

1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 1, t. 1, p. 26.

2 Idem p. 29.
3 Tratado de direito penal. Campinas: Bookseller, 1997. p. 181-182.
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Filadélfia, de 1774, na Constituição Federal Americana de 1787, e consagrou-se no art.


8º da Declaration des droits de l’homme et du citoyen, de 28-8-1789, assim: “nul ne
peut être puni qu’en vertu d’une loi établié et promulgée antérieurement au delit et
légalement appliquée”.

3.2.2 Significado

É o mais importante dos princípios do Direito Penal, a base, a viga mestra, o


pilar que sustenta toda a ordem jurídico-penal. Seu significado é claro e límpido. Só
pode alguém receber uma resposta penal, uma pena criminal, se o fato que praticou
estivesse, anteriormente, proibido por uma lei sob a ameaça da pena. O homem só
pode sofrer a pena criminal – ser privado da sua liberdade, em regra – se tiver
realizado um comportamento previamente definido como crime, por uma lei em vigor.

Por mais imoral que seja uma conduta humana, a ela só corresponderá uma
sanção penal se, antes de sua prática, tiver entrado em vigor uma lei considerando-a
crime.

O incesto – prática de atos sexuais entre pai e filha ou mãe e filho, ou entre
irmãos, sem violência, real ou moral –, apesar de, moralmente, repugnar a todos, não é
crime e, por isso, não merecerá nenhuma sanção do direito.

“Antes de ser um critério jurídico-penal, o nullum crimen, nulla poena


sine lege é um princípio político pois representa um anteparo da liberdade
individual em face da expansiva autoridade do Estado. Em reação à
estatolatria medieval, adotou-o a Revolução Francesa, incluindo-o em fórmula
explícita, entre os direitos fundamentais do homem; e somente o retorno ao
ilimitado autoritarismo do Estado pode explicar o seu repúdio nos últimos
tempos, como aconteceu na Rússia soviética e na Alemanha de Hitler.”4

Significa, pois, o princípio que só a lei pode definir crimes e cominar penas. A
edição de normas sobre crimes e penas é matéria reservada à lei, daí o nome de
Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal. O Princípio quer dizer: lei, anterior, no
sentido estrito e certa.

Só a lei ordinária, aprovada no Congresso Nacional, com observância de todas


as regras que regem o processo legislativo, vedada esta atividade ao legislador estadual
ou distrital e municipal. Igualmente, não se admite a criação de crimes e penas por

4 HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 12.


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 5

meio de Medida Provisória ou de Lei Delegada. Do mesmo modo, em nenhuma


hipótese, permite-se a utilização da analogia para incriminar comportamentos ou
cominar penas.

Por outro lado, a Lei Penal há de ser certa, exata, precisa, proibida a utilização
de fórmulas excessivamente genéricas ou de interpretação duvidosa, devendo, pois, o
legislador, no momento de definir os comportamentos humanos que deseja considerar
crimes, evitar a utilização de expressões vagas ou ambíguas, a fim de que todos os
indivíduos possam, com facilidade, compreender a extensão e o alcance das normas de
proibição.

Modernamente, na doutrina do magistral ALBERTO SILVA FRANCO, o princípio


adquire novos significados. Segundo o maior dos penalistas brasileiros da atualidade, o
caráter material do princípio da legalidade impede a definição de crimes que

“retratem atitudes internas, que se refiram a valores puramente morais, que


incriminem simples estados ou condições existenciais, que não comprometam
interesses básicos da sociedade, que mencionem atos materiais não lesivos de
nenhum bem jurídico, que se apóiem mais de uma vez no mesmo pressuposto
fático ou que tratem igualmente situações desiguais ou desigualmente
situações iguais, fundando no puro arbítrio as razões da igualdade ou da
desigualdade”.5

Isso quer dizer, entre outras coisas, que não pode o legislador definir como
crime o simples pensar do homem, nem tampouco atitudes exclusivamente morais. Por
isso, seria inconstitucional a lei que considerasse crime o simplesmente ser alguém
homossexual.

Nesse sentido, o princípio da legalidade dá origem aos princípios do fato, da


lesividade, do ne bis in idem, e da igualdade, cuja importância adquire, no dia-a-dia,
maior relevância.

Só haverá crime se houver um fato; impossível a incriminação de atitudes


puramente psíquicas do homem. O Direito Penal não se importa com o simples
pensamento do homem, com o pecado, tarefa das religiões.

Pouco importa o que ocorre puramente no interior do pensamento humano. O


homem pode desejar ardentemente, com toda a sinceridade, a morte de seu desafeto, e
isso nada importa para o Direito Penal, desde que esta seja apenas uma atitude interna.

5 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 24.
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Pode orar o tempo todo, para que ocorra tal ou qual fato lesivo, e se não passar
dessa atitude puramente psíquica, tal acontecimento não passa de um indiferente
penal.

Por essa razão, o legislador está obrigado a só construir definições de crimes


que constituam fatos concretos, e não meros acontecimentos psicológicos, sem
conseqüência concreta.

Do mesmo modo, não pode o legislador incriminar comportamentos humanos


que não sejam suficientemente idôneos para causar lesão ou, no mínimo, ameaçar de
lesão o bem jurídico.

É o mais importante dos primados do Direito, e, segundo muitos, situando-se


antes e além do direito positivo, como conseqüência que é da inviolabilidade da
dignidade humana, um princípio concreto de direito natural.

3.3 PRINCÍPIO DA EXTRA-ATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS


FAVORÁVEL

3.3.1 Enunciado

O inciso XL do art. 5º da Constituição Federal dispõe: “A lei penal não


retroagirá, salvo para beneficiar o réu.” A primeira parte do preceito: “a lei penal
não retroagirá” é pura reafirmação do princípio da legalidade, no ponto em que este
impõe a anterioridade da lei penal.

Cuidadosamente, o legislador constituinte, não satisfeito com impor a


anterioridade da lei penal, veio, no inciso seguinte, reafirmar que a lei penal não pode
retroagir, isto é, não pode ser aplicada a fatos acontecidos antes de sua vigência.

Não havia necessidade, pois o princípio da reserva legal é claro ao dizer que só
haverá crime e pena, se houver, previamente, uma lei anterior. Mas o objetivo não era o
de reafirmar o princípio da legalidade, mas o de construir outro pilar sobre o qual se
sustenta o Direito Penal, o de que a lei penal mais favorável retroagirá ou ultra-agirá.

3.3.2 Significado

É na segunda parte que está o preceito “salvo para beneficiar o réu”, cuja leitura
há de ser: a lei penal retroagirá para beneficiar o réu.

O Direito é dinâmico como a sociedade. Os interesses sociais estão em constante


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 7

movimento e, à medida que se desenvolve a sociedade, impõem-se mudanças na ordem


jurídica. Novas conquistas tecnológicas impõem novos tratamentos a questões que
surgem no dia-a-dia.

Valores substituem-se, formas de ver os fatos sociais alternam-se, de modo que


se torna sempre necessária a criação de novas leis.

A regra geral de aplicação da lei é a prevalência da lei do tempo do fato,


decorrência do princípio da legalidade (tempus regit actum). Aplica-se ao fato a lei
vigente ao tempo de sua prática.

Leis sucedem-se, criando novos crimes, modificando o tratamento dado aos


crimes já existentes, ora com maior severidade, ora abrandando a resposta penal e, até,
simplesmente, extinguindo espécies de crimes.

Nessas hipóteses, incide o princípio, que proíbe a retroatividade da lei mais


severa: não poderá a lei mais grave ser aplicada aos fatos ocorridos antes de sua
vigência. Se, contudo, a lei posterior é, de qualquer modo, mais benéfica, vai retroagir,
para ser aplicada aos fatos acontecidos antes de sua vigência.

Não podia ser diferente. A pena é a resposta que a sociedade dá aos indivíduos que
atacarem, de modo grave, os bens jurídicos mais importantes. Se, em dado momento, a
sociedade entende que a pena deve ser menor do que era, é porque considera que a
resposta ao crime praticado deve, igualmente, ser de menor intensidade. Se, a partir de
uma nova lei, esta pena é mais branda, deve o ser para todos, inclusive para os que
praticaram o crime antes da lei.

Não teria nenhum sentido punir alguém com uma pena que já não está em vigor. A
pena é a medida da reprovação do comportamento humano. Se o fato antes punido
mais severamente passa a ser, depois, punido com menor severidade é porque a
sociedade entendeu que a punição anterior – mais severa – não era justa. Se a reduziu é
porque ela não se justificava. E se não era justa antes, porque aplicá-la, depois de
considerá-la injusta?

O inverso, punir alguém, com maior rigor que o previsto no tempo em que ele
praticou o crime, seria injusto e iria de encontro à dignidade humana. Quando alguém
pratica um fato definido na lei como crime, conhece a pena a ele correspondente, em
qualidade e em quantidade. Se esta pena, depois da prática do fato, é aumentada, não
pode, em nenhuma hipótese, ser aplicada àquele que violou a norma no tempo da lei
anterior, sob pena de violar sua dignidade. Ele, ao violar a norma, sabia que o máximo
que poderia receber era a pena então vigente. Se, mesmo assim, violou a norma é porque
aceitou, na pior das hipóteses, sofrer aquela pena, somente ela, em qualidade e
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quantidade, e não mais que ela. Aplicar-lhe pena então inexistente – porque maior ou
diferente – é violar o princípio da dignidade do homem. É trair o indivíduo e o direito
há de ser, sempre, verdadeiro e sincero.

A lei penal que for mais favorável ao acusado da prática do crime sempre será
aplicada, em qualquer hipótese. Por isso, diz-se que a lei mais benéfica é sempre extra-
ativa: se ela é a lei posterior, é e sempre será retroativa; se ela é a lei do tempo do fato, é
e será sempre ultra-ativa.

A lei mais favorável é, pois, extra-ativa.

3.4 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

3.4.1 Enunciado e conceito

Dispõe o inciso XLVI do art. 5º da Carta Magna:

“A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as


seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d)
prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.”

Como se pode observar, o legislador constituinte não definiu o que seja


individualização da pena, tarefa que cabe à doutrina.

Individualizar significa particularizar, adaptar a pena ao condenado. A cada


indivíduo, uma pena. Para particularizar a pena, a lei haverá, evidentemente, de
balizar-se em parâmetros que, como não poderia deixar de ser, são o homem que violou
a norma e o fato por ele praticado, cada qual, com suas particularidades, suas
peculiaridades, suas características próprias, subjetivas e objetivas, que os
individualizam.

Para adaptar a pena ao homem, seu destinatário, a lei levará em conta suas
características e as do fato realizado.

A individualização da pena faz-se em três etapas: cominação, aplicação e


execução.

3.4.2 Cominação

No primeiro momento da individualização, a tarefa incumbe ao legislador, que,


ao definir os vários comportamentos humanos que considera crime – cumprindo,
assim, o princípio da legalidade –, estabelece, para cada um, uma pena, em qualidade e
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em quantidade. Esta é a chamada fase da cominação das penas.

O legislador se orientará pela importância dos bens jurídicos e pela gravidade


do ataque contra eles perpetrados, estabelecendo, para cada comportamento
considerado criminoso, uma qualidade e uma quantidade de pena, que será de maior
severidade, conforme seja mais importante o bem e mais grave o ataque contra ele
efetuado.

Assim, a morte de um homem por outro, que a desejou, merecerá a mais severa
das penas. Já ao simples e leve ferimento do corpo humano, causado intencionalmente
por outro, corresponderá uma pena bem mais branda.

Se o causador da lesão não a queria, nem a aceitava, mas foi descuidado, a pena
será mais leve ainda.

Isso porque a vida é um bem jurídico muito mais importante que a integridade
corporal do indivíduo, e porque o comportamento de alguém que deseja causar um mal
a outro é muito mais grave do que o de quem só agiu com descuido.

Já a agressão à liberdade sexual da mulher – bem de maior valor – merecerá


uma reprimenda mais severa que a lesão corporal.

Após fixar a natureza da pena, o legislador determina, abstratamente, um grau


mínimo e um grau máximo, fixos, determinados, precisos, pelo que fica estabelecido
um intervalo dentro do qual a pena será aplicada ao caso concreto.

Assim acontece com aquele homem que, intencionalmente, matar outra pessoa.
Estará sujeito a uma pena privativa de liberdade por, no mínimo seis e, no máximo, 30
anos. Se, todavia, obrigar uma mulher a uma relação sexual, a punição máxima não
ultrapassará os 10 anos de perda de sua liberdade.

No Código Penal e na legislação penal complementar estão definidos todos os


fatos considerados crimes, e cominadas as respectivas penas, em qualidade e
quantidade.

É este o primeiro momento da individualização. Nele o legislador dá o


primeiro passo para adaptar a pena ao que vier a ser condenado. É a primeira
particularização.

Para os furtos, reclusão de um a quatro anos de detenção e multa. Para os


estelionatos, o mesmo grau mínimo e o máximo de cinco anos de reclusão e multa. Já
se for um delito próprio de funcionário público, o peculato (apropriar-se o servidor
público de dinheiro público em proveito próprio, por exemplo), a pena ficará entre dois
e 12 anos de reclusão, além da multa.
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Para cada crime, uma pena, fixada abstratamente, e que paira sob todos os
indivíduos como uma ameaça. Todos, portanto, têm conhecimento de que, se
cometerem esse ou aquele crime, estarão sujeitos a essa ou àquela pena.

3.4.3 Aplicação

Se o homem, apesar da ameaça, não se intimida e pratica o fato definido como


crime, poderá receber a pena correspondente. A pena será aplicada – pelo julgador –
com observância de normas legais que tratam da individualização.

O julgador não é livre para escolher a qualidade nem a quantidade da pena.

Se o infrator da norma tiver cometido um crime de estupro – constranger


mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça – o juiz deverá, em
primeiro lugar, verificar qual a qualidade e quantidade da pena cominada na lei,
encontrando-as no art. 213 do Código Penal: “reclusão, de 6 a 10 anos”.

Para estabelecer a pena concreta, a ser cumprida, o juiz deverá analisar as


características do infrator da norma e do fato por ele praticado.

A primeira observação, a propósito, é de que a pena a ser aplicada não poderá


ser nem além nem aquém do necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do
crime. Isto quer dizer que, dentro dos limites fixados – mínimo e máximo –, a pena
deve ser fixada de modo justo, exato.

Para se alcançar esse difícil fim, manda o art. 59 do Código Penal que o juiz
considere várias circunstâncias, do homem, e do fato por ele praticado, que são: a
culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do infrator da norma
penal, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do fato e o comportamento da
vítima.

É evidente que, tratando-se de um homem de passado ilibado, de personalidade


pacífica, de boa índole, de conduta social respeitável, não haverá necessidade de uma
quantidade de pena distante do grau mínimo. Se, ao contrário, tratar-se de pessoa que
agiu com muita culpa, a pena haverá de se distanciar do grau mínimo, aproximando-se
do grau máximo.

Se, entre aquelas circunstâncias, umas favorecem, outras prejudicam o acusado,


cabe ao juiz verificar quais preponderam e, entre elas, atentar para as que mais
importam para o direito. As de natureza pessoal – a primariedade – haverão de ser
relevadas, até porque o fim e a razão de ser de toda a vida, da humanidade, é o homem,
objetivo de todos nós.
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Após a fixação dessa que se chama pena-base, o julgador verificará se ocorrem


circunstâncias agravantes, que se encontram definidas nos arts. 61 e 62 do Código
Penal, e circunstâncias atenuantes, dos arts. 65 e 66 e, em conseqüência, agravará ou
atenuará a pena-base.

Em seguida, observará a existência de causas especiais de aumento ou de


diminuição de pena, previstas no Código Penal, seja na parte geral, seja na parte
especial, aumentando ou diminuindo a pena, dentro das quantidades permitidas,
chegando, então, à pena definitiva.

Fixada a pena definitiva, o juiz estabelecerá o regime de seu cumprimento, se


privativa de liberdade, como manda o art. 33 do Código Penal, ou a substituirá,
conforme determina o art. 60, § 2º, e art. 44 do Código Penal.

Assim, terá particularizado a pena ao condenado. Com a individualização da


pena, pode uma pessoa que cometeu um estupro ser condenada a seis, sete, nove ou a 10
anos de reclusão, conforme sejam as suas características e as do fato praticado.

Desse modo, para um mesmo crime, cometido por duas pessoas, as penas
aplicadas não serão, necessariamente, as mesmas. Se Pedro e Célio, irmãos, com mesmas
características, pela mesma razão, cometem em conjunto o mesmo crime e são ambos
condenados, Pedro, de 20 anos, e Célio de 22, não receberão penas iguais, ainda que
todas as circunstâncias judiciais lhes sejam igualmente favoráveis ou desfavoráveis, por
uma única razão: Pedro tem, em seu favor, uma circunstância atenuante que não
favorece Célio: ter menos de 21 anos ao tempo do fato (art. 65, I, CP). Por isso, se, em face
das circunstâncias judiciais, ambos receberem pena-base igual ao mínimo, a atenuante
há de fazer a pena ficar aquém do mínimo legal.

Esta é posição que se considera a justa, e que melhor será detalhada no Capítulo
17 desta obra, onde esta segunda fase da individualização da pena, da mais alta
importância, será examinada de forma mais pormenorizada.

3.4.4 Execução

Aplicada a pena, não sendo mais possível qualquer recurso contra a decisão que
a fixou, o Estado adquire o título com o qual deverá executar a pena, que será cumprida
pelo condenado. Também a execução da pena não pode ser igual para todos os
condenados, que, além de terem cometido crimes distintos, são diferentes entre si, cada
qual com sua personalidade, sua necessidade de reprovação e prevenção.

O inciso XLVIII do art. 5º da Constituição Federal estabelece: “a pena será


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cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do


delito, a idade e o sexo do apenado”.

Individualizar, nesta fase, é proporcionar a cada condenado as oportunidades


necessárias para que ele possa, durante e após o cumprimento da pena, ser reinserido
na sociedade de modo a, posteriormente, poder ser aceito por ela e com ela viver em
plena harmonia.

O art. 5º da Lei de Execução Penal (7.210/84) determina que o condenado será


classificado, segundo seus antecedentes e personalidade, para orientação da
individualização da pena. E o art. 6º manda que a classificação seja feita por uma
Comissão Técnica, a quem compete elaborar um programa individualizador, que
deverá ser acompanhado no decorrer do cumprimento da pena.

Os condenados serão submetidos a exame criminológico – técnico-pericial –


capaz de fornecer aos executores da pena os elementos indispensáveis à
individualização da execução da pena.

Na prática, todavia, a situação é diferente. Infelizmente, o Estado brasileiro não


cumpriu, a contento, suas obrigações estatuídas pelas Leis nos 7.209 e 7.210, edificando
estabelecimentos penitenciários, dotando o sistema prisional das condições
indispensáveis à execução das penas privativas de liberdade.

O princípio da individualização da pena é uma garantia constitucional, devendo


ser observado a fim de que cada indivíduo receba uma pena correspondente a suas
necessidades, em face de seu comportamento, e que seja apenas e não mais do que o
suficiente para a reprovação que se lhe faz, pelo que ele fez e para a prevenção do crime.

A Lei nº 8.072/90, ao determinar o cumprimento das penas aplicadas aos


agentes dos crimes hediondos em regime fechado, integralmente, foi o mais
contundente e vivo exemplo de violação do princípio da individualização da pena. O
Supremo Tribunal Federal, todavia, julgando o HC n° 82.959, declarou a
inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei n° 8.072/90, afastando, assim, a
proibição da progressão do regime de cumprimento da pena para os condenados por
crimes hediondos, de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes e de terrorismo.

Se o juiz ficasse obrigado a fixar determinado regime de cumprimento de pena


para certos crimes – mormente o regime fechado –, estaria impossibilitado de
individualizar, particularizar, o regime. Se o condenado por tal crime ficasse obrigado a
cumprir sua pena integralmente nesse regime, não teria havido, na execução, a
individualização. Isso é da mais gritante obviedade, mas só depois de dezesseis anos é
que o STF compreendeu isso.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 13

A individualização só é possível e só é entendível se se puder concretizar nas


três fases: cominação, aplicação e execução. Deixando de ser possível individualizar
numa delas, não terá havido individualização. Em todas as etapas, o indivíduo
condenado tem o direito à individualização de sua pena.

3.5 PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PESSOAL OU DA


PERSONALIDADE DA PENA

3.5.1 Enunciado

Dispõe o inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal:

“Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de


reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei,
estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do
patrimônio transferido.”

A primeira parte desse preceito constou da primeira Constituição Brasileira, a de


1824, no § 20 do art. 179, tendo sido repetida nas de 1891 (art. 72, § 19), de 1934 (art.
113, § 28), de 1946 (art. 141, § 30), e de 1967 (art. 153, § 13). Apenas a Carta de 1937 não
o inseriu entre as garantias fundamentais.

A Constituição de 1988, como não poderia deixar de ser, reafirmou-o, com uma
importante inovação. Ao lado da garantia individual aos sucessores do condenado, de
que a pena não lhes será estendida, estabeleceu a garantia civil ao titular do bem
jurídico lesado pela conduta criminosa, de executar, contra os sucessores do
condenado, a obrigação de reparar o dano. Antes, essa garantia não tinha status
constitucional, estabelecido apenas na legislação ordinária.

3.5.2 Significado

O princípio é claro: só o condenado pode sofrer a pena criminal, seja ela


privativa de liberdade, de multa, de prestação social alternativa, restritiva de direitos,
seja qualquer outra que vier a ser cominada.

Hoje, pode-se pensar que essa afirmação é óbvia e, de tão indiscutível, nem
precisava constar de uma norma, mormente constitucional.

Todavia, voltando-se os olhos para a história, é possível verificar que o princípio


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é uma conquista política penosa6. Em verdade, nos tempos primitivos, da vingança


privada, a reação ao agressor do bem importante não só era ilimitada, mas também se
voltava contra o delinqüente e outros de seu grupo, familiar ou social.

E tal comportamento grassou por longos anos, tanto que somente com as idéias
iluministas vitoriosas na França, foi insculpido na Declaração dos Direitos do Homem,
de 1789.

Basta lembrar que, no Brasil, três anos depois, ainda era lavrada e executada
sentença penal contra Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, da qual constou:

“Na Capitania de Minas alguns Vassallos da dita Senhora, animados do


espirito de perfida ambição, formaram um infame plano, para se subtrahirem
da sujeição, e obediência devidda á mesma Senhora; pretendendo
desmembrar, e separar do Estado aquella Capitania, para formarem uma
republica independente, por meio de uma formal rebellião, da qual se erigiram
em chefes e cabeças (...). Portanto condemnam ao Réu Joaquim José da Silva
Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes que foi da tropa paga da Capitania de
Minas a quem com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao
lugar da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de
morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em o lugar mais
publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o
seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes, pelo
caminho de Minas no sitio da Varginha e das Sebolas aonde o Réu teve as suas
infames praticas, e os mais nos sitios nos sitios (sic) de maiores povoações até
que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e
netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e Camara Real, e a casa
em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no
chão se edifique, e não sendo proprio será avaliada e paga a seu dono pelos
bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se
conserve na memoria a infamia deste abominavel Reu.”7

Como se vê, há pouco mais de 200 anos, ainda se fazia estender aos sucessores
do condenado as conseqüências penais de seu comportamento, o que é inadmissível, já
que fere a dignidade humana.

Ninguém pode sofrer qualquer restrição em sua liberdade, nem qualquer


6 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Estrutura do direito penal. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky, 1976. p. 72.

7 BRASIL.Biblioteca Nacional. Custos de devassa da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro: Ministério da


Educação, 1938. v. 2, p. 145 ss e 194.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 15

punição, por fato que não praticou, por dano que não causou, por acontecimento para o
qual não concorreu.

3.5.3 Reparação do dano

A indenização do prejuízo causado pelo condenado é sanção civil, e por isso


pode ser estendida aos sucessores e contra eles executada, é óbvio, até o limite do valor
do patrimônio transferido.

Se o condenado por crime contra o patrimônio vier a morrer logo após a


sentença condenatória irrecorrível, o prejuízo sofrido pela vítima poderá ser cobrado
dos sucessores do infrator da norma penal, que estarão obrigados a indenizar o credor,
observado o limite do patrimônio que tiverem recebido. Se tiver sido transferido valor
inferior ao da indenização, o credor só poderá executar o valor da importância
transmitida. Se nada tiver sido transferido, nada poderá ser cobrado.

Não podia ser diferente, já que, no direito das sucessões, são transmitidos
obrigações e direitos, e estes só são partilhados após o cumprimento daquelas.
Primeiro, pagam-se as dívidas do autor da herança e, somente após a liquidação de
todas as suas obrigações, inclusive as tributárias e decorrentes da própria morte, é que
se apura o saldo a partilhar. Como o dever de indenizar se inclui entre as dívidas do
morto, só após seu pagamento é que os sucessores receberão a herança.

A importância do preceito é considerar também os direitos da vítima do crime,


por longos anos esquecida pelo Direito Penal. Em sua tarefa de romper com a vingança
privada e, depois, pública, o Direito Penal acabou por olvidar os direitos da vítima, que
só às vésperas do terceiro milênio voltou a colocar-se entre os interesses do Direito
Penal.

A Lei nº 9.099/95, que instituiu no Brasil os juizados especiais criminais,


privilegiando a composição e a reparação do dano, constituiu o primeiro grande passo
do legislador ordinário, para colocar os direitos da vítima do crime como uma das
preocupações do Direito Penal.

A pena de prestação pecuniária, instituída pela Lei nº 9.714/98, é outro


instituto importante para a proteção do direito da vítima, já que pode constituir-se em
antecipação, no âmbito da jurisdição penal, da obtenção da reparação do dano
causado.

Se para evitar as perseguições, as arbitrariedades, a violência contra o


delinqüente, o Direito Penal se posicionou e construiu os direitos do delinqüente, é
16 – Direito Penal – Ney Moura Teles

hora, mais do que nunca, de criar os instrumentos para, igualmente, proteger os


direitos do ofendido, daquele que teve seus direitos violados.

3.6 PRINCÍPIO DA LIMITAÇÃO DAS PENAS

3.6.1 Enunciado e significado

Diz o art. 5º, XLVII, da Carta Magna:

“Não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos
do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de
banimento; e) cruéis.”

A Constituição Federal proibiu, expressamente, a adoção dessas cinco espécies de


penas, inserindo tal proibição no rol dos direitos e garantias fundamentais do homem,
de modo que é impossível sua adoção em nosso direito, conforme manda o art. 60, §
4º, inciso IV: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir: ... IV – os direitos e garantias individuais.”

Essas penas foram banidas do ordenamento jurídico, porque não se coadunam


com o estágio atual de desenvolvimento de nossa sociedade, uma vez que ferem a
dignidade humana e violentam profundamente o princípio da humanidade e do
interesse social.

Não passará muito tempo e no mesmo dispositivo constitucional (art. 5º, XLVII)
certamente constará uma alínea a mais: “f) privativas de liberdade”, tempo em que se
terá alcançado um novo estágio de civilização.

Em verdade, como já se disse anteriormente, a própria pena privativa de


liberdade é um mal, não resolve coisa alguma, ao contrário, traz enormes prejuízos para
a sociedade. O caminho é outro, a criação de novas modalidades de sanções penais,
com a abolição da própria pena de prisão.

3.6.2 Pena de morte

Vigente no Brasil até o Código Criminal de 1830, a pena de morte, desde o


advento da República, com o Código Penal de 1890, não consta do Direito Penal
brasileiro, a não ser como exceção, nos casos de guerra externa declarada, como
resposta à agressão estrangeira.

A pena de morte é demonstração da mais absoluta irracionalidade que ainda


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 17

preside certos ordenamentos jurídicos. Em verdade, é resquício de pensamento


autoritário que imaginava ser possível a criação de um mundo povoado por homens
superiores, dotados de características diferenciadas, destinados a dominar os demais
seres vivos sobre a face da Terra, neles incluídos os homens das outras raças. Aceitá-la,
no terceiro milênio, é de uma incongruência inominável. Trata-se de pena que apenas
retribui o mal causado com outro mal. Revela, por isso, um pensamento grotesco, de
quem não consegue entender a natureza humana e, especialmente, a daquele que
delinqüiu.

Ignora que o crime tem causas que não são combatidas, e que o homem que o
cometeu é, na maioria das vezes e antes de tudo, um desajustado social, um doente que
não recebeu qualquer tratamento, e que não teve as mínimas oportunidades a que tinha
direito, para não delinqüir, vítima de uma sociedade desigual, injusta e desumana.

Se o homicídio é crime, assim definido no Código Penal, porque se volta contra o


interesse público, igualmente a pena de morte não passa de um homicídio, oficializado,
o que é mais grave, e atinge, igualmente, o interesse público.

O princípio humanitário exige que se busque a recuperação do condenado e não


sua eliminação.

O objetivo da sociedade há de ser eliminar o crime e não o criminoso. É preciso


combater a doença, e não se acaba com ela matando o doente.

O preceito exclui da proibição a hipótese de guerra declarada, sob a justificativa de


que se trata de situação excepcionalíssima, em que há perigo para a própria soberania
do país. Nem assim se pode aceitar a hipótese, especialmente nos dias de hoje em que,
mesmo em se tratando de guerras, pugnam todos por tratamento humanitário aos
homens dos Estados beligerantes.

3.6.3 Penas perpétuas

Igualmente abomináveis, as penas de caráter perpétuo também violam os


princípios humanitários e do interesse social, ferem a dignidade humana e não
apontam para a recuperação do condenado.

Se ele não vislumbrar a perspectiva de voltar ao convívio social, não terá motivo
para aprender a respeitar os valores sociais.

A pena de prisão perpétua é mais odiosa que a própria pena de morte. Se esta é,
como se diz, irreparável, e só por isso hedionda, a manutenção de um homem
encarcerado pelo resto de seus dias é de uma crueldade inimaginável.
18 – Direito Penal – Ney Moura Teles

É próprio da natureza animal a vida em liberdade. Todos nasceram livres. O


irracional privado de liberdade torna-se agressivo ou passivo. Em qualquer das
hipóteses sua natureza resta violentada. Com o homem se dá o mesmo, com uma
diferença: sua enorme capacidade de adaptação, que dá a aparência de que ele aceita a
perda da liberdade, mas que na verdade significa sua redução a uma condição inumana,
pior do que a do irracional, posto que, às vezes, nem reage.

A proibição constitucional impõe ao legislador ordinário o dever de não cominar


penas muito elevadas, pois, se o fizer, poderá, na prática, estabelecer penas de caráter
perpétuo.

Se vier a ser cominada uma pena de, no máximo, 40 anos de reclusão, o


condenado com 20 anos somente sairá do presídio aos 60 anos, ou nem sairá, pois muito
provavelmente morrerá antes, especialmente se se levarem em conta as condições de
vida em um presídio.

Além disso, esse princípio há de ser conjugado com o da humanidade e o do


interesse público, pelo que se conclui que, sendo um dos fins da pena a recuperação do
delinqüente, não se pode mantê-lo por muito tempo privado de liberdade. De
conseqüência, não só são proibidas penas muito longas, mas o princípio exige a
cominação de penas não muito elevadas.

Desejando recuperá-lo, reinseri-lo no meio social, inclusive para que ele possa ser
útil à sociedade, deve-se trabalhar para que o condenado possa viver o máximo possível
com dignidade e com respeito aos valores importantes.

A pena excessivamente longa, tanto quanto a perpétua, desestimula o condenado,


quando não gera nele verdadeira revolta, capaz de transformá-lo não no recuperado
que se almeja, mas no marginalizado indesejado.

No Brasil, o limite máximo de cominação é de 30 anos, o que já é um tempo muito


longo, mormente se se considerar que a vida média do brasileiro pouco passa dos 70
anos. Se o homem começar a cumprir sua pena aos 25 anos, pouco tempo de vida útil
lhe restará em liberdade.

Em obediência ao preceito, o art. 75 do Código Penal estabelece que o tempo


máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade é, igualmente, de 30 anos e
que o condenado a várias penas, cuja soma superar aquele limite, não cumprirá senão
os 30 anos, a não ser por fato posterior ao início da execução da pena (§§ 1º e 2º).

Lamentavelmente, nos últimos anos, o legislador brasileiro vem, influenciado por


manipuladores de opinião, marchando para exasperar penas de delitos de maior
gravidade, com o objetivo de diminuir sua incidência. Foi assim com a Lei dos Crimes
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 19

Hediondos, e o que se colheu foi o aumento dessa criminalidade.

É preciso caminhar exatamente no sentido contrário, o da diminuição do grau


máximo das penas privativas de liberdade e o de sua limitação aos crimes de maior
gravidade. Infelizmente, ainda é necessária a pena privativa de liberdade, que, por isso,
há de ser restringida apenas aos casos em que for absolutamente indispensável. Como
diz CERNICCHIARO, “repensar as penas excessivamente elevadas é pensar o homem”8.

3.6.4 Trabalhos forçados

A proibição da pena de trabalhos forçados harmoniza-se com as conquistas


obtidas pela humanidade contra o arbítrio e a prepotência.

Os trabalhos forçados nas galés, de triste memória na história do Direito Penal,


afrontam os princípios da humanidade e de respeito à dignidade do homem.

Mormente quando se busca na pena a idéia de ressocialização, torna-se


inadmissível a idéia de trabalhos forçados como pena criminal. Nem se coadunaria com
o fim do regime escravagista, de mais de um século.

Outra coisa, permitida e que deve ser incentivada, é a atividade laborativa nos
presídios, cuja finalidade é a educação e, também, a produção, devendo, como é óbvio,
ser remunerado o trabalho do preso.

Não se confunde, igualmente, com a prestação de serviços à comunidade, que é


uma modalidade de pena alternativa da mais alta importância e que é objeto de estudo
no Capítulo 15 deste manual.

3.6.5 Banimento

O banimento existiu no Brasil durante o Império, ao lado do degredo e do


desterro, e foi ressuscitado pela ditadura militar, como sanção política, mas, felizmente,
vigorou por pouco tempo e foi expurgado do ordenamento jurídico.

Banimento era a privação, para sempre, dos direitos de cidadania e proibição


perpétua de habitar o território da nação. Degredo era a imposição ao condenado de
residência em determinado lugar, que não o da moradia da vítima, dele não podendo
sair, por um tempo determinado. Desterro era a proibição do condenado de residir ou
mesmo ir ao lugar do crime, ao de sua principal residência e ao da moradia da vítima,

8 Op. cit. p. 114.


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles

por tempo determinado.

O banimento era perpétuo no Império, mas o Código Penal de 1890, já no


período Republicano, o admitiu por tempo determinado; todavia, a Constituição de
1891 o aboliu, definitivamente.

No regime de ditadura militar instaurada com o golpe de 1964, o banimento foi


instituído em 1968, não como pena criminal, mas como instrumento de ação do Poder
Executivo, que o aplicou a seus adversários políticos. Naquela época de trevas, tudo se
fez.

3.6.6 Penas cruéis

Igualmente proibidas as penas cruéis, porque “o Estado não pode, na execução


das penas, infligir padecimentos físicos ou morais ao condenado. E mais. Vedado até
cominar penas que, em si mesmas, conduzam a essa situação”9.

É de todo óbvio. Nenhuma pena pode voltar-se contra a dignidade do ser


humano. A inflição de sofrimento físico ou moral, a tortura, física ou psicológica, a
privação das condições mínimas de existência, a desmoralização, a marcação a fogo, a
amputação de membros, os maus-tratos, todos esses meios conhecidos e, infelizmente,
utilizados no país há pouco tempo são terminantemente proibidos.

A pena privativa de liberdade, por si só, já constitui enorme sofrimento para o


homem, de modo que haverá de ser executada com todas as cautelas necessárias a fim
de que o condenado sofra apenas os efeitos da perda da liberdade. Nada além.

Dessa forma, há de se verificar que, na quase totalidade dos casos, as penas de


prisão no Brasil estão sendo cumpridas de modo cruel. São inúmeras as notícias de
prisões superlotadas, onde 20 ou mais homens convivem em ambientes em que não
poderiam ficar nem quatro. É tratamento desumano e degradante, verdadeira
crueldade, violador da Carta Constitucional.

Já de há muito que existem regras para o tratamento aos presos, detalhadas


adiante, e não se pode admitir a continuidade do descuido do Estado brasileiro, que
não se preocupa com dotar o sistema de estabelecimentos adequados quantitativa e
qualitativamente.

9 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Op. cit. p. 123.


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 21

3.7 PRINCÍPIO DO RESPEITO AO PRESO

3.7.1 Enunciado

Diz o art. 5º, XLIX, CF:

“É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” e o inciso L:


“às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com
seus filhos durante o período de amamentação”.

O preceito se especifica no art. 38 do Código Penal: “O preso conserva todos os


direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o
respeito à sua integridade física e moral.” Também a Lei de Execução Penal (LEP)
contém dispositivo semelhante: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à
integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios” (art. 40).

O princípio abrange não apenas os condenados, mas também todos aqueles que
estiverem presos, seja a prisão civil ou penal, processual ou definitiva.

3.7.2 Significado

O homem, apesar de condenado ou apenas preso, não deixa de ser humano, e


continua com todos os seus direitos, com exceção apenas dos incompatíveis com a
perda da liberdade. De conseqüência, deve ser protegido, enquanto ser humano e
cidadão.

Principalmente, porque é um ser destituído de liberdade, incapaz de, por isso,


defender-se em sua plenitude. O homem encarcerado, algemado, não é capaz de
enfrentar a maior parte das dificuldades e dos percalços da vida em prisão.

O art. 41 da Lei nº 7.210 enumera direitos do preso: alimentação suficiente e


vestuário; atribuição de trabalho e sua remuneração; previdência social; constituição de
pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a
recreação; exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas
anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material, à
saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer espécie de
sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado; visita do cônjuge, da
companheira, de parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal;
igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
audiência especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição a
qualquer autoridade, em defesa de direito; contato com o mundo exterior por meio de
22 – Direito Penal – Ney Moura Teles

correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não


comprometam a moral e os bons costumes.

O art. 88 da LEP contém uma norma da mais alta importância:

“O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho


sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade
celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração,
insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área
mínima de 6 m2 (seis metros quadrados).”

Lamentavelmente, a mesma lei, no art. 92, permite o alojamento do condenado em


compartimento coletivo, que atenda aos requisitos da alínea a do art. 88.

A realidade brasileira é outra. Não faz muito tempo o Brasil assistiu, pela
televisão, à notícia de que presos de Belo Horizonte, numa cela superlotada, chegaram
ao ponto de celebrar um pacto de morte, mediante sorteio, a fim de obter mais espaço
para os sobreviventes e, com isso, chamar a atenção das autoridades responsáveis.

Não se esqueça ademais das mortes por asfixia e intoxicação por fumaça noutra
cela, da cidade de São Paulo. Massacres como os do Carandiru continuam na memória
de todos, quando dezenas de homens foram fuzilados sem a menor possibilidade de
defesa.

Na verdade, o que se pode afirmar é que a quase totalidade dos presos brasileiros
está cumprindo penas em total desrespeito à Constituição e à Lei de Execução Penal.
Penas cruéis, com desrespeito à integridade física e moral dos condenados, são
absolutamente inconstitucionais.

Infelizmente, é essa a realidade que o operador do Direito não pode ignorar. O


mais lamentável é que a situação se perpetua, integra o cotidiano, chega a parecer
normal, passando a não mais indignar. De tanto visitar os presídios, as cadeias dos
distritos policiais, o operador do Direito corre o risco de ir-se acostumando com todas
essas mazelas, e de se esquecer de combatê-las apropriadamente.

Juízes, promotores e advogados, especialmente, não podem, em nenhum


momento, descurar de seus deveres éticos, do senso de justiça e de humanidade, e
devem, diante de quadros como aqueles, adotar as medidas indispensáveis à
preservação da ordem constitucional e da dignidade do homem, fim do Direito.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 23

3.8 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA

3.8.1 Enunciado

Está no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal:

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de


sentença penal condenatória.”

Esse princípio, também chamado do estado de inocência ou da não-


culpabilidade, aparece pela primeira vez numa Constituição Brasileira, e significa uma
das maiores conquistas do cidadão brasileiro às vésperas do terceiro milênio, como
coroamento de uma série de vitórias do homem contra o arbítrio.

3.8.2 Significado

Já se falou que a pena só pode ser aplicada pelo julgador, que é o funcionário do
Estado encarregado de dizer o Direito, distribuindo a justiça. Para concluir, se alguém
deve sofrer a punição, o juiz adotará uma série de medidas, realizará um conjunto de
atos, dirigirá várias atividades destinadas a descobrir a verdade: o homem é ou não
culpado pelo que fez? Se for culpado, então sofrerá a pena.

A descoberta da verdade dá-se no âmbito do processo, o conjunto daqueles atos


que culmina com a prolação de uma decisão do juiz, chamada sentença. Essa sentença
pode ser atacada pelo condenado, e será submetida a instâncias superiores do Poder
Judiciário, que poderão modificá-la ou não.

Existe um conjunto de normas jurídicas que tratam do processo penal, da busca


da verdade real, que devem ser obedecidas por todos os operadores do Direito Penal. A
certa altura, aquela decisão acerca do crime, sobre ser o homem culpado, torna-se
definitiva, já não pode ser alterada dentro do processo. Diz-se, então, que a sentença
penal condenatória transitou em julgado.

Antes disso, enquanto está sendo processado, mesmo que estiver preso
provisoriamente, ele não poderá ser considerado culpado.

Talvez porque esteja inscrito em nossa Carta Magna pela vez primeira, o
princípio não tem sido bem compreendido, inclusive por instâncias superiores do
Judiciário brasileiro. O preceito, no entanto, surgiu na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, no art. 9º, e já estava inscrito na Declaração Universal
de Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em dezembro de 1948,
e não deveria ensejar tanta incompreensão de nossos tribunais.
24 – Direito Penal – Ney Moura Teles

“O art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, em virtude de uma redação


não muito feliz, permitiu no começo da sua vigência certa tergiversação
interpretativa. Agora, no entanto, como bem destacou MAGALHÃES GOMES
FILHO (1994, p. 30), com amparo no art. 5º, § 2º da CF, tornou-se indiscutível
no nosso ordenamento jurídico a extensão da presunção de inocência ‘desde
que o Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 27, de 26 de maio
de 1992, aprovou o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica) e o Governo brasileiro, em 25 de setembro
de 1992, depositou a Carta de Adesão a essa Convenção, determinando-se seu
integral cumprimento pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992,
publicado no Diário Oficial de 09-11-92, p. 15.562 e ss’. Referido Pacto de San
Jose, que também foi publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais (do
IBCCrim, nº 1, jan./mar. 1993, p. 253 e ss.), em seu art. 8º, nº 1, consagrou o
citado princípio, dizendo: ‘Toda pessoa acusada de delito tem direito a
que se presuma sua inocência enquanto não se comprove
legalmente sua culpa.’10

O preceito projeta-se principalmente no campo do direito processual penal –


por, entre outras conseqüências, impor o ônus da prova legal da ocorrência do fato e da
culpabilidade do acusado ao acusador e permitir ao réu o direito ao silêncio, sem que
possa o julgador interpretá-lo em seu desfavor – mas tem também importante reflexo
no Direito Penal: nenhuma norma penal poderá estabelecer a responsabilidade com
base em fatos presumidos, porque ninguém pode ser punido por presunções, mas
apenas por fatos reais.

10 GOMES, Luiz Flávio. Direito de apelar em liberdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 36-

37.

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