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ficção
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lugar do autor da condição de criador único e absoluto desta obra. Qualquer tentativa de
usurpação desta condição ou de obtenção de lucro, será punida nos termos da lei em
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
Sinopse
Tudo se altera quando num final de tarde o jovem padre da ilha lhe pede ajuda
para colocar em prática um estranho plano que visava revitalizar a frágil situação
financeira da sua paróquia. Um plano que não encaixava nos moldes obsoletos de
funcionamento daquela sociedade, e que estranhamente coincide com o desencadear de
um estranho fenómeno astronómico: quando todos esperavam o crepúsculo e o surgir da
noite, eis que o sol surge imóvel no ponto mais alto do céu e assim permanece durante
todo o período em que a noite deveria ter reinado.
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Hoje, sentado nesta escrivaninha, coberto pela luz mal quebrada do luar, reúno
enfim coragem para recordar todos os fenómenos prodigiosos que acabaram por alterar
de forma inimaginável o rumo da minha existência, até então tranquila e indolente. Não
sei porque o faço, prometi a mi mesmo nunca mais os recriar na minha memória, mas
uma força que não sei explicar, um incêndio furioso que me engole o corpo, impele-me
na direcção desta caneta que seguro ainda tremendo, obrigando-me a documentar cada
facto vivido. Quanto tempo passou deste então, não sei, não o soube, não o quis contar,
apenas sei que recordo tudo com uma exactidão prodigiosa, cada traço de imagem, cada
som, cada cheiro desmaiado, como se na realidade o passado fosse uma prisão que
reinvento a cada momento e o presente, aquilo que chamo presente, não mais do que
uma ténue ilusão, um tempo dissolvido no nada.
Era Verão. Um Verão quente e sufocante que sentia como o primeiro da minha
vida. O calor rasgava-me impiedosamente o espírito suspenso. Torturava-me. Receava
ter que arrastar o meu cadáver ressequido pelos caminhos que adivinhava flamejantes.
Nem os velhos, os mais velhos, lembravam um estio tão avassalador, diziam que o céu
os empurrava contra o chão, que ali alguém deixara as portas do inferno abertas.
Recordo aquele pedaço de terra com a facilidade que as circunstâncias ditaram. Aquela
ilha, em tempos idos um templo para os turistas, mas que acabou por sucumbir à
decadência decretada pela aversão de acompanhar os moldes dos novos tempo. Já não
era mais do que um rochedo flutuante, minúsculo, habitado por pouco mais de uma
centena que subsistiam essencialmente à custa da pesca de um pequeno molusco, muito
raro, caríssimo, muito apreciado nos melhores restaurantes das maiores cidades do
mundo. Pessoalmente repugna-me, e estranho alguém pagar o equivalente a um colar de
diamantes por um balde cheio daquele bicho ascoroso, resguardado no seu próprio
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
muco, igual ao ranho de uma velha com a última gripe da vida. Dizem que é delicioso,
não duvido, mas não tenho pretensões de o confirmar. Só de o olhar, os meus líquidos
estomacais revoltavam-se, criando um motim que termina invariavelmente no vómito.
Bom, mas como não era pescador, nem cozinheiro, nem exercia nenhuma actividade
que me obrigasse a ter contacto algum com aqueles seres nauseabundos, não advinha
daí problema de maior. Eu era apenas o professor primário, o único da ilha. Era mais do
que suficiente, só havia uma escola e nunca mais do que uma dezena de alunos. Os
miúdos mal eram aprovados na prova final da quarta classe, como se chamava naquele
tempo, caso tivessem cabeça e as famílias posses, outra escolha não tinham senão
continuar a sua formação académica na metrópole, roubados à inocência, devorados por
um mundo diametralmente aposto ao que conheciam. A maioria não continuava.
Abraçavam desde tenra idade a vida da faina e da agricultura de subsistência, um ou
outro aprendia o ofício do pai ou do tio, que podia ser sapateiro, ferreiro, padeiro ou
carpinteiro. O caso das raparigas era mais dramático. O feminismo ainda não tinha por
ali passado, e as moçoilas acabavam inevitavelmente por passar o resto da meninice
ajudando nas tarefas caseiras até aos dezasseis anos, idade em que caso não fossem
particularmente feias ou gordas, eram oferecidas em casamento a um rapaz mais velho
que provasse ser honesto e trabalhador.
A ilha era extremamente isolada do resto do mundo. Não existia sítio onde um
avião pudesse aterrar, não tínhamos televisão nem telefone, e só duas ou três estações de
rádio se conseguiam sintonizar sempre com estática enervante. O transporte de pessoas
e mercadorias era todo efectuado por via marítima, e estava claro dependente dos
caprichos do mar. Não era anormal no período invernoso existir escassez de alimentos
ou de outros bens dos quais dependíamos essencialmente ou completamente do
fornecimento exterior. As acanhadas dimensões da ilha faziam com que a toda a
população estivesse condensada numa única povoação, não existindo ali os conceitos de
aldeia ou cidade, a ilha era um todo, um ser único e indivisível, estático no oceano
imenso. Havia contudo uma área não habitada. Toda a metade norte da ilha estava
coberta por uma vasta floresta, inóspita, onde de vez em quando se organizavam
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caçadas para apanhar alguma carne que por ali deambulava, coelhos, lebres, furões e
esquilos do bosque. Estas caçadas eram sempre colectivas, a razão era simples, ninguém
se atrevia a entrar naquela floresta desacompanhado, a floresta que há muito a
população tinha baptizado de floresta negra. Corriam histórias de geração em geração,
narrando a existência de criaturas demoníacas e outros seres malignos que habitam por
entre a densa vegetação, e que de quando em quando se faziam ouvir durante a noite. Eu
próprio me deparei com ruídos anormais, semelhantes a gemidos estridentes que
interrompiam o sossego nocturno, e que me provocavam arrepios breves, mas que
sempre consegui atribui aos ventos marítimos embatendo nas rochas das praias e
penetrando pelo verde imenso. Não se podia dizer que eu acreditava naquelas narrações
populares, contudo respeitava-as e por elas me sentia atraído. Quando as tais caçadas,
das quais eu sempre me abstive por um motivo ou por outro, maioritariamente covardia,
eram proveitosas, fazia-se um churrasco comum no adro da igreja em homenagem à
santa padroeira dos pescadores, pedindo-lhe que nunca faltassem aqueles bichos
nojentos que os estrangeiros extraordinariamente idolatram.
Ali a vida não era propriamente fácil. Grande parte da população vivia com
poucos recursos e só a custo de muito trabalho conseguiam subsistir dignamente. Eu
nem por isso. Tendo em conta o nível médio de rendimentos da ilha, até ganhava
bastante bem, e admito-o, sem ter que fazer grande esforço. Para além disso, era visto
como alguém pertencente a um degrau social superior ao do resto da maralha, era
sempre tratado por senhor professor, e como era o único professor da ilha, quando se
referiam a mim, faziam-no sempre como o senhor professor. Ao meu nível, apenas um
punhado de pessoas, que exerciam igualmente cargos de maior relevância e que todos se
habituaram a respeitar, mesmo quando as suas acções mereciam exactamente o oposto.
Penso que o facto de não ser natural da ilha, poderá ter contribuído, pelo menos
inicialmente, para a superioridade exagerada que o povo me atribuía. Nasci na
metrópole, e nela me formei. Filho de pais abastados, decidi, contrariando as suas
vontades, candidatar-me à vaga de professor naquela ilha, ciente da sua pobreza e das
suas dificuldades. Hoje, através das grades do tempo vejo terá sido o sentimento de
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
culpa por ter nascido rico, num berço de ouro e marfim, a lançar-me naquela missão,
numa tentativa de me martirizar e de experimentar pela primeira vez as verdadeiras
dificuldades da vida, num desejo de ser finalmente humano, de me sentir
verdadeiramente vivo e não apenas uma marioneta de feições plásticas desenhadas para
um espectáculo artificial e demente.
Foi num destes dias, um dia irrepreensivelmente normal até então, passível de
ser confundido com os anteriores pelos menos atentos, depois de me perder durante a
tarde entre meia dúzia de rimas que teimavam em não o ser, estrangulado pelo calor que
me acorrentava, que caminhei ansioso ainda sob o sol pungente até à taverna, onde o
néctar dos deuses me esperava. O ar era qual irrespirável, e o simples acto de andar
tornava-se quase penoso. Não sei exactamente que horas seriam quando penetrei na
escuridão trepidante da taverna, mas já passariam com certeza das sete e meia da tarde,
e dentro de pouco o sol deixaria de se ver. Vi o esforço da caminhada ser recompensado
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quando molhei os lábios na boa cerveja gelada e senti-a lavar-me interiormente como
lixívia lava a gordura entranhada. Era normal àquela hora a taverna estar com a lotação
bem composta. Para alguns o dia de árduo trabalho sob a tórrida bola de fogo chegara
ao fim, outros julgavam que ainda iria começar. De qualquer forma, ali era o lugar de
reunião dos homens da ilha, que procuravam um local para relaxar, emborcar umas
bejecas, expressão deles, não minha, e terem conversas porcas nas costas das mulheres.
Eu ficava-me pelas bejecas. Não gostava de me sentir demasiado relaxado e não tinha
mulher para que pudesse ter conversas pouco dignas de um cavalheiro na sua ausência.
Também não tinha grandes amizades. Existia um fosso social considerável entre mim e
os outros homens, os verdadeiros representantes do povo, aqueles que punham o pão na
mesa à custa do suor que lhes secava no rosto, o que levava a uma certa relutância
quando se tratava de estabelecer uma conexão mais ligeira, menos formal. Era normal
sentar-me sozinho, procurava sempre a mesa mais sombria do estabelecimento. Ali não
existia uma única janela ou qualquer outra abertura para o exterior para além da porta
que era mantida religiosamente fechada. Apenas meia dúzia de lâmpadas amarelas,
cobertas de gordura, forneciam uma branda iluminação para uma sala de dimensões
consideráveis. Ali reinavam as trevas, e no fundo era isso que me agradava naquele
local, a melancolia negra que me inspirava e me elevava para uma nova dimensão, uma
dimensão onde podia escolher a minha identidade sem estar prisioneiro das aparências e
dos traços psíquicos que a luz teimava revelar. Um exercício condensado em que as
delineações das máscaras não se notavam, onde os trajes que desenhava e costurava
escapavam às imposições daquele ser que nunca ninguém vê mas que atravessa o nosso
olhar a cada momento, manipulando-o.
Foi uma mão no ombro, apenas uma mão que me pousou no ombro e que
iniciou uma panóplia de eventos que a minha imaginação jamais seria capaz de
conceber. A mão era pertença do padre da ilha, um padre demasiado novo para uma ilha
tão velha, que substituíra no ano anterior o antigo padre, morrido de tanto viver. Como
eu, também ele vinha da metrópole, e com ele trazia os seus hábitos, os ideais de
modernidade, os sonhos demasiadamente progressistas para uma sociedade tão tacanha
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
e conservadora. Nas ruas, já se começava a comentar nas entrelinhas que aquele não era
padre que servisse, surgiam aqui e ali movimentos de descontentamento face às
reformas que este tentava sem sucesso implantar naquela ilha. Entre estas, a mais
polémica, e que a que a maioria dos habitantes se recusava sequer a ouvir, concernia ao
enterro dos mortos, que incompreensivelmente naquela ilha ainda se realizava na igreja,
violando inclusivamente as indicações da metrópole, que já ordenara por mais de uma
vez que se construísse um cemitério que permitisse efectivamente o cumprimento de
todas as regras de saúde pública exigidas. O bom padre bem insistia neste ponto, mas o
povo já tinha ameaçado um motim caso avançasse, e nem as pressões sobre o regedor
da ilha, nas quais eu próprio discretamente me envolvi, surtiram qualquer efeito. Aliás
falar com o regedor da ilha era sempre tempo perdido, este passava nove décimos do
seu tempo na capital, e o que menos lhe importava era se os mortos eram enterrados na
igreja cumprindo a tradição medieval, ou num cemitério conforme. Apesar de termos
praticamente a mesma idade, e de partilharmos o interesse pela modernidade e a aversão
pelo tradicional fundamentalista, tratávamos sempre de forma bastante formal, ele era o
senhor padre, e eu, o senhor professor. Porque o fazíamos? Não sei ao certo, mas agora
que olho para trás acho-o estúpido e o que importa verdadeiramente é que já não mais o
fazemos. Depois da primeira abordagem já relatada, puxou um banco rude para a minha
mesa, e disse em tom entusiasmado, Ainda bem que o vejo por aqui senhor professor, é
consigo mesmo que preciso de falar. Devo dizer que fiquei bastante surpreendido com
aquele alvoroço, curioso com as razões que o compeliam, de extrema importância a
julgar pela sua postura, como se tivesse encontrado a fonte da juventude eterna, o local
onde o céu encontra a terra. Senhor professor, preciso mesmo muito de falar consigo,
continuou aparentemente mais calmo, depois de ter feito sinal ao taverneiro para que lhe
trouxesse alguma coisa para beber, o que de resto aconteceu em menos de nada. Sabe
senhor professor…, começou fazendo uma pausa imediata para molhar os lábios na
caneca transbordante, …os tempos não andam nada fáceis, a igreja atravessa momentos
críticos do ponto de vista financeiro…, sim, aquilo não era propriamente uma novidade,
toda a ilha fazia uma travessia solitária por uma crise que já ninguém lembrava o início
e que poucos acreditavam que poderia algum dia cessar, …e precisa urgentemente
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ser o meu papel naquele plano de malabarismo financeiro que ao mesmo tempo me
revelava tão ridículo e tão afoito. A primeira das minhas questões foi respondida com
um encolher de ombros, não se lembrava de nenhuma passagem da Bíblia que
condenasse este tipo de iniciativa, principalmente quando esta podia ser a única forma
de impedir que a sua paróquia sucumbisse sobre si mesma, o mesmo é dizer que Deus
com certeza preferiria ver uma ligeira derrapagem aos costumes de funcionamento da
igreja, do que ver uma das suas casas encerrar portas para todo o sempre, deixando os
seus crentes vagabundos de fé, indigentes à mercê das forças do diabo. Era tudo uma
questão de compromissos, não se pode ter tudo, e muitas vezes é necessário ceder num
ponto ou noutro para se alcançar a pretensão. Para a segunda questão refugiou-se no
facto de eu ser oriundo de uma família muito afamada nos meandros do mundo
financeiro e económico da metrópole, e como tal, poderia ter alguma facilidade de
contacto e de relacionamento com firmas que pudessem estar interessadas em investir
naquela ideia. Tinha efectivamente, não que isto me desse algum gosto, e nenhuma
saída vislumbrei para além de lhe prometer que com a maior brevidade contactaria
algumas pessoas que o pudessem ajudar naquela demanda que adivinhava infrutífera,
seria como semear uma semente, esperando que nada dela nascesse. Não conseguia
imaginar nenhuma empresa a investir o que quer que fosse, um centavo sequer, para que
fosse propagandeada numa missa com audiência de trinta ou quarenta pessoas, a
maioria velhas viúvas ou tias solteiras que não casaram enquanto deviam e agora já
ninguém lhes pegava. Era o publico alvo de coisa nenhuma, e mesmo que fosse, aquelas
pessoas mal tinham para comer. Era uma ideia engenhosa e astuta, mas estava desde
logo condenada ao fracasso. Noutro local, noutro tempo, talvez, ali, naquele momento,
nunca, jamais. Pensei em lhe sugerir que abandonasse a profissão de padre, isto se esta
pode ser considerada uma profissão, voltasse para a metrópole e construísse uma
carreira na gestão financeira, mas preferi ficar calado, a vida tinha-me ensinado a não
brincar com a fé das pessoas, por muito absurda que esta se me revelasse. Animado pelo
supérfluo apoio que lhe manifestei, o bom padre bebeu de uma vez o que lhe restava na
caneca, agradece-me e deu-me as boas noites depois de deixar umas moedas em cima da
mesa para cobrir a despesa. Eu continuei por mais algum tempo, o suficiente para
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saborear sem aflições de tempo a minha bebida, e me aperceber que era olhado de
soslaio por um grupo de homens na mesa ao lado. Fingi não reparar, mas percebi que
teriam ouvido pelo menos parte da minha conversa com o padre e que esta não lhes
tinha propriamente agradado. Reconheci três deles, um, o maior, era o ferreiro, outro, o
mais velho, o mestre carpinteiro, e também ali estava o dono do minimercado, homem
de quarenta e poucos anos mas que já parecia ter mais de cinquenta, estômago
volumoso, careca, com um bigode ridículo e cuja loja possuía o monopólio do
abastecimento de produtos para toda a ilha, tornando-o talvez no homem de maiores
posses da ilha, muito à custa dos preços exorbitantes que cobrava pelos produtos de
necessidade imperativa. Só para dar uma pequena ideia, ali o preço de um pão triplicava
face ao cobrado em qualquer loja na metrópole. Uma vez cheguei a pedir a intervenção
do regedor para que fiscalizasse os preços praticados pelo minimercado, mas ele em
poucas palavras disse que nada podia ou queria fazer para alterar a situação, pois era um
estabelecimento privado e que portanto podia praticar os preços que muito bem
entendesse, mas na verdade tenho quase a certeza que este recebia algum tipo de
remuneração por fechar os olhos, ou por os manter abertos sem que estes vissem. O
quarto elemento, um homem gordo de farta barba, não conhecia, mas pelas vestes e pelo
cheiro presumi tratar-se de um pescador. Ouvi-os fazerem comentários em surdina que
tentei ignorar, mas era demais óbvio que era de mim que falavam. Cansado e
incomodado pela situação, decidi finalmente levantar-me e ir para casa. No momento
em que passo pela mesa dos tais homens, o dono do minimercado levanta-se de
rompante e choca propositadamente comigo, levando-me o equilíbrio e fazendo que eu
caísse de anca no chão poeirento da taverna. Pediu-me desculpas é claro, Que
desajeitado que eu sou, comentou em tom de lamento enquanto me ajudava a erguer e
me ajeitava a roupa ao corpo com movimentos brutos que quase me magoavam. Não se
aleijou pois não senhor professor? Não, não me tinha aleijado, mas era claro que ele e o
seu grupo lamentavam o facto. Fingi desculpa-lo e já no caminho para a saída ouvi risos
mudos que não conseguiram conter. Um alívio profundo preencheu-me quando senti o
ar quente e inerte da rua envolvendo-me os relevos. Pensei no ridículo do que se tinha
passado, pensei revoltar-me, voltar as costas àquela ilha arcaica de gente pouco
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civilizada, mas depois pensei na prisão que me encontraria caso voltasse para a
metrópole, o fato e a gravata, os gabinetes fechados, os papéis e os negócios que sempre
abominei, os fios prendendo-me os músculos, ditando todos os meus movimentos, a
alienação da minha consciência. Acalmei-me com custo, e quando dava os primeiros
passos tendo o céu como tecto, reparei que algo não estava conforme, algo fugia à
normalidade. Demorei alguns segundos a perceber, mas enfim olhei para o relógio de
pulso e depois para o céu. Os ponteiros anunciavam no seu silêncio faltarem cinco
minutos para as dez da noite, no céu, azul, despido de nuvens, o sol brilhava na posição
do meio-dia.
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II
e crianças esboçando reacções tão diversas, que iam desde da oração convulsa, até a
choros impulsivos, passando pelos risos das crianças divertidas com o facto de ainda ser
dia e de assim poderem adiar a hora do deitar. Uma velha muito velha agarrou-me o
braço e com os olhos baços afogados em lágrimas, suplicou-me, queria que lhe
explicasse o que acontecia, porque brilhava o sol no lugar da lua, porque era dia quando
devia ser noite. Isto levou a que todo o grupo se voltasse para mim, esperando uma
resposta imediata e concreta, afinal eu era o professor da ilha, aquele que mais
conhecimentos das coisas da ciência tinha e com certeza haveria de ter uma explicação
válida, irrefutável para o fenómeno que persistia. Não tinha. Não possuía a mais ténue
ideia do que poderia causar aquilo, e sentia-me tão confuso e ignorante como todos os
outros, com a ressalva que os restantes eram praticamente analfabetos e eu tinha andado
na faculdade. Por momentos pensei tratar-se de uma espécie de eclipse lunar, mas
depressa refutei a ideia tendo em conta as premissas em jogo. Cometi então o erro de
admitir perante todos os que vincadamente me observavam e escutavam que
desconhecia por completo as razões porque estávamos no meio do dia, quando todos os
relógios apontavam já para o seu término. Foi um catalisador para que o desespero e a
aflição tomassem enfim o poder, esmagando a calma e a razão que deveriam ser os
nosso aliados naquele momento. Mulheres ajoelhadas no chão imploravam perdão
divino por todos os seus pecados, imitadas de seguida pelos homens arrependidos por
terem desejado a mulher do próximo e ainda mais por não terem obtido mais do que o
desejo. As crianças ainda sem capacidade para perceber a gravidade do acontecimento
choravam assustadas por verem os seus pais naqueles modos pouco dignos ou apenas
porque sim. Nunca nada impediu uma criança de chorar apenas porque lhe apetece, é o
mais fundamental dos seus direitos. Perdendo o pulso à situação, fiquei incapaz de agir,
num centro que encarava mil caminhos, sem saber qual o correcto, se o havia. Eis que o
estrondear de um par de tiros de pistola gera um silêncio instantâneo que me
constrangeu os músculos. Era a xerife da ilha que impunha a sua presença, soberana
autoridade policial, figura respeitável, pela qual acabei por desenvolver sentimentos tão
dúbios e indistintos. Hoje recordo-te na ponta desta caneta como uma assombração,
num equilíbrio desesperado que não me sei capaz de suster até à última página. Suspirei
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aliviado ao ver alguém com poder efectivo para manter a ordem que o caos ameaçava
estilhaçar como uma jarra de cristal desamparada. Agiu. Fez com todos entrássemos na
taverna que continuava ali a menos de dez passos de distância. Porquê o fez? Receava
que aquele fenómeno fosse apenas o preâmbulo de algo muito pior, algo imprevisível,
capaz de escapar aos nossos piores pesadelos, algo que tornasse perigosa a continuidade
na via pública, e a taverna era o local próximo capaz de nos fornecer um abrigo capaz
contra o que desconhecíamos. Obedecemos. Não só porque tinha sido uma ordem de
quem de direito, mas principalmente por esta estar regada de bom senso e fundamento,
as leis que se devem sempre sobrepor a todas as outras, mesmo que nunca ninguém se
tenha dado ao trabalho de as escrever. Enquanto penetrava de novo no reconforto
sombrio da taverna imaginei que acontecimentos se poderiam esconder na claridade,
qual seria o corpo daquela cauda. Uma chuva de meteoritos, uma chuva de rãs e de
gafanhotos, a queda da lua, do sol, de todo o céu em cima das nossas cabeças, a chegada
dos cavaleiros do apocalipse, de uma banda filarmónica, o renascer dos mortos,
vampiros, homens lobos, homens sem pernas, mulheres com três seios e barba, coelhos
dançarinos, palhaços assassinos, fiscais dos impostos, um canalizador estrábico,
extraterrestres malabaristas, veados com pernas de plasticina, anões psicopatas, uma
manada de bois, uma manada de bois epilépticos, o elenco completo de um musical da
Broadway, uma parada de vendedores de bíblias homossexuais, espíritos malignos, uma
mulher das limpezas obesa, tudo me passou pela cabeça naqueles segundos, desatinos
cerebrais absurdos que traduziam a reacção que interiormente desenvolvera contra o
medo e o ignoto. Tudo era uma incógnita, uma equação complexa sem constantes,
apenas com variáveis exponenciais, que nem o maior dos matemáticos munido do mais
poderoso dos algoritmos seria capaz de resolver.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
seus maridos, correram para estes gesticulando e gritando frases sem nexo. Homens,
pouco mais calmos, tentavam explicar o que se passava, que estava sol, que a noite não
tinha caído como devia. Ninguém acreditou, o que na verdade não foi de estranhar, eu
provavelmente nos seus lugares também não acreditaria sem o ver com os meus
próprios olhos, há coisas que só podem ser acreditadas depois de vistas, e ainda bem
que assim é, uma defesa natural desenvolvida contra os mentirosos e os aldrabões. O
dono do minimercado que por ali continuava, forçou-nos a sua voz de bagaço, Não
acredito numa única palavra, vocês estão todos doidos, e agora se me dão licença vou
para casa que para maluca já me chega a minha mulher. Levantou-se e fez sinal ao
grupo que o acompanhava na mesa para que o seguisse até á porta. A um passo desta,
quando se preparava para retirar o barrote de madeira que a obstruía, sentiu o toque frio
da pistola na testa, Tocas nisto e ficas sem o pouco cérebro que te resta. A xerife não
brincava, sentia-o, estavas desejosa que ele te desse um motivo para lhe enfiares uma
bala no crânio. Não há muito também a xerife se revoltara contra os preços que este
cobrava pelos alimentos de primeira necessidade e desde então a relação entre os dois
derrapou definitivamente à cordialidade, tendo o dono do minimercado afirmado várias
vezes sentir-se envergonhado por ter uma mulher como xerife, quando estas só servem
para cuidar da casa e ter filhos, foi só para isso que deus as criou. Ele percebeu a
mensagem, afastou-se com tiques brutos, e voltou para a mesa que ocupava juntamente
com os amigos, que o seguiam como o cão submisso segue o dono. Resolvida a
situação, a xerife fez valer a sua voz em tom intimidatório, mas ao mesmo tempo
reconfortante, Enquanto eu não disser ninguém sai daqui. Sentem-se todos, acalmem-
se, que em breve a situação estará resolvida. Parecias ter tudo controlado, porém, nos
teus olhos conseguia vislumbrar medo e apreensão, uma fragilidade mascarada por um
uniforme que te começava a pesar mais do que o teu esqueleto conseguia suster e que
não tardaria a fazer-te ceder. Deu ordens concretas e coesas para incrementar ao
máximo a organização das pessoas no espaço disponível que se tornava pequeno para
tantas pessoas, mais de três dezenas, principalmente considerando o calor e o
nervosismo que se multiplicava a cada momento. A xerife, depois de garantir que a
disposição das pessoas pela taverna estava dentro do aceitável, agarrou-me o braço com
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não ter hipótese nenhuma, do que vaguear na escuridão, o que na verdade deveria ser
literalmente a nossa situação real, ou não caminhássemos a ritmo acelerado para a meia-
noite. Mas o mais importante naquele momento, mais do que compreender o fenómeno
era agir, acalmar as pessoas que transpareciam sinais de impaciência incontida. A
decisão de seguir de imediato, rapidamente, para a igreja, unir toda a população no
mesmo ponto físico surgiu com naturalidade, isto embora o médico fizesse questão de
deixar claro, devidamente registado em acta, que refutava a ideia de que lá estaríamos
mais protegidos por estarmos numa das casas do Senhor, e consequentemente sob
protecção sagrada, mas apenas por ser um edifício mais robusto e resistente, que em
caso de ocorrência de alguma tragédia natural relacionada com o fenómeno que
decorria, poderia minimizar eventuais danos físicos nas gentes da ilha. Não iríamos
todos de uma vez, considerámos mais seguro a divisão em dois grupos, primeiro iria
um, e só depois de este alcançar a segurança da igreja o outro avançaria. Antes,
deveríamos reunir toda a água e comida que pudéssemos transportar, não fosse
necessário prolongar o resguardo na igreja por vários dias, semanas até. O primeiro
grupo seria comandado pelo médico, e com ele cerca de uma dúzia de pessoas partiriam
carregando garrafões de água e sacos de comida, entre eles o dono do mini mercado que
se insurgiu ferozmente contra o facto de ter que ir no grupo de reconhecimento, ainda
para mais sob responsabilidade de um velho. Pensei que desta vez a xerife não se ficasse
pela ameaça. Entalaste-lhe o cano da pistola na garganta e disseste-lhe qualquer coisa ao
ouvido. Não sei quais foram as palavras, mas a face do dono do mini mercado tomou
feições carregadas e tensas, e enfim começou a colaborar com o plano traçado. Palavras
miraculosas. Por muito tempo deixou de ser um problema. Faltavam cinco minutos para
a meia-noite quando o grupo partiu, sei-o porque lembro olhar o relógio e pensar que
talvez fosse melhor esperar que a meia-noite passasse, pois como todos sabemos, nos
contos de terror, a meia-noite, as doze badaladas, assinalam o despertar do mal, dos
monstros, das criaturas, dos espectros malignos. Não partilhei contudo aquele
pensamento, não quis levantar medos desnecessários e irracionais, e muito menos ser
apontado como alguém que ainda acreditava no bicho papão. Antes do primeiro grupo
partir alguém se lembrou de levar uma lanterna. A noite podia surgir a qualquer
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que do outro lado do mundo, nas antípodas do exacto local onde me encontrava, o sol
não estaria quando devia estar, pois como é sabido, devido às suas próprias limitações
físicas, da matéria, ele não pode iluminar toda a superfície do planeta continuamente,
apenas consegue iluminar metade de cada vez, a metade que o encara. Ora, isto
significaria que neste ponto do mundo, pessoas, em tudo semelhante a nós, de outra
raça, falando outra língua, adorando outro deus, estariam a enfrentar uma situação ao
mesmo tempo tão semelhante e tão antagónica à nossa, em vez do dia tinham a noite,
em vez da luz tinham a escuridão. Esta ideia reconfortou-me de certo modo, a hipótese
de outros partilharem os meus medos, mesmo sendo estes o reflexo dos meus, como se
fossem a sua imagem no espelho, com a agravante de para eles, o temor ser
consideravelmente maior, pois a escuridão é sempre mais propícia a pensamentos
macabros e espectrais do que a claridade.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
III
Nunca tive medo do escuro. Mesmo quando era petiz nunca precisei de luzes de
presença enquanto dormia, e as sombras que de vez em vez vinham dançar nas paredes
do meu quarto nas noites de luar nunca me intimidaram. Aliás, a escuridão sempre me
apaziguou, sempre foi capaz de me massajar a alma. Era apenas na obscuridade da noite
que as rimas dos meus poemas ganhavam consistência, e os meus sonhos podiam ser
decalcados para a realidade. Mas naquele dia não haveria noite, e um novo dia nasceria
sem que o anterior tivesse realmente terminado.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
A igreja já se via. Estávamos numa rua inclinada delimitada por casas dos dois
lados que desaguava no átrio da igreja. A xerife ia particularmente atenta a possíveis
movimentações dentro das habitações, eu, por outro lado, não conseguia baixar os
olhos, deixar de olhar o sol imóvel, que ao mesmo tempo me seduzia e apavorava.
Repentinamente, um som metálico rouba-nos a atenção e coloca-nos em alerta
profundo. Era como se um objecto pesado tivesse tombado alguns metros atrás de nós,
onde tínhamos passado há momentos. Voltamo-nos instintivamente e olhamo-nos
apreensivos, era aquilo que temia, algo que irrompesse o silêncio desbotado de uma
cidade deserta, algo que me materializasse o medo, que fornecesse um meio condutor ao
lado negro da minha imaginação. Senti-me uma personagem de um filme de terror, a
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vítima indefesa à mercê de uma criatura que não pode combater, e que antes de a fazer
sucumbir tortura-a com as armadilhas que a sua própria mente criou. Saquei a pistola e
ergui-a com as duas mãos. Tremia ligeiramente e tentava-me enganar, repetindo que
estava preparado para enfrentar qualquer coisa, ser o herói daquele filme de terror e não
apenas uma das vítimas degoladas, esquartejada de uma ponta a outra. Andamos alguns
metros na direcção que os nossos ouvidos apontavam e deparamo-nos um caixote do
lixo caído donde brotavam sacos e restos de comida, junto a uma esquina que tínhamos
dobrado há um par de minutos. Não víamos ninguém. Teria sido o vento? Não, o vento
não poderia ter sido, não se sentia sequer a mais leve das brisas. Um cão, um gato
vadio? Dificilmente, há muito que não se via nenhum pela ilha. A xerife aproximou-se
do caixote com cuidado redobrado enquanto eu tentava cobri-lhe a retaguarda. Tinha-
mos medo. Ouvimos então passos, passos esguios de alguém a correr vindos de uma rua
perpendicular à que nos encontrávamos. Seguimo-los sem pensar, o que quer que fosse
corria, fugia de nós, e como tal não pretenderia atacar-nos. Talvez fosse algum habitante
da ilha perdido, sem saber onde todos os outros estavam e que se tivesse assustado com
a nossa presença. Não conseguíamos ver quem perseguia-mos, mas pelo som dos passos
seria humano, e eram estes que nos guiavam. Depois de uma viragem à direita numa
bifurcação junto a uma estalagem desactivada os passos cessaram. Naquela rua as casas
eram quase todas inabitadas, remanesciam do tempo em que a população da ilha era
quatro ou cinco vezes superior. Algumas não possuíam portas nem janelas, e o
alguém…ou o algo que perseguia-mos podia-se ter refugiado no interior de qualquer
uma delas. Levei a mão à testa para limpar as gotículas de suor frio que se formavam e
começavam a escorrer-me pela face. O suor prendia-me as roupas ao corpo
dificultando-me os movimentos, já sentia o pesado odor proveniente dos sovacos
ensopados. Sempre de arma em riste, a xerife decide arriscar entrar numa das casas, não
sei porque escolheu aquela em particular, talvez tenha sido o seu instinto, ou qualquer
evidência cuja existência não me apercebi. Empurrou a porta semi-desfeita com o
ombro de forma progressiva e lenta, fez-me sinal para que a seguisse. Colei os meus pés
aos dela enquanto penetrávamos naquela casa que pelo aspecto estaria abandonada há
dezenas de anos. Não havia qualquer móvel ou outro objecto e as vigas que seguravam
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
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para tal, e não sinto qualquer vergonha. Não é motivo de vergonha sentir medo,
vergonha é esconder o medo mesmo quando este já transborda. Decidi espreitar de
esguelha, a xerife já tinha aberto a porta e agora vistoriava o anexo. Nada de anormal
parecia suceder. Quando fiz os meus olhos regressarem à sala de entrada da casa vejo
um vulto cuja forma não consegui distinguir passando à minha frente, correndo do
quarto que ainda não tínhamos inspeccionado em direcção à porta da casa. Foram
milésimos de segundos, milésimos de segundos em que o meu cérebro deixou de
funcionar e os meus músculos agiram por vontade própria. Fechei os olhos e premi o
gatilho. Senti que o som do disparo foi igual ao de um canhão, um canhão explodindo
junto ao meu tímpano. Mantive os olhos cerrados durante alguns segundos, o tempo
necessário para que voltasse a um estado completamente consciente. Quando os abri, vi
a xerife debruçada sobre um corpo que jazia no chão. Aproximei-me tremendo, temendo
ver algum mostro horrendo, um ser sobrenatural que a minha imaginação criou ali
naquele momento. Entrei em choque quando vi deitada afundada sobre o seu próprio
sangue, com uma cratera desenhada na testa uma criança, uma menina de sete ou oito
anos ainda de olhos abertos que me olhavam já sem me ver. A xerife olhou-me com o
rosto manchado pelo horror, soluçou, Está morta, senhor professor.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
IV
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Quando dentro do possível tomei plena consciência do meu acto, decidi assumir
as devidas responsabilidades, enfrentar o boi pelos cornos como se dizia antigamente.
Coloquei-me à disposição da xerife, E agora xerife, vai prender-me? A sua reacção
ficou a dever ao esperado. Inspirou fundo e quando expirou disse de forma atabalhoada
sem me conseguir olhar, Senhor professor, não nos precipitaremos, tenhamos calma.
Calma? Como podíamos ter calma depois do que tinha acontecido, uma vida esfumou-
se com a pressão do meu dedo, não havia calma possível naquele momento. Continuou,
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
Senhor professor vivemos uma situação fora do normal, bizarra, não vale a pena
complica-la mais…. Ah, e só então percebi o sentido daquelas palavras hesitantes e
sujas, a xerife estava com medo, estava com medo de ser responsabilizada pelo
sucedido, afinal havia sido ela a fornecer uma arma a um civil sem qualquer tipo de
experiência no seu manuseamento, que num acidente acabou por roubar a vida a uma
inocente criatura. Em tribunal provavelmente seria condenada a uma pena superior à
minha, aliás, eu com um bom advogado o mais certo era não passar um único dia na
prisão, bastaria invocar as condições especiais que envolviam o momento em que o
incidente ocorrera. Mas não para a xerife, não haveria desculpa para o facto de ter
armado um civil, ela era a única responsável por garantir a segurança e a ordem da ilha.
Talvez conseguisse uma benesse, argumentando que apenas pensara na minha
segurança, que não sabia que tipo de perigos a claridade indevida escondiam, mas de ser
considerada culpada nunca se livraria. A minha primeira reacção foi desaprovar
violentamente o que a xerife subentendia nas suas palavras, encobrir todo o acidente,
fingir que aquilo nunca tinha acontecido, como ela se atrevia sequer a sugeri-lo. Mas
depois pensei melhor, um pensamento egocêntrico que me fez corar de vergonha.
Embora escapasse facilmente ao castigo judicial, dificilmente me livraria de um
inquérito disciplinar moroso cujo desfecho seria com toda a certeza uma suspensão
vitalícia da profissão de professor. Ninguém aceitaria que eu voltasse a ensinar crianças
quando já tinha morto uma, mesmo que tudo não tenha sido mais do que um maldito
acidente sem intenção. Sem emprego na ilha, nada me poderia salvar de voltar para a
metrópole e de finalmente ser obrigado a entrar no fascinante mundo dos negócios, sob
a acusação de já ter manchado demasiado o nome da família para ainda me dar ao luxo
de o continuar a manchar mais num emprego de categoria inferior. Uma mão lava a
outra, eu seria uma mão, a xerife seria a outra.
A grande questão residia no que fazer com o cadáver. Enterrá-lo estava fora de
questão, não tínhamos pás, nem terreno propício à execução de um buraco suficiente
fundo. Também não tínhamos muito tempo, não tardaria a que todos os que estavam na
igreja principiassem a suspeitar sobre a nossa demorada ausência, quando apenas
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
O padre levou-nos de imediato para o seu escritório, uma sala para a qual se
entrava através de uma portinhola do lado direito do altar. Lá o velho médico esperava-
nos para uma espécie de reunião de emergência, um encontro das auto-determinadas
figuras socialmente mais relevantes da ilha, que visava fazer um apanhado de todos os
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como já reparam não tivemos noite, para além disso todas as formas de comunicação
com o exterior parecem estar bloqueadas, temporariamente ou permanentemente, a
verdade é que por agora estamos por nossa conta. Proponho por isso, aproveitando o
período de acalmia que se proporciona, que reflictamos um pouco sobre as causas
destes fenómenos de índole invulgar. Senti que chegara a minha hora de brilhar, de
expor a minha descoberta, a teoria que julgava sublime. Contei-lhes tudo, o sol que se
manteve sempre na mesma posição, a hipótese de que a Terra interrompera o seu
movimento de rotação. O padre e o médico olharam-me atentamente durante o meu
discurso, e quando depois de o terminar esperava que me oferecessem os parabéns por
ter descortinado de forma tão astuta as razões de naquele dia o sol ter prolongado o seu
horário laboral, eis que o médico recupera a palavra, Acho a teoria do sol ter cessado a
sua rotação interessante…contudo, este fenómeno iniciou-se ao fim da tarde, ou seja
quando o sol descia rumo ao ocaso. Se a Terra tivesse efectivamente parado de rodar
naquele momento, o sol ficaria naquela posição e não subiria de novo ao pico da sua
hipérbole diária. Depois deu-me um olhar paternal, aquele que diz, ah quase, mas ainda
não foi desta, continua a tentar. Senti-me desiludido, envergonhado com a facilidade
com que a teoria de que tanta me orgulhava havia sido desmanchada. Abri os braços e
encolhi os ombros, Então, caros amigos, não faço ideia porque hoje não houve noite.
Tinha a frustração marcada nas poucas rugas que já tinha e tentava esconder a aflição
que me fustigava. De qualquer forma temos que decidir o que fazer em seguida…,
insistiu o padre, E o que sugere, senhor padre, devolveu-lhe a xerife, Bom…eu não sei
bem…, Eu por mim mandava toda a gente para casa e tentávamos retomar a
normalidade, senão aconteceu nada de mal até então também já não irá acontecer, e
aqui fechados nesta igreja é não estamos a fazer nada. Se não voltar a haver noite
tanto melhor, é electricidade que poupamos. Senti-me impelido a apoiar a opinião que o
médico expos de forma tão decidida, mostrar-lhe o meu incondicional apoio, mas depois
lembrei-me, lembrei uma menina que jazia sob fragmentos empoeirados de ladrilhos e
tijolos, lembrei que o responsável era eu, lembrei que caso as pessoas regressassem às
suas casas as possibilidades de alguém dar com o corpo aumentavam exponencialmente,
para além é claro, de impossibilitar a transladação do corpo para um local definitivo
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onde nunca ninguém encontrasse o bárbaro fruto das minhas acções involuntárias, e
onde a incógnita criança em paz pudesse para sempre repousar. Disse, Esperemos pelo
menos mais um dia, pela hora do anoitecer, se até lá as coisas não voltarem ao normal
logo se vê. Considero precipitado enviar as pessoas já para casa, pelo menos aqui há
água e comida que chegue, um tecto seguro. Parecia uma opinião sensata e teria orgulho
nela se esta não pretendesse apenas e somente ocultar o mais horrendo dos crimes.
Percebi pela expressão facial da xerife que ela compreendeu o motivo daquela
intervenção, ela conhecia-me bem o suficiente para saber que em condições normais
apoiaria a posição do médico, mas aquelas há muito que deixaram de ser condições
normais. Assim seja, façam como quiserem, desabafou o médico visivelmente
surpreendido por não ter contado com o meu apoio, mas ao mesmo tempo sem dar
demasiada importância ao assunto, depois olhou o relógio de bolso e comentou algures
perdido entre o sério e o irónico, Cinco e cinquenta e cinco, o sol deveria estar a nascer
a esta hora, querem ir ver se acontece mais alguma coisa estranha? Acedemos, não
perdíamos nada em verificar. O gabinete do padre possuía uma janela de dimensões
consideráveis, suficiente para que quatro pessoas pudessem juntar-se sem se
acotovelarem em demasia. Lá fora o sossego perpetuava, as ruas desertas, o sol imóvel.
Enquanto esperávamos, uma ideia surgiu-me, uma ideia que quis de imediato partilhar
com todos mas que acabei por guardar só para mim, pensei, e se aquele não fosse o
nosso sol, sim, se o nosso sol no dia anterior tivesse realmente posto como devido, e se
aquele sol que víamos e que nos iluminava fosse outro, outro sol aparecido não sei bem
donde, mas que por ali ficou. Seria então de esperar que o nosso sol, o sol que sempre
conhecemos, surgisse agora tal como sempre tem surgido marcando o inicio de de um
novo dia, e que o outro ali continuasse firme na sua posição. Passaríamos então a ter
dois sois, um permanente e outro que metade do tempo estava presente e na outra
metade estava ausente. Era uma ideia, mas não mais do que isso, e como a anterior
estava errada. Nada de extraordinário se passou, não haviam dois sois, apenas um, um
sol que continuava firmemente pregado no topo do céu, o mesmo sol de sempre.
Desiludido, preocupado, agoniado e exausto procurei um canto qualquer mais recatado
da igreja e ajeitei-me o melhor que consegui. Fechei os olhos e adormeci. O que se
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
Acordei numa vala comum, enterrado sob mil pés de remorsos e exaustação
psíquica. O seu peso era colossal, esmagava-me como se fosse um insecto, frágil,
abandonado pelas sensações que julgava eternas, e que me faziam sentir oco, uma casca
sem medula, apenas casca. Acordei do lado errado do amanhã, absorvido pela
imensidão do vazio, consumido por um calor insuportável. Acordei sacudido pelos
movimentos bruscos da xerife. Desorientado, ainda a meio do caminho entre o sono e o
consciente perguntei-lhe se já era noite. Não, professor é meio-dia, O sol?, Está onde
deve estar. Por um momento tudo voltou ao normal. Era meio-dia, e o sol honrava-nos
com a sua presença no ponto mais alto que os nossos olhos alcançavam. Pena que fosse
uma normalidade passageira, que se esbateria dentro de momentos, quando o astro
luminoso não iniciasse a sua viajem rumo ao ocaso. Senhor professor, temos que ir.
Receei que a xerife se referisse à casa abandonada, que quisesse já regressar ao fatídico
local para enfim apagar as marcas da minha acção estouvada, fazer parecer que nada
nunca tinha acontecido mesmo sabendo que tudo ficaria para sempre enterrado nas
nossas memórias. Mas aparentemente não, um pescador dizia que tinha na sua casa um
telégrafo ligado à capitania das pescas da metrópole, que utilizava para saber de
tempestades e que mais assuntos pelos quais os pescadores se interessam. O plano
passava muito simplesmente por visitar a casa do tal pescador, e através do seu telégrafo
tentar contactar a metrópole. Mas eu nem sei código Morse, protestei bocejando sem
perceber a minha utilidade naquela incumbência. Ela olhou-me fixamente e os seus
olhos elucidaram-me as razões, ela não precisava de mim para a acompanhar ao
telégrafo, mas sim para o que faríamos em seguida. Soltei um suspiro inquieto. O
pescador vai connosco?, perguntei receando não termos a privacidade necessária, Não,
ele diz que tem medo de sair da igreja. Ah, então íamos sozinhos, perfeito, tínhamos
uma desculpa para abandonar a igreja sem levantar suspeitas, a ausência de olhos
indesejados para limpar a lama das nossas botas, melhor oportunidade que aquela era
improvável. Tudo pareceu contudo ficar comprometido quando no exacto momento em
que nos preparávamos para abandonar a igreja alguém se intrometeu no nosso caminho.
O velho médico queria acompanhar-nos, segundo as suas palavras estava farto de estar
fechado naquela maldita igreja e precisava urgentemente de sentir o céu nu sobre a sua
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
cabeça. Era um rude golpe nas nossas pretensões, ainda tentei demovê-lo argumentando
que alguém poderia vir a precisar de cuidados médicos, estava muito calor e as pessoas
estavam muito nervosas. De nada serviu, Estas pessoas agora só precisam de um padre,
não querem saber de um médico para nada. Estava feito, iria connosco.
A casa do pescador ficava numa rua do lado oposto à da casa abandonada, não
havia portanto o perigo de o médico passar por ela e por alguma razão suspeitar de algo,
algo que me pudesse denunciar. A caminhada foi feita em pesado silêncio, precisávamos
de todo o nosso fôlego para caminharmos sob aquele calor infernal. A casa do pescador
era uma casa igual a todas as outras, um único piso, caiada de branco sujo, porta e
janelas grosseiras. Era minúscula, um apertado corredor de entrada que desembocava
num quarto e numa divisão que servia de cozinha e sala de estar, e onde estava o
telégrafo. Francamente não estava nada preocupado com os resultados daquela tentativa
de comunicação com o exterior, preocupava-me apenas saber como nos livraríamos do
médico, para que pudéssemos voltar à casa abandonada e acabar o que não devia ter tido
começo. De nós os três apenas a xerife sabia código Morse e como tal, foi ela quem
tomou as rédeas da máquina. Pouco lhe dei importância, aquilo para mim eram só
ruídos irritantes intermitentes, e duvidava que alguém fosse capaz de estabelecer uma
conversação eficiente utilizando apenas aquele obsoleto aparelho. Distraí-me
percorrendo com o olhar a habitação em que me encontrava. Estava praticamente
despida de objectos, apenas o básico e o essencial. Nas paredes irregulares apenas um
retrato, um homem de aspecto distinto e aristocrático, que não sei se era algum
antepassado do pescador ou algum nobre famoso naquelas paragens. Não havia livros,
bom, havia um exemplar da Bíblia já com a lombada descolada, mas nada que se possa
considerar literatura, se bem que há quem veja na bíblia a mais brilhante das histórias de
ficção. Numa estante reparei numa miniatura de uma embarcação de pesca com cerca de
um palmo de comprido, esbocei um sorriso quando lhe li o nome, Pôr-do-sol. Cerca de
vinte minutos depois de a xerife ter começado a manusear aquele aparelho cujos sons
me irritavam categoricamente, eis que nos preparávamos para desistir. Nenhuma
resposta para as nossas questões se vislumbrava e mais uma vez continuávamos presos
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VI
Nas duas horas seguintes a xerife tentou retomar o contacto com a metrópole.
Pressionou um número infindável de vezes o interruptor do telégrafo ao ponto de
diversas vezes perder a paciência e ter que ser substituída…por mim. Não que eu tivesse
conseguido aprendido código Morse naquele interregno de tempo, não, longe disso, eu
apenas premia o interruptor de forma completamente aleatória, ora com uma menor
frequência, ora deixando o dedo durante longos períodos. Não interessava se tinha
algum sentido, apenas importava chamar a atenção de alguém do outro lado para que
respondesse e explicasse o significado da mensagem anteriormente enviada. Antes de
mais e para melhor contextualizar a missiva recebida, foi necessário perguntar à xerife o
que exactamente estava encriptado na sequência sonora que ela emitiu continuamente.
Hoje na ilha, não houve noite, respondeu ela provocando uma gargalhada no médico
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
que exprimiu desta forma o absurdo que nos invadia a existência. Havia é claro a
possibilidade de quem estivesse do outro lado encontrasse-se ausente das suas
capacidades conscientes normais, o mesmo é dizer sob o efeito de álcool ou qualquer
tipo de droga, ou que decidira brincar com o nosso isolamento, sabendo exactamente o
que se estava a passar com o sol e que os outros tipos de comunicação estavam
inviáveis, imaginei inclusive alguém gargalhando de forma animalesca troçando de nós.
Com a sensação que ainda tínhamos tornado mais confuso o que confuso já era
por natureza, decidimos regressar à igreja. Deviam ser quatro da tarde, um pouco mais,
um pouco menos talvez, quando regressamos à rua abrasiva, com a ideia de que caso as
coisas não se resolvessem nas horas seguintes ali haveríamos de voltar. Enquanto
caminhávamos de regresso fitei a xerife demoradamente, disse-lhe qualquer coisa com o
olhar, ela compreendeu. Quando nos aproximávamos da escadaria que levava à entrada
da igreja, a xerife abordou o médico com uma naturalidade excepcional, disse-lhe,
Senhor doutor, vá andando para a igreja que eu vou só ali com o senhor professor à
esquadra ver se consigo estabelecer contacto via rádio. Ele espreitou-nos com
semblante desconfiado, mas cedeu, estaria decerto demasiado cansado para nos seguir,
pois de outro modo faria questão absoluta de nos acompanhar, mas a idade já não
permitia que o seu corpo cumprisse todas as vontades da sua mente. Antes de separar-
nos alertei-o, Senhor doutor, é melhor não falar da mensagem do telégrafo a ninguém.
Diga que não obtivemos resposta alguma. Ele oscilou a cabeça afirmativamente, ele
próprio já o pensaria fazer de qualquer forma. Não valia a pena catalisar mais a
inquietação das pessoas com mais aquela enigmática missiva.
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e tudo de belo que esta acarreta. Como vamos limpar a sujidade?, perguntei, A
sujidade? Fala em código?, Acho mais prudente. Ela parou momentaneamente de andar
e disse antes de retomar a caminhada, Usaremos um bocadinho do nosso amigo ali em
cima. Falava também ela em código, um código cruel, macabro, que não repulsei, fogo,
sim queimaríamos o corpo, a casa toda se tivesse que ser, às cinzas o que das cinzas
nasceu. Nunca ninguém desconfiaria de nada, seria apenas um incêndio numa velha
casa inabitada, causado com toda a certeza por uma exposição solar muito superior ao
que era ordinário. O corpo deixaria de o ser, seria levado pelo vento, pelas brisas
marítimas, viajaria por todos os locais do mundo, seria livre, livre como em vida nunca
antes fora, nem nunca poderia ser. A sua identidade continuava-me a martirizar, se ao
menos soubesse o seu nome, quem era a sua família, quem ela era, talvez assim o meu
calvário talvez atenuasse. Pior do que matar alguém, só matar alguém que nem sabemos
ser. A xerife parecia viver bem com este facto, para ela era suficiente saber que não era
nenhuma das crianças da ilha, mais, que não possuía qualquer relação com nenhum dos
membros daquela comunidade, pouco lhe importava o que fazia ela na ilha,
especialmente naquele momento em que o sol parecia estar louco. Disse-me, Professor,
oiça-me bem, a pequena está morta, foi um acidente, é trágico sim senhor, mas ninguém
quis que acontecesse, é inútil sermos culpabilizados pelo que sucedeu, não será isso
que a trará de volta, não é isso que vai anular a sua sentença de morte. Se nunca
ninguém se lembrar dela tanto melhor, aliás se ninguém se importava com ela também
a sua vida não seria grande coisa, talvez até esteja mais feliz no paraíso, ou onde quer
que vão as crianças quando morrem. Não a consegui olhar depois de ouvir aquelas
palavras. Iniciara uma metamorfose que a conduzira a um estado em que já não a
reconhecia. Não era ela que falava, era o distintivo que trazia no peito, sobrepondo o
coração, bloqueando-o. A máscara, sempre a máscara, que trazia debaixo da pele e lhe
embriagava o espírito.
O resto do caminho foi feito em silêncio apenas corrompido pelos sons dos
nossos passos que pareciam ferir-me os ouvidos. Mantive sempre uma distância de
cerca de dez palmos da xerife, não sei explicar bem porquê mas achei melhor guardar
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
alguma distância entre os nossos corpos, e só diminui esta separação quando ela enfim
empurrou a porta da casa abandonada e nela penetramos. Senti um arrepio a percorrer-
me em toda a extensão do corpo quando a porta rangeu agudamente, como se ouvisse os
gritos dos miseráveis enclausurados no inferno. Se isto fosse um conto de terror, um
conto de terror digno deste nome, quando nos aproximássemos do anexo onde deixamos
a pobre criança no primeiro descanso na condição de morta, e retirássemos os ladrilhos
e os tijolos que cobriam o seu corpo este já lá não estaria. Entraríamos assim num
estado de pânico aterrado que se agravaria quando víssemos a criança erecta de frente
para nós, rindo-se com as gargalhadas que roubara ao diabo, preparando-se para aplicar
a sua justiça naqueles que a sua vida roubaram. Mas não, não é o caso, quando
removemos os ladrilhos e os tijolos empoeirados, ela continuava no exacto local onde a
deixamos. A mesma expressão apagada, dormindo para sempre. Um anjo, um anjo com
uma cratera delineada na testa onde se compusera uma crosta de sangue ressequido.
Preso e perdido naquela visão terrificamente melancólica, mal dei conta que a xerife
juntara algumas madeiras velhas e secas, outro tipo de lixo que encontrou, tudo de o que
o fogo se pudesse alimentar, que espalhava uniformemente em redor do corpo
estendido. Depois olhou-me e perguntou-me se queria assistir ao passo seguinte. Não
respondi, mantive-me imóvel enquanto observava apaticamente o desenrolar das acções
daquela operação lúgubre que desejava esfumar-se da realidade. Vi a xerife puxar de
uma caixa de fósforos e com uma profunda calma incendiou o perímetro que formara
em torno da malograda. Não demorou muito para que o fogo ateasse com uma
exuberância desmedida, criando uma cortina de labaredas rebeldes entre nós, uma
cortina que separava o que já estava morto do que ainda não estava. Em breve o cadáver
desapareceria afogado nas suas próprias cinzas, e aí ninguém poderia dizer com toda a
certeza que aquele ser algum dia existiu. Ficamos ali cinco minutos, dez talvez, não
interessa, olhando, apenas olhando. O cheiro a carne queimada começou enfim a
agoniar-me, uma angústia venenosa que me fez sentir o estômago a sair-me pela boca e
correr em direcção à rua, implorando por ar fresco que me lavasse as entranhas. O fumo
espesso já explodia por todas as frinchas e aberturas da casa, em breve seria visível em
toda a ilha. Estranhamente apeteceu-me fumar um cigarro, eu que nunca fumara na vida,
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e amaldiçoei-me por não ter nenhum comigo, enquanto isso comecei a distinguir sons
no horizonte. Coloquei-me em alerta máximo, imóvel, na expectativa. O som
aproximava-se, e em breve distingui-o, eram passos. Alguém descia a rua na minha
direcção. Fiquei sem saber o que fazer, queria voltar para o interior da casa abandonada
mas os meus músculos estavam paralisados. Os passos aproximaram-se mais, e melhor
os distingui, eram passos lentos e pesados, como se alguém se arrastasse enquanto
andava. Um vulto começou-se então a desenhar no cimo da rua, inicialmente indistinto
mas de forma humana, era um homem que pouco depois reconheci. Mas o que raio faz
ele aqui?, murmurei ainda sem noção do que a presença do médico ali poderia denotar,
mas ciente das dificuldades motoras e respiratórias que o esforço lhe impusera. Eis
senão quando me preparava para correr na sua direcção, não sei se para o auxiliar, se
para lhe desviar o rumo, sinto uma presença atrás de mim e de seguida o estrondo de
uma arma de fogo ressoa a poucos centímetro dos meus ouvidos.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
VII
Cerrei o punho com toda a força que possuía, tentando controlar ao máximo a
raiva e a revolta que me invadiam. Quis confrontar a xerife com aquele acto bárbaro,
desnecessário, mas não me deu a oportunidade. Sem dizer palavra, agarrou os pés do
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Vejo então a xerife caminhando na minha direcção de arma na mão, passa por
mim e diz-me em tom afável como se nada se tivesse passado, Venha senhor professor,
temos que ir para a igreja. Não tive outra escolha senão segui-la, não porque mo pedia,
mas porque este havia sido o último pedido do médico, e este, apenas este importava.
Durante o caminho tentei raciocinar o mais claramente que conseguia sobre as razões
que ditaram a presença do médico naquela rua, naquele momento. Tínhamo-lo deixado
em frente à igreja, e nesta deveria ter permanecido, se não o fez é porque algo muito
grave acontecera ou estava preste a acontecer. O que seria? A ideia de algo sobrenatural
veio-me logo à ideia, sem o querer monstros e mortos-vivos ocuparam-me a mente, tudo
o que já havia pensado que poderia advir do estranho fenómeno do sol. Mas como o
médico descobrira o nosso paradeiro? Bom, naquele momento não fui capaz de o
descortinar, mas agora, enquanto escrevo estas palavras tudo se torna bastante claro.
Assombrado com o que se deparou na igreja, outra escolha não teve o pobre médico
senão correr em busca do nosso auxílio, ora, segundo as nossas palavras tínhamos ido
para a esquadra, e para lá o pobre médico se dirigiu, naturalmente esperançado que lá
estivéssemos. Não estávamos, contudo o verdadeiro local onde nos encontrávamos
ficou em pouco tempo assinalado pela espessa nuvem de fumo que se escapava da casa
abandonada em chamas, a espessa nuvem de fumo que ganhava volume a cada segundo,
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
e que vislumbrava enquanto percorria o lance de escadas que nos guiava até à porta da
igreja. A xerife tirou então um lenço do bolso e atirou-o para que eu o apanhasse, Limpe
a cara, pediu, não, ordenou, sim, aquilo fora uma ordem e tenho a certeza que puxaria
da arma caso me recusasse a limpar o sangue ainda húmido que me pintava a cara
proveniente do tórax do médico que morrera nos meus braços minutos antes. O que não
passava inicialmente de um vergonhoso e cobarde encobrimento de uma acção
imponderada, transformara-se para a xerife numa obsessão embriagada de encobrimento
de provas incriminatórias, uma obsessão que há muito que passara os limites do racional
e que me faziam recear as suas acções futuras.
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os que a seu ver eram os seus servos. A xerife não demorou a percebeu quem era o
verdadeiro responsável pelo tumulto de cariz aberrante, e sem qualquer tipo de
hesitação apontou e disparou na direcção da garganta do dono do minimercado que sem
reacção voou desamparado. Confesso que senti algum prazer ao ver aquele verme caído
no chão, ainda vivo, com o sangue ejaculando, sofrendo, incapaz de dizer o que quer
que seja, um prazer mórbido do qual não me envergonho, e naquele momento senti que
enfim a xerife tivera uma atitude que, embora pouco tivesse de racional e normativo, era
a necessária e a devida. Pensei que a morte daquela criatura demovesse a restante
multidão. Que ingénuo fui, matamos o general, mas não matamos o exército, e agora
pareciam apenas querer vinga-lo. Notei no olhar de cada um, ódio, irracionalidade, raiva
incontrolada. Todos, homens, mulheres, velhos, crianças, os meus alunos, aqueles que
ensinei a ler e resgatei à ignorância. Para todos éramos nós a personificação de belzebu,
aqueles que tinham que ser destruídos custasse o que custasse. Preferia que ali
estivessem todas as criaturas sobrenaturais que já haviam habitado os meus pesadelos
em vez daquele magote de fundamentalistas insanos. Avançaram na nossa direcção,
cercaram-nos, não tínhamos qualquer hipótese de fuga. Procurei segurança no corpo da
xerife, perguntei-lhe tremendo quando balas ainda restavam na pistola que erguia em
todas as direcções. A resposta não me podia ter deixado mais apreensivo, Nenhuma. Ali
estávamos nós, dois seres indefesos, apenas munidos de uma pistola sem balas, à mercê
de um bando de monstros reais. A xerife bem continuava acenando-lhes o cano da
pistola, ameaçando-os que dispararia se alguém se movesse um milímetro que fosse. De
nada servia, estavam cegos, bêbados, pouco se importavam com a pistola, e
provavelmente em pouco tempo perceberam que esta já não tinha qualquer projéctil no
seu interior, que tudo não era mais do que bluff de qualidade diminuta. Preparei-me para
o fim, mas enquanto isto imaginei que algo fazia com que aquela torrente que se
preparava para nos matar cessasse, qualquer coisa como se vê nos filmes quando o herói
está preste a morrer, perdido pelas circunstâncias do enredo, mas no último segundo
algo surge que o salva, vira o tabuleiro de jogo ao contrário, permitindo que recupere e
no final vença o vilão e fique com a miúda gira. Mas quem quer que escreveu esta
história não quis repetir o cliché, e em pouco senti-me engolido pela multidão. Não me
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recordo com pormenor de todos os instantes, aliás na realidade pouco recordo, lembro
de sentir um primeiro soco na face, depois vários na região do estômago, lembro de já
no chão ver uma criança, um rapaz gordo e bexigoso pontapear-me em cheio no nariz.
Senti ira em todas as agressões que sofri, em todos os socos, pontapés, e pancadas
consumadas com todo o tipo de objectos que avassalaram o meu corpo e me abriram a
carne. Não queriam apenas matar-me, não era em mim que realmente batiam, era aquilo
que eu representava e que os aterrorizava mais do que o dia no lugar da noite, a
modernidade, a evolução, a mudança.
VIII
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
Acordei com uma brisa gélida gratificante a acariciar-me a face magoada. Sentia
dores em todos os pontos do meu corpo e qualquer movimento que tentasse fazer, por
mais ligeiro que fosse, era deveras penoso. Quando consegui finalmente abrir os olhos,
deitado de costas, deparei-me com o velho tecto da igreja, alvo e sujo. Demorei algum
tempo a lembrar o que tinha acontecido, a cruzar os dados do tempo e do espaço, e
quando enfim tomei noção do que acontecera senti-me devastado pela surpresa de ainda
estar vivo. Devo dizer que foi naquele momento, avassalado pelas intensas dores que
me percorriam o corpo, que mais me senti vivo desde o início da minha existência.
Senti-me enfim verdadeiramente humano, real, ciente da minha fragilidade, como se o
ponto em que a morte toca a vida fosse o verdadeiro ponto em que a existência humana
faz realmente sentido, ou mesmo o único ponto em que tal se verifica. Ao meu lado
sentia uma presença, ténue, encurralada entre o instinto de viver e o desejo de que a
morte lhe lavasse o sofrimento. Parecia encontrar-se num estado mais lastimoso que o
meu, todas as suas roupas estavam esfarrapadas, um sem número de contusões
despoletavam entre as suas curvas descobertas, o sangue espesso escorria-lhe livremente
ao ritmo da débil pulsação. Tentei fazer com que a xerife regressasse a um estado
consciente, aplicando-lhe leves safanões que foram crescendo de intensidade. Tentei
depois erguer-me mas sentia a carne a rasgar a cada movimento, a pele ardia-me como
se estivesse deitado sobre um manto de carvão incandescente. Enfim oiço um gemido
solto, uma nota vocal sumida quase desprendida de intensidade que me arrepiou, a
xerife vivia ou pelo menos lutava para tal, o que dado as circunstâncias era notável.
Consegui ver os seus olhos desflorarem, depois fechou-os novamente, até que por fim
reuniu forças suficientes para os manter definitivamente abertos. Tentava falar, mas
apenas conseguia emitir sussurros mudos indecifráveis. Arrastei-me na sua direcção até
que os nossos corpos se tocaram, aproximei a boca de uma das suas orelhas e murmurei
qualquer coisa, qualquer coisa que lhe tomasse a atenção e a mantivesse alerta. Ela
respondeu com algumas sílabas, desconexas e abandonadas, mas suficientes para
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seguinte em tom seco e arrastado, Senhor professor, deixe-me, vá-se embora, salve-se,
deixe-me morrer como Cristo morreu. Não o ouvi, continuei a minha operação e
contrapus, Tretas, Cristo morreu em cima de uma prostituta. Vi o seu sorriso abrir-se
mais, o que lhe terá inclusive aumentando as dores que sentia, Não blasfeme senhor
professor, olhe que está na casa de deus, Ah sim, veja o que os seus seguidores lhe
fizeram. Já tinha sido capaz de lhe libertar os tornozelos, mas deparava-me agora com a
problemática dos pregos enterrados nas palmas da mão, rompendo pele e carne de uma
ponta a outra. Como poderia retira-los sozinho, sem ferramentas ou qualquer objecto
auxiliar? Eis que vejo, com um espanto agradável a xerife já de pé, caminhando curvada
na nossa direcção, apresentando uma melhoria notável da sua condição física, uma
melhoria que eu acompanhava. As dores pareciam inexplicavelmente desaparecer a cada
instante, e as minhas forças voltavam progressivamente a níveis satisfatórios. Ela
carregava qualquer coisa numa das mãos que os meus olhos ainda enevoados só
assimilaram quando já junto a mim, a estendeu como um presente. Ah, uma tesoura de
ferreiro, um dos muitos instrumentos que a população tinha improvisado como arma nos
nossos corpos e que haviam ficado esquecidos por ali, juntamente com martelos,
vassouras, e até colheres de pau. Com perícia podia utiliza-la para livrar as mãos do
padre dos pregos que lhe aferrolhavam a carne crua. Não foi fácil. Precisei de várias
tentativas, e sempre que enfim conseguia que um dos pregos deslizasse para fora das
entranhas do padre, ele cuspia gritos de suplício que ecoavam por toda a igreja, de tal
forma que cheguei a recear que a sua estrutura não resistisse, e que esta desabasse sobre
as nossas moribundas existências. Mas finalmente, com a preciosa ajuda da xerife e com
um esforço final conseguimos libertar o pobre padre daquela construção diabólica e
estende-lo no chão da igreja, sobre o seu próprio sangue. Estava atónito com o estado do
seu corpo, como podia alguém sobreviver a tamanhas chagas, donde vinha a força capaz
de combater as brutais martirizações que lhe trespassava a presença carnal e lhe
revelava os órgãos? Seria divino? …ou antes pelo contrário. Só depois o soube…
Era tempo de tomar uma decisão. Continuávamos ali à mercê da hipótese que a
lunática multidão regressasse para acabar o que tinha começado e que por qualquer
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IX
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
Confesso que grande parte das minhas esperanças de voltar a sentir a noite, a
doce noite, envolvendo a minha presença já se tinha desvanecido, e foi com uma
satisfação inexprimível que a recebi de volta nos meus braços. Naquele momento
esqueci as dores, as feridas inflamadas, tudo. Senti-me renascer, uma fénix negra, como
se o luar funcionasse como um fluxo de energia que me alimentava e revitalizava, desde
o âmago até às extremidades dos membros. Senti até que tinha deixado de seu eu
mesmo, igual ao que era e ao que sempre fui, em vez, havia sido substituído por um
novo eu, uma versão melhorada…uma evolução, sim, sentia-me a evolução do simples
professor primário com ideias liberais. Agora era muito mais do que isso, o quê
exactamente não sabia, não importava sequer.
O caminho estava finalmente livre, mas não sabíamos ao certo para onde ir.
Contornando a parede dobramos a esquina para uma rua íngreme, haviam ali algumas
casas abandonadas, mas todas pareciam blindadas com tábuas e pregos, tornando
impossível penetrá-las. Vinda de onde não sei, surge uma ideia, não digo que brilhante,
mas uma ideia, a floresta que cobria toda a região norte da ilha, sim a floresta negra.
Seguindo a rua onde nos encontrávamos e depois seguindo outra que nesta nascia em
pouco lá chegaríamos, e enfim estaríamos protegidos…bom, pelo menos dos habitantes
da ilha, já que dificilmente alguém se lembraria de lá nos procurar, e mesmo que se
lembrassem, provavelmente teriam demasiado medo para efectivarem a busca. A ideia
não era agradável, li medo nas feições do padre e da xerife quando a sugeri, eu próprio
tremia lembrando todas as histórias que já tinha ouvido, mas depois de tudo o que tinha
passado, não seriam estas que me derrotariam. Estava decidido, seguiríamos para norte,
depois logo se veria.
Caminhávamos apoiados uns nos outros, sempre pelas sombras que os edifícios
nos ofereciam, lentamente, com cautela, monitorizávamos em conjunto todos os pontos
do horizonte e sempre que ouvíamos algum som, qualquer coisa ressoando na
escuridão, encolhíamo-nos o máximo que conseguíamos, fundindo os nosso corpos
fustigados, e assim permanecíamos até sentirmos o perigo desvanecer. Só quando o vi
lembrei. Antes de alcançar a floresta seria necessário atravessar um denso e alto
milheiral, uma espécie de muro permeável que separava a mata da povoação. Já víamos
as vagens de milho dançando ao ritmo da brisa do luar, pouco faltava para lá chegarmos,
era só descer aquela rua, cinquenta metros, cem no máximo. Contudo ali a maioria das
casas eram habitadas, e de algumas, focos de luz escapavam das suas janelas, o que, não
sendo preciso ser nenhum génio para o concluir, significava a existência no seu interior
de pessoas acordadas, e pessoas acordadas significava por sua vez, de novo sem se
precisar de ter um elevado coeficiente de inteligência para o saber, que o risco de
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
alguém descortinar a nossa presença era multiplicado por cem ou por mil. Deixamos de
caminhar, rastejávamos, camuflando as nossas silhuetas nas trevas, esquivando-nos a
olhares. Parecíamos felinos, coxos, abordando a presa, apenas com a diferença de que
neste caso a presa éramos nós e não sabíamos ao certo se o predador desempenhava o
seu papel, ou mesmo se havia predador. Eu seguia na frente, atrás vinha o padre, na
cauda da fileira desfeada a xerife. Quando apenas faltava passar por uma casa para
atingir o nosso destino, oiço uma voz que sabia conhecer, que me faz interromper
bruscamente a locomoção fazendo com que o padre chocasse com a região baixa do
meu corpo. A voz vinha do interior da casa, era uma criança, um dos meus alunos, mas
naquele momento não conseguia precisar mais do que isto. Fiz sinal para trás com o
intuito de que o padre e a xerife aguardassem em silêncio. Tinha esperança que a
situação não evoluísse mais, que a nossa presença continuasse incólume. A voz
continuava no interior da casa, e depois outra a esta se sobrepôs, uma voz de homem,
grossa e autoritária, uma voz que reconheci de imediato mas que estava deslocada da
realidade em ainda julgava viver. Só naquele momento reconheci a casa que cruzava,
uma casa grande, uma das maiores da ilha, uma das poucas que apresentava ligeiros
sinais exteriores de ostentação, a casa do dono do minimercado. Sim, era ali que ele
vivia, e era a sua voz que inacreditavelmente ouvia. Não é possível, está morto, repeti
para mim meio atordoado, como podia ele ter sobrevivido a uma bala trespassando-lhe a
garganta, ninguém mo tinha dito, eu próprio havia visto, o seu corpo desfalecido, o
sangue arterial esguichando como num repuxo. Hoje tudo é claro…
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então que uma rajada se luar atinge a face do rapaz, iluminando-lhe em fim a
fisionomia. Não resisti. Soltei das entranhas um grito horrorizado e sem pensar, apenas
obedecendo ao mais primário dos instintos, ergui-me e com uma energia que não
consigo explicar onde a consegui, principiei uma corrida louca, aos trambolhões, rua
abaixo, em direcção ao milheiral. Não me importei com os meus companheiros, deixei-
os à mercê da sua sorte, apenas respondi à obsessão de sair dali, esquecer o que tinha
visto, correr, correr, correr, correr.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
Não sei quanto tempo passou até que o sol voltou a exibir-se, primeiro,
timidamente, depois em todo o seu esplendor magnânime. Tinha-me mantido imóvel
desde então, tentando desligar o meu cérebro, apagar todas as memórias recentes que
me apoquentavam. Desejava que tudo não tivesse sido mais do que um vil pesadelo,
daqueles que nos fazem acordar afogados no próprio suor, aliviados, pensando com ou
sem razão que aquilo que julgávamos real, não era mais do que o fruto do nosso
inconsciente, e que poderíamos prosseguir normalmente com as nossas existências,
entrando de novo na rotina diária perdida algures no binómio amor ódio, odiando-a
enquanto dura, amando-a saudosamente quando enfim cessa.
O fenómeno do sol ladrão que roubara a noite, naquele momento era o que
menos que importava, tanto, que nem sequer assinalei mentalmente o facto de o ciclo
diário daquele astro ter aparentemente voltado ao normal. Muitos outros acontecimentos
marcavam-me mais profundamente a pele, literalmente. A morte da menina
desconhecida, arrastada pelo fluxo da minha má sina, condenada à morte pela
temeridade do meu dedo, os procedimentos macabros, para não usar outra palavras
menos conforme, para mascarar vergonhosamente este acto irreflectido, o homicídio do
velho médico, indefeso algures entre a revolta irracional de uma civilização arcaica e a
obsessão de uma xerife em lavar das suas mãos o fedor do sangue incriminatório, a
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crucificação do padre pela sua própria paróquia, um pastor sacrificado pelas suas
ovelhas, o meu espancamento até ao desfalecimento só porque acordara ajudar um
padre a tentar revitalizar uma igreja condenada à deserção, um homem rude e
manipulador que vi morrer a poucos metros dos meus olhos mas cuja voz, sem qualquer
dúvidas que era a sua voz, voltou do inferno para me atormentar, e por último, o tal
rapaz, meu aluno na escola primária, filho do dono do minimercado, gordo e bexigoso,
o mesmo que vi agredir-me violentamente na igreja e que poucas horas depois, voltava
a ver transformado numa massa disforme e amorfa de feições destruídas, como se
tivesse visitado o inferno por um segundo e este lhe tivesse ficado fotografado para
sempre na pele outrora alva e polida. Não será portando de estranhar que o término da
noite, ao mesmo tempo que um novo dia raiava, finalmente, não tivesse sido
acompanhado de qualquer tipo de sensação ou de sentimento, por muito ténue que
fosse. Aquilo era normal, com o anormal, apenas com este, me teria que preocupar.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
Não era fácil, não só pela componente psicológica, mas também pela
componente física. A floresta era extremamente fechada, os ramos e os troncos das
árvores retorciam-se entre si formando uma complexa teia à primeira vista
impenetrável. Desejei mais do que tudo, ter ali uma catana ou algo parecido, qualquer
coisa com que pudesse ceifar as ramagens rebeldes que me obrigavam a um esforço
extremo de contorcionismo, que me rasgavam a pele quando nelas roçava. Cheguei
mesmo a ter que me colocar de gatas, de sentir as palmas das mãos tocando a terra
recheada de vermes de mil pernas, para conseguir atravessar mais uma porta daquele
labirinto de galhos velhos e folhas multiformes. Sentia insectos viscosos percorrendo-
me a espinha, trepando-me os pêlos das pernas em direcção à virilha. Alguns mordiam-
me, picadas agudas que me fazia cuspir uma célere expressão de dor, um ou outro nome
pejorativo. Enfim, a partir de certo ponto a vegetação perdeu intensidade. As árvores
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tornaram-se mais altas e espaçadas, as suas armações mais ordenadas, o suficiente para
que pudesse tomar uma posição completamente erecta sem ser causticado pelas
pernadas afiladas e irregulares. Não sabia que rumo exacto tomava, julgava dirigir-me
para norte, na direcção oposta à povoação, mas os constantes desvios causados pelos
obstáculos com que me deparava, podiam ter perfeitamente alterado esta intenção, e
receava estar sem o saber, caminhando de volta ao ponto de partida.
Ao atingir um certo ponto temporal que julguei aleatório, a minha mente começa
a vacilar, ela que tinha apresentado um comportamento irrepreensível desde que
penetrara naquele mato agreste, mas que agora conduzia todos os meus medos e
apreensões. De um momento para o outro, monstros medonhos, criaturas malignas,
espectros sinistros, todos os seres que povoavam a minha imaginação ganharam vida
num remoinho abismal que me sugava para o seu interior numa tortura tétrica, indefeso
sem hipótese de luta. Os ramos retorcidos tornaram-se animados e dançavam num
bailado macabro e terrificador. As folhas das árvores soltaram-se e formaram um
enxame que me envolvia e feria fatalmente a consciência. Senti-me desfalecer, não por
cansaço nem tão pouco por recaída das lesões que me povoavam o corpo, apenas sei que
experimentei naquele espaço de tempo sensações que jamais havia sentido, e que tenho
dificuldade em descrever com as palavras que conheço, outras precisarei de inventar.
Foi como se toda a realidade que conhecia, que julgava conhecer, tivesse sido aspirada e
eu transportado para uma nova existência, uma existência que os meus sentidos não
eram capazes de detectar, mas que ao mesmo tempo os tornavam mais sensíveis que
nunca. Uma existência onde as leis da física eram desprovidas de qualquer poder e as
noções de tempo, espaço e matéria eram meras palavras. Senti-me viajar por todos os
pontos de todos os universos, e em cada um destes experimentei a evolução dos tempos
desde o inicio de tudo até ao final que chegará. Senti ser preenchido por todos os
átomos, pelo éter celestial, senti-me um ser gigante explodindo num sem número de
partículas que se reorganizavam em formas estapafúrdias. Fui todas as pessoas que
escolhi não ser, fui todos aqueles que não o foram por minha causa. Fui fotão, nota
solta, odor característico, gota de água pingando a pele, sabor ameno. Micróbio, amiba,
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
fragmento de sonho, verme, insecto voador, desejo incontido, ave rara, mamute peludo,
dor ardente, criatura mitológica, unicórnio de oiro, deus, fui tudo isto, um de cada vez e
todos ao mesmo tempo. Quando regressei, quando regressei àquilo que chamava
realidade, a minha realidade, a floresta tinha desaparecido.
XI
labareda e nela procurando algo mais do que nós podia fornecer. Não falamos, evitamos
todo o tipo de contacto visual, o fogo era o único ponto comum que possuíamos, e era
apenas através deste que fluíam e se encontravam os nossos espíritos. Entediado afastei-
me, procurei uma janela de vidros grossos e toscos que pouco deixava ver, apenas
ramos, folhas, árvores, mas o suficiente para perceber que aquela cabana fazia parte da
própria floresta, fundindo-se com esta numa harmonia perfeita, resultado impossível de
obter caso fosse de construção humana. Duas pessoas viveriam ali, deduzi, pelo menos
viveram, a tempo inteiro ou apenas temporariamente não sabia, as suas identidades
muito menos, porquê o faziam, ali, isolados, ainda mais isolados do resto do mundo, um
gigante e luminoso ponto de interrogação. Aproximei-me da mesa e saquei a rolha da
garrafa ali repousada, cheirei o líquido transparente mas não lhe senti nenhum odor,
levei o gargalo à boca e nenhum sabor se mostrou na sua consistência seca, quase
gasosa. O frio estripador obrigou-me a voltar para junto da lareira, mas nesta o fogo
desvanecia numa demanda moribunda. A causa era óbvia, a lenha, a madeira pútrida que
o alimentava, o seu sustento sacrificado, transformava-se num castelo de cinzas fugazes,
cedendo sobre si próprio a cada segundo. Necessitávamos de algo que enganasse a fome
destruidora das labaredas, algo que não deixasse morrer a única fonte de calor que ainda
prendia a nossa existência, mas entre aquelas quatro paredes pouco se vislumbrava que
pudesse ser improvisado como combustível. Podíamos recorrer à mesa e às cadeiras,
afinal não eram mais do que madeira projectada, tão volátil como qualquer outra, ou
muito simplesmente abrir a porta da cabana e arrancar alguns ramos de árvores que
estivessem mais à mão, contudo, outra solução surgiu, mais simples, pelo menos assim
nos pareceu no momento. Arrastamos os colchões para junto da lareira e evisceramo-los
buscando a palha seca que lhes moldavam a forma e lançando-a de imediato a punho
cheio para a lapeira. Emanavam, só depois reparei, um fedor agoniante que se entranhou
nas minhas mãos e actualmente, muitas vezes ainda dou por mim com o repulsivo
cheiro torturando-me o olfacto. A fénix renasceu, voltou com as cores quentes e vivas
que nos aconchegavam, mas não por muito tempo. Uma nuvem espessa de fumo negro
ganhou vida e com uma pujança formidável invadiu toda a cabana deixando o ar
irrespirável, atacando-me os olhos que em pouco deixaram de reconhecer traços, cores e
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
texturas. Tentei ainda remexer o fogo insubmisso, na esperança que o fumo cessasse,
mas os meus gestos, a minha intromissão não foi bem recebida e a fúria incontida
daquele ser que parecia vivo, com vontade própria, cresceu desenfreadamente lançando-
nos na cegueira negra, a segunda pior das cegueiras seguindo a cegueira branca. Tentava
controlar a respiração, limitar ao máximo o ar que aspirava, e aos encontrões procurei a
janela e a porta da cabana, esperançado que o fumo oprimido sumisse na liberdade da
atmosfera. Ouvia o tossir aflito, quase desesperado do padre, não o via, não conseguia
sequer seguir a direcção da sonância. Os olhos ardiam-me, gordas lágrimas escorriam-
me pela face pingando-me pelo queixo. Desorientado, com os sentidos bloqueados
rodava num círculo aberto em busca de um fio de Ariadne que me guiasse. Tinha ganho
a noção de que as dimensões da cabana tinham triplicado, decuplicado, já não lhe sentia
os limites, já nem sabia se alguma vez tinham existido. Um som possante germina no
âmago da floresta negra, do nada, um som que não consegui distinguir de imediato, mas
que vinha acompanhado de uma trepidação oscilante que ameaçava roubar-me o solo
por debaixo dos meus pés descalços. Eram passos, conclui posteriormente, sempre
passos, mas não quaisquer passos, eram passos de um gigante esmagando o seu
caminho e soltando ondas de impacto sísmicas que me atingiam e impeliam
violentamente contra o solo. Estavam mais próximos, cada vez mais próximos, e
enquanto isto o fumo que me envolvia num manto asfixiante, em fim adelgaçava. Já
conseguia ver as minhas próprias mãos, reconhecer retraidamente feições a um palmo
ou dois, havia recuperado parte da minha orientação extraviada, o bastante para
encontrar o áspero toque de uma das paredes da cabana e desta fazer um abrigo
descoberto. Os passos diminuíram de frequência, já ali estavam. Senti naquele momento
mais medo do sentiria caso juntasse todos os medos que me afligiram até então. Uma
mão pegou a minha, uma mão frágil de pele suave e fria, mas ao mesmo tempo capaz de
me reconfortar, era a xerife que se anexava ao meu corpo e neste procurava o mesmo
que eu procurava no dela. Depois a figura mortiça do padre juntou-se à nossa,
compelido por uma força maior que não podíamos sequer sonhar lutar, capaz de os
aniquilar só com um fragmento de pensamento. Estávamos os três, lado a lado,
alinhados, ainda cegos, costas roçando uma parede que julgava não conhecer, esperando
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sua textura nas minhas costas, se tivesse força para tal, tinha-a atravessado.
Eis então que a criatura se deixa ver, com um golpe de extrema elegância afastou
o capuz e revelou a sua face, melhor, o sítio onde esta deveria estar. É verdade, a
criatura não tinha face, no lugar dos olhos, da boca, do nariz, das orelhas, tinha…nada.
Toda a sua cabeça era uma bola oval, lisa, alva, sem qualquer relevo ou pêlo e confesso
que naquele momento a surpresa e estupefacção dominaram o medo e o terror que
sentia. Chegava quase a ser uma figura cómica, estranha sem dúvida, mas longe do
conceito de assustador que a minha mente criara ao longo dos anos. Por alguns
segundos o temor que sentia diminuiu consideravelmente… mas num ápice voltou a
crescer, para níveis que nunca antes sentira e que poucas pessoas na história do mundo
se poderão gabar de algum dia terem experimentado, níveis tais, que estimularam que
um líquido quente, amarelado, fluísse ao sabor da gravidade ao longo das minhas
pernas. O provocador disto foi tão-somente o seguinte, a criatura num movimento de
extrema rapidez, lançou a sua mão na direcção da cabeça da xerife e de uma só vez
esmagou-a como quem esmaga um ovo, cobrindo-me de sangue, encéfalo e outros
tecidos e fluidos corporais. Senti o padre ao meu lado a desfalecer, caindo desamparado
no chão imundo, não resistindo ao choque que o devastou. Eu desejei ter feito o mesmo,
tentei roubar-me a consciência, matar-me impulsivamente, desligar-me para sempre,
adormecer. Não fui capaz, e amaldiçoei-me por me obrigar a assistir à minha própria
morte, àquela morte em particular. Fechei os olhos, rezando a algum deus que me
acudisse, qualquer um, não importava qual, verdadeiro ou ficcionado não interessava,
não pedia a salvação, apenas suplicava que fosse rápido, indolor.
O tempo passou, quanto não sei, mas bastante, um tempo torturador que me
destruía e consumia num sofrimento perverso. A raiva começou então a tomar conta de
mim, odiei a criatura por não acabar com tudo de uma vez, por perpetuar a tenaz aflição
que corrompia cada um dos meus átomos. Apeteceu-me atacar a criatura, lançar-lhe os
punhos, agredi-la, pontapeá-la, e quando me decidi finalmente a fazê-lo, abri os olhos
mas já não a encontrei no mesmo local. Afastada alguns pares de metros, junto à porta
aberta, a criatura de braço em riste e indicador esticado apontava na sua direcção,
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
XII
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sua voz, apenas ouvia sons despidos, palavras que não compreendia, juntos em frases
sem demarcação lógica. Tentei erguer-me mas uma dor aguda na cabeça fez-me mudar
de ideias e contentar com a posição deitada. Voltei a fechar os olhos e só os abri quando
reconheci a voz do padre, Senhor professor, temos que ir, disse entre a compreensão e
necessidade. Senti-me ser erguido, e apoiado nos ombros daqueles dois, comecei a ser
locomovido através da floresta profunda. A seu tempo voltei a um estado que se poderia
considerar normal, ou que eu pelo menos considero normal, um observador exterior
poderia opinar divergentemente já que a normalidade é função do sujeito, na realidade
nem sequer existe, nós é que a julgamos criar, interiormente, de forma intransmissível, o
que é normal para mim pode ser a maior das aberrações para outra pessoa, um padrão
conceptual oscilante que ninguém o direito de decretar, mesmo se todas as pessoas do
mundo menos uma o considerarem normal, a restante, a única que se encontra de costas
voltadas para as demais, é por si só suficiente para vetar a rotulagem imposta, e o que se
queria normal, deixa de o ser sem na realidade nunca o ter sido, e mesmo que esta
pessoas morra, a força da sua memória, o odor do seu cadáver recrutarão mil, e neste
momento apenas todas as pessoas do mundo menos mil o acharão normal, e depois
destas mil morrerem, apenas todas as pessoas do mundo menos um milhão o acharão
normal, e isto até que todas as pessoas do mundo menos uma, o considerem anormal.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista
saltado das profundezas do mar, teria acreditado, se me tivesse dito que um boneco
gigante vestido de marinheiro tinha dançado a lambada à sua frente, teria acreditado, se
me tivesse dito que uma tribo africana tinha fundado uma multinacional dedicada à
venda de couratos assados, teria acreditado, se me tivesse dito que o Chuck Norris tinha
sido violentamente espancado por uma freira idosa, idem, se me tivesse dito que um
negro com nome estranhamente semelhante ao de um famoso terrorista era o novo dono
da casa branca…bom, isto também não, não exageremos.
O interior do farol era desolador, e pouco faltaria para que fosse considerado
uma ruína. As paredes apresentavam fissuras profundas escavadas pelos anos que
desaguavam em crateras astronómicas que deixavam entrar o frio gélido trazido pelas
ondas dos mares do norte, a escada de madeira em caracol estava meia consumida pelo
caruncho e várias porções do corrimão de ferro oxidado já há muito tinham deixado de
fazer o seu papel. O primeiro degrau que pisei cedeu de imediato, prendendo-me o pé
nas tábuas podres e fazendo com que uma lasca de madeira ficasse enterrada na minha
canela. Tenha cuidado, senhor professor, preveniu-me só então o faroleiro enquanto eu
tentava recuperar o meu pé e desenterrar o maldito pedaço de madeira aguçado da
minha carne martirizada, Siga os meus passos, concluiu depois de se certificar que eu
estava em condições de continuar a jornada ascendente. Siga os meus passos,
significava não mais do que pôr os meus pés nos exactos locais onde ele punha os deles
ao longo de cada um dos degraus, saltando um ou outro que não possuía qualquer ponto
seguro de contacto. Não se agarre ao corrimão ou ainda vai parar lá abaixo, advertiu já
quase no final da subida. Obrigado, mas já tinha reparado, respondi treinando a zona
do meu cérebro responsável pelo sarcasmo, ao mesmo tempo que olhava para baixo
desafiando as tonturas e o medo das alturas. A subida foi penosa, mas quando me vi
rodeado pelas enormes janelas de vidro, rachadas aqui e ali, senti que o esforço fora
mais do que remunerado. Naquela espécie de pirilampo eléctrico gigante, capaz de
provocar as estrelas mais brilhantes, longínquas, mas que ali pareciam tão perto, tudo
era tão diferente do que estava habituado, um novo patamar de existência, melhor, mais
completo. Senti-me de novo a renascer. Quando olhei para norte, na direcção onde o
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faroleiro jurava estar uma nova ilha, igual à antiga, uma filha gémea da mãe, não a vi,
estava demasiado escuro, contudo distinguia no horizonte uma luz forte, cíclica, igual à
luz que o farol onde me encontrava emitia.
XIII
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Senti a mão do padre sobre o meu ombro, o mesmo gesto que começara a insana
sequência de vivências, era o mesmo que pretendia enfim pôr-lhe cobro, a mão que
extraíra a rolha da garrafa transbordante, devolvia-a agora ao gargalo. Fitamo-nos
concisamente e sem trocar qualquer palavra decidimos o que faríamos em seguida.
O tempo estava magnífico, não sentia frio ou calor, apenas a leve brisa salgada
que me acarinhava a face e despenteava os cabelos. Em menos de uma hora
atingiríamos a nova costa, mas para não termos que atravessar a floresta negra, a sua
duplicação, decidimos que contornaríamos por oeste a ilha de modo a desembarcar
directamente na parte sul… bom, a parte sul que na nova ilha passava a ser a parte
norte, uma inversão de orientação face a um mesmo referencial conceptual, modificável
e moldável às nossas vontades como qualquer outro, tanto que ainda reporto o sul e o
norte da mesma forma como anteriormente. A meio caminho, olho para trás e tento ver a
ilha que abandonava, aquela ilha em que vivera os momentos mais dramáticos e
intensos da minha existência, mas que não conseguia odiar. Contudo não a consigo ver,
em vez dela uma tocha gigante desbravava o horizonte, uma chama imensa que tocava o
céu. Toda a ilha era consumida por um fogo intenso, tão intenso como só no inferno se
encontrava. Fui momentaneamente puxado pela minha memória através de um fluxo
desarranjado de feitio até a um lugar que reconhecia. Uma rua íngreme onde repousava
uma casa sem pessoas que a habitassem, uma casa que via arder sob um fumo que era
muito mais do que apenas fumo oriundo da combustão de matéria, eram almas que se
libertavam de corpos supérfluos e que de mãos dadas acorriam a uma nova existência
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num novo lugar, tão igual ao antigo. Vejo o fogo expandir-se, destruindo fronteiras e
limites, consumindo pedras, madeiras e ferro, numa combustão que não se limitava a
destruir mas também e principalmente a reorganizar, reaproveitando cada partícula,
atribuindo-lhe um novo sentido. O fogo cerca então um edifício, um edifício sagrado
borrado de vermelho, no seu interior notam-se quatro pessoas mortas, uma delas,
pregada pelas mãos a uma cruz, outra, a que sucumbira posteriormente à vontade de
uma criatura que para não ser reconhecida renunciara aos contornos do rosto, outra, um
homem careca de bigode com a garganta trespassada por um projéctil balístico, a
quarta…a quarta ainda a vejo sempre que os meus olhos se reflectem. Em redor
amontoados de carne sem olhos, regozijam-se num riso penado, envolvidos pelas
chamas, presos na sua própria armadilha, são condenados a deambularem durante toda a
eternidade por entre as labaredas, ali onde o sol nunca se põe.
A minha casa estava no exacto local onde deveria estar. No seu interior todas as
mobílias, os objectos, os poemas que deixara inacabados. Logo depois de reencontrar
todas as minhas memórias deslocadas, oiço bater à porta. Era o velho médico que vinha
para mais uma partida de dominó, uma ou outra troca de ideias como costume. Depois
chegaria o padre, e a partir deste momento deixaríamos de poder dizer mal da igreja.
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Passaríamos o resto do dia e da noite cercados por uma alegria incontida, esquecidos de
tudo, lembrando apenas o que chegaria.
Quando acordei no dia seguinte era noite, e assim se manteve desde então. Noite
para sempre.
Fim
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Esta obra é dedicada à memória de todas as pessoas que ainda não nasceram.
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