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Luiz César Baptista

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NOITE PARA SEMPRE

ficção

Construções Metafóricas Edições 2009

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nomeadamente, a levar com um pau grande pelos cornos abaixo.

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

Sinopse

Numa pequena ilha decadente, pautada pelo tradicionalismo exagerado e pela


aversão à modernidade, um professor primário leva uma vida tranquila longe da
azáfama de uma metrópole que o viu nascer e de uma família abastada que o tenta sugar
para as rédeas dos negócios que sempre abominou.

Tudo se altera quando num final de tarde o jovem padre da ilha lhe pede ajuda
para colocar em prática um estranho plano que visava revitalizar a frágil situação
financeira da sua paróquia. Um plano que não encaixava nos moldes obsoletos de
funcionamento daquela sociedade, e que estranhamente coincide com o desencadear de
um estranho fenómeno astronómico: quando todos esperavam o crepúsculo e o surgir da
noite, eis que o sol surge imóvel no ponto mais alto do céu e assim permanece durante
todo o período em que a noite deveria ter reinado.

Entre o medo e o absurdo que a noite transformada em dia, a claridade no lugar


da escuridão, provoca na população daquela ilha, uma sucessão de acontecimentos
dramáticos é desencadeada…

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Hoje, sentado nesta escrivaninha, coberto pela luz mal quebrada do luar, reúno
enfim coragem para recordar todos os fenómenos prodigiosos que acabaram por alterar
de forma inimaginável o rumo da minha existência, até então tranquila e indolente. Não
sei porque o faço, prometi a mi mesmo nunca mais os recriar na minha memória, mas
uma força que não sei explicar, um incêndio furioso que me engole o corpo, impele-me
na direcção desta caneta que seguro ainda tremendo, obrigando-me a documentar cada
facto vivido. Quanto tempo passou deste então, não sei, não o soube, não o quis contar,
apenas sei que recordo tudo com uma exactidão prodigiosa, cada traço de imagem, cada
som, cada cheiro desmaiado, como se na realidade o passado fosse uma prisão que
reinvento a cada momento e o presente, aquilo que chamo presente, não mais do que
uma ténue ilusão, um tempo dissolvido no nada.

Era Verão. Um Verão quente e sufocante que sentia como o primeiro da minha
vida. O calor rasgava-me impiedosamente o espírito suspenso. Torturava-me. Receava
ter que arrastar o meu cadáver ressequido pelos caminhos que adivinhava flamejantes.
Nem os velhos, os mais velhos, lembravam um estio tão avassalador, diziam que o céu
os empurrava contra o chão, que ali alguém deixara as portas do inferno abertas.
Recordo aquele pedaço de terra com a facilidade que as circunstâncias ditaram. Aquela
ilha, em tempos idos um templo para os turistas, mas que acabou por sucumbir à
decadência decretada pela aversão de acompanhar os moldes dos novos tempo. Já não
era mais do que um rochedo flutuante, minúsculo, habitado por pouco mais de uma
centena que subsistiam essencialmente à custa da pesca de um pequeno molusco, muito
raro, caríssimo, muito apreciado nos melhores restaurantes das maiores cidades do
mundo. Pessoalmente repugna-me, e estranho alguém pagar o equivalente a um colar de
diamantes por um balde cheio daquele bicho ascoroso, resguardado no seu próprio

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

muco, igual ao ranho de uma velha com a última gripe da vida. Dizem que é delicioso,
não duvido, mas não tenho pretensões de o confirmar. Só de o olhar, os meus líquidos
estomacais revoltavam-se, criando um motim que termina invariavelmente no vómito.
Bom, mas como não era pescador, nem cozinheiro, nem exercia nenhuma actividade
que me obrigasse a ter contacto algum com aqueles seres nauseabundos, não advinha
daí problema de maior. Eu era apenas o professor primário, o único da ilha. Era mais do
que suficiente, só havia uma escola e nunca mais do que uma dezena de alunos. Os
miúdos mal eram aprovados na prova final da quarta classe, como se chamava naquele
tempo, caso tivessem cabeça e as famílias posses, outra escolha não tinham senão
continuar a sua formação académica na metrópole, roubados à inocência, devorados por
um mundo diametralmente aposto ao que conheciam. A maioria não continuava.
Abraçavam desde tenra idade a vida da faina e da agricultura de subsistência, um ou
outro aprendia o ofício do pai ou do tio, que podia ser sapateiro, ferreiro, padeiro ou
carpinteiro. O caso das raparigas era mais dramático. O feminismo ainda não tinha por
ali passado, e as moçoilas acabavam inevitavelmente por passar o resto da meninice
ajudando nas tarefas caseiras até aos dezasseis anos, idade em que caso não fossem
particularmente feias ou gordas, eram oferecidas em casamento a um rapaz mais velho
que provasse ser honesto e trabalhador.

A ilha era extremamente isolada do resto do mundo. Não existia sítio onde um
avião pudesse aterrar, não tínhamos televisão nem telefone, e só duas ou três estações de
rádio se conseguiam sintonizar sempre com estática enervante. O transporte de pessoas
e mercadorias era todo efectuado por via marítima, e estava claro dependente dos
caprichos do mar. Não era anormal no período invernoso existir escassez de alimentos
ou de outros bens dos quais dependíamos essencialmente ou completamente do
fornecimento exterior. As acanhadas dimensões da ilha faziam com que a toda a
população estivesse condensada numa única povoação, não existindo ali os conceitos de
aldeia ou cidade, a ilha era um todo, um ser único e indivisível, estático no oceano
imenso. Havia contudo uma área não habitada. Toda a metade norte da ilha estava
coberta por uma vasta floresta, inóspita, onde de vez em quando se organizavam

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caçadas para apanhar alguma carne que por ali deambulava, coelhos, lebres, furões e
esquilos do bosque. Estas caçadas eram sempre colectivas, a razão era simples, ninguém
se atrevia a entrar naquela floresta desacompanhado, a floresta que há muito a
população tinha baptizado de floresta negra. Corriam histórias de geração em geração,
narrando a existência de criaturas demoníacas e outros seres malignos que habitam por
entre a densa vegetação, e que de quando em quando se faziam ouvir durante a noite. Eu
próprio me deparei com ruídos anormais, semelhantes a gemidos estridentes que
interrompiam o sossego nocturno, e que me provocavam arrepios breves, mas que
sempre consegui atribui aos ventos marítimos embatendo nas rochas das praias e
penetrando pelo verde imenso. Não se podia dizer que eu acreditava naquelas narrações
populares, contudo respeitava-as e por elas me sentia atraído. Quando as tais caçadas,
das quais eu sempre me abstive por um motivo ou por outro, maioritariamente covardia,
eram proveitosas, fazia-se um churrasco comum no adro da igreja em homenagem à
santa padroeira dos pescadores, pedindo-lhe que nunca faltassem aqueles bichos
nojentos que os estrangeiros extraordinariamente idolatram.

Ali a vida não era propriamente fácil. Grande parte da população vivia com
poucos recursos e só a custo de muito trabalho conseguiam subsistir dignamente. Eu
nem por isso. Tendo em conta o nível médio de rendimentos da ilha, até ganhava
bastante bem, e admito-o, sem ter que fazer grande esforço. Para além disso, era visto
como alguém pertencente a um degrau social superior ao do resto da maralha, era
sempre tratado por senhor professor, e como era o único professor da ilha, quando se
referiam a mim, faziam-no sempre como o senhor professor. Ao meu nível, apenas um
punhado de pessoas, que exerciam igualmente cargos de maior relevância e que todos se
habituaram a respeitar, mesmo quando as suas acções mereciam exactamente o oposto.
Penso que o facto de não ser natural da ilha, poderá ter contribuído, pelo menos
inicialmente, para a superioridade exagerada que o povo me atribuía. Nasci na
metrópole, e nela me formei. Filho de pais abastados, decidi, contrariando as suas
vontades, candidatar-me à vaga de professor naquela ilha, ciente da sua pobreza e das
suas dificuldades. Hoje, através das grades do tempo vejo terá sido o sentimento de

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

culpa por ter nascido rico, num berço de ouro e marfim, a lançar-me naquela missão,
numa tentativa de me martirizar e de experimentar pela primeira vez as verdadeiras
dificuldades da vida, num desejo de ser finalmente humano, de me sentir
verdadeiramente vivo e não apenas uma marioneta de feições plásticas desenhadas para
um espectáculo artificial e demente.

Naqueles dias gozava as longas férias de Verão. As aulas só recomeçariam


dentro de cinco semanas, e era usual todos os anos neste período regressar à metrópole
para visitar a minha família, os meus pais. Mas naquele ano não, decidi-me ficar pela
ilha. Não estava disposto a sentir a coacção impulsiva dos meus progenitores para que
abandonasse o ensino e começasse de uma vez por todas a tomar as rédeas dos negócios
da família, e acima de tudo, que parasse de manchar o meu apelido exercendo uma
profissão menor e mal remunerada. Se fosse advogado, juiz, médico, poderia aspirar
conseguir um dia a sua bênção, mas um mero professor primário numa ilha decadente,
obsoleta e remota, que já há muito estaria deserta não fosse o paladar excêntrico de
alguns ricos, nunca. Ocupava a maioria do meu tempo debruçado sobre um ou outro
poema, um vício que sempre escondi, por vergonha ou algo mais, esmagado pelas
minhas próprias palavras, liberto de uma máscara que se dissolvia a cada verso, um
balão de oxigénio que me salvava da asfixia dos comportamentos estandardizados, das
algemas que me apertavam os pulsos e prendiam a circulação. Ao fim da tarde, início da
noite, costumava deambular um pelas ruas sossegadas até desaguar na taverna da ilha,
de frente para uma caneca de cerveja gelada.

Foi num destes dias, um dia irrepreensivelmente normal até então, passível de
ser confundido com os anteriores pelos menos atentos, depois de me perder durante a
tarde entre meia dúzia de rimas que teimavam em não o ser, estrangulado pelo calor que
me acorrentava, que caminhei ansioso ainda sob o sol pungente até à taverna, onde o
néctar dos deuses me esperava. O ar era qual irrespirável, e o simples acto de andar
tornava-se quase penoso. Não sei exactamente que horas seriam quando penetrei na
escuridão trepidante da taverna, mas já passariam com certeza das sete e meia da tarde,
e dentro de pouco o sol deixaria de se ver. Vi o esforço da caminhada ser recompensado
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quando molhei os lábios na boa cerveja gelada e senti-a lavar-me interiormente como
lixívia lava a gordura entranhada. Era normal àquela hora a taverna estar com a lotação
bem composta. Para alguns o dia de árduo trabalho sob a tórrida bola de fogo chegara
ao fim, outros julgavam que ainda iria começar. De qualquer forma, ali era o lugar de
reunião dos homens da ilha, que procuravam um local para relaxar, emborcar umas
bejecas, expressão deles, não minha, e terem conversas porcas nas costas das mulheres.
Eu ficava-me pelas bejecas. Não gostava de me sentir demasiado relaxado e não tinha
mulher para que pudesse ter conversas pouco dignas de um cavalheiro na sua ausência.
Também não tinha grandes amizades. Existia um fosso social considerável entre mim e
os outros homens, os verdadeiros representantes do povo, aqueles que punham o pão na
mesa à custa do suor que lhes secava no rosto, o que levava a uma certa relutância
quando se tratava de estabelecer uma conexão mais ligeira, menos formal. Era normal
sentar-me sozinho, procurava sempre a mesa mais sombria do estabelecimento. Ali não
existia uma única janela ou qualquer outra abertura para o exterior para além da porta
que era mantida religiosamente fechada. Apenas meia dúzia de lâmpadas amarelas,
cobertas de gordura, forneciam uma branda iluminação para uma sala de dimensões
consideráveis. Ali reinavam as trevas, e no fundo era isso que me agradava naquele
local, a melancolia negra que me inspirava e me elevava para uma nova dimensão, uma
dimensão onde podia escolher a minha identidade sem estar prisioneiro das aparências e
dos traços psíquicos que a luz teimava revelar. Um exercício condensado em que as
delineações das máscaras não se notavam, onde os trajes que desenhava e costurava
escapavam às imposições daquele ser que nunca ninguém vê mas que atravessa o nosso
olhar a cada momento, manipulando-o.

Foi uma mão no ombro, apenas uma mão que me pousou no ombro e que
iniciou uma panóplia de eventos que a minha imaginação jamais seria capaz de
conceber. A mão era pertença do padre da ilha, um padre demasiado novo para uma ilha
tão velha, que substituíra no ano anterior o antigo padre, morrido de tanto viver. Como
eu, também ele vinha da metrópole, e com ele trazia os seus hábitos, os ideais de
modernidade, os sonhos demasiadamente progressistas para uma sociedade tão tacanha

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e conservadora. Nas ruas, já se começava a comentar nas entrelinhas que aquele não era
padre que servisse, surgiam aqui e ali movimentos de descontentamento face às
reformas que este tentava sem sucesso implantar naquela ilha. Entre estas, a mais
polémica, e que a que a maioria dos habitantes se recusava sequer a ouvir, concernia ao
enterro dos mortos, que incompreensivelmente naquela ilha ainda se realizava na igreja,
violando inclusivamente as indicações da metrópole, que já ordenara por mais de uma
vez que se construísse um cemitério que permitisse efectivamente o cumprimento de
todas as regras de saúde pública exigidas. O bom padre bem insistia neste ponto, mas o
povo já tinha ameaçado um motim caso avançasse, e nem as pressões sobre o regedor
da ilha, nas quais eu próprio discretamente me envolvi, surtiram qualquer efeito. Aliás
falar com o regedor da ilha era sempre tempo perdido, este passava nove décimos do
seu tempo na capital, e o que menos lhe importava era se os mortos eram enterrados na
igreja cumprindo a tradição medieval, ou num cemitério conforme. Apesar de termos
praticamente a mesma idade, e de partilharmos o interesse pela modernidade e a aversão
pelo tradicional fundamentalista, tratávamos sempre de forma bastante formal, ele era o
senhor padre, e eu, o senhor professor. Porque o fazíamos? Não sei ao certo, mas agora
que olho para trás acho-o estúpido e o que importa verdadeiramente é que já não mais o
fazemos. Depois da primeira abordagem já relatada, puxou um banco rude para a minha
mesa, e disse em tom entusiasmado, Ainda bem que o vejo por aqui senhor professor, é
consigo mesmo que preciso de falar. Devo dizer que fiquei bastante surpreendido com
aquele alvoroço, curioso com as razões que o compeliam, de extrema importância a
julgar pela sua postura, como se tivesse encontrado a fonte da juventude eterna, o local
onde o céu encontra a terra. Senhor professor, preciso mesmo muito de falar consigo,
continuou aparentemente mais calmo, depois de ter feito sinal ao taverneiro para que lhe
trouxesse alguma coisa para beber, o que de resto aconteceu em menos de nada. Sabe
senhor professor…, começou fazendo uma pausa imediata para molhar os lábios na
caneca transbordante, …os tempos não andam nada fáceis, a igreja atravessa momentos
críticos do ponto de vista financeiro…, sim, aquilo não era propriamente uma novidade,
toda a ilha fazia uma travessia solitária por uma crise que já ninguém lembrava o início
e que poucos acreditavam que poderia algum dia cessar, …e precisa urgentemente
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descortinar fontes extraordinárias de receitas, ou em breve poderei ter de fechar as


portas da paróquia. A caixa de esmolas nunca tem mais do meia dúzia de centavos e os
donativos são ínfimos…para não falar do que recebemos da metrópole, que não sendo
nada, nem para mandar cantar um cego dá, não que eu pretenda mandar um cego
cantar, coitado do cego. Continuava sem perceber qual seria a minha influência naquela
matéria, como lhe podia prestar qualquer tipo de auxílio. Senhor professor, é urgente
começar a modernizar a ilha, a economia é extremamente débil e se não fizermos nada,
não faltará nada para que esta esteja falida e deserta. Como eu o compreendia, mas
que poder tínhamos nós, meros servos do poder central para fazermos o que quer que
seja? Como podíamos ambicionar modernizar a estrutura económica da ilha, quando os
seus habitantes continuavam a pensar da mesma forma como os pais dos seus avós
pensavam há um século atrás? É aquela velha história do pai que se apercebe que o filho
é igual a ele, pensa como ele, gosta das mesmíssimas coisas que ele gosta, um reflexo
deslocado temporalmente, e que por fim se pergunta em desespero, Meu deus, onde é
que eu errei? O padre guinou então o seu discurso para a estrada do pragmático,
avançou directo para a questão essencial, Senhor professor, uma ideia, uma solução,
surgiu-me com vista a obter receitas suplementares para a igreja, respirou fundo, fitou-
me demoradamente e rematou com um brilho encandeado nos olhos, Vou abrir a
paróquia ao mercado empresarial. Inicialmente, quando ouvi aquelas palavras, não
percebi o seu significado, era como uma frase solta fugidia de contexto. Só depois se fez
entender e eu enfim o consegui compreender. A sua ideia era simples, estranhamente
simples, consistia essencialmente em celebrar parcerias económicas com empresas de
modo a garantir a subsistência da igreja, e como ia ele fazer isso? Bom, de forma muito
simplificada, tudo passaria por tentar encontrar patrocínios para os serviços religiosos
realizados na igreja, ou simplificando ainda mais a coisa, de modo a que até a menos
intelectualmente dotada das pessoas consiga compreender, ele pretendia que empresas
publicitassem os seus produtos e serviços durante a missa. Ri-me interiormente da ideia
mas admirei-lhe a originalidade, o seu jogo de cintura, não obstante isto, duas questões
surgiram-me logo na ideia, primeira, não entraria esta medida em conflito com as regras
da igreja, com a sua doutrina rígida, os seus dogmas massivos, segunda, qual poderia
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ser o meu papel naquele plano de malabarismo financeiro que ao mesmo tempo me
revelava tão ridículo e tão afoito. A primeira das minhas questões foi respondida com
um encolher de ombros, não se lembrava de nenhuma passagem da Bíblia que
condenasse este tipo de iniciativa, principalmente quando esta podia ser a única forma
de impedir que a sua paróquia sucumbisse sobre si mesma, o mesmo é dizer que Deus
com certeza preferiria ver uma ligeira derrapagem aos costumes de funcionamento da
igreja, do que ver uma das suas casas encerrar portas para todo o sempre, deixando os
seus crentes vagabundos de fé, indigentes à mercê das forças do diabo. Era tudo uma
questão de compromissos, não se pode ter tudo, e muitas vezes é necessário ceder num
ponto ou noutro para se alcançar a pretensão. Para a segunda questão refugiou-se no
facto de eu ser oriundo de uma família muito afamada nos meandros do mundo
financeiro e económico da metrópole, e como tal, poderia ter alguma facilidade de
contacto e de relacionamento com firmas que pudessem estar interessadas em investir
naquela ideia. Tinha efectivamente, não que isto me desse algum gosto, e nenhuma
saída vislumbrei para além de lhe prometer que com a maior brevidade contactaria
algumas pessoas que o pudessem ajudar naquela demanda que adivinhava infrutífera,
seria como semear uma semente, esperando que nada dela nascesse. Não conseguia
imaginar nenhuma empresa a investir o que quer que fosse, um centavo sequer, para que
fosse propagandeada numa missa com audiência de trinta ou quarenta pessoas, a
maioria velhas viúvas ou tias solteiras que não casaram enquanto deviam e agora já
ninguém lhes pegava. Era o publico alvo de coisa nenhuma, e mesmo que fosse, aquelas
pessoas mal tinham para comer. Era uma ideia engenhosa e astuta, mas estava desde
logo condenada ao fracasso. Noutro local, noutro tempo, talvez, ali, naquele momento,
nunca, jamais. Pensei em lhe sugerir que abandonasse a profissão de padre, isto se esta
pode ser considerada uma profissão, voltasse para a metrópole e construísse uma
carreira na gestão financeira, mas preferi ficar calado, a vida tinha-me ensinado a não
brincar com a fé das pessoas, por muito absurda que esta se me revelasse. Animado pelo
supérfluo apoio que lhe manifestei, o bom padre bebeu de uma vez o que lhe restava na
caneca, agradece-me e deu-me as boas noites depois de deixar umas moedas em cima da
mesa para cobrir a despesa. Eu continuei por mais algum tempo, o suficiente para
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saborear sem aflições de tempo a minha bebida, e me aperceber que era olhado de
soslaio por um grupo de homens na mesa ao lado. Fingi não reparar, mas percebi que
teriam ouvido pelo menos parte da minha conversa com o padre e que esta não lhes
tinha propriamente agradado. Reconheci três deles, um, o maior, era o ferreiro, outro, o
mais velho, o mestre carpinteiro, e também ali estava o dono do minimercado, homem
de quarenta e poucos anos mas que já parecia ter mais de cinquenta, estômago
volumoso, careca, com um bigode ridículo e cuja loja possuía o monopólio do
abastecimento de produtos para toda a ilha, tornando-o talvez no homem de maiores
posses da ilha, muito à custa dos preços exorbitantes que cobrava pelos produtos de
necessidade imperativa. Só para dar uma pequena ideia, ali o preço de um pão triplicava
face ao cobrado em qualquer loja na metrópole. Uma vez cheguei a pedir a intervenção
do regedor para que fiscalizasse os preços praticados pelo minimercado, mas ele em
poucas palavras disse que nada podia ou queria fazer para alterar a situação, pois era um
estabelecimento privado e que portanto podia praticar os preços que muito bem
entendesse, mas na verdade tenho quase a certeza que este recebia algum tipo de
remuneração por fechar os olhos, ou por os manter abertos sem que estes vissem. O
quarto elemento, um homem gordo de farta barba, não conhecia, mas pelas vestes e pelo
cheiro presumi tratar-se de um pescador. Ouvi-os fazerem comentários em surdina que
tentei ignorar, mas era demais óbvio que era de mim que falavam. Cansado e
incomodado pela situação, decidi finalmente levantar-me e ir para casa. No momento
em que passo pela mesa dos tais homens, o dono do minimercado levanta-se de
rompante e choca propositadamente comigo, levando-me o equilíbrio e fazendo que eu
caísse de anca no chão poeirento da taverna. Pediu-me desculpas é claro, Que
desajeitado que eu sou, comentou em tom de lamento enquanto me ajudava a erguer e
me ajeitava a roupa ao corpo com movimentos brutos que quase me magoavam. Não se
aleijou pois não senhor professor? Não, não me tinha aleijado, mas era claro que ele e o
seu grupo lamentavam o facto. Fingi desculpa-lo e já no caminho para a saída ouvi risos
mudos que não conseguiram conter. Um alívio profundo preencheu-me quando senti o
ar quente e inerte da rua envolvendo-me os relevos. Pensei no ridículo do que se tinha
passado, pensei revoltar-me, voltar as costas àquela ilha arcaica de gente pouco
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civilizada, mas depois pensei na prisão que me encontraria caso voltasse para a
metrópole, o fato e a gravata, os gabinetes fechados, os papéis e os negócios que sempre
abominei, os fios prendendo-me os músculos, ditando todos os meus movimentos, a
alienação da minha consciência. Acalmei-me com custo, e quando dava os primeiros
passos tendo o céu como tecto, reparei que algo não estava conforme, algo fugia à
normalidade. Demorei alguns segundos a perceber, mas enfim olhei para o relógio de
pulso e depois para o céu. Os ponteiros anunciavam no seu silêncio faltarem cinco
minutos para as dez da noite, no céu, azul, despido de nuvens, o sol brilhava na posição
do meio-dia.

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II

Pouco me tinha surpreendido até então. Sempre vivi rodeado de constantes e


variáveis espectáveis. Monotonia. Um deserto de novidades num mar de certezas e
factos dominados pela razão. Um casino de dados viciados e roletas sincronizadas com
a minha vontade, que me mantinham numa rota linear sem desvios. O que experimentei
naquele momento foi como que o destruir de uma estrutura assente em alicerces rígidos,
uma rabanada de vento que fez desabar o castelo de cartas que era a minha vida. Senti-
me esmagado, envolto por um absurdo que recusava, mas que se reflectia na certeza do
meu olhar.

Inicialmente pensei tratar-se de uma ilusão de óptica, ou que a cerveja naquele


dia tivesse um grau de alcoolemia superior ao normal, mas não, os meus olhos não me
mentiam, não naquele momento. Ali estava ele, astro magnânimo em todo o seu
esplendor, salpicando toda a ilha com os seus escaldantes fotões, e cobrindo-me a mim,
um pobre de espírito com o mais denso dos mantos da perturbação e da ignorância. Não
se pense contudo que fui o único a reparar naquele fenómeno de índole paranormal que
desafiava a minha imaginação e punha em prova todo o meu sangue frio e capacidade
de raciocínio. À minha volta, pessoas paradas no meio da rua olhavam o céu abismadas,
alertadas pelo extraordinário surgido do nada, comentando entre si o que viam e o que
pensavam ver. Não foi de estranhar que de imediato surgissem referências divinas, quer
no sentido de se tratar de um milagre, quer no sentido diametralmente oposto, de que
tudo era obra de belzebu e chegara finalmente o dia do juízo final. Uma dúzia de
pessoas, mais talvez, amontoou-se numa pequena porção de espaço, a maioria mulheres
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

e crianças esboçando reacções tão diversas, que iam desde da oração convulsa, até a
choros impulsivos, passando pelos risos das crianças divertidas com o facto de ainda ser
dia e de assim poderem adiar a hora do deitar. Uma velha muito velha agarrou-me o
braço e com os olhos baços afogados em lágrimas, suplicou-me, queria que lhe
explicasse o que acontecia, porque brilhava o sol no lugar da lua, porque era dia quando
devia ser noite. Isto levou a que todo o grupo se voltasse para mim, esperando uma
resposta imediata e concreta, afinal eu era o professor da ilha, aquele que mais
conhecimentos das coisas da ciência tinha e com certeza haveria de ter uma explicação
válida, irrefutável para o fenómeno que persistia. Não tinha. Não possuía a mais ténue
ideia do que poderia causar aquilo, e sentia-me tão confuso e ignorante como todos os
outros, com a ressalva que os restantes eram praticamente analfabetos e eu tinha andado
na faculdade. Por momentos pensei tratar-se de uma espécie de eclipse lunar, mas
depressa refutei a ideia tendo em conta as premissas em jogo. Cometi então o erro de
admitir perante todos os que vincadamente me observavam e escutavam que
desconhecia por completo as razões porque estávamos no meio do dia, quando todos os
relógios apontavam já para o seu término. Foi um catalisador para que o desespero e a
aflição tomassem enfim o poder, esmagando a calma e a razão que deveriam ser os
nosso aliados naquele momento. Mulheres ajoelhadas no chão imploravam perdão
divino por todos os seus pecados, imitadas de seguida pelos homens arrependidos por
terem desejado a mulher do próximo e ainda mais por não terem obtido mais do que o
desejo. As crianças ainda sem capacidade para perceber a gravidade do acontecimento
choravam assustadas por verem os seus pais naqueles modos pouco dignos ou apenas
porque sim. Nunca nada impediu uma criança de chorar apenas porque lhe apetece, é o
mais fundamental dos seus direitos. Perdendo o pulso à situação, fiquei incapaz de agir,
num centro que encarava mil caminhos, sem saber qual o correcto, se o havia. Eis que o
estrondear de um par de tiros de pistola gera um silêncio instantâneo que me
constrangeu os músculos. Era a xerife da ilha que impunha a sua presença, soberana
autoridade policial, figura respeitável, pela qual acabei por desenvolver sentimentos tão
dúbios e indistintos. Hoje recordo-te na ponta desta caneta como uma assombração,
num equilíbrio desesperado que não me sei capaz de suster até à última página. Suspirei
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aliviado ao ver alguém com poder efectivo para manter a ordem que o caos ameaçava
estilhaçar como uma jarra de cristal desamparada. Agiu. Fez com todos entrássemos na
taverna que continuava ali a menos de dez passos de distância. Porquê o fez? Receava
que aquele fenómeno fosse apenas o preâmbulo de algo muito pior, algo imprevisível,
capaz de escapar aos nossos piores pesadelos, algo que tornasse perigosa a continuidade
na via pública, e a taverna era o local próximo capaz de nos fornecer um abrigo capaz
contra o que desconhecíamos. Obedecemos. Não só porque tinha sido uma ordem de
quem de direito, mas principalmente por esta estar regada de bom senso e fundamento,
as leis que se devem sempre sobrepor a todas as outras, mesmo que nunca ninguém se
tenha dado ao trabalho de as escrever. Enquanto penetrava de novo no reconforto
sombrio da taverna imaginei que acontecimentos se poderiam esconder na claridade,
qual seria o corpo daquela cauda. Uma chuva de meteoritos, uma chuva de rãs e de
gafanhotos, a queda da lua, do sol, de todo o céu em cima das nossas cabeças, a chegada
dos cavaleiros do apocalipse, de uma banda filarmónica, o renascer dos mortos,
vampiros, homens lobos, homens sem pernas, mulheres com três seios e barba, coelhos
dançarinos, palhaços assassinos, fiscais dos impostos, um canalizador estrábico,
extraterrestres malabaristas, veados com pernas de plasticina, anões psicopatas, uma
manada de bois, uma manada de bois epilépticos, o elenco completo de um musical da
Broadway, uma parada de vendedores de bíblias homossexuais, espíritos malignos, uma
mulher das limpezas obesa, tudo me passou pela cabeça naqueles segundos, desatinos
cerebrais absurdos que traduziam a reacção que interiormente desenvolvera contra o
medo e o ignoto. Tudo era uma incógnita, uma equação complexa sem constantes,
apenas com variáveis exponenciais, que nem o maior dos matemáticos munido do mais
poderoso dos algoritmos seria capaz de resolver.

Na taverna ninguém ainda se tinha dado conta do ocorrido, e apenas


desconfiaram que algo não estava conforme quando viram um grupo de homens,
mulheres e crianças com feições faciais algures entre o assustado e o aterrorizado,
entrando ordeiramente, seguidos pela xerife de revolver erguido, ordenando que alguém
trancasse a porta e lhe prendesse um barrote de madeira. Mulheres encontraram ali os

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

seus maridos, correram para estes gesticulando e gritando frases sem nexo. Homens,
pouco mais calmos, tentavam explicar o que se passava, que estava sol, que a noite não
tinha caído como devia. Ninguém acreditou, o que na verdade não foi de estranhar, eu
provavelmente nos seus lugares também não acreditaria sem o ver com os meus
próprios olhos, há coisas que só podem ser acreditadas depois de vistas, e ainda bem
que assim é, uma defesa natural desenvolvida contra os mentirosos e os aldrabões. O
dono do minimercado que por ali continuava, forçou-nos a sua voz de bagaço, Não
acredito numa única palavra, vocês estão todos doidos, e agora se me dão licença vou
para casa que para maluca já me chega a minha mulher. Levantou-se e fez sinal ao
grupo que o acompanhava na mesa para que o seguisse até á porta. A um passo desta,
quando se preparava para retirar o barrote de madeira que a obstruía, sentiu o toque frio
da pistola na testa, Tocas nisto e ficas sem o pouco cérebro que te resta. A xerife não
brincava, sentia-o, estavas desejosa que ele te desse um motivo para lhe enfiares uma
bala no crânio. Não há muito também a xerife se revoltara contra os preços que este
cobrava pelos alimentos de primeira necessidade e desde então a relação entre os dois
derrapou definitivamente à cordialidade, tendo o dono do minimercado afirmado várias
vezes sentir-se envergonhado por ter uma mulher como xerife, quando estas só servem
para cuidar da casa e ter filhos, foi só para isso que deus as criou. Ele percebeu a
mensagem, afastou-se com tiques brutos, e voltou para a mesa que ocupava juntamente
com os amigos, que o seguiam como o cão submisso segue o dono. Resolvida a
situação, a xerife fez valer a sua voz em tom intimidatório, mas ao mesmo tempo
reconfortante, Enquanto eu não disser ninguém sai daqui. Sentem-se todos, acalmem-
se, que em breve a situação estará resolvida. Parecias ter tudo controlado, porém, nos
teus olhos conseguia vislumbrar medo e apreensão, uma fragilidade mascarada por um
uniforme que te começava a pesar mais do que o teu esqueleto conseguia suster e que
não tardaria a fazer-te ceder. Deu ordens concretas e coesas para incrementar ao
máximo a organização das pessoas no espaço disponível que se tornava pequeno para
tantas pessoas, mais de três dezenas, principalmente considerando o calor e o
nervosismo que se multiplicava a cada momento. A xerife, depois de garantir que a
disposição das pessoas pela taverna estava dentro do aceitável, agarrou-me o braço com
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firmeza e arrastou-me para um canto mais recatado do estabelecimento. Precisava de


respostas, e esperava que eu lhas desse. Não as tinha, e repeti-lhe o que já tinha
anteriormente comunicado ao grupo de pessoas no exterior. Ela fixou-me os olhos,
como se buscasse a solução para todos os problemas destapados, mas nestes apenas
conseguiste avistar fragmentos desordenados de perturbação, assombro e agnosia.
Perguntei-te o que pensavas fazer, que caminho devíamos seguir. Demoraste a
responder, Não sei, mas continuar fechado neste ninho de ratos não é solução.
Concordei, mas para onde iríamos? A resposta era mais óbvia do que parecia, a igreja.
Porquê? Era o lugar mais espaçoso, melhor construído, com melhores condições para
abrigar a população em situações de catástrofe, aliás, toda a população tinha ordens para
se dirigir imediatamente para lá em caso de sismo, tempestade ou outra forma de
comportamento violento da natureza. Para além disso, estar em solo sagrado naquela
altura não podia ser má ideia, mesmo para um não crente como eu. Olhei para o relógio
de pulso, eram quase onze da noite, seria aquela uma boa altura para fazer a
transposição das pessoas? Não obtive resposta. Pancadas fortes na porta da taverna
chamaram a nossa atenção, causando de imediato um alvoroço incontido entre os
presentes. Gritos que apregoavam a chegada do diabo, das criaturas que habitavam a
floresta negra, todos vinham para o ajuste de contas final. As fortes pancadas
continuavam e uma voz abafada ouviu-se. Todos a reconheceram, não era monstro ou
criatura maligna, era alguém que vinha por bem. Dois homens removeram o barrote a
mando da xerife, que por vias das dúvidas manteve a pistola em riste apontada para a
porta. Do exterior surgiu ofegante o velho médico da ilha, amaldiçoando-nos, cobrindo-
nos com insultos surdos, por termos demorado esta eternidade e a outra a abrir a porta.
Ali estavas tu, quem eu precisava naquele momento, um homem de ciência, um homem
sábio e experiente da vida, alguém com que podia conferenciar de forma racional, enfim
perceber as razões daquele fenómeno. Tínhamo-nos tornado bastante próximos desde
que eu chegara à ilha, era, apesar da diferença de idade muito significativa, ao ponto de
quase ter idade para ser meu avô, uma das únicas pessoas que considerava minha amiga.
Era comum passarmos serões na casa um do outro, comentando as notícias que
chegavam da metrópole com uma semana de atraso, divagando sobre as encruzilhadas
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

da vida, ou muito simplesmente de volta de um jogo de dominó que ele às vezes me


deixava ganhar. Mais recentemente, era habitual o padre juntar-se a nós, e nestes dias
não podíamos dizer mal da igreja nem exaltar o ateísmo, do qual o médico era um
fanático defensor. Também ele não era natural da ilha, consta até que foi o primeiro
forasteiro a fixar-se nesta, fazia já meio século. Rumores escondidos corriam pelas ruas
segredando que este em jovem participara numa tentativa de golpe de estado na
metrópole com vista à implementação de um sistema proletário, e que foi o seu falhanço
que o levou a refugiar na ilha. Não sei até que ponto isto é verdade, nem se tem
qualquer ponto de verdade, mas também nunca o confrontei com isto, sempre prezei o
respeito pelo passado de um homem, principalmente quando este é quase tudo o que lhe
resta. Durante os breves momentos em que a porta esteve semi-aberta, apenas o
suficiente para permitir a passagem do médico, que não era gordo nem nada que se
pareça, do lado de lá para o lado de cá, da luz para as trevas, consegui perceber que lá
fora o sol reinava contrariando o ciclo previsível que, pelo que eu sabia, sempre
caracterizou o planeta desde a sua criação, não conhecendo qualquer relato de algo
parecido que tenha acontecido, embora não seja de excluir a hipótese de que quando o
homem ainda pouco era mais do que um macaco esperto, também o sol tenha dominado
a lua e este não ter tido a lembrança ou a capacidade de deixar algum tipo de
documentação, um desenho torto numa caverna que fosse, que perpetuasse para sempre
a memória daquela ocorrência.

Alguém cedeu uma cadeira ao médico exausto, um copo de aguardente que


engoliu de uma vez. As pessoas cercaram-no com perguntas que ele não conseguia
responder, se ele sabia porquê o sol tinha roubado o lugar à lua, onde estavam os seus
familiares, se iríamos todos morrer. A xerife fez com que todos dispersassem para que o
pobre homem pudesse recuperar o fôlego descansado. Sentou-se ao seu lado e chamou-
me. Criamos ali uma pequena conferência a três, um arquipélago de três ilhas num mar
de interrogações, com o intuito de analisar factos, tentar descortinar a melhor forma de
reagir ao absurdo. A primeira pergunta foi minha, perguntei-lhe se tinha reparado em
mais alguma coisa estranha que destoasse do habitual, algo que pudesse ser visto como

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uma evolução do distinto fenómeno. Respondeu-me com a ironia que o caracterizava, É


quase meia-noite e parece ser meio-dia, não estás satisfeito? Para mim isto já é
suficientemente estranho, não quero encontrar mais nada que não seja a normalidade
monótona”. Sorri com a resposta, aliviado. A xerife inquiriu-o de seguida pelo paradeiro
dos restantes habitantes da ilha. O espectável foi confirmado, todos se haviam refugiado
na igreja ao se aperceberem do fantástico fenómeno que não compreendiam. Ele de lá
vinha. Adivinhou que os ausentes estivessem na taverna, e voluntariou-se para efectuar
o caminho entre os dois pontos, certificar-se que todos estavam bem, que ninguém
precisava de cuidados médicos urgentes. Admiro-me como deixaram um velho lançar-se
sozinho numa missão com aqueles contornos, de risco incalculável, não haveria um,
dois homens pelo menos, com coragem suficiente para o escoltar por duzentos ou
trezentos metros? Seriam todos assim tão egoístas, covardes? Hoje tenho a certeza que
sim. O velho médico anunciou-nos então que compusera um par de teorias para o
singular fenómeno, todas com base em factos científicos mais ou menos plausíveis, mas
sempre evitando referências ao divino e ao sobrenatural, que execrava. A primeira
baseava-se na ocorrência de uma espécie de descontinuidade temporal, uma qualquer
ocorrência que nos tivesse feito avançar ou recuar algumas horas, o que na prática
traduzia-se na possibilidade de estarmos já no dia seguinte, ou estarmos a reviver o dia
que deveria ter cessado a um par de horas atrás. Era uma teoria arrojada, envolvendo
conceitos científicos de complexidade quântica, que eu próprio não era capaz de
compreender, e seria impossível tentar vende-la a um habitante padrão da ilha, que
continuaria sempre a preferir a explicação de que tudo era obra de deus ou do diabo. É
tão mais fácil assim. A segunda teoria era menos robusta, sugeria que todos tínhamos
ficado inconscientes, numa espécie de transe colectivo, durante toda a noite e manhã, e
que de facto já estaríamos na tarde do dia seguinte. Contudo esta entrava em conflito
com o facto de todos os relógios apontarem no sentido de ainda serem onze e um quarto
da noite. Ainda tentou dar-lhe consistência científica, afirmando que esta perda de
consciência generalizada poderia ter sido causada por um campo electromagnético de
origem cósmica ou outra, e que este teria também paralisado todos os aparelhos
mecânicos e electrónicos. Continuava pouco provável, mas sempre era melhor do que
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

não ter hipótese nenhuma, do que vaguear na escuridão, o que na verdade deveria ser
literalmente a nossa situação real, ou não caminhássemos a ritmo acelerado para a meia-
noite. Mas o mais importante naquele momento, mais do que compreender o fenómeno
era agir, acalmar as pessoas que transpareciam sinais de impaciência incontida. A
decisão de seguir de imediato, rapidamente, para a igreja, unir toda a população no
mesmo ponto físico surgiu com naturalidade, isto embora o médico fizesse questão de
deixar claro, devidamente registado em acta, que refutava a ideia de que lá estaríamos
mais protegidos por estarmos numa das casas do Senhor, e consequentemente sob
protecção sagrada, mas apenas por ser um edifício mais robusto e resistente, que em
caso de ocorrência de alguma tragédia natural relacionada com o fenómeno que
decorria, poderia minimizar eventuais danos físicos nas gentes da ilha. Não iríamos
todos de uma vez, considerámos mais seguro a divisão em dois grupos, primeiro iria
um, e só depois de este alcançar a segurança da igreja o outro avançaria. Antes,
deveríamos reunir toda a água e comida que pudéssemos transportar, não fosse
necessário prolongar o resguardo na igreja por vários dias, semanas até. O primeiro
grupo seria comandado pelo médico, e com ele cerca de uma dúzia de pessoas partiriam
carregando garrafões de água e sacos de comida, entre eles o dono do mini mercado que
se insurgiu ferozmente contra o facto de ter que ir no grupo de reconhecimento, ainda
para mais sob responsabilidade de um velho. Pensei que desta vez a xerife não se ficasse
pela ameaça. Entalaste-lhe o cano da pistola na garganta e disseste-lhe qualquer coisa ao
ouvido. Não sei quais foram as palavras, mas a face do dono do mini mercado tomou
feições carregadas e tensas, e enfim começou a colaborar com o plano traçado. Palavras
miraculosas. Por muito tempo deixou de ser um problema. Faltavam cinco minutos para
a meia-noite quando o grupo partiu, sei-o porque lembro olhar o relógio e pensar que
talvez fosse melhor esperar que a meia-noite passasse, pois como todos sabemos, nos
contos de terror, a meia-noite, as doze badaladas, assinalam o despertar do mal, dos
monstros, das criaturas, dos espectros malignos. Não partilhei contudo aquele
pensamento, não quis levantar medos desnecessários e irracionais, e muito menos ser
apontado como alguém que ainda acreditava no bicho papão. Antes do primeiro grupo
partir alguém se lembrou de levar uma lanterna. A noite podia surgir a qualquer
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momento e mais valia tomar as precauções necessárias do que ser apanhado


desprevenido no meio de uma qualquer escuridão, sem forma de a romper. Fui eu quem
abriu a porta depois de o barrote de madeira ter sido removido, e de soslaio confirmei
que o anguloso fenómeno ainda perpetuava. Fui eu também que a fechei logo depois da
última pessoa que constituía o grupo sair em direcção à terra da luz, que naquele caso
tanto podia significar salvação como perdição. Tínhamos acordado que quando e se o
primeiro grupo chegasse à igreja sem que nenhum perigo fosse detectado, o sino da
torre da igreja badalaria três vezes, um sinal que serviria para anunciar que o segundo
grupo poderia seguir-lhe os passos sem temores em demasia. Restávamos agora cerca
de catorze ou quinze pessoas na taverna, e em breve partiríamos, esperávamos só pelo
sinal combinado, enquanto este não surgisse seria imprudente abandonar a aparente
segurança que aquelas paredes nos proporcionavam. Vagamente, coloquei sobre mim
mesmo uma dúvida, seria aquele fenómeno exclusivo da ilha, ou todo o mundo estaria
na mesma situação, simplificando e complicando, estariam todas as pessoas do planeta
confrontadas naquele momento com os mesmos medos, com as mesmas interrogações
profundas que me marcavam a pele. Era uma dúvida razoável que tardou, contudo ali
era impossível sacia-la. Não existia nenhum meio de contacto com o exterior, nem
mesmo uma simples telefonia. Não precisaria mais do isso para conhecer por fim a
extensão do soturno acontecimento, pois caso se confirmasse que efectivamente se
tratava de um fenómeno global, uma mão que agarrava a bola azul de uma só vez, todas
as estações de rádio da metrópole teriam interrompido a sua programação regular e
concentrariam todos os seus meios no acompanhamento daquilo que se podia
considerar, sem ficar preso na teia do abusivo, na mais bizarra ocorrência que a
humanidade já assistira desde que há memória e documentação escrita, pois como já foi
referido, nada nos garante que na pré-história os primeiros homens que apareceram não
se tenham depararam com algo ainda de maior estranheza, tal como o sol se ter divido
em dois, ou a lua ter ganho pernas e braços e no céu ter efectuado um número de dança
ou malabarismo.

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

Ouvimos finalmente as três badaladas do sino a ressoarem na atmosfera espessa,


era agora, o segundo grupo ia avançar. Olhei de novo o relógio, já passava da meia-
noite, os meus receios alimentados por anos continuados de literatura de terror e filmes
de série b não tiveram fundamento, tudo parecia continuar nos mesmos carris, não se
ouvia o uivo de nenhum homem lobo nem se sentia a presença de nenhum vampiro
sanguinário. Quando me preparava para abrir a porta, a xerife prendeu-me o cotovelo e
pediu-me sorrateiramente que guiasse o segundo grupo até à igreja. Irias primeiro à
esquadra tentar contactar a metrópole via rádio. A mesma dúvida que me surgira
também tu desenvolveste, estaríamos sós, seriamos os únicos com sol quando devíamos
ter lua. Recusei a ideia, não te deixaria ir sozinha à esquadra. Chamei um dos homens
que conhecia minimamente bem e sabia ser responsável e valente, e passei-lhe o cargo.
A xerife tentou inicialmente impedir-me, mas na verdade sabia que se sentiria mais
confortável acompanhada, mesmo se esta companhia fosse somente um professor
primário escanifrado, e acedeu. O segundo grupo partiu e logo de seguida a xerife e eu
saímos em direcção oposta. A esquadra ficava já ali ao fundo da rua, aliás tudo na ilha
ficava já ali ao fundo da rua, e sem combinação prévia ambos corremos, corremos sob o
sol escaldante da meia-noite. Em menos de dois minutos chegamos ao destino. A
esquadra não mais era do que uma pequena casa que se confundia as restantes da ilha,
todas tinham a mesma fisionomia, as mesmas paredes mal caiadas, o mesmo aspecto
simples e rústico. No interior apenas duas divisões, um escritório desarrumado e pouco
composto, uma cela que poucas vezes tinha hóspedes. Mal entrou a xerife atirou-se ao
rádio, e manipulando botões de forma ágil e decidida, tentava estabelecer contacto com
a metrópole. Como não possuía qualquer tipo de conhecimento no que ao
funcionamento daquela máquina dizia respeito, e não a podendo por isso ajudar naquela
tarefa, decidi fazer-me útil de outra forma. Fui para a janela gradeada patrulhar o
horizonte, as ruas desertas inundadas pela luz de um sol que não devia estar ali. Lembrei
então, inspirado talvez pelo reflexo de um fotão vagabundo, um pormenor, uma noção
básica de astronomia, que me lançou na incerteza. Se ali estava ele, o sol, numa hora em
que não devia estar, e recordando o elementar conceito de rotação da terra em torno de
si mesmo, enquanto efectua a translação em redor do astro luminoso, isto significaria
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que do outro lado do mundo, nas antípodas do exacto local onde me encontrava, o sol
não estaria quando devia estar, pois como é sabido, devido às suas próprias limitações
físicas, da matéria, ele não pode iluminar toda a superfície do planeta continuamente,
apenas consegue iluminar metade de cada vez, a metade que o encara. Ora, isto
significaria que neste ponto do mundo, pessoas, em tudo semelhante a nós, de outra
raça, falando outra língua, adorando outro deus, estariam a enfrentar uma situação ao
mesmo tempo tão semelhante e tão antagónica à nossa, em vez do dia tinham a noite,
em vez da luz tinham a escuridão. Esta ideia reconfortou-me de certo modo, a hipótese
de outros partilharem os meus medos, mesmo sendo estes o reflexo dos meus, como se
fossem a sua imagem no espelho, com a agravante de para eles, o temor ser
consideravelmente maior, pois a escuridão é sempre mais propícia a pensamentos
macabros e espectrais do que a claridade.

Perdido nestas divagações nem notei que as tentativas da xerife em contactar a


metrópole estavam a ser inconsequentes. Perguntei-lhe qual era o problema, e este era
bastante simples, como resposta apenas ruído de fundo e estalidos informes. Estaria
avariado, voltei a perguntar mesmo prevendo que a resposta seria negativa. Não, aquilo
não era avaria do aparelho. Reparei então numa telefonia pousado em cima de uma
mesa, liguei-a, rodei o botão em busca de sintonia. Rodei-o todo num sentido, depois
rodei-o de novo no sentido oposto. Nada.

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

III

Nunca tive medo do escuro. Mesmo quando era petiz nunca precisei de luzes de
presença enquanto dormia, e as sombras que de vez em vez vinham dançar nas paredes
do meu quarto nas noites de luar nunca me intimidaram. Aliás, a escuridão sempre me
apaziguou, sempre foi capaz de me massajar a alma. Era apenas na obscuridade da noite
que as rimas dos meus poemas ganhavam consistência, e os meus sonhos podiam ser
decalcados para a realidade. Mas naquele dia não haveria noite, e um novo dia nasceria
sem que o anterior tivesse realmente terminado.

As tentativas improdutivas de estabelecer ligação com quem nos pudesse pelo


menos responder à principal questão que nos inquietava, se estava aquele fenómeno
confinado àquela ilha, tiveram em mim e na xerife um efeito devastador do ponto de
vista anímico. Não nos ocorria mais nenhuma ideia passível de ser colocada em prática
e não vendo mais nenhum motivo que nos prendesse naquele lugar, decidimos que o
melhor a fazer seria seguir para a igreja, ao menos lá a nossa ajuda seria necessária.
Porém, antes de sairmos da esquadra, a xerife colocou-me algo frio, metálico, nas mãos.
Perguntou-me, Senhor professor, sabe como a utilizar? Por um momento bloqueei,
nunca havia pegado numa arma antes e o seu peso amedrontava-me. Ela percebeu que
eu era um analfabeto profundo no que ao manuseamento de armas de fogo concernia e
explicou-me, Destrava a patilha de segurança, aponta, pressiona o gatilho e zás. A
frieza e simplicidade com que me ofereceu aquele tutorial relâmpago impressionaram-
me mas curiosamente deu-me confiança. Analisei a pistola com pormenor, vi nela o meu
reflexo, senti-a na minha mão, experimentei aponta-la. Depois prendia-a entre o cinto
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das calças e as costas, sinceramente disposto a utiliza-la caso fosse imperativamente


necessário, caso algo ou alguém surgisse das sombras da luz para nos atacar. Longe
estava eu de imaginar as consequências desta determinação.

As ruas continuavam desertas, iluminadas e escaldantes. Deviam já ser duas da


manhã quando avançamos em direcção à igreja. Íamos lado a lado, caminhando calma e
cautelosamente. A xerife levava o dedo sobre o gatilho da sua arma e monitorizava tudo
o que via com o cano da pistola. Eu preferia não levar a minha na mão, olhava com
atenção as fachadas das casas, e muito frequentemente mirava o céu. Foi numa das
vezes em que não resisti à curiosidade de saber se o sol lá continuava que reparei. Parei
instantaneamente de andar e apontei para o alto, chamando a atenção da xerife que me
repreendeu por alterar o plano traçado inicialmente, segundo o qual seria suposto
seguirmos directo para igreja, sem paragens ou desvios. Pedi-lhe que se calasse e que
olhasse o sol. Ela obedeceu contrafeita, Sim, e então? está ali e não devia estar, neste
momento já não é exactamente uma novidade, senhor professor, Não é isso. Está ali,
mas está na mesma posição que estava há quatro horas atrás. Notei que ela franziu o
sobrolho desconfiada, perguntou-me se tinha a certeza. É claro que tinha a certeza, ali
estava ele, no clímax da sua viagem diária, na mesma posição que estava na primeira
vez que o tinha visto quando não devia, na posição do meio-dia. Naquele momento
ainda não tinha assimilado aquela informação de forma a poder compreender o seu
significado, mas pouco depois tudo pareceu ficar claro, e exclamei como se tivesse
inventado a roda quadrada ou a pirâmide esférica, A Terra parou de rodar. Sim, seria
aquela a explicação para o estranho fenómeno, a interrupção do movimento de rotação
supostamente perpétuo da Terra em torno de si mesmo, isto sim, era concordante com o
facto de o dia anterior não ter terminado e ser dia quando devia ser noite, pois tendo
parado a Terra de rodar sobre si mesmo quando estávamos nós na metade que olha o sol
de frente, seria de esperar que assim continuássemos pelo menos até que a rotação da
Terra retomasse a normalidade. Assim teríamos metade da superfície terrestre
constantemente auferindo da luz e do calor do astro rei, e outra em que estes elementos
essenciais à vida nunca a tocassem. Imaginei as consequências se aquele fenómeno

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

perdurasse no tempo, para sempre. Seriam catastróficas sem dúvida, os ciclos de


crescimento das plantas seriam radicalmente alterados, a nível climático passaríamos a
ter uma metade da Terra extraordinariamente quente e outra que não tardaria a gelar, em
suma, a maior prova à sobrevivência humana com que esta já se havia deparado.
Também pensei nas causas que pudessem causar tamanha anormalidade astronómica,
mas não possuía suficientes conhecimentos de astronomia e física para tentar sequer
esboçar uma teoria, talvez pudesse estar relacionada com o equilíbrio das interacções
gravítica entre os corpos celestes ou com qualquer outro fenómeno de forças que
comandam a translação e a rotação dos planetas, mas ficava-me por aqui, não queria
fazer o papel do ignorante que finge ser o mestre. Depois coloquei outra hipótese,
estaria também o movimento de translação interrompido? Estaríamos completamente
parados, estacionados no mesmo ponto do universo? Isto ainda agravaria mais a
situação, significaria que para além de acabarem os dias também deixaríamos de ter
meses e anos, o mesmo é dizer que não haveriam mais estações, não voltaríamos a ter
Outono, Inverno ou Primavera, e para sempre seria Verão, o que, apesar de à primeira
vista poder parecer uma grande notícia para os veraneantes, amantes do praia, odientos
da chuva e do frio, seria o gume da foice da morte trespassando o frágil equilíbrio
malabarista que ainda vai permitindo que vida floresça na superfície deste planeta que já
é azul borrado por tons de cinza e negro.

A igreja já se via. Estávamos numa rua inclinada delimitada por casas dos dois
lados que desaguava no átrio da igreja. A xerife ia particularmente atenta a possíveis
movimentações dentro das habitações, eu, por outro lado, não conseguia baixar os
olhos, deixar de olhar o sol imóvel, que ao mesmo tempo me seduzia e apavorava.
Repentinamente, um som metálico rouba-nos a atenção e coloca-nos em alerta
profundo. Era como se um objecto pesado tivesse tombado alguns metros atrás de nós,
onde tínhamos passado há momentos. Voltamo-nos instintivamente e olhamo-nos
apreensivos, era aquilo que temia, algo que irrompesse o silêncio desbotado de uma
cidade deserta, algo que me materializasse o medo, que fornecesse um meio condutor ao
lado negro da minha imaginação. Senti-me uma personagem de um filme de terror, a

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vítima indefesa à mercê de uma criatura que não pode combater, e que antes de a fazer
sucumbir tortura-a com as armadilhas que a sua própria mente criou. Saquei a pistola e
ergui-a com as duas mãos. Tremia ligeiramente e tentava-me enganar, repetindo que
estava preparado para enfrentar qualquer coisa, ser o herói daquele filme de terror e não
apenas uma das vítimas degoladas, esquartejada de uma ponta a outra. Andamos alguns
metros na direcção que os nossos ouvidos apontavam e deparamo-nos um caixote do
lixo caído donde brotavam sacos e restos de comida, junto a uma esquina que tínhamos
dobrado há um par de minutos. Não víamos ninguém. Teria sido o vento? Não, o vento
não poderia ter sido, não se sentia sequer a mais leve das brisas. Um cão, um gato
vadio? Dificilmente, há muito que não se via nenhum pela ilha. A xerife aproximou-se
do caixote com cuidado redobrado enquanto eu tentava cobri-lhe a retaguarda. Tinha-
mos medo. Ouvimos então passos, passos esguios de alguém a correr vindos de uma rua
perpendicular à que nos encontrávamos. Seguimo-los sem pensar, o que quer que fosse
corria, fugia de nós, e como tal não pretenderia atacar-nos. Talvez fosse algum habitante
da ilha perdido, sem saber onde todos os outros estavam e que se tivesse assustado com
a nossa presença. Não conseguíamos ver quem perseguia-mos, mas pelo som dos passos
seria humano, e eram estes que nos guiavam. Depois de uma viragem à direita numa
bifurcação junto a uma estalagem desactivada os passos cessaram. Naquela rua as casas
eram quase todas inabitadas, remanesciam do tempo em que a população da ilha era
quatro ou cinco vezes superior. Algumas não possuíam portas nem janelas, e o
alguém…ou o algo que perseguia-mos podia-se ter refugiado no interior de qualquer
uma delas. Levei a mão à testa para limpar as gotículas de suor frio que se formavam e
começavam a escorrer-me pela face. O suor prendia-me as roupas ao corpo
dificultando-me os movimentos, já sentia o pesado odor proveniente dos sovacos
ensopados. Sempre de arma em riste, a xerife decide arriscar entrar numa das casas, não
sei porque escolheu aquela em particular, talvez tenha sido o seu instinto, ou qualquer
evidência cuja existência não me apercebi. Empurrou a porta semi-desfeita com o
ombro de forma progressiva e lenta, fez-me sinal para que a seguisse. Colei os meus pés
aos dela enquanto penetrávamos naquela casa que pelo aspecto estaria abandonada há
dezenas de anos. Não havia qualquer móvel ou outro objecto e as vigas que seguravam
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

o telhado ameaçavam ceder a qualquer momento. No chão proliferavam baratas e outros


seres rastejantes que de vez em quando ouvia serem esmagados pelos meus passos.
Embora a luz que entrava pela porta que deixamos escancarada fosse suficiente para
iluminar a sala de entrada da casa, esta era insuficiente para roubar às trevas os quartos
que desta nasciam, até porque nestes, onde existiam janelas vidradas existiam agora
grossas tábuas de madeira pregadas. Eram três, um à direita, outro à esquerda e outro de
frente para a porta da casa. A xerife acendeu uma lanterna que carregava junto ao corpo
e com um sinal de mão deu-me a entender que ia começar pelo quarto da direita. Segui-
a. Sem passar da porta, percorreu todo o seu volume com o feixe de luz que a lanterna
fornecia, tal como se fosse uma espécie de sol pequenino e portátil que pudemos trazer
no bolso sem nos queimar. Apenas paredes despedidas e gretadas, um par de ratazanas
vivas que canibalizavam meia dúzia mortas. Nenhum sinal do alvo da nossa
perseguição, e naquele momento duvidei interiormente da escolha da xerife por aquela
casa. O mais provável seria nunca mais descobrirmos quem era, não seria difícil depois
de termos perdido toda a nossa atenção na inspecção daquela casa, este se ter escapulido
sem deixar rasto. Pensei que poderia ser um ladrão, alguém que se aproveitava das casas
desertas para as extorquir. Apesar de serem na maioria pessoas muito pobres, quase
todas ainda possuíam peças de ouro e prata que herdaram e com as quais se gostavam de
exibir como pavões, mesmo que não tivessem com que alimentar os filhos.

Avançamos para o quarto da esquerda e efectuamos o mesmo procedimento,


nada, nenhum rasto assinalava a presença de alguém, agora ou nos anos mais recentes.
Contudo notamos a existência de uma porta que daria acesso a um aposento anexo
àquele, aquilo que teria sido uma espécie de dispensa ou roupeiro. A xerife mandou-me
ficar onde estava, que mantivesse os olhos bem abertos, ela iria invadir o quarto e
verificar o que se escondia atrás da porta fechada. A ideia não me agradou. Senti um
arrepio, uma gota de suor gelado a percorrer-me a espinha até ao sítio onde as costas
mudam de nome. Poucos segundo passaram desde que a xerife tinha enveredado pelo
quarto escuro em direcção à porta misteriosa, mas para mim pareciam ter decorrido
anos. Estava com medo? Sim, estava, não o escondo, e sinceramente encontro motivos

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para tal, e não sinto qualquer vergonha. Não é motivo de vergonha sentir medo,
vergonha é esconder o medo mesmo quando este já transborda. Decidi espreitar de
esguelha, a xerife já tinha aberto a porta e agora vistoriava o anexo. Nada de anormal
parecia suceder. Quando fiz os meus olhos regressarem à sala de entrada da casa vejo
um vulto cuja forma não consegui distinguir passando à minha frente, correndo do
quarto que ainda não tínhamos inspeccionado em direcção à porta da casa. Foram
milésimos de segundos, milésimos de segundos em que o meu cérebro deixou de
funcionar e os meus músculos agiram por vontade própria. Fechei os olhos e premi o
gatilho. Senti que o som do disparo foi igual ao de um canhão, um canhão explodindo
junto ao meu tímpano. Mantive os olhos cerrados durante alguns segundos, o tempo
necessário para que voltasse a um estado completamente consciente. Quando os abri, vi
a xerife debruçada sobre um corpo que jazia no chão. Aproximei-me tremendo, temendo
ver algum mostro horrendo, um ser sobrenatural que a minha imaginação criou ali
naquele momento. Entrei em choque quando vi deitada afundada sobre o seu próprio
sangue, com uma cratera desenhada na testa uma criança, uma menina de sete ou oito
anos ainda de olhos abertos que me olhavam já sem me ver. A xerife olhou-me com o
rosto manchado pelo horror, soluçou, Está morta, senhor professor.

30
Noite para sempre – Luiz César Baptista

IV

É impossível encontrar palavras que consigam descrever com exactidão aquilo


que senti naquele momento, horror, desespero, incredulidade, são os primeiros
adjectivos que me ocorrem, mas qualquer um destes, e até a sua conjugação é a todos os
níveis insuficiente. Não conseguia acreditar naquilo que tinha acontecido, não o
conseguia transportar para o plano do real. Estava apático, não conseguia estabelecer
um raciocínio completo sem que este fosse atacado e destruído por espectros que me
invadiram a mente no momento em que os meus olhos tinham focado a doce face
daquela criança. Durante um largo período de tempo fiquei olhando sem reacção aquele
macabro espectáculo que eu próprio criara, mas que não conseguia fazer desaparecer,
como um sonho desaparece quando acordamos. Quando finalmente consegui juntar
alguns fragmentos dispersos da minha consciência e comecei a tomar noção da…merda
que fizera, a minha primeira reacção foi largar a pistola num gesto de repulsa, nojo,
fazendo com que esta caísse estrondosamente no chão sórdido. Eu acabara de matar
uma pobre criança, a mais inocente das criaturas, que experiência mais traumática que
aquela poderia existir? A seu tempo o saberia…

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O que se passou de seguida surge de forma surge de forma algo enevoada na


minha memória, mas cada palavra que escrevo são punhais espetados no meu peito.
Lembro-me de ver a xerife fechar as pálpebras da malograda com um subtil movimento
de mão e de eu a olhar com os olhos de quem pergunta, E agora? O que vai acontecer
agora? Ela não me facultou nenhuma resposta. Ficamos especados ignorando as
consequências daquela horrenda ocorrência. Um silêncio denso nascera, um silêncio
cortante que nos martirizava, e que só foi interrompido pela voz deslocada da xerife,
Era sua aluna?, perguntou-me. Se era minha aluna? Não, não a reconhecia, com certeza
que não, nunca a tinha sequer visto em toda a minha vida, Estranho, senhor professor,
também não conheço esta criança. Fitamo-nos sem o quer, parecia certo que aquela
menina não era natural da ilha. Estaria ali de férias? Seria familiar de alguém? Sobrinha,
afilhada, neta? Sim, era o mais certo, mas o que fazia vagueando por aquelas ruas
desertas quando todos estavam na igreja? Estaria perdida? Não sendo uma nativa da
ilha, não seria de estranhar, contudo teria com certeza alguém responsável por ela,
alguém que tivesse o comprometimento de a proteger, de se certificar que ela estaria
sempre em segurança, principalmente quando esta é uma noção vaga incerta. Era
possível que na confusão que se seguiu à descoberta de que algo de errado se passava
com o sol e com a lua, talvez se tenha assustado e fugido, largando a mão de quem a
guardava. Eram apenas suposições, conjecturas fabricadas com base em premissas
racionais, não mais do que isso, suposições que me levavam a crer que pessoas
procuravam naquele momento aquela criança, e outras choravam preocupadas a sua
ausência.

Quando dentro do possível tomei plena consciência do meu acto, decidi assumir
as devidas responsabilidades, enfrentar o boi pelos cornos como se dizia antigamente.
Coloquei-me à disposição da xerife, E agora xerife, vai prender-me? A sua reacção
ficou a dever ao esperado. Inspirou fundo e quando expirou disse de forma atabalhoada
sem me conseguir olhar, Senhor professor, não nos precipitaremos, tenhamos calma.
Calma? Como podíamos ter calma depois do que tinha acontecido, uma vida esfumou-
se com a pressão do meu dedo, não havia calma possível naquele momento. Continuou,

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

Senhor professor vivemos uma situação fora do normal, bizarra, não vale a pena
complica-la mais…. Ah, e só então percebi o sentido daquelas palavras hesitantes e
sujas, a xerife estava com medo, estava com medo de ser responsabilizada pelo
sucedido, afinal havia sido ela a fornecer uma arma a um civil sem qualquer tipo de
experiência no seu manuseamento, que num acidente acabou por roubar a vida a uma
inocente criatura. Em tribunal provavelmente seria condenada a uma pena superior à
minha, aliás, eu com um bom advogado o mais certo era não passar um único dia na
prisão, bastaria invocar as condições especiais que envolviam o momento em que o
incidente ocorrera. Mas não para a xerife, não haveria desculpa para o facto de ter
armado um civil, ela era a única responsável por garantir a segurança e a ordem da ilha.
Talvez conseguisse uma benesse, argumentando que apenas pensara na minha
segurança, que não sabia que tipo de perigos a claridade indevida escondiam, mas de ser
considerada culpada nunca se livraria. A minha primeira reacção foi desaprovar
violentamente o que a xerife subentendia nas suas palavras, encobrir todo o acidente,
fingir que aquilo nunca tinha acontecido, como ela se atrevia sequer a sugeri-lo. Mas
depois pensei melhor, um pensamento egocêntrico que me fez corar de vergonha.
Embora escapasse facilmente ao castigo judicial, dificilmente me livraria de um
inquérito disciplinar moroso cujo desfecho seria com toda a certeza uma suspensão
vitalícia da profissão de professor. Ninguém aceitaria que eu voltasse a ensinar crianças
quando já tinha morto uma, mesmo que tudo não tenha sido mais do que um maldito
acidente sem intenção. Sem emprego na ilha, nada me poderia salvar de voltar para a
metrópole e de finalmente ser obrigado a entrar no fascinante mundo dos negócios, sob
a acusação de já ter manchado demasiado o nome da família para ainda me dar ao luxo
de o continuar a manchar mais num emprego de categoria inferior. Uma mão lava a
outra, eu seria uma mão, a xerife seria a outra.

A grande questão residia no que fazer com o cadáver. Enterrá-lo estava fora de
questão, não tínhamos pás, nem terreno propício à execução de um buraco suficiente
fundo. Também não tínhamos muito tempo, não tardaria a que todos os que estavam na
igreja principiassem a suspeitar sobre a nossa demorada ausência, quando apenas

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tínhamos ido à esquadra tentar contactar a metrópole. Deixar o corpo ao abandono


também não era solução, não sabíamos quanto tempo mais aquela crise duraria e
quando esta terminasse e as pessoas começassem a voltar às suas casas não tardaria
muito até o descobrirem, principalmente porque com o calor que depredava a ilha pouco
seria necessário até que o cheiro da decomposição dos tecidos denunciasse a sua
presença. Mas o perigo maior residia na possibilidade de que os responsáveis pela
criança já vasculhassem a ilha à sua procura, e temia sinceramente que os pais, os tios
ou os avós daquela que eu matara entrassem naquele momento pela casa, assolados,
destruídos pela relevação rubra. Ficaria sem palavras, mudo, não conseguiria explicar
como tudo tinha acontecido, como havia desenhado aquele traço de destruição que não
conseguia apagar. Morreria. Decidimos que a resolução provisória mais apropriada seria
arrastar o corpo para o anexo ao quarto que a xerife tinha vistoriado quando o disparo
aconteceu. Era perfeito, fechado, não tinha janelas, e num canto encontramos ladrilhos e
tijolos danificados que usamos para cobrir o corpo. Nunca pensei fazer nada tão
macabro na minha vida, ainda para mais sendo cúmplice de uma agente da autoridade,
mas a necessidade e o desespero vencem sempre o bom senso e a honestidade, aquele
era só mais um exemplo.

Quando demos por terminada a hedionda operação já eram quase cinco da


manhã. Em breve o sol nasceria, não fosse o caso de este não se ter posto no dia
anterior. Tínhamos que ir o mais rapidamente para a igreja, e pelo caminho inventar
uma história, uma treta qualquer que explicasse a nossa demora. Corremos sem ponta de
preocupação sobre hipotéticos perigos derivados do tal fenómeno que já se tornara
completamente secundário, um nó na ponta da corda. Não havia monstro ou fantasma
pior do que a experiência que acabara de vivenciar. A minha maior preocupação era
enfrentar as lágrimas da família da desditosa, e temia confessar tudo, quando um deles
me perguntasse em desespero se havia dado por uma menina de sete ou oito anos,
magrinha e olhar doce, que tinham perdido de vista na confusão gerada pelo maldito sol
que teimou que naquele dia não deixaria a noite mostrar toda a sua refulgência.

34
Noite para sempre – Luiz César Baptista

Chegamos à igreja exaustos, batemos à porta e depois de ouvirmos algum


frenesim sonoro vindo do interior, o padre abriu-nos a porta, Valha-nos deus, já
pensávamos que vos tinha acontecido alguma coisa. Entrem, entrem, rápido. A igreja
estava apinhada de gente. Algumas dormiam, afinal de contas eram cinco da manhã e o
corpo estava programado para descansar àquela hora independentemente de ser noite ou
dia, outras, principalmente mulheres e velhas, rezavam compulsivamente, um par de
crianças brincava de forma divertida, radiantes por estarem acordadas a uma hora a que
nunca haviam estado, um grupo de homens jogava às cartas como se nada se passasse.
Entre estes, um lançou-me um olhar intimidador, reconheci-o, era o dono do
minimercado. Fingi não reparar, virei a cara para o outro lado e perguntei ao padre
tentando esconder o nervosismo, se ali se encontravam todos os habitantes da ilha, se
não havia registo de nenhum desaparecimento, Estamos cá todos, já o verificamos,
respondeu para meu espanto, perguntando-me de volta a razão daquela interrogação,
Por nada, só para confirmar, às vezes alguém se podia ter perdido. A xerife que
acompanhou tudo com os ouvidos, olhou-me tão confusa como eu estava. Quem seria
afinal a criança a quem eu ceifara a vida? Não sendo nenhuma das crianças naturais da
ilha, nem nenhuma criança que ali passava uma temporada com familiares, poucas
hipóteses vislumbrava que explicassem a sua presença na ilha. Havia sempre a hipótese
de ser a filha de um casal de turistas que por ali deambulasse, mas há muito que já não
se ouvia falar de turismo naquela ilha, e se isto fosse verdade com certeza que seria
assunto de intenso falatório por todos os habitantes. As outras hipóteses que me raiaram
na mente eram demasiado fantasiosas para serem consideradas, uma criança rebelde da
metrópole que fugira de casa e se escondera num barco em direcção à ilha, uma criança
que vivia na floresta criada por coelhos e esquilos do bosque, uma criança que
acidentalmente caiu de um avião no momento em que este sobrevoava a ilha.

O padre levou-nos de imediato para o seu escritório, uma sala para a qual se
entrava através de uma portinhola do lado direito do altar. Lá o velho médico esperava-
nos para uma espécie de reunião de emergência, um encontro das auto-determinadas
figuras socialmente mais relevantes da ilha, que visava fazer um apanhado de todos os

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acontecimentos bizarros acontecidos até então, tentar compreende-los pelo menos


parcialmente, e por fim, determinar a melhor forma de actuação. Seguindo as
recomendações do bom senso, a primeira pergunta recaiu sobre a tentativa que
havíamos efectuado na esquadra de contactar a metrópole. Dissemos a verdade, todas as
tentativas não deram qualquer fruto, todas as formas de comunicação que possuíamos
com a metrópole estavam inviabilizadas, o motivo era desconhecido mas estaria
relacionado com o fenómeno do dia indevido. Aquela resposta lançou-os para o poço da
desilusão, disponham grande parte das suas expectativas nas notícias que obteríamos da
metrópole, mas assim continuavam tão ignorantes como estavam anteriormente, todos
nós continuávamos. Também mostraram curiosidade pela demora no cumprimento da
nossa missão, quase cinco horas pareciam notoriamente exageradas para descer a rua até
à esquadra, tentar comunicar a metrópole, por muitas tentativas efectuadas, e seguir para
a igreja. Foi a xerife quem mentiu, disse que no caminho para a igreja ouvimos o que
nos tinha parecido um caixote do lixo a tombar, até aqui nada de falso, e que decidimos
inspeccionar as redondezas em busca da causa do efeito. Acabamos por descobrir que o
culpado havia sido um coelho que por ali andava perdido, fugido talvez de alguma
horta. Um coelho?, perguntou o médico desconfiado. Confirmei com um aceno de
cabeça, ainda perplexo com a facilidade e naturalidade com que a xerife mentira. E o
que fizeram com o coelho?, insistiu. O que tínhamos feito com o coelho? Mas para que
raio aquilo interessava agora? O que queria que fizéssemos com o bicho, senhor
doutor?, questionou a xerife sem perceber o motivo daquele súbito interesse por um
roedor que nem sequer era real, e apreensiva com a possibilidade de daí advir alguma
ponta solta que colocasse em perigo a mentira montada. Ora essa, queria que o
tivessem apanhado para eu fazer um cozinhado com ele, e dito isto o médico
desmanchou-se num riso impróprio para a sua idade, um riso de criança que achei por
bem acompanhar, embora não encontrasse naquele momento razão alguma para rir, ria
para não chorar. O padre e a xerife mantiveram as feições sérias e carregadas, mas
esperaram pacientemente que o possante riso do médico finalmente cessasse, e que
tomasse a palavra no segundo exactamente posterior já em tom circunspecto, numa
transformação de estilo tão abrupta que considerei fenomenal, disse, Caríssimos, hoje
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

como já reparam não tivemos noite, para além disso todas as formas de comunicação
com o exterior parecem estar bloqueadas, temporariamente ou permanentemente, a
verdade é que por agora estamos por nossa conta. Proponho por isso, aproveitando o
período de acalmia que se proporciona, que reflictamos um pouco sobre as causas
destes fenómenos de índole invulgar. Senti que chegara a minha hora de brilhar, de
expor a minha descoberta, a teoria que julgava sublime. Contei-lhes tudo, o sol que se
manteve sempre na mesma posição, a hipótese de que a Terra interrompera o seu
movimento de rotação. O padre e o médico olharam-me atentamente durante o meu
discurso, e quando depois de o terminar esperava que me oferecessem os parabéns por
ter descortinado de forma tão astuta as razões de naquele dia o sol ter prolongado o seu
horário laboral, eis que o médico recupera a palavra, Acho a teoria do sol ter cessado a
sua rotação interessante…contudo, este fenómeno iniciou-se ao fim da tarde, ou seja
quando o sol descia rumo ao ocaso. Se a Terra tivesse efectivamente parado de rodar
naquele momento, o sol ficaria naquela posição e não subiria de novo ao pico da sua
hipérbole diária. Depois deu-me um olhar paternal, aquele que diz, ah quase, mas ainda
não foi desta, continua a tentar. Senti-me desiludido, envergonhado com a facilidade
com que a teoria de que tanta me orgulhava havia sido desmanchada. Abri os braços e
encolhi os ombros, Então, caros amigos, não faço ideia porque hoje não houve noite.
Tinha a frustração marcada nas poucas rugas que já tinha e tentava esconder a aflição
que me fustigava. De qualquer forma temos que decidir o que fazer em seguida…,
insistiu o padre, E o que sugere, senhor padre, devolveu-lhe a xerife, Bom…eu não sei
bem…, Eu por mim mandava toda a gente para casa e tentávamos retomar a
normalidade, senão aconteceu nada de mal até então também já não irá acontecer, e
aqui fechados nesta igreja é não estamos a fazer nada. Se não voltar a haver noite
tanto melhor, é electricidade que poupamos. Senti-me impelido a apoiar a opinião que o
médico expos de forma tão decidida, mostrar-lhe o meu incondicional apoio, mas depois
lembrei-me, lembrei uma menina que jazia sob fragmentos empoeirados de ladrilhos e
tijolos, lembrei que o responsável era eu, lembrei que caso as pessoas regressassem às
suas casas as possibilidades de alguém dar com o corpo aumentavam exponencialmente,
para além é claro, de impossibilitar a transladação do corpo para um local definitivo
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onde nunca ninguém encontrasse o bárbaro fruto das minhas acções involuntárias, e
onde a incógnita criança em paz pudesse para sempre repousar. Disse, Esperemos pelo
menos mais um dia, pela hora do anoitecer, se até lá as coisas não voltarem ao normal
logo se vê. Considero precipitado enviar as pessoas já para casa, pelo menos aqui há
água e comida que chegue, um tecto seguro. Parecia uma opinião sensata e teria orgulho
nela se esta não pretendesse apenas e somente ocultar o mais horrendo dos crimes.
Percebi pela expressão facial da xerife que ela compreendeu o motivo daquela
intervenção, ela conhecia-me bem o suficiente para saber que em condições normais
apoiaria a posição do médico, mas aquelas há muito que deixaram de ser condições
normais. Assim seja, façam como quiserem, desabafou o médico visivelmente
surpreendido por não ter contado com o meu apoio, mas ao mesmo tempo sem dar
demasiada importância ao assunto, depois olhou o relógio de bolso e comentou algures
perdido entre o sério e o irónico, Cinco e cinquenta e cinco, o sol deveria estar a nascer
a esta hora, querem ir ver se acontece mais alguma coisa estranha? Acedemos, não
perdíamos nada em verificar. O gabinete do padre possuía uma janela de dimensões
consideráveis, suficiente para que quatro pessoas pudessem juntar-se sem se
acotovelarem em demasia. Lá fora o sossego perpetuava, as ruas desertas, o sol imóvel.
Enquanto esperávamos, uma ideia surgiu-me, uma ideia que quis de imediato partilhar
com todos mas que acabei por guardar só para mim, pensei, e se aquele não fosse o
nosso sol, sim, se o nosso sol no dia anterior tivesse realmente posto como devido, e se
aquele sol que víamos e que nos iluminava fosse outro, outro sol aparecido não sei bem
donde, mas que por ali ficou. Seria então de esperar que o nosso sol, o sol que sempre
conhecemos, surgisse agora tal como sempre tem surgido marcando o inicio de de um
novo dia, e que o outro ali continuasse firme na sua posição. Passaríamos então a ter
dois sois, um permanente e outro que metade do tempo estava presente e na outra
metade estava ausente. Era uma ideia, mas não mais do que isso, e como a anterior
estava errada. Nada de extraordinário se passou, não haviam dois sois, apenas um, um
sol que continuava firmemente pregado no topo do céu, o mesmo sol de sempre.
Desiludido, preocupado, agoniado e exausto procurei um canto qualquer mais recatado
da igreja e ajeitei-me o melhor que consegui. Fechei os olhos e adormeci. O que se
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

seguiria seria bastante pior.

Contrariamente à maioria das pessoas sempre gostei de pesadelos, sonhos maus


se preferirmos. Sempre gostei do medo, da aflição, do desespero que nestes emergem, e
que num gesto, num simples abrir de olhos desvanecem em nada. Sentia-me poderoso,
capaz de vencer tudo, destruir monstros e fantasma com o desabrochar das pálpebras.
Sempre odiei sonhos bons, ditos cor-de-rosa, uma alegria, uma felicidade ilusória que se
esfumavam na transição para o real e que me deixavam mal disposto o resto do dia, é
como oferecer um doce a uma criança e no momento em que esta se prepara para o
meter à boca, roubar-lho. Naquele dia mudei de opinião. Durante as horas que dormi fui
assombrado pela minha figura, eu olhando-me através da janela do sonho, um olhar
reprovador que no seu silêncio feria-me com faíscas de vergonha. Repetia num ciclo
infinito, MATASTE-A, MATASTE-A, MATASTE-A, sempre as mesmas palavras,
palavras que deixaram de o ser com o uso, para se transformarem apenas em sons,
opacos, nus, mas que ainda assim me torturavam.
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Acordei numa vala comum, enterrado sob mil pés de remorsos e exaustação
psíquica. O seu peso era colossal, esmagava-me como se fosse um insecto, frágil,
abandonado pelas sensações que julgava eternas, e que me faziam sentir oco, uma casca
sem medula, apenas casca. Acordei do lado errado do amanhã, absorvido pela
imensidão do vazio, consumido por um calor insuportável. Acordei sacudido pelos
movimentos bruscos da xerife. Desorientado, ainda a meio do caminho entre o sono e o
consciente perguntei-lhe se já era noite. Não, professor é meio-dia, O sol?, Está onde
deve estar. Por um momento tudo voltou ao normal. Era meio-dia, e o sol honrava-nos
com a sua presença no ponto mais alto que os nossos olhos alcançavam. Pena que fosse
uma normalidade passageira, que se esbateria dentro de momentos, quando o astro
luminoso não iniciasse a sua viajem rumo ao ocaso. Senhor professor, temos que ir.
Receei que a xerife se referisse à casa abandonada, que quisesse já regressar ao fatídico
local para enfim apagar as marcas da minha acção estouvada, fazer parecer que nada
nunca tinha acontecido mesmo sabendo que tudo ficaria para sempre enterrado nas
nossas memórias. Mas aparentemente não, um pescador dizia que tinha na sua casa um
telégrafo ligado à capitania das pescas da metrópole, que utilizava para saber de
tempestades e que mais assuntos pelos quais os pescadores se interessam. O plano
passava muito simplesmente por visitar a casa do tal pescador, e através do seu telégrafo
tentar contactar a metrópole. Mas eu nem sei código Morse, protestei bocejando sem
perceber a minha utilidade naquela incumbência. Ela olhou-me fixamente e os seus
olhos elucidaram-me as razões, ela não precisava de mim para a acompanhar ao
telégrafo, mas sim para o que faríamos em seguida. Soltei um suspiro inquieto. O
pescador vai connosco?, perguntei receando não termos a privacidade necessária, Não,
ele diz que tem medo de sair da igreja. Ah, então íamos sozinhos, perfeito, tínhamos
uma desculpa para abandonar a igreja sem levantar suspeitas, a ausência de olhos
indesejados para limpar a lama das nossas botas, melhor oportunidade que aquela era
improvável. Tudo pareceu contudo ficar comprometido quando no exacto momento em
que nos preparávamos para abandonar a igreja alguém se intrometeu no nosso caminho.
O velho médico queria acompanhar-nos, segundo as suas palavras estava farto de estar
fechado naquela maldita igreja e precisava urgentemente de sentir o céu nu sobre a sua
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

cabeça. Era um rude golpe nas nossas pretensões, ainda tentei demovê-lo argumentando
que alguém poderia vir a precisar de cuidados médicos, estava muito calor e as pessoas
estavam muito nervosas. De nada serviu, Estas pessoas agora só precisam de um padre,
não querem saber de um médico para nada. Estava feito, iria connosco.

A casa do pescador ficava numa rua do lado oposto à da casa abandonada, não
havia portanto o perigo de o médico passar por ela e por alguma razão suspeitar de algo,
algo que me pudesse denunciar. A caminhada foi feita em pesado silêncio, precisávamos
de todo o nosso fôlego para caminharmos sob aquele calor infernal. A casa do pescador
era uma casa igual a todas as outras, um único piso, caiada de branco sujo, porta e
janelas grosseiras. Era minúscula, um apertado corredor de entrada que desembocava
num quarto e numa divisão que servia de cozinha e sala de estar, e onde estava o
telégrafo. Francamente não estava nada preocupado com os resultados daquela tentativa
de comunicação com o exterior, preocupava-me apenas saber como nos livraríamos do
médico, para que pudéssemos voltar à casa abandonada e acabar o que não devia ter tido
começo. De nós os três apenas a xerife sabia código Morse e como tal, foi ela quem
tomou as rédeas da máquina. Pouco lhe dei importância, aquilo para mim eram só
ruídos irritantes intermitentes, e duvidava que alguém fosse capaz de estabelecer uma
conversação eficiente utilizando apenas aquele obsoleto aparelho. Distraí-me
percorrendo com o olhar a habitação em que me encontrava. Estava praticamente
despida de objectos, apenas o básico e o essencial. Nas paredes irregulares apenas um
retrato, um homem de aspecto distinto e aristocrático, que não sei se era algum
antepassado do pescador ou algum nobre famoso naquelas paragens. Não havia livros,
bom, havia um exemplar da Bíblia já com a lombada descolada, mas nada que se possa
considerar literatura, se bem que há quem veja na bíblia a mais brilhante das histórias de
ficção. Numa estante reparei numa miniatura de uma embarcação de pesca com cerca de
um palmo de comprido, esbocei um sorriso quando lhe li o nome, Pôr-do-sol. Cerca de
vinte minutos depois de a xerife ter começado a manusear aquele aparelho cujos sons
me irritavam categoricamente, eis que nos preparávamos para desistir. Nenhuma
resposta para as nossas questões se vislumbrava e mais uma vez continuávamos presos

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no fundo do poço da ignorância, com um pedregulho atado ao tornozelo. Quando já


estávamos de saída daquela casa, um comboio descontínuo de bips ecoou no ambiente
de desolação e chamou a nossa atenção. Alguém do lado de lá do mar respondia
finalmente. Eu, sendo um leigo na matéria, não percebia obviamente o conteúdo da
resposta, mas a xerife atirou-se ao primeiro pedaço de papel que encontrou e a lápis
escreveu. Quando parou tornou-se pálida e as suas feições faciais tinham uma expressão
estranha que me desagradou. Quando me aproximei li o que tinha escrito, ILHA QUE
ILHA?.

VI

Nas duas horas seguintes a xerife tentou retomar o contacto com a metrópole.
Pressionou um número infindável de vezes o interruptor do telégrafo ao ponto de
diversas vezes perder a paciência e ter que ser substituída…por mim. Não que eu tivesse
conseguido aprendido código Morse naquele interregno de tempo, não, longe disso, eu
apenas premia o interruptor de forma completamente aleatória, ora com uma menor
frequência, ora deixando o dedo durante longos períodos. Não interessava se tinha
algum sentido, apenas importava chamar a atenção de alguém do outro lado para que
respondesse e explicasse o significado da mensagem anteriormente enviada. Antes de
mais e para melhor contextualizar a missiva recebida, foi necessário perguntar à xerife o
que exactamente estava encriptado na sequência sonora que ela emitiu continuamente.
Hoje na ilha, não houve noite, respondeu ela provocando uma gargalhada no médico

42
Noite para sempre – Luiz César Baptista

que exprimiu desta forma o absurdo que nos invadia a existência. Havia é claro a
possibilidade de quem estivesse do outro lado encontrasse-se ausente das suas
capacidades conscientes normais, o mesmo é dizer sob o efeito de álcool ou qualquer
tipo de droga, ou que decidira brincar com o nosso isolamento, sabendo exactamente o
que se estava a passar com o sol e que os outros tipos de comunicação estavam
inviáveis, imaginei inclusive alguém gargalhando de forma animalesca troçando de nós.
Com a sensação que ainda tínhamos tornado mais confuso o que confuso já era
por natureza, decidimos regressar à igreja. Deviam ser quatro da tarde, um pouco mais,
um pouco menos talvez, quando regressamos à rua abrasiva, com a ideia de que caso as
coisas não se resolvessem nas horas seguintes ali haveríamos de voltar. Enquanto
caminhávamos de regresso fitei a xerife demoradamente, disse-lhe qualquer coisa com o
olhar, ela compreendeu. Quando nos aproximávamos da escadaria que levava à entrada
da igreja, a xerife abordou o médico com uma naturalidade excepcional, disse-lhe,
Senhor doutor, vá andando para a igreja que eu vou só ali com o senhor professor à
esquadra ver se consigo estabelecer contacto via rádio. Ele espreitou-nos com
semblante desconfiado, mas cedeu, estaria decerto demasiado cansado para nos seguir,
pois de outro modo faria questão absoluta de nos acompanhar, mas a idade já não
permitia que o seu corpo cumprisse todas as vontades da sua mente. Antes de separar-
nos alertei-o, Senhor doutor, é melhor não falar da mensagem do telégrafo a ninguém.
Diga que não obtivemos resposta alguma. Ele oscilou a cabeça afirmativamente, ele
próprio já o pensaria fazer de qualquer forma. Não valia a pena catalisar mais a
inquietação das pessoas com mais aquela enigmática missiva.

Já caminhávamos de novo quando perguntei à xerife desnecessariamente, Não


vamos à esquadra pois não?, O que é que acha, professor?, Eu acho que não, Então
acha bem. Sim, viramos à direita onde devíamos ter seguido em frente caso fossemos
para a esquadra, seguíamos o trilho em direcção à casa abandonada, uma casa
abandonada que nem o era tanto assim, uma casa sem forma humana viva no interior,
mas que ocultava aquilo que pior um humano pode fazer, que mais consegue
envergonhar quem nasce com a visão de nunca deturpar a ocorrência natural das coisas,

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e tudo de belo que esta acarreta. Como vamos limpar a sujidade?, perguntei, A
sujidade? Fala em código?, Acho mais prudente. Ela parou momentaneamente de andar
e disse antes de retomar a caminhada, Usaremos um bocadinho do nosso amigo ali em
cima. Falava também ela em código, um código cruel, macabro, que não repulsei, fogo,
sim queimaríamos o corpo, a casa toda se tivesse que ser, às cinzas o que das cinzas
nasceu. Nunca ninguém desconfiaria de nada, seria apenas um incêndio numa velha
casa inabitada, causado com toda a certeza por uma exposição solar muito superior ao
que era ordinário. O corpo deixaria de o ser, seria levado pelo vento, pelas brisas
marítimas, viajaria por todos os locais do mundo, seria livre, livre como em vida nunca
antes fora, nem nunca poderia ser. A sua identidade continuava-me a martirizar, se ao
menos soubesse o seu nome, quem era a sua família, quem ela era, talvez assim o meu
calvário talvez atenuasse. Pior do que matar alguém, só matar alguém que nem sabemos
ser. A xerife parecia viver bem com este facto, para ela era suficiente saber que não era
nenhuma das crianças da ilha, mais, que não possuía qualquer relação com nenhum dos
membros daquela comunidade, pouco lhe importava o que fazia ela na ilha,
especialmente naquele momento em que o sol parecia estar louco. Disse-me, Professor,
oiça-me bem, a pequena está morta, foi um acidente, é trágico sim senhor, mas ninguém
quis que acontecesse, é inútil sermos culpabilizados pelo que sucedeu, não será isso
que a trará de volta, não é isso que vai anular a sua sentença de morte. Se nunca
ninguém se lembrar dela tanto melhor, aliás se ninguém se importava com ela também
a sua vida não seria grande coisa, talvez até esteja mais feliz no paraíso, ou onde quer
que vão as crianças quando morrem. Não a consegui olhar depois de ouvir aquelas
palavras. Iniciara uma metamorfose que a conduzira a um estado em que já não a
reconhecia. Não era ela que falava, era o distintivo que trazia no peito, sobrepondo o
coração, bloqueando-o. A máscara, sempre a máscara, que trazia debaixo da pele e lhe
embriagava o espírito.

O resto do caminho foi feito em silêncio apenas corrompido pelos sons dos
nossos passos que pareciam ferir-me os ouvidos. Mantive sempre uma distância de
cerca de dez palmos da xerife, não sei explicar bem porquê mas achei melhor guardar

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

alguma distância entre os nossos corpos, e só diminui esta separação quando ela enfim
empurrou a porta da casa abandonada e nela penetramos. Senti um arrepio a percorrer-
me em toda a extensão do corpo quando a porta rangeu agudamente, como se ouvisse os
gritos dos miseráveis enclausurados no inferno. Se isto fosse um conto de terror, um
conto de terror digno deste nome, quando nos aproximássemos do anexo onde deixamos
a pobre criança no primeiro descanso na condição de morta, e retirássemos os ladrilhos
e os tijolos que cobriam o seu corpo este já lá não estaria. Entraríamos assim num
estado de pânico aterrado que se agravaria quando víssemos a criança erecta de frente
para nós, rindo-se com as gargalhadas que roubara ao diabo, preparando-se para aplicar
a sua justiça naqueles que a sua vida roubaram. Mas não, não é o caso, quando
removemos os ladrilhos e os tijolos empoeirados, ela continuava no exacto local onde a
deixamos. A mesma expressão apagada, dormindo para sempre. Um anjo, um anjo com
uma cratera delineada na testa onde se compusera uma crosta de sangue ressequido.
Preso e perdido naquela visão terrificamente melancólica, mal dei conta que a xerife
juntara algumas madeiras velhas e secas, outro tipo de lixo que encontrou, tudo de o que
o fogo se pudesse alimentar, que espalhava uniformemente em redor do corpo
estendido. Depois olhou-me e perguntou-me se queria assistir ao passo seguinte. Não
respondi, mantive-me imóvel enquanto observava apaticamente o desenrolar das acções
daquela operação lúgubre que desejava esfumar-se da realidade. Vi a xerife puxar de
uma caixa de fósforos e com uma profunda calma incendiou o perímetro que formara
em torno da malograda. Não demorou muito para que o fogo ateasse com uma
exuberância desmedida, criando uma cortina de labaredas rebeldes entre nós, uma
cortina que separava o que já estava morto do que ainda não estava. Em breve o cadáver
desapareceria afogado nas suas próprias cinzas, e aí ninguém poderia dizer com toda a
certeza que aquele ser algum dia existiu. Ficamos ali cinco minutos, dez talvez, não
interessa, olhando, apenas olhando. O cheiro a carne queimada começou enfim a
agoniar-me, uma angústia venenosa que me fez sentir o estômago a sair-me pela boca e
correr em direcção à rua, implorando por ar fresco que me lavasse as entranhas. O fumo
espesso já explodia por todas as frinchas e aberturas da casa, em breve seria visível em
toda a ilha. Estranhamente apeteceu-me fumar um cigarro, eu que nunca fumara na vida,
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e amaldiçoei-me por não ter nenhum comigo, enquanto isso comecei a distinguir sons
no horizonte. Coloquei-me em alerta máximo, imóvel, na expectativa. O som
aproximava-se, e em breve distingui-o, eram passos. Alguém descia a rua na minha
direcção. Fiquei sem saber o que fazer, queria voltar para o interior da casa abandonada
mas os meus músculos estavam paralisados. Os passos aproximaram-se mais, e melhor
os distingui, eram passos lentos e pesados, como se alguém se arrastasse enquanto
andava. Um vulto começou-se então a desenhar no cimo da rua, inicialmente indistinto
mas de forma humana, era um homem que pouco depois reconheci. Mas o que raio faz
ele aqui?, murmurei ainda sem noção do que a presença do médico ali poderia denotar,
mas ciente das dificuldades motoras e respiratórias que o esforço lhe impusera. Eis
senão quando me preparava para correr na sua direcção, não sei se para o auxiliar, se
para lhe desviar o rumo, sinto uma presença atrás de mim e de seguida o estrondo de
uma arma de fogo ressoa a poucos centímetro dos meus ouvidos.

Precipitei-me de imediato na direcção do médico caído no chão empedrado, e


quando lhe senti o corpo ainda estava vivo. A bala perfurou-lhe o peito na zona central,
senti-lhe o sangue quente e espesso que se saia directamente do coração nas palmas das
mãos. Tinhas os olhos abertos, trémulos, forçava a respiração e mexia os lábios tentando
dizer-me alguma coisa, sílabas perdidas, palavras sem nexo, até que, superando a
debilidade que o invadia, consegui perceber o seguinte, A igreja, vai para a igreja.
Rápido. Foram as últimas palavras que disse antes de fechar os olhos e de a sua
pulsação cessar.

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

VII

Cerrei o punho com toda a força que possuía, tentando controlar ao máximo a
raiva e a revolta que me invadiam. Quis confrontar a xerife com aquele acto bárbaro,
desnecessário, mas não me deu a oportunidade. Sem dizer palavra, agarrou os pés do
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defunto médico e arrastou o corpo em direcção à casa abandonada que já cuspia


chamas, deixando um rasto vermelho que me fixou o olhar. Não me pediu ajuda,
percebeu que eu não a daria, e numa questão de segundos também o corpo do médico
era consumido pelo inferno que tínhamos criado, ali, naquela casa abandonada ruindo
sobre si mesmo, alimentando as chamas intensas que dançavam num fatídico bailado
coreografado por uma qualquer criatura de Satanás, que vinha devorar a carne inocente
e beber o sangue puro daqueles que viram a sua vida roubada indevidamente. Uma
miscelânea de sensações invadiu-me naquele momento, contudo, não fui capaz de
exprimir nenhuma delas, uma única sequer. Se alguém é considerado fraco quando não
consegue esconder o que sente, o que dizer de quem não consegue exprimir o que tão
intensamente sente?

Vejo então a xerife caminhando na minha direcção de arma na mão, passa por
mim e diz-me em tom afável como se nada se tivesse passado, Venha senhor professor,
temos que ir para a igreja. Não tive outra escolha senão segui-la, não porque mo pedia,
mas porque este havia sido o último pedido do médico, e este, apenas este importava.
Durante o caminho tentei raciocinar o mais claramente que conseguia sobre as razões
que ditaram a presença do médico naquela rua, naquele momento. Tínhamo-lo deixado
em frente à igreja, e nesta deveria ter permanecido, se não o fez é porque algo muito
grave acontecera ou estava preste a acontecer. O que seria? A ideia de algo sobrenatural
veio-me logo à ideia, sem o querer monstros e mortos-vivos ocuparam-me a mente, tudo
o que já havia pensado que poderia advir do estranho fenómeno do sol. Mas como o
médico descobrira o nosso paradeiro? Bom, naquele momento não fui capaz de o
descortinar, mas agora, enquanto escrevo estas palavras tudo se torna bastante claro.
Assombrado com o que se deparou na igreja, outra escolha não teve o pobre médico
senão correr em busca do nosso auxílio, ora, segundo as nossas palavras tínhamos ido
para a esquadra, e para lá o pobre médico se dirigiu, naturalmente esperançado que lá
estivéssemos. Não estávamos, contudo o verdadeiro local onde nos encontrávamos
ficou em pouco tempo assinalado pela espessa nuvem de fumo que se escapava da casa
abandonada em chamas, a espessa nuvem de fumo que ganhava volume a cada segundo,

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

e que vislumbrava enquanto percorria o lance de escadas que nos guiava até à porta da
igreja. A xerife tirou então um lenço do bolso e atirou-o para que eu o apanhasse, Limpe
a cara, pediu, não, ordenou, sim, aquilo fora uma ordem e tenho a certeza que puxaria
da arma caso me recusasse a limpar o sangue ainda húmido que me pintava a cara
proveniente do tórax do médico que morrera nos meus braços minutos antes. O que não
passava inicialmente de um vergonhoso e cobarde encobrimento de uma acção
imponderada, transformara-se para a xerife numa obsessão embriagada de encobrimento
de provas incriminatórias, uma obsessão que há muito que passara os limites do racional
e que me faziam recear as suas acções futuras.

A porta da igreja estava trancada. Do seu interior escapavam sons estrepitosos e


amorfos, longe do silêncio déspota que a caracterizava horas atrás e que sempre pautou
em todas as casas de deus. Ele não gosta de barulho, pois só no silêncio o homem
consegue desfrutar plenamente o fruto nascido da sua criação e invenção, aquilo que faz
com que este seja mais do que apenas um macaco esperto. A xerife bateu à porta um par
de vezes, nada, voltou a bater com maior intensidade, mas porta continuava fechada.
Berrou impaciente, ordenando pela autoridade que lhe havia sido consentida pelo
governo da metrópole que a deixassem entrar naquele edifício, propriedade legítima do
estado central, mas a sua voz era abafada por muitas outras, numa sinfonia abstracta e
disforme. Vi-a então recuar três passos, apontou e com um par de disparos certeiros
destruiu a fechadura ferruginosa fazendo com que finalmente os nossos olhos pudessem
vaguear pelo espectáculo inacreditável que havia sido montado, ali naquele local que se
dizia ser uma casa de paz e fraternidade. No altar, uma cruz gigante, não mais do que
dois barrotes de madeira meio podres dispostos perpendicularmente entre si, havia sido
erguida, nesta, na posição de Cristo, o padre desprovido de qualquer peça de roupa e
com vestígios enterrados na pele e na carne de que havia sido brutalmente agredido,
havia sido pregado pelas mãos. No seu corpo mil rios de sangue nasciam da carne
aberta e neste corriam sinuosamente de cima para baixo até se fundirem numa poça
rubra que ia crescendo a cada momento na base da grosseira cruz. Inicialmente pensei
que tivesse enlouquecido, que o padre não fora capaz de impedir que as suas faculdades

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racionais se escapassem e se tivesse sacrificado por vontade própria, com o intuito de


que Ele enfim deixasse de brincar com o sol e a lua. Não, estava errado. E percebi-o no
momento em que vejo o dono do minimercado, aquele que se destacava da multidão
tumultuosa, apontando-me o olhar, indiciando-me como cúmplice de uma blasfémia
horrenda. Sim, eu havia cometido uma blasfémia horrenda, e nenhum castigo seria
suficiente para me castigar, eu próprio devia estar naquela cruz, e nela permanecer para
a restante eternidade, contudo não era disto que era acusado. Tudo se devia afinal à
conversa que havia tido com o padre no dia anterior, aquela em que me anunciou a
vontade de atrair investidores que patrocinassem actividades da igreja e que eu apoiei, a
conversa que havia sido ouvida pelo dono do minimercado e pelo seu bando, e que
coincidência das coincidências coincidiu com o momento em que o sol passou a estar
onde não devia. Era a nós que toda a população da ilha, incentivada é claro por aquele
homem sebento que manipulava todos como um mestre de fantoches, atribuía a culpa
daquele fenómeno. Tínhamos enfim provocado a ira de Deus nosso senhor diziam, que
por nossa causa, forasteiros sujos com a perversidade da metrópole, sujos com as suas
ideias liberais e modernas, toda a ilha estava sendo punida com o pior dos castigos, o
inferno infinito. Sim, para eles, todos estávamos já no inferno, e a única forma de a este
escaparem, era eliminarem os hereges que corrompiam os valorosos dogmas medievais
da igreja, retirar do cesto das laranjas as que estavam podres, ou as que ainda não
estavam. A xerife estava mais incrédula do que eu, desconhecia os factos que
despoletaram aquele motim popular contra o seu pároco e na verdade pouco lhe
interessava, a sua missão era manter a ordem pública e apenas com este objectivo na sua
visão, disparou na direcção do tecto, o que fez com que o silêncio ganhasse vantagem e
que um bom bocado de estuque branco caísse sobre a minha cabeça. Quem é o
responsável por isso?, perguntou imperativamente. O responsável estava ali, o ilustre
seguidor do santo ofício, o cobarde que esperou o momento em que eu, a xerife e o
médico abandonamos temporariamente a igreja para ir à casa do pescador que tinha o
telégrafo, para espalhar as suas acusações sem sentido, propagar por uma crença
obsoleta, uma cegueira fanática, que espelhava exactamente o contrário daquilo que
diziam acreditar, que tão fervorosamente defendiam. Defendiam com as armas do diabo
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

os que a seu ver eram os seus servos. A xerife não demorou a percebeu quem era o
verdadeiro responsável pelo tumulto de cariz aberrante, e sem qualquer tipo de
hesitação apontou e disparou na direcção da garganta do dono do minimercado que sem
reacção voou desamparado. Confesso que senti algum prazer ao ver aquele verme caído
no chão, ainda vivo, com o sangue ejaculando, sofrendo, incapaz de dizer o que quer
que seja, um prazer mórbido do qual não me envergonho, e naquele momento senti que
enfim a xerife tivera uma atitude que, embora pouco tivesse de racional e normativo, era
a necessária e a devida. Pensei que a morte daquela criatura demovesse a restante
multidão. Que ingénuo fui, matamos o general, mas não matamos o exército, e agora
pareciam apenas querer vinga-lo. Notei no olhar de cada um, ódio, irracionalidade, raiva
incontrolada. Todos, homens, mulheres, velhos, crianças, os meus alunos, aqueles que
ensinei a ler e resgatei à ignorância. Para todos éramos nós a personificação de belzebu,
aqueles que tinham que ser destruídos custasse o que custasse. Preferia que ali
estivessem todas as criaturas sobrenaturais que já haviam habitado os meus pesadelos
em vez daquele magote de fundamentalistas insanos. Avançaram na nossa direcção,
cercaram-nos, não tínhamos qualquer hipótese de fuga. Procurei segurança no corpo da
xerife, perguntei-lhe tremendo quando balas ainda restavam na pistola que erguia em
todas as direcções. A resposta não me podia ter deixado mais apreensivo, Nenhuma. Ali
estávamos nós, dois seres indefesos, apenas munidos de uma pistola sem balas, à mercê
de um bando de monstros reais. A xerife bem continuava acenando-lhes o cano da
pistola, ameaçando-os que dispararia se alguém se movesse um milímetro que fosse. De
nada servia, estavam cegos, bêbados, pouco se importavam com a pistola, e
provavelmente em pouco tempo perceberam que esta já não tinha qualquer projéctil no
seu interior, que tudo não era mais do que bluff de qualidade diminuta. Preparei-me para
o fim, mas enquanto isto imaginei que algo fazia com que aquela torrente que se
preparava para nos matar cessasse, qualquer coisa como se vê nos filmes quando o herói
está preste a morrer, perdido pelas circunstâncias do enredo, mas no último segundo
algo surge que o salva, vira o tabuleiro de jogo ao contrário, permitindo que recupere e
no final vença o vilão e fique com a miúda gira. Mas quem quer que escreveu esta
história não quis repetir o cliché, e em pouco senti-me engolido pela multidão. Não me
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recordo com pormenor de todos os instantes, aliás na realidade pouco recordo, lembro
de sentir um primeiro soco na face, depois vários na região do estômago, lembro de já
no chão ver uma criança, um rapaz gordo e bexigoso pontapear-me em cheio no nariz.
Senti ira em todas as agressões que sofri, em todos os socos, pontapés, e pancadas
consumadas com todo o tipo de objectos que avassalaram o meu corpo e me abriram a
carne. Não queriam apenas matar-me, não era em mim que realmente batiam, era aquilo
que eu representava e que os aterrorizava mais do que o dia no lugar da noite, a
modernidade, a evolução, a mudança.

Em certo momento que não sei precisar, perdi enfim os sentidos.

VIII

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

Acordei com uma brisa gélida gratificante a acariciar-me a face magoada. Sentia
dores em todos os pontos do meu corpo e qualquer movimento que tentasse fazer, por
mais ligeiro que fosse, era deveras penoso. Quando consegui finalmente abrir os olhos,
deitado de costas, deparei-me com o velho tecto da igreja, alvo e sujo. Demorei algum
tempo a lembrar o que tinha acontecido, a cruzar os dados do tempo e do espaço, e
quando enfim tomei noção do que acontecera senti-me devastado pela surpresa de ainda
estar vivo. Devo dizer que foi naquele momento, avassalado pelas intensas dores que
me percorriam o corpo, que mais me senti vivo desde o início da minha existência.
Senti-me enfim verdadeiramente humano, real, ciente da minha fragilidade, como se o
ponto em que a morte toca a vida fosse o verdadeiro ponto em que a existência humana
faz realmente sentido, ou mesmo o único ponto em que tal se verifica. Ao meu lado
sentia uma presença, ténue, encurralada entre o instinto de viver e o desejo de que a
morte lhe lavasse o sofrimento. Parecia encontrar-se num estado mais lastimoso que o
meu, todas as suas roupas estavam esfarrapadas, um sem número de contusões
despoletavam entre as suas curvas descobertas, o sangue espesso escorria-lhe livremente
ao ritmo da débil pulsação. Tentei fazer com que a xerife regressasse a um estado
consciente, aplicando-lhe leves safanões que foram crescendo de intensidade. Tentei
depois erguer-me mas sentia a carne a rasgar a cada movimento, a pele ardia-me como
se estivesse deitado sobre um manto de carvão incandescente. Enfim oiço um gemido
solto, uma nota vocal sumida quase desprendida de intensidade que me arrepiou, a
xerife vivia ou pelo menos lutava para tal, o que dado as circunstâncias era notável.
Consegui ver os seus olhos desflorarem, depois fechou-os novamente, até que por fim
reuniu forças suficientes para os manter definitivamente abertos. Tentava falar, mas
apenas conseguia emitir sussurros mudos indecifráveis. Arrastei-me na sua direcção até
que os nossos corpos se tocaram, aproximei a boca de uma das suas orelhas e murmurei
qualquer coisa, qualquer coisa que lhe tomasse a atenção e a mantivesse alerta. Ela
respondeu com algumas sílabas, desconexas e abandonadas, mas suficientes para
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perceber que recuperava progressivamente algum tipo de consciência. Fiz-lhe depois


algumas perguntas elementares, sobre o seu nome, a sua idade, o local onde estava, às
quais conseguiu responder depois de várias tentativas. Perguntei-lhe se conseguia
mexer-se, e sentindo um esforço sobre-humano vi-a arrastar um dos braços e
timidamente tremelear algumas falanges. Eu próprio já conseguia movimentar vários
músculos sem me sentir como uma cobaia numa máquina de tortura chinesa, e em
pouco fui capaz de me colocar numa posição semi-sentada que me permitiu finalmente
que os meus olhos deambulassem livremente naquele espaço em que me encontrava.
Não escondi o meu espanto ao verificar, que nos encontrávamos sozinhos, que para
além de mim e da xerife apenas o padre continuava agrilhoado na obscena cruz de
madeira. Todos os outros, toda a população da ilha que antes ali se condensava numa
nuvem de tempestade, já haviam abandonado a igreja. Onde estariam, perguntei-me, o
que acontecera para que abandonassem a protecção daquele tecto, porque nos deixaram
sozinhos, voltariam? Naquele momento eram perguntas para as quais não tinha resposta,
e nas quais não poderia desperdiçar energia. Inspirei fundo e evoquei todas as minhas
forças, quando expirei larguei um grito de agonia enquanto finalmente conseguia
evoluir para a posição erecta. As minhas pernas tremiam com uma frequência e
amplitude abismal e receei não conseguir manter o equilíbrio, era como se andasse
sobre esferas de ferro, um malabarismo circense contínuo que tentava superar ao longo
do corredor central da igreja, entre as duas fileiras de bancos e que me guiava na
direcção do padre moribundo. Não conseguia perceber se ainda vivia ou se o seu
sofrimento já finalmente acabara, se fosse este o caso, invejava-o. Mas não, estava vivo,
notei-o quando estava já a cerca de um par de metros da cruz, nascida das mãos
daqueles que diziam servir a maior das divindades, a única, mais poderosa que todos os
reis juntos, capaz de os esmagar com um único suspiro. Os seus olhos tremiam, a sua
respiração era escassa e se não o resgatasse rapidamente acabaria por perder o pouco
sangue que lhe restava, já que grande parte do que naturalmente possuía formava agora
um lago que me lavava os pés enquanto cambaleando me aproximava da cruz. Quando
já tentava desatar as grossas cordas que lhe prendiam os tornozelos à madeira, distingui-
lhe um ténue sorriso nos lábios molhados de vermelho, que vi mexer quando me disse o
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

seguinte em tom seco e arrastado, Senhor professor, deixe-me, vá-se embora, salve-se,
deixe-me morrer como Cristo morreu. Não o ouvi, continuei a minha operação e
contrapus, Tretas, Cristo morreu em cima de uma prostituta. Vi o seu sorriso abrir-se
mais, o que lhe terá inclusive aumentando as dores que sentia, Não blasfeme senhor
professor, olhe que está na casa de deus, Ah sim, veja o que os seus seguidores lhe
fizeram. Já tinha sido capaz de lhe libertar os tornozelos, mas deparava-me agora com a
problemática dos pregos enterrados nas palmas da mão, rompendo pele e carne de uma
ponta a outra. Como poderia retira-los sozinho, sem ferramentas ou qualquer objecto
auxiliar? Eis que vejo, com um espanto agradável a xerife já de pé, caminhando curvada
na nossa direcção, apresentando uma melhoria notável da sua condição física, uma
melhoria que eu acompanhava. As dores pareciam inexplicavelmente desaparecer a cada
instante, e as minhas forças voltavam progressivamente a níveis satisfatórios. Ela
carregava qualquer coisa numa das mãos que os meus olhos ainda enevoados só
assimilaram quando já junto a mim, a estendeu como um presente. Ah, uma tesoura de
ferreiro, um dos muitos instrumentos que a população tinha improvisado como arma nos
nossos corpos e que haviam ficado esquecidos por ali, juntamente com martelos,
vassouras, e até colheres de pau. Com perícia podia utiliza-la para livrar as mãos do
padre dos pregos que lhe aferrolhavam a carne crua. Não foi fácil. Precisei de várias
tentativas, e sempre que enfim conseguia que um dos pregos deslizasse para fora das
entranhas do padre, ele cuspia gritos de suplício que ecoavam por toda a igreja, de tal
forma que cheguei a recear que a sua estrutura não resistisse, e que esta desabasse sobre
as nossas moribundas existências. Mas finalmente, com a preciosa ajuda da xerife e com
um esforço final conseguimos libertar o pobre padre daquela construção diabólica e
estende-lo no chão da igreja, sobre o seu próprio sangue. Estava atónito com o estado do
seu corpo, como podia alguém sobreviver a tamanhas chagas, donde vinha a força capaz
de combater as brutais martirizações que lhe trespassava a presença carnal e lhe
revelava os órgãos? Seria divino? …ou antes pelo contrário. Só depois o soube…

Era tempo de tomar uma decisão. Continuávamos ali à mercê da hipótese que a
lunática multidão regressasse para acabar o que tinha começado e que por qualquer

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razão não havia sido capaz de terminar, incompetência talvez, ou arriscávamos


abandonar a igreja e procurávamos refúgio noutro local, com todas as suas inerências
associadas. Não pensamos muito antes de nos decidirmos pela segunda hipótese. Aquele
edifício sufocava-nos, e apesar das nossas limitações físicas, dramáticas, temíamos
menos o desamparo e a imprevisibilidade das ruas. O padre era o único que ainda não se
conseguia locomover pelos seus próprios meios, pelo que tivemos que criar um sistema
em que ele se apoiava nos nossos ombros e a ritmo de tartaruga avançámos em direcção
à porta semi-fechada, semi-aberta, da igreja. Antes descobrimos três mantas rudes com
aspecto de terem mais de cem anos, deixadas ali ao abandono pelas pessoas que usaram
a igreja como abrigo nas últimas horas. Emanavam um odor pesado, agoniante, mas ao
menos forneciam-nos uma protecção, uma segunda pele quando da primeira pouco
sobrava. Quando poucos passos faltavam para atingir a saída lembrei-me de olhar o
relógio, queria saber que horas eram, quanto tempo havia estado inconsciente, mas neste
já nenhum ponteiro restava. Daquele ângulo não conseguia ainda ver o exterior da
igreja, e só quando com um movimento constrangido de pé abri o que faltava da porta,
vi. Vi-a, magnífica, gigante, maior do que nunca, resplandecente, num contraste
magnificente com o negro céu. Ela, a lua.

IX
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

Confesso que grande parte das minhas esperanças de voltar a sentir a noite, a
doce noite, envolvendo a minha presença já se tinha desvanecido, e foi com uma
satisfação inexprimível que a recebi de volta nos meus braços. Naquele momento
esqueci as dores, as feridas inflamadas, tudo. Senti-me renascer, uma fénix negra, como
se o luar funcionasse como um fluxo de energia que me alimentava e revitalizava, desde
o âmago até às extremidades dos membros. Senti até que tinha deixado de seu eu
mesmo, igual ao que era e ao que sempre fui, em vez, havia sido substituído por um
novo eu, uma versão melhorada…uma evolução, sim, sentia-me a evolução do simples
professor primário com ideias liberais. Agora era muito mais do que isso, o quê
exactamente não sabia, não importava sequer.

Algo idêntico passava-se com a xerife e o padre. As suas expressões faciais


pareciam rejuvenescidas, no seu olhar já se notava brilho e intensidade, o sofrimento
que os afogava definhava. Um milagre, pensei, um milagre causado por milhões de
partículas cósmicas que nos banhavam e nos impeliam a continuar o nosso caminho.
Ainda cambaleando começamos a descer a escadaria da igreja, procurando as sombras,
atentos a qualquer movimentação estranha. As ruas pareciam abandonadas, seria tarde e
as pessoas voltaram para o isolamento das suas casas. Não queríamos correr riscos,
decidimos manter-nos afastados de qualquer olhar, procurar talvez uma casa desabitada
que nos proporcionasse um esconderijo, provisório pelo menos. Ouvimos então passos,
vinham na nossa direcção. Precipitamo-nos para a escuridão e encolhemo-nos contra a
parede exterior da igreja, em silêncio. Um velho atravessava o adro da igreja,
cambaleando, visivelmente embriagado, incapaz de detectar a nossa presença. Contudo
notei-lhe qualquer coisa estranha, as suas mãos pareciam enrugadas, demasiado
enrugadas, mesmo para um velho…tinham uma textura que não parecia natural. Não lhe
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dei também muita importância. Apesar do varonil luar, as condições de visibilidade


estavam longe de serem perfeitas, e tudo, pensei, não deveria passar de uma elementar
ilusão de óptica.

O caminho estava finalmente livre, mas não sabíamos ao certo para onde ir.
Contornando a parede dobramos a esquina para uma rua íngreme, haviam ali algumas
casas abandonadas, mas todas pareciam blindadas com tábuas e pregos, tornando
impossível penetrá-las. Vinda de onde não sei, surge uma ideia, não digo que brilhante,
mas uma ideia, a floresta que cobria toda a região norte da ilha, sim a floresta negra.
Seguindo a rua onde nos encontrávamos e depois seguindo outra que nesta nascia em
pouco lá chegaríamos, e enfim estaríamos protegidos…bom, pelo menos dos habitantes
da ilha, já que dificilmente alguém se lembraria de lá nos procurar, e mesmo que se
lembrassem, provavelmente teriam demasiado medo para efectivarem a busca. A ideia
não era agradável, li medo nas feições do padre e da xerife quando a sugeri, eu próprio
tremia lembrando todas as histórias que já tinha ouvido, mas depois de tudo o que tinha
passado, não seriam estas que me derrotariam. Estava decidido, seguiríamos para norte,
depois logo se veria.

Caminhávamos apoiados uns nos outros, sempre pelas sombras que os edifícios
nos ofereciam, lentamente, com cautela, monitorizávamos em conjunto todos os pontos
do horizonte e sempre que ouvíamos algum som, qualquer coisa ressoando na
escuridão, encolhíamo-nos o máximo que conseguíamos, fundindo os nosso corpos
fustigados, e assim permanecíamos até sentirmos o perigo desvanecer. Só quando o vi
lembrei. Antes de alcançar a floresta seria necessário atravessar um denso e alto
milheiral, uma espécie de muro permeável que separava a mata da povoação. Já víamos
as vagens de milho dançando ao ritmo da brisa do luar, pouco faltava para lá chegarmos,
era só descer aquela rua, cinquenta metros, cem no máximo. Contudo ali a maioria das
casas eram habitadas, e de algumas, focos de luz escapavam das suas janelas, o que, não
sendo preciso ser nenhum génio para o concluir, significava a existência no seu interior
de pessoas acordadas, e pessoas acordadas significava por sua vez, de novo sem se
precisar de ter um elevado coeficiente de inteligência para o saber, que o risco de
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

alguém descortinar a nossa presença era multiplicado por cem ou por mil. Deixamos de
caminhar, rastejávamos, camuflando as nossas silhuetas nas trevas, esquivando-nos a
olhares. Parecíamos felinos, coxos, abordando a presa, apenas com a diferença de que
neste caso a presa éramos nós e não sabíamos ao certo se o predador desempenhava o
seu papel, ou mesmo se havia predador. Eu seguia na frente, atrás vinha o padre, na
cauda da fileira desfeada a xerife. Quando apenas faltava passar por uma casa para
atingir o nosso destino, oiço uma voz que sabia conhecer, que me faz interromper
bruscamente a locomoção fazendo com que o padre chocasse com a região baixa do
meu corpo. A voz vinha do interior da casa, era uma criança, um dos meus alunos, mas
naquele momento não conseguia precisar mais do que isto. Fiz sinal para trás com o
intuito de que o padre e a xerife aguardassem em silêncio. Tinha esperança que a
situação não evoluísse mais, que a nossa presença continuasse incólume. A voz
continuava no interior da casa, e depois outra a esta se sobrepôs, uma voz de homem,
grossa e autoritária, uma voz que reconheci de imediato mas que estava deslocada da
realidade em ainda julgava viver. Só naquele momento reconheci a casa que cruzava,
uma casa grande, uma das maiores da ilha, uma das poucas que apresentava ligeiros
sinais exteriores de ostentação, a casa do dono do minimercado. Sim, era ali que ele
vivia, e era a sua voz que inacreditavelmente ouvia. Não é possível, está morto, repeti
para mim meio atordoado, como podia ele ter sobrevivido a uma bala trespassando-lhe a
garganta, ninguém mo tinha dito, eu próprio havia visto, o seu corpo desfalecido, o
sangue arterial esguichando como num repuxo. Hoje tudo é claro…

Oiço passos aproximando-se. Encolho-me tremendo. Vejo a porta a abrir e uma


sombra paralisa na minha frente, era a criança que ouvia e que só então a minha
memória associou, um rapaz gordo e bexigoso, o mesmo que lembrava pontapear-me no
nariz durante a chacina da igreja, filho do dono do minimercado. Quem está aí?,
perguntou em tom curioso notando presença humana dissoluta nas sombras. Não
respondi, percorri-lhe a silhueta balofa que recortava o horizonte, tentando observar-lhe
as feições ocultadas pelo jogo de luzes que se formava. Depois oiço o dono do
minimercado, altivo, aproximando-se, Com quem é que estás a falar, pirralho? Foi

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então que uma rajada se luar atinge a face do rapaz, iluminando-lhe em fim a
fisionomia. Não resisti. Soltei das entranhas um grito horrorizado e sem pensar, apenas
obedecendo ao mais primário dos instintos, ergui-me e com uma energia que não
consigo explicar onde a consegui, principiei uma corrida louca, aos trambolhões, rua
abaixo, em direcção ao milheiral. Não me importei com os meus companheiros, deixei-
os à mercê da sua sorte, apenas respondi à obsessão de sair dali, esquecer o que tinha
visto, correr, correr, correr, correr.

Exausto e ofegante, só parei quando as minhas energias esmoreceram por


completo, rodeado já pela alta vegetação, pelas longas espigas de milho que me
engoliam na sua imensidão. Deitado de costas na terra húmida tentava controlar a minha
respiração, o galopante batimento do meu coração que ameaçava soltar-se da enclausura
do meu peito, mas acima de tudo, intentava manter a escassa sanidade psicológica que
ainda me restava, não ceder aos impulsos que impiedosamente me lançavam na loucura.
Vozes, imagens, fragmentos de tudo e de nada, dançavam na minha mente, rodavam
entre si, misturando-se, desmembrando-se a um ritmo inebriante. Ruídos, cores,
texturas, bloqueavam-me o raciocínio, prendendo-me os músculos e oprimindo-me a
visão numa única imagem, uma imagem entranhada que me martirizava, que me
transportara para o pânico e que não consegui esquecer desde então. A imagem da face
daquele miúdo gordo e bexigoso, completamente carbonizada.

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

Não sei quanto tempo passou até que o sol voltou a exibir-se, primeiro,
timidamente, depois em todo o seu esplendor magnânime. Tinha-me mantido imóvel
desde então, tentando desligar o meu cérebro, apagar todas as memórias recentes que
me apoquentavam. Desejava que tudo não tivesse sido mais do que um vil pesadelo,
daqueles que nos fazem acordar afogados no próprio suor, aliviados, pensando com ou
sem razão que aquilo que julgávamos real, não era mais do que o fruto do nosso
inconsciente, e que poderíamos prosseguir normalmente com as nossas existências,
entrando de novo na rotina diária perdida algures no binómio amor ódio, odiando-a
enquanto dura, amando-a saudosamente quando enfim cessa.

O fenómeno do sol ladrão que roubara a noite, naquele momento era o que
menos que importava, tanto, que nem sequer assinalei mentalmente o facto de o ciclo
diário daquele astro ter aparentemente voltado ao normal. Muitos outros acontecimentos
marcavam-me mais profundamente a pele, literalmente. A morte da menina
desconhecida, arrastada pelo fluxo da minha má sina, condenada à morte pela
temeridade do meu dedo, os procedimentos macabros, para não usar outra palavras
menos conforme, para mascarar vergonhosamente este acto irreflectido, o homicídio do
velho médico, indefeso algures entre a revolta irracional de uma civilização arcaica e a
obsessão de uma xerife em lavar das suas mãos o fedor do sangue incriminatório, a
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crucificação do padre pela sua própria paróquia, um pastor sacrificado pelas suas
ovelhas, o meu espancamento até ao desfalecimento só porque acordara ajudar um
padre a tentar revitalizar uma igreja condenada à deserção, um homem rude e
manipulador que vi morrer a poucos metros dos meus olhos mas cuja voz, sem qualquer
dúvidas que era a sua voz, voltou do inferno para me atormentar, e por último, o tal
rapaz, meu aluno na escola primária, filho do dono do minimercado, gordo e bexigoso,
o mesmo que vi agredir-me violentamente na igreja e que poucas horas depois, voltava
a ver transformado numa massa disforme e amorfa de feições destruídas, como se
tivesse visitado o inferno por um segundo e este lhe tivesse ficado fotografado para
sempre na pele outrora alva e polida. Não será portando de estranhar que o término da
noite, ao mesmo tempo que um novo dia raiava, finalmente, não tivesse sido
acompanhado de qualquer tipo de sensação ou de sentimento, por muito ténue que
fosse. Aquilo era normal, com o anormal, apenas com este, me teria que preocupar.

Desconhecia por completo o paradeiro dos dois que me acompanhavam, tinha-os


covardemente abandonado, e supunha que tivessem sido capturados, devido ao seu
estado físico mais débil, o mais certo, pensava, era estarem enfim mortos. Estava por
minha conta, e comigo apenas podia contar. Continuava algures no meio do milheiral,
num qualquer ponto da sua vasta imensidão, receando que homens o varressem naquele
momento procurando-me, sedentos do meu sangue, obcecados com a ideia de eu lhes
poder escapar vivo. Se realmente queria permanecer vivo, restava-me manter fiel ao
plano original e penetrar através da vegetação virgem da floresta, em busca de algum
tipo de resguardo. É claro que uma grande diferença distinguia-se entre o plano original
e o plano deste derivado e que face às circunstâncias teria de ser posto em prática, e esta
assentava simplesmente no facto de que agora teria que enveredar pela obscura e
ameaçadora floresta apenas tendo como companhia eu mesmo, enquanto na primeira
vez que a ideia me tinha ocorrido, teria como companhia duas pessoas, embora
moribundas, o que parecendo que não é uma grande diferença, é tão-somente a
diferença entre lançar-me nu na jaula dos leões ou ter um ponto de fuga para ancorar a
minha perspectiva.

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

Depois de me aferir da minha condição física, razoável, dentro do possível, as


dores continuavam, as feridas mantinham-se abertas, o sangue tardava a estancar, nada
que me impedisse de andar sem qualquer ajuda, decidi pôr-me a caminho. Não sabia ao
certo quanto do milheiral teria ainda de percorrer antes de chegar à floresta, não deverá
ser muito, pensei, e assim foi. Cerca de dez, quinze minutos, andando de forma morosa
e prudente, foram suficientes para que deixasse para trás as longas vagens de milho
ordenadamente dispostas e surgisse de frente para mim o caos negro dos ramos e
troncos moribundos. Senti um fio de ar, gélido e húmido, percorrendo-me em contraste
com o calor abrasador que já se fazia sentir e que me aumentava a transpiração ao andar.
Se eu antes tremia de medo só de ouvir falar na dita floresta, imagine-se o meu estado
depois de tudo o que havia acontecido nas últimas horas, todo um rol de fenómenos
fantásticos e bizarros que me esmagavam a lógica e a imaginação como um rolo
compressor. Respirei fundo, tentei reunir toda a minha coragem disponível bem como
toda aquela que sabia não possuir, e ao mesmo tempo limpei a minha mente de todas as
histórias assombradas que já tinha ouvido sobre aquele local, de todos os ruídos
nebulosos que de vez em vez ouvia durante a noite, vindos precisamente donde me
preparava para entrar.

Não era fácil, não só pela componente psicológica, mas também pela
componente física. A floresta era extremamente fechada, os ramos e os troncos das
árvores retorciam-se entre si formando uma complexa teia à primeira vista
impenetrável. Desejei mais do que tudo, ter ali uma catana ou algo parecido, qualquer
coisa com que pudesse ceifar as ramagens rebeldes que me obrigavam a um esforço
extremo de contorcionismo, que me rasgavam a pele quando nelas roçava. Cheguei
mesmo a ter que me colocar de gatas, de sentir as palmas das mãos tocando a terra
recheada de vermes de mil pernas, para conseguir atravessar mais uma porta daquele
labirinto de galhos velhos e folhas multiformes. Sentia insectos viscosos percorrendo-
me a espinha, trepando-me os pêlos das pernas em direcção à virilha. Alguns mordiam-
me, picadas agudas que me fazia cuspir uma célere expressão de dor, um ou outro nome
pejorativo. Enfim, a partir de certo ponto a vegetação perdeu intensidade. As árvores

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tornaram-se mais altas e espaçadas, as suas armações mais ordenadas, o suficiente para
que pudesse tomar uma posição completamente erecta sem ser causticado pelas
pernadas afiladas e irregulares. Não sabia que rumo exacto tomava, julgava dirigir-me
para norte, na direcção oposta à povoação, mas os constantes desvios causados pelos
obstáculos com que me deparava, podiam ter perfeitamente alterado esta intenção, e
receava estar sem o saber, caminhando de volta ao ponto de partida.

Ao atingir um certo ponto temporal que julguei aleatório, a minha mente começa
a vacilar, ela que tinha apresentado um comportamento irrepreensível desde que
penetrara naquele mato agreste, mas que agora conduzia todos os meus medos e
apreensões. De um momento para o outro, monstros medonhos, criaturas malignas,
espectros sinistros, todos os seres que povoavam a minha imaginação ganharam vida
num remoinho abismal que me sugava para o seu interior numa tortura tétrica, indefeso
sem hipótese de luta. Os ramos retorcidos tornaram-se animados e dançavam num
bailado macabro e terrificador. As folhas das árvores soltaram-se e formaram um
enxame que me envolvia e feria fatalmente a consciência. Senti-me desfalecer, não por
cansaço nem tão pouco por recaída das lesões que me povoavam o corpo, apenas sei que
experimentei naquele espaço de tempo sensações que jamais havia sentido, e que tenho
dificuldade em descrever com as palavras que conheço, outras precisarei de inventar.
Foi como se toda a realidade que conhecia, que julgava conhecer, tivesse sido aspirada e
eu transportado para uma nova existência, uma existência que os meus sentidos não
eram capazes de detectar, mas que ao mesmo tempo os tornavam mais sensíveis que
nunca. Uma existência onde as leis da física eram desprovidas de qualquer poder e as
noções de tempo, espaço e matéria eram meras palavras. Senti-me viajar por todos os
pontos de todos os universos, e em cada um destes experimentei a evolução dos tempos
desde o inicio de tudo até ao final que chegará. Senti ser preenchido por todos os
átomos, pelo éter celestial, senti-me um ser gigante explodindo num sem número de
partículas que se reorganizavam em formas estapafúrdias. Fui todas as pessoas que
escolhi não ser, fui todos aqueles que não o foram por minha causa. Fui fotão, nota
solta, odor característico, gota de água pingando a pele, sabor ameno. Micróbio, amiba,

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

fragmento de sonho, verme, insecto voador, desejo incontido, ave rara, mamute peludo,
dor ardente, criatura mitológica, unicórnio de oiro, deus, fui tudo isto, um de cada vez e
todos ao mesmo tempo. Quando regressei, quando regressei àquilo que chamava
realidade, a minha realidade, a floresta tinha desaparecido.

XI

Achava-me dentro de uma cabana. Uma cabana de traços rudimentares


constituída por uma única divisão de dimensões modestas, paredes despidas, quase nua
de objectos. Uma mesa quadrada sob dois copos e uma garrafa quase vazia, duas
cadeiras tortas, dois colchões de palha a um canto, um maior, outro bastante mais
pequeno, uma lareira de tijolos onde vivia uma chama insubmissa que me chamou o
olhar e que me fez perceber que efectivamente o meu corpo tremia de frio, sim,
inexplicavelmente sentia-me no interior de uma arca refrigeradora. Como tal era
possível, perguntei-me, se ainda há poucas horas escorriam rios de suor de todos os
meus poros, e agora os meus ossos congelavam ameaçando quebrar a qualquer
momento. Não sentia contudo qualquer tipo de curiosidade ou preocupação acerca dos
modos e motivos que me transportaram para aquele local. Aproximei-me da lareira
abandonada e ali me deixei ficar, uma estátua, evitando toda e qualquer actividade
mental.

Subitamente deixei de estar sozinho. Junto a mim a xerife e o padre surgiram,


vindos de onde não sei, sei que ali ficamos os três, com as palmas das mãos encarando a
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labareda e nela procurando algo mais do que nós podia fornecer. Não falamos, evitamos
todo o tipo de contacto visual, o fogo era o único ponto comum que possuíamos, e era
apenas através deste que fluíam e se encontravam os nossos espíritos. Entediado afastei-
me, procurei uma janela de vidros grossos e toscos que pouco deixava ver, apenas
ramos, folhas, árvores, mas o suficiente para perceber que aquela cabana fazia parte da
própria floresta, fundindo-se com esta numa harmonia perfeita, resultado impossível de
obter caso fosse de construção humana. Duas pessoas viveriam ali, deduzi, pelo menos
viveram, a tempo inteiro ou apenas temporariamente não sabia, as suas identidades
muito menos, porquê o faziam, ali, isolados, ainda mais isolados do resto do mundo, um
gigante e luminoso ponto de interrogação. Aproximei-me da mesa e saquei a rolha da
garrafa ali repousada, cheirei o líquido transparente mas não lhe senti nenhum odor,
levei o gargalo à boca e nenhum sabor se mostrou na sua consistência seca, quase
gasosa. O frio estripador obrigou-me a voltar para junto da lareira, mas nesta o fogo
desvanecia numa demanda moribunda. A causa era óbvia, a lenha, a madeira pútrida que
o alimentava, o seu sustento sacrificado, transformava-se num castelo de cinzas fugazes,
cedendo sobre si próprio a cada segundo. Necessitávamos de algo que enganasse a fome
destruidora das labaredas, algo que não deixasse morrer a única fonte de calor que ainda
prendia a nossa existência, mas entre aquelas quatro paredes pouco se vislumbrava que
pudesse ser improvisado como combustível. Podíamos recorrer à mesa e às cadeiras,
afinal não eram mais do que madeira projectada, tão volátil como qualquer outra, ou
muito simplesmente abrir a porta da cabana e arrancar alguns ramos de árvores que
estivessem mais à mão, contudo, outra solução surgiu, mais simples, pelo menos assim
nos pareceu no momento. Arrastamos os colchões para junto da lareira e evisceramo-los
buscando a palha seca que lhes moldavam a forma e lançando-a de imediato a punho
cheio para a lapeira. Emanavam, só depois reparei, um fedor agoniante que se entranhou
nas minhas mãos e actualmente, muitas vezes ainda dou por mim com o repulsivo
cheiro torturando-me o olfacto. A fénix renasceu, voltou com as cores quentes e vivas
que nos aconchegavam, mas não por muito tempo. Uma nuvem espessa de fumo negro
ganhou vida e com uma pujança formidável invadiu toda a cabana deixando o ar
irrespirável, atacando-me os olhos que em pouco deixaram de reconhecer traços, cores e
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

texturas. Tentei ainda remexer o fogo insubmisso, na esperança que o fumo cessasse,
mas os meus gestos, a minha intromissão não foi bem recebida e a fúria incontida
daquele ser que parecia vivo, com vontade própria, cresceu desenfreadamente lançando-
nos na cegueira negra, a segunda pior das cegueiras seguindo a cegueira branca. Tentava
controlar a respiração, limitar ao máximo o ar que aspirava, e aos encontrões procurei a
janela e a porta da cabana, esperançado que o fumo oprimido sumisse na liberdade da
atmosfera. Ouvia o tossir aflito, quase desesperado do padre, não o via, não conseguia
sequer seguir a direcção da sonância. Os olhos ardiam-me, gordas lágrimas escorriam-
me pela face pingando-me pelo queixo. Desorientado, com os sentidos bloqueados
rodava num círculo aberto em busca de um fio de Ariadne que me guiasse. Tinha ganho
a noção de que as dimensões da cabana tinham triplicado, decuplicado, já não lhe sentia
os limites, já nem sabia se alguma vez tinham existido. Um som possante germina no
âmago da floresta negra, do nada, um som que não consegui distinguir de imediato, mas
que vinha acompanhado de uma trepidação oscilante que ameaçava roubar-me o solo
por debaixo dos meus pés descalços. Eram passos, conclui posteriormente, sempre
passos, mas não quaisquer passos, eram passos de um gigante esmagando o seu
caminho e soltando ondas de impacto sísmicas que me atingiam e impeliam
violentamente contra o solo. Estavam mais próximos, cada vez mais próximos, e
enquanto isto o fumo que me envolvia num manto asfixiante, em fim adelgaçava. Já
conseguia ver as minhas próprias mãos, reconhecer retraidamente feições a um palmo
ou dois, havia recuperado parte da minha orientação extraviada, o bastante para
encontrar o áspero toque de uma das paredes da cabana e desta fazer um abrigo
descoberto. Os passos diminuíram de frequência, já ali estavam. Senti naquele momento
mais medo do sentiria caso juntasse todos os medos que me afligiram até então. Uma
mão pegou a minha, uma mão frágil de pele suave e fria, mas ao mesmo tempo capaz de
me reconfortar, era a xerife que se anexava ao meu corpo e neste procurava o mesmo
que eu procurava no dela. Depois a figura mortiça do padre juntou-se à nossa,
compelido por uma força maior que não podíamos sequer sonhar lutar, capaz de os
aniquilar só com um fragmento de pensamento. Estávamos os três, lado a lado,
alinhados, ainda cegos, costas roçando uma parede que julgava não conhecer, esperando
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o imprevisível. Os passos cessaram, já sentia a sua presença dissoluta nos meandros do


fumo negro. Estava ali, à nossa frente, mas um cortina negra, cerrada, impedia que os
nossos olhos o confrontassem e isso ainda nos terrificava mais. Pior que enfrentar a face
do medo é enfrenta-la sem a ver. Cerrei as pálpebras com força, lancei os meus olhos
propositadamente na escuridão. A mão da xerife que me agarrava aumentou subitamente
a pressão, prendendo-me a circulação e enterrando as suas unhas na minha carne
esponjosa. Deduzi que o fumo tinha enfim esvaecido o suficiente para que o desenho da
criatura ganhasse enfim relevo, e na minha imaginação criei-a. Um gigante, um
adamastor demente, olhos diabólicos, negros, sem expressão, orelhas aguçadas,
enormes, nariz espalmado, narinas cavadas, dentes incisivos, sabres de marfim, pele
rubra e prateada, pêlos de aço, formas tonificadas. Quando abri os olhos o fumo era
residual, e só então vi. Dificilmente me poderia ter enganado mais, reflectido na minha
visão estava alguém, um humanóide sem dúvidas, dimensões normais para um homem
adulto, pouco mais alto do que eu próprio, muito inferior ao que seria presumível tendo
em conta a veemência do seu andar, a aura poderosíssima que dele brotava e que nos
esmagava. Estava coberto com uma espécie de hábito de monge que arrastava no chão,
de cor que não conhecia, um capuz nos impedia ver a sua face. Percebi que o padre
queria dizer alguma coisa, talvez soltar algumas orações redentoras ou pedir desculpas à
criatura por lhe termos ocupado a propriedade e debelado os seus colchões de palha,
implorando misericórdia, que nos deixasse prolongar a nossa patética existência, mas a
saliva secou-lhe da boca e desta apenas foi capaz de excretar um ténue bafo morno. A
criatura começou-se a aproximar, lentamente, deslizando graciosamente como que
patinando num lago de gelo livre de atrito. Engoli em seco, as minhas pernas tremiam,
todo eu tremia. Parou quando estava a menos de um palmo de mim. A sua presença era
colossal, era um gigante preso num corpo de um homem, um monstro personificado.
Deixou-se ficar imóvel durante vários segundos, minutos, como se me analisasse,
penetrando-me a mente, revistando-me as ideias, revirando-me os sonhos. Depois
repetiu o mesmíssimo procedimento com a xerife, posteriormente com o padre, que
deixava fluir o medo que o dominava interiormente através de gemidos indecifráveis. Já
não respirava, encolhi-me o mais que consegui contra a parede marcando para sempre a
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

sua textura nas minhas costas, se tivesse força para tal, tinha-a atravessado.

Eis então que a criatura se deixa ver, com um golpe de extrema elegância afastou
o capuz e revelou a sua face, melhor, o sítio onde esta deveria estar. É verdade, a
criatura não tinha face, no lugar dos olhos, da boca, do nariz, das orelhas, tinha…nada.
Toda a sua cabeça era uma bola oval, lisa, alva, sem qualquer relevo ou pêlo e confesso
que naquele momento a surpresa e estupefacção dominaram o medo e o terror que
sentia. Chegava quase a ser uma figura cómica, estranha sem dúvida, mas longe do
conceito de assustador que a minha mente criara ao longo dos anos. Por alguns
segundos o temor que sentia diminuiu consideravelmente… mas num ápice voltou a
crescer, para níveis que nunca antes sentira e que poucas pessoas na história do mundo
se poderão gabar de algum dia terem experimentado, níveis tais, que estimularam que
um líquido quente, amarelado, fluísse ao sabor da gravidade ao longo das minhas
pernas. O provocador disto foi tão-somente o seguinte, a criatura num movimento de
extrema rapidez, lançou a sua mão na direcção da cabeça da xerife e de uma só vez
esmagou-a como quem esmaga um ovo, cobrindo-me de sangue, encéfalo e outros
tecidos e fluidos corporais. Senti o padre ao meu lado a desfalecer, caindo desamparado
no chão imundo, não resistindo ao choque que o devastou. Eu desejei ter feito o mesmo,
tentei roubar-me a consciência, matar-me impulsivamente, desligar-me para sempre,
adormecer. Não fui capaz, e amaldiçoei-me por me obrigar a assistir à minha própria
morte, àquela morte em particular. Fechei os olhos, rezando a algum deus que me
acudisse, qualquer um, não importava qual, verdadeiro ou ficcionado não interessava,
não pedia a salvação, apenas suplicava que fosse rápido, indolor.

O tempo passou, quanto não sei, mas bastante, um tempo torturador que me
destruía e consumia num sofrimento perverso. A raiva começou então a tomar conta de
mim, odiei a criatura por não acabar com tudo de uma vez, por perpetuar a tenaz aflição
que corrompia cada um dos meus átomos. Apeteceu-me atacar a criatura, lançar-lhe os
punhos, agredi-la, pontapeá-la, e quando me decidi finalmente a fazê-lo, abri os olhos
mas já não a encontrei no mesmo local. Afastada alguns pares de metros, junto à porta
aberta, a criatura de braço em riste e indicador esticado apontava na sua direcção,
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ordenando-me que saísse, que me afastasse daquela cabana e nunca mais me


aproximasse. Não hesitei, com uma força que considerei quase sobre humana agarrei o
padre exânime pelos sovacos e arrastei-o em direcção à porta. Quando passava pela
criatura, ela faz um último gesto e estica-me uma velha boneca de trapos. Não percebi a
razão, mas é claro que a aceitei, e até lhe agradeci com um fugido, Obrigado, senhor.

Já na exterior da cabana, engolidos pela vegetação da floresta negra, consegui


esticar o corpo do padre sobre as minhas costas e assim caminhei, um pé de cada vez,
por metros informes. Estava apenas dominado pelo instinto básico de sobrevivência e de
coadjuvação com outro da minha espécie, nem sequer reparei se era dia ou se era noite.
Depois de ter conseguido transpor um grosso tronco caído no chão que quase me fez
deixar cair o corpo ainda quente do padre, recebo uma brutal pancada no centro da face
que me fez perder os sentidos de imediato.

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

XII

Quando regressei à consciência era noite. Conseguia reconhecer o brilho das


estrelas presas no manto negro por entre as nesgas da flora que formava um toldo
permeável sobre os meus olhos. Não sei dizer se estava no exacto local onde tinha
perdido os sentidos, se havia sido movido durante o tempo em que estivera
inconsciente. Toda a floresta parecia-me igual, as mesmas árvores singulares, os
mesmos ramos irregulares, as mesmas folhas de mil tons. Uma cara que não conhecia
surgiu-me nos olhos, um homem de meia-idade, pouco mais velho que eu, farta barba
ruiva, ar bonacheirão. Falava comigo, mas o meu cérebro não era capaz de processar a

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sua voz, apenas ouvia sons despidos, palavras que não compreendia, juntos em frases
sem demarcação lógica. Tentei erguer-me mas uma dor aguda na cabeça fez-me mudar
de ideias e contentar com a posição deitada. Voltei a fechar os olhos e só os abri quando
reconheci a voz do padre, Senhor professor, temos que ir, disse entre a compreensão e
necessidade. Senti-me ser erguido, e apoiado nos ombros daqueles dois, comecei a ser
locomovido através da floresta profunda. A seu tempo voltei a um estado que se poderia
considerar normal, ou que eu pelo menos considero normal, um observador exterior
poderia opinar divergentemente já que a normalidade é função do sujeito, na realidade
nem sequer existe, nós é que a julgamos criar, interiormente, de forma intransmissível, o
que é normal para mim pode ser a maior das aberrações para outra pessoa, um padrão
conceptual oscilante que ninguém o direito de decretar, mesmo se todas as pessoas do
mundo menos uma o considerarem normal, a restante, a única que se encontra de costas
voltadas para as demais, é por si só suficiente para vetar a rotulagem imposta, e o que se
queria normal, deixa de o ser sem na realidade nunca o ter sido, e mesmo que esta
pessoas morra, a força da sua memória, o odor do seu cadáver recrutarão mil, e neste
momento apenas todas as pessoas do mundo menos mil o acharão normal, e depois
destas mil morrerem, apenas todas as pessoas do mundo menos um milhão o acharão
normal, e isto até que todas as pessoas do mundo menos uma, o considerem anormal.

Caminhava já sem auxílio, tropecei várias vezes até me conseguir habituar à


escassa visibilidade que a luz do luar conseguia oferecer-me. De vez em quando sentia
um galho a rasgar-me a pele e a golpear-me a carne como um arame ferroso. Não sabia
para onde ia, limitava-me a seguir o homem da farta barba ruiva cuja identidade
desconhecia mas que deduzira que fora o responsável pelo meu nocaute. Não lhe
guardava rancor, agiu por instinto ao ver um vulto delineado na escuridão que não devia
estar ali, e eu era a última pessoa com moral capaz de o julgar. Eu próprio fizera algo
tão semelhante e ao mesmo tempo com um resultado tão mais dramático. Por fim, as
árvores terminaram, a floresta negra desapareceu nas nossas costas, levantaram-se as
grades da prisão. Nos nossos olhos bailavam agora as ondas insurrectas do oceano, os
grãos de areia levados pela brisa rasteira. Inspirei fundo e senti o doce sabor da água

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Noite para sempre – Luiz César Baptista

salgada percorrendo-me as entranhas extenuadas. Uma comoção lenta humedeceu-me


os olhos dilatados quando o reflexo da lua reflectido no mar acenou para mim. Nunca
ali tinha estado, e tenho a certeza que a maioria dos habitantes da ilha também não, a
aresta norte daquele rochedo flutuante e também a mais esquecida. A minha visão
periférica reparou então numa estrutura alta e esguia, óbvia criação do homem, no seu
topo uma luz intensa girava sobre si mesma como um sol aprisionado que se tentava
soltar das garras que o constrangiam. Ah, um farol, sim, um farol cuja existência
desconhecia mas que ali estava, amparando o rumo de marinheiros, piratas, foragidos,
traficantes de droga. Percebi de imediato que o homem da farta barba ruiva não era mais
do que o faroleiro, o responsável único e soberano por aquela estrutura, mas a história
que ele tinha para me contar estava muito para além dos limites do expectável. Contou-
ma enquanto caminhávamos o que faltava para atingir o farol, pisando os grãos de areia
fria que se prendiam entre os dedos. Foi bastante conciso no discurso, sempre com voz
baça e amena, disse que depois daquele dia que na realidade foram dois juntos sem
noite a separá-los, depois de a noite ter enfim voltado, a noite em que nos achámos
sozinhos na igreja depois da carnificina forçada e em que decidimos procurar refúgio na
floresta negra, quando o sol voltou a surgir cumprindo a sincronia entre dia e noite que
sempre tinha marcado o mundo, enquanto eu me encontrava sozinho no milheiral preste
a desbravar enfim a floresta, este trouxe consigo algo que os seus olhos nunca sonharam
olhar, no horizonte da sua posição de vigia no farol, apenas uma ou duas milhas
marítimas a norte da ilha onde nos encontrávamos outra ilha surgiu, sim, outra ilha
surgiu do nada juntamente com os primeiros raios de sol, mas não apenas uma ilha, uma
ilha exactamente igual àquela, uma duplicação perfeita que transportou o pobre
faroleiro, que já havia ultrapassado o fenómeno da noite que não o foi, sozinho, na
solidão amarga do seu farol, para um nível incomportável de isolamento, que o fez
querer regressar à povoação para alertar todos do novo fenómeno. No caminho
encontrou-me e o resto, bom o resto já se sabe. Impossível, fui tentado a exclamar, e
noutras circunstâncias, ditas normais pela maioria, não retrairia este impulso, mas
depois de tudo, de tudo o que tinha vivido e que não quero voltar a listar, nunca mais, já
nada me surpreenderia. Se o faroleiro me tivesse dito que uma sereia gigante tinha
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saltado das profundezas do mar, teria acreditado, se me tivesse dito que um boneco
gigante vestido de marinheiro tinha dançado a lambada à sua frente, teria acreditado, se
me tivesse dito que uma tribo africana tinha fundado uma multinacional dedicada à
venda de couratos assados, teria acreditado, se me tivesse dito que o Chuck Norris tinha
sido violentamente espancado por uma freira idosa, idem, se me tivesse dito que um
negro com nome estranhamente semelhante ao de um famoso terrorista era o novo dono
da casa branca…bom, isto também não, não exageremos.

O interior do farol era desolador, e pouco faltaria para que fosse considerado
uma ruína. As paredes apresentavam fissuras profundas escavadas pelos anos que
desaguavam em crateras astronómicas que deixavam entrar o frio gélido trazido pelas
ondas dos mares do norte, a escada de madeira em caracol estava meia consumida pelo
caruncho e várias porções do corrimão de ferro oxidado já há muito tinham deixado de
fazer o seu papel. O primeiro degrau que pisei cedeu de imediato, prendendo-me o pé
nas tábuas podres e fazendo com que uma lasca de madeira ficasse enterrada na minha
canela. Tenha cuidado, senhor professor, preveniu-me só então o faroleiro enquanto eu
tentava recuperar o meu pé e desenterrar o maldito pedaço de madeira aguçado da
minha carne martirizada, Siga os meus passos, concluiu depois de se certificar que eu
estava em condições de continuar a jornada ascendente. Siga os meus passos,
significava não mais do que pôr os meus pés nos exactos locais onde ele punha os deles
ao longo de cada um dos degraus, saltando um ou outro que não possuía qualquer ponto
seguro de contacto. Não se agarre ao corrimão ou ainda vai parar lá abaixo, advertiu já
quase no final da subida. Obrigado, mas já tinha reparado, respondi treinando a zona
do meu cérebro responsável pelo sarcasmo, ao mesmo tempo que olhava para baixo
desafiando as tonturas e o medo das alturas. A subida foi penosa, mas quando me vi
rodeado pelas enormes janelas de vidro, rachadas aqui e ali, senti que o esforço fora
mais do que remunerado. Naquela espécie de pirilampo eléctrico gigante, capaz de
provocar as estrelas mais brilhantes, longínquas, mas que ali pareciam tão perto, tudo
era tão diferente do que estava habituado, um novo patamar de existência, melhor, mais
completo. Senti-me de novo a renascer. Quando olhei para norte, na direcção onde o

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faroleiro jurava estar uma nova ilha, igual à antiga, uma filha gémea da mãe, não a vi,
estava demasiado escuro, contudo distinguia no horizonte uma luz forte, cíclica, igual à
luz que o farol onde me encontrava emitia.

XIII

Fiquei imóvel, fixando com o olhar o feixe de luz hipnotizante que me


estimulava a retina e acenava com chamamentos de esperança e salvação, e assim fiquei
até ao amanhecer, momento glorioso em que os raios quentes e vivos desvendaram

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progressivamente a silhueta daquele corpo extraordinário, e pude enfim confirmar o que


o faroleiro dizia. A ilha parecia ter sido decalcada a papel químico, cada cor, cada
relevo, cada traço desmaiado, tal e qual como se houvesse um espelho gigante a meio
caminho, reflectindo na sua superfície os contornos de cada átomo. Era uma aparição
extraordinária, que distorcia mais uma vez a realidade em que me julgava inserido, mas
para a qual não procurava explicações, se o fizesse, para sempre ficaria encurralado no
labirinto das suposições, dos factos falaciosos, das ilusões materializadas, encontrando a
cada esquina um beco cego, um muro intransponível, ou pior do que tudo, a minha
própria cauda, como uma serpente rastejando ao longo uma constringida galeria
subterrânea, perseguindo esganada pela fome um pequeno rato que vira, ou que julgara
ver, sem certezas de ser real ou apenas alucinação desvairada, e depois de horas, dias,
meses, anos de acossamento, depois de ter percorrido os mesmos túneis encruzilhados
vezes sem conta, finalmente alcança carne onde cravar as presas e começa a devora-la
sofregamente. Morrerá sem perceber que alcançara não mais do que a sua própria
cauda, e que a carne que devorara não era outra senão a sua.

Senti a mão do padre sobre o meu ombro, o mesmo gesto que começara a insana
sequência de vivências, era o mesmo que pretendia enfim pôr-lhe cobro, a mão que
extraíra a rolha da garrafa transbordante, devolvia-a agora ao gargalo. Fitamo-nos
concisamente e sem trocar qualquer palavra decidimos o que faríamos em seguida.

O faroleiro tinha um pequeno barco, uma casca de madeira rudimentar que


utilizava para percorrer a distância entre o farol e a aresta sul da ilha que dava acesso à
povoação, e que lhe permitia evitar a floresta negra. Faltava-lhe muito para ser
considerada uma embarcação de luxo mas era mais do que suficiente para transportar
duas pessoas ao longo de uma curta distância sobre uma ondulação delicada. Tentei
convencer o faroleiro a acompanhar-nos, mas este refutou o convite. Era fiel ao seu
farol, a este tinha entregue toda a sua vida e não queria, ou não podia, abandona-lo.
Brinquei dizendo-lhe que do outro lado existia um farol exactamente igual, ao que ele
respondeu convictamente, Não, aquele não é o meu farol, da mesma forma que eu não
sou a minha imagem no espelho.
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Noite para sempre – Luiz César Baptista

Estávamos no fim da manhã quando lançámos o barco no mar rumo àquele


desconhecido tão familiar. Senti-me um descobridor renascentista, um marinheiro audaz
que não receava explorar novas terras que nunca ninguém pisara, mas contrariamente
aos outros que buscavam novos mundos, paisagens nunca vistas, riquezas
deslumbrantes, novas culturas, escravos, eu rumava em direcção a um universo
expectável, recriado, uma duplicação do que já conhecia, mas que ainda assim não
temia envolver. Uma segunda oportunidade, não uma nova oportunidade, uma
oportunidade igual à primeira, uma repetição de cenário aberta a um novo argumento e
a novos actores. Agradecemos ao bom faroleiro e prometi-lhe em breve regressar para
lhe devolver o barco. Mais uma vez recusou, Não, não o quero, nunca mais o usarei.
Mal cheguem ao vosso destino quero que o queimem. Acedi, prometi mal tocar terra,
destruir aquele barco e nunca mais construir outro.

O tempo estava magnífico, não sentia frio ou calor, apenas a leve brisa salgada
que me acarinhava a face e despenteava os cabelos. Em menos de uma hora
atingiríamos a nova costa, mas para não termos que atravessar a floresta negra, a sua
duplicação, decidimos que contornaríamos por oeste a ilha de modo a desembarcar
directamente na parte sul… bom, a parte sul que na nova ilha passava a ser a parte
norte, uma inversão de orientação face a um mesmo referencial conceptual, modificável
e moldável às nossas vontades como qualquer outro, tanto que ainda reporto o sul e o
norte da mesma forma como anteriormente. A meio caminho, olho para trás e tento ver a
ilha que abandonava, aquela ilha em que vivera os momentos mais dramáticos e
intensos da minha existência, mas que não conseguia odiar. Contudo não a consigo ver,
em vez dela uma tocha gigante desbravava o horizonte, uma chama imensa que tocava o
céu. Toda a ilha era consumida por um fogo intenso, tão intenso como só no inferno se
encontrava. Fui momentaneamente puxado pela minha memória através de um fluxo
desarranjado de feitio até a um lugar que reconhecia. Uma rua íngreme onde repousava
uma casa sem pessoas que a habitassem, uma casa que via arder sob um fumo que era
muito mais do que apenas fumo oriundo da combustão de matéria, eram almas que se
libertavam de corpos supérfluos e que de mãos dadas acorriam a uma nova existência

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num novo lugar, tão igual ao antigo. Vejo o fogo expandir-se, destruindo fronteiras e
limites, consumindo pedras, madeiras e ferro, numa combustão que não se limitava a
destruir mas também e principalmente a reorganizar, reaproveitando cada partícula,
atribuindo-lhe um novo sentido. O fogo cerca então um edifício, um edifício sagrado
borrado de vermelho, no seu interior notam-se quatro pessoas mortas, uma delas,
pregada pelas mãos a uma cruz, outra, a que sucumbira posteriormente à vontade de
uma criatura que para não ser reconhecida renunciara aos contornos do rosto, outra, um
homem careca de bigode com a garganta trespassada por um projéctil balístico, a
quarta…a quarta ainda a vejo sempre que os meus olhos se reflectem. Em redor
amontoados de carne sem olhos, regozijam-se num riso penado, envolvidos pelas
chamas, presos na sua própria armadilha, são condenados a deambularem durante toda a
eternidade por entre as labaredas, ali onde o sol nunca se põe.

O fluxo inverte-se e regresso ao batel de estrutura frágil que já baloiçava ao


largo do ponto de desembarque. Em pouco já caminhávamos sobre a areia húmida da
praia com o recorte dos telhados rubros no campo de visão. Perdera já todas as dúvidas
de que aquela ilha era uma duplicação perfeita da outra, cada rua, cada casa, cada pedra
da calçada. Separei-me do padre numa esquina, ele iria para a igreja, eu ainda não iria
para casa. Caminhei ao longo das ruas desertas que tão bem conhecia num rumo que
ultrapassava a minha vontade. Chego a uma rua íngreme que percorro envolto num
misto de sentimentos até chegar a uma casa em particular. Empurro a porta empenada e
vejo os vincos de uma figura frágil serem progressivamente iluminados. Avanço na sua
direcção e estico-lhe a mão oferendo-lhe uma boneca de trapos. Ela aceita-a com um
sorriso que escoltava os olhos doces e brilhantes. Dou-lhe a mão e ela acompanha-me.

A minha casa estava no exacto local onde deveria estar. No seu interior todas as
mobílias, os objectos, os poemas que deixara inacabados. Logo depois de reencontrar
todas as minhas memórias deslocadas, oiço bater à porta. Era o velho médico que vinha
para mais uma partida de dominó, uma ou outra troca de ideias como costume. Depois
chegaria o padre, e a partir deste momento deixaríamos de poder dizer mal da igreja.

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Passaríamos o resto do dia e da noite cercados por uma alegria incontida, esquecidos de
tudo, lembrando apenas o que chegaria.

Quando acordei no dia seguinte era noite, e assim se manteve desde então. Noite
para sempre.

Fim

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Esta obra é dedicada à memória de todas as pessoas que ainda não nasceram.

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