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Mónica Isabel Fonseca Sequeira Lima 1.º Direito, Diurno, Turma A, N.

º 20070373

Universidade Autónoma de Lisboa


Departamento de Direito

CASO KOSOVO

Trabalho apresentado para a unidade curricular de


DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO I

Nome da Aluna: Mónica Isabel Fonseca Sequeira Lima N.º 20070373


Turma A, 1.º ano (Diurno)
Docentes: Prof.ª Patrícia Galvão Teles
Prof.ª Cristina Crisóstomo

LISBOA, 9 de Junho de 2008

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Mónica Isabel Fonseca Sequeira Lima 1.º Direito, Diurno, Turma A, N.º 20070373

ABREVIATURAS

AGNU Assembleia Geral das Nações Unidas

CNU Carta das Nações Unidas

CS Conselho de Segurança (das Nações Unidas)

CV Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969)

DUDH Declaração Universal dos Direitos do Homem

KLA Kosovo Liberation Army – Exército para a Libertação do Kosovo.

NATO Organização do Tratado do Atlântico Norte

NU Nações Unidas

TIJ Tribunal Internacional de Justiça

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Enquadramento Histórico
A Sérvia pertenceu ao Império Bizantino até ao século XII, e mais tarde ao Império
Otomano desde 1389 até ao século XIX. Durante a II Guerra Mundial o Kosovo foi incluído
na Albânia pelos italianos. Após a II Guerra Mundial a Sérvia tornou-se parte do Reino dos
Sérvios, Croatas e Eslovenos, e em 1945 estabeleceu-se a República Federal da Jugoslávia,
composta pela Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Macedónia, Montenegro e Sérvia,
sob o domínio de Tito, estrangulando severamente as diversas nacionalidades. O Kosovo
tornou-se uma província autónoma na República Federal Socialista da Sérvia.1
Em 1989, a Sérvia retirou à província do Kosovo o seu estatuto autónomo e os seus
poderes legislativos, e os albaneses, 90% da população do Kosovo, insurgiram-se. Em 1991,
os kosovares votaram num referendo, defendendo a sua secessão da Sérvia e da Jugoslávia,
mas foram reprimidos por ordem do governo jugoslavo, dominado pelos sérvios. No princípio
de 1998 os kosovares, em particular a etnia albanesa (a maioria da população), foram
novamente atacados por forças sérvias, seguindo-se um processo brutal e sistemático de
limpeza étnica, no qual os kosovares (em particular de etnia albanesa) foram assassinados ou
forçados pelos sérvios a fugir para outros países. O KLA, um grupo de guerrilha que lutava
pela independência da província, era outro alvo dos ataques.2 Entre Março e Junho de 1999,
forças da NATO tentaram parar as atrocidades fazendo ataques aéreos na Sérvia (que
pertencia, em conjunto com Montenegro, à Jugoslávia), sem autorização do CS – que só mais
tarde emitiria a Resolução 1244. As hostilidades cessaram quando a Sérvia aceitou um acordo,
permitindo a entrada de uma força das Nações Unidas no Kosovo para manutenção da paz e
garantia dos direitos humanos, para desmantelamento das minas anti-pessoais e retorno dos
refugiados kosovares.3 Os esforços das NU para estabelecer uma administração civil foram
dificultados pela grande tensão entre Sérvios e Albaneses.4
Em 17 de Fevereiro de 2008 o Kosovo declarou unilateralmente que era um Estado
soberano e independente. Os Estados Unidos da América e vários membros da UE
reconheceram o Kosovo com Estado independente, mas não foi o caso da Sérvia nem da

1
Cf. LENMAN, Bruce P. – Chambers Dictionary of World History. Edinburgh: Chambers Harrap Publishers.
p. 755, 452.
2
Serbia. [Em linha]. [S.l.]: Britannica Student’s Encyclopedia, 2008. [Consult. 26 Maio 2008]
3
Cf. LENMAN, op. cit., p. 452, 755.
4
World Affairs: Kosovo. [Em linha]. [S.l.]: Encyclopaedia Britannica Online, [2000]. [Consult. 26 Maio 2008]

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Rússia.5 A maioria da população do Kosovo é de etnia Albanesa, que é predominantemente


muçulmana.6

QUESTÕES

I – A declaração de independência do Kosovo pode ser justificada com base no direito à


autodeterminação dos povos?
A declaração de independência do Kosovo é um acto jurídico unilateral na medida em
é praticado por um só sujeito de Direito Internacional. Tais actos produzem efeitos jurídicos
para sujeitos de Direito Internacional (tanto para os autores como para os que não
participaram na sua prática),7 e não estão previstos no art. 38.º do Estatuto do TIJ, mas autores
como Cunha consideram-nos como uma fonte de Direito Internacional, traduzindo a liberdade
de acção jurídica do Estado, fundada sobre a sua soberania, 8 já que a enumeração das fontes
pelo Estatuto do TIJ não as esgota; foi feita numa determinada época e deve ser sujeita a uma
interpretação actualizada.9 Contudo, estes actos não podem ser considerados, a todo o tempo e
em todos os casos, como uma fonte autónoma ou directa de Direito Internacional, em pé de
igualdade com o tratado ou o costume.10
A declaração de independência do Kosovo é um acto unilateral de origem individual
por ter sido formulada por um só Estado; é também um acto estadual.11 Cunha refere, quanto à
validade dos actos jurídicos unilaterais, que nenhum destes poderá contrariar normas
imperativas de direito internacional (ius cogens).12 Mosler, interpretando o art. 53.º da
Convenção de Viena (CV), afirma que a violação do ius cogens afecta a sociedade
internacional no seu conjunto, e considera que as obrigações impostas por este Direito são
erga omnes.13 De acordo com Sur, a introdução destas normas imperativas no Direito
Internacional verificou-se sob a influência das reivindicações do Estados surgidos da

5
KOSOVO. [Em linha]. [S.l.]: Encyclopaedia Britannica Online, [s.d.]. [Consult. 26 Maio 2008]
6
KOSOVO. [Em linha]. [S.l.]: Britannica Student’s Encyclopedia, 2008. [Consult. 26 Maio 2008]
7
Cf. CUNHA, Joaquim da Silva; PEREIRA, Maria da Assunção do Vale – Manual de Direito Internacional
Público. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2004. p. 327.
8
Cf. COMBACAU, Jean; SUR, Serge apud CUNHA, op. cit., p. 327.
9
Cf. MIRANDA, Jorge – Curso de Direito Internacional Público. S. João do Estoril: Principia, 2006. p. 42.
10
Cf. CUNHA, op. cit., p. 339-341.
11
Ibidem, p. 328.
12
Ibidem, p. 344.
13
Ibidem, p. 352.

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descolonização e dos Estados socialistas, e poderá ser utilizado em prol do Direito


Humanitário e das regras de protecção dos direitos fundamentais da pessoa humana.14
Segundo Akehurst, o direito à autodeterminação consiste no direito de os habitantes de
um dado território determinarem o estatuto político-jurídico desse mesmo território criando
um Estado ou escolhendo ser parte integrante de outro. As resoluções aprovadas pela
Assembleia Geral das Nações Unidas atribuíram maior propósito ao direito à
autodeterminação, produzindo transformações no Direito Internacional.15
Akehurst afirma que, nos termos da Resolução 1514 (XV) da AGNU, todos os povos
gozam deste direito, para, determinando livremente o seu estatuto político, prosseguir o seu
desenvolvimento económico, social e cultural, e esta autodeterminação conduz à sua
independência.16 A Acta Final de Helsínquia17 reafirma que os Estados devem respeitar a
igualdade de direitos dos povos e o seu direito à autodeterminação (tal como o art. 1.º, n.º2 da
CNU), tendo o direito de determinar, sem ingerência exterior, o seu estatuto político e
prosseguir o seu desenvolvimento político, económico, social e cultural, actuando em
conformidade com a CNU e normas de “Direito Internacional, incluindo as que se referem à
integridade territorial dos Estados.” Vejamos então qual o contexto da Resolução 1514 e
quais, perante a Acta, os limites ao direito à autodeterminação dos povos e como se aplica ao
caso Kosovo.
Os requisitos do princípio da autodeterminação dos povos são a existência de um povo
dependente e um desejo de independência, e que geram um dever jurídico no Estado de criar
condições para o exercício da autodeterminação. Há, de facto, um desejo de independência.
Mas serão os kosovares um povo dependente? E o que é um povo dependente? Não
esqueçamos que a Resolução 1514 da AGNU data de 14 de Dezembro de 1960, e esta afirma
claramente a necessidade de pôr fim ao colonialismo e a todas as formas de segregação e
discriminação, à época considerados uma ameaça à paz internacional, pelas sérias crises que
anunciavam gerar. O Kosovo não é um território ocupado pela Sérvia, nem foi anexado,
como sucedeu nos casos de Timor-Leste ou do Tibete: o Kosovo é parte do território
originário da Sérvia, portanto considera-se que o seu povo não é dependente. Considera-se
então que a Sérvia, à partida, não teria qualquer dever jurídico de criar condições para o
exercício da autodeterminação por parte dos kosovares, e que a declaração de independência

14
Cf. SUR, Serge apud CUNHA, op. cit., p. 353-354.
15
Cf. AKEHURST, Michael – Introdução ao Direito Internacional. Coimbra: Almedina, 1985. p. 307.
16
Ibidem, p. 311-2.
17
Cf. ESCARAMEIA, Paula – Colectânea de Leis de Direito Internacional. 3.ª ed. Lisboa: Instituto Superior
de Ciências Sociais e Políticas, 2003. p. 557-8.

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do Kosovo não se pode justificar com base no direito à autodeterminação dos povos. O povo
kosovar não tem necessidade de exercer o direito à autodeterminação, nem o direito à
autodeterminação pode levar a afirmar que o Kosovo tem direito à independência. O Art. 55.º
da CNU associa, isso sim, este direito à autodeterminação ao respeito pelos direitos humanos,
sem discriminações. O direito à autodeterminação, consistiria, em caso de violação dos
direitos humanos, revelando um tratamento discriminatório dos kosovares por parte da
Sérvia, no dever desta criar condições para que o povo kosovar se autodetermine, nos termos
da Resolução 1514. Mas, à partida, não será este o caso.

II – A existência do Kosovo enquanto estado independente depende do seu


reconhecimento por outros estados ou organizações internacionais, ou de quaisquer
outros factores?
Antes de atentarmos no conceito de reconhecimento, é necessário definirmos as
condições para que se possa falar de Estado. Há que ter em conta que o conceito de Estado
como sujeito de Direito Internacional não é o mesmo que a nível constitucional, em que basta
ter povo, território e poder político.18 Segundo Akehurst,19 um Estado tem de possuir um
território (embora não se requeiram certezas absolutas sobre as suas fronteiras, já que muitos
mantêm disputas fronteiriças com os seus vizinhos desde há muito tempo, tal como Quoc
Dinh afirma),20 população própria, e um governo próprio capaz de manter o controlo efectivo
do seu território e de se encarregar das relações internacionais com os outros estados. Fala-se
de governo próprio em sentido restrito quando parte da população de um Estado tenta separar-
se para formar um novo estado (secessão ou separação), como é o caso do Kosovo. Cunha21
corrobora as ideias de Akehurst, baseando-se no art. 1.º da Convenção de Montevideu sobre
os Direitos e Deveres dos Estados, enfatizando a capacidade de um Estado, enquanto sujeito
de Direito Internacional, estabelecer relações com outros Estados. Cunha22 refere que a
população de um Estado é constituída pelos seus nacionais, podendo um Estado abranger
várias nações (como a Rússia).
De acordo com Akehurst,23 nenhuma regra de Direito Internacional proíbe a separação
de um Estado de outro, como no caso do Kosovo, nem há nenhuma norma que proíba o
governo central, como o da Sérvia, de reprimir o movimento separatista, se para tal se
18
Cf. CUNHA, op. cit., p. 373.
19
Cf. AKEHURST, op. cit., p. 67.
20
DINH, Nguyen Quoc [et al] apud CUNHA, op. cit., p. 374.
21
Cf. CUNHA, op. cit., p. 373.
22
Ibidem, p. 374.
23
Cf. AKEHURST, op. cit., p. 68.

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encontra habilitado. E a Sérvia reprimiu tal movimento, era inicialmente um conflito a nível
interno (contudo houve também graves violações dos direitos humanos, o que justificou a
intervenção da comunidade internacional). Este autor afirmava que, independentemente do
resultado da contenda, seria considerado legítimo perante o Direito Internacional, mesmo se
uma das partes agisse contrariamente ao princípio da autodeterminação, pois na opinião deste
autor, este princípio tem “um alcance limitado”. Poderia a Sérvia recorrer
indiscriminadamente ao uso da força armada?
Até então, os Estados apenas reconheciam um movimento separatista (como o KLA)
como Estado independente quando a sua vitória estivesse assegurada, ou utilizavam o
reconhecimento como expressão do seu apoio a uma das partes nas guerras civis de carácter
secessionista, como um gesto de solidariedade. Akehurst considera que o reconhecimento é
uma prova de que os três requisitos já formulados foram cumpridos, mas ainda assim o
reconhecimento é importante, em particular em casos de lutas secessionistas.24
Akehurst25 afirma que no reconhecimento se gera um labirinto de questões políticas,
jurídico-internacionais e de Direito interno, sendo impossível separar as questões jurídicas das
políticas, pois que os Estados são influenciados por considerações políticas ao atribuir ou
recusar o reconhecimento, cujos actos geram consequências jurídicas. Quando surge um novo
Estado, os restantes Estados reconhecem ou não o novo Estado ou Governo. O
reconhecimento manifesta a vontade de lidar com o novo Estado como membro da
comunidade internacional ou com o novo governo como representante do Estado. A recusa de
reconhecimento pode basear-se na crença de que o novo Estado ou governo não exerce um
controlo efectivo do seu território; ou porque aos olhos de um determinado país (como os
Estados Unidos), o reconhecimento de governos estrangeiros é um sinal de aprovação aos
mesmos. Mas quais são os efeitos jurídicos do reconhecimento?
Segundo a teoria constitutiva, um estado ou governo não existe para efeitos
internacionais até haver sido reconhecido; o reconhecimento surte efeitos constitutivos porque
é condição necessária para a criação do Estado ou governo em questão. É um reconhecimento
que pode ser condicional (quanto ao regime do novo Estado, por exemplo) e revogável. É
uma tese inaceitável pois permite a ingerência de Estados terceiros nos assuntos internos do
novo Estado.26 Além disso, o reconhecimento não é um elemento do Estado.
A teoria do reconhecimento declarativo já é aceitável, pois não se atribui ao
reconhecimento qualquer efeito jurídico e considera-se que a existência de um Estado ou
24
Ibidem, p. 68-69.
25
Ibidem, p. 72-74.
26
Cf. TOUSCOZ, Jean – Direito Internacional. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1994. p. 93.

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governo é uma questão de facto que o reconhecimento aceita.27 Ou seja, o reconhecimento


tem por efeito verificar ou declarar a existência de um novo sujeito de Direito Internacional,
definir o momento a partir do qual o Estado pode iniciar a sua via internacional normal.
Verifica-se apenas que existem os elementos de facto de um Estado já referidos.28 Portanto,
pode dizer-se que a existência do Kosovo enquanto estado independente não depende do
reconhecimento por outros estados ou organizações internacionais, já que esse
reconhecimento é declarativo.

III – O que acontecerá, quanto ao seu estatuto político e direitos, quanto à minoria
sérvia no Kosovo?
O Direito Internacional reconhece o direito dos povos a dotarem-se de um regime
político à sua escolha, exigindo, no entanto, o respeito pelos direitos do Homem, que
condiciona a legitimidade dos governos,29 sem impor aos Estados a adopção de uma
determinada forma de governo.30
Com a secessão e declaração de independência do Kosovo surge naturalmente a
questão da sucessão na nacionalidade dos habitantes dos territórios, não estando este aspecto
regulado por qualquer convenção de carácter geral e obrigatório. A prática internacional é
fértil e, de uma maneira geral, orienta-se pelo “princípio de que aos habitantes do território
dever ser atribuída a nacionalidade do Estado sucessor.” Tendo em conta a independência
recente do Kosovo, “a tendência geral foi deixar ao Direito interno do novo Estado a
determinação das questões de nacionalidade dos habitantes do antigo território dependente”.
Há, contudo, algumas particularidades. Em Portugal suscitou-se esse problema relativamente
aos habitantes do Estado português da Índia após o reconhecimento da soberania desta última.
O Direito Interno português desnacionalizou alguns dos seus nacionais, não seguindo a
orientação do Direito Internacional, abrindo caminho a situações de apatridia, sem dar
importância à vontade dos interessados na alteração da sua nacionalidade.31
No caso do Kosovo, os seus habitantes são maioritariamente de etnia albanesa e
muçulmanos, sendo a restante população sérvia. A população sérvia era uma minoria apenas
dentro desta região (sendo a maioria em todo o território da Sérvia), e tanto sérvios como
kosovares possuíam a mesma nacionalidade. Com a declaração de independência do Kosovo

27
Cf. AKEHURST, op. cit., p. 75.
28
Cf. CUNHA, op. cit., p. 506-507.
29
Cf. TOUSCOZ, op. cit., p. 65.
30
Cf. AKEHURST, op. cit., p. 81.
31
CUNHA, op. cit., p. 420.

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criou-se uma nova nacionalidade; os sérvios presentes neste novo Estado são uma minoria
étnica.32 A população de um Estado pode ser homogénea ou heterogénea do ponto de vista
religioso, étnico, cultural, linguístico, etc. e isto afecta a coesão e estabilidade de um Estado.33
Na declaração de independência do Kosovo afirma-se que este estado é uma república multi-
étnica que se guia por princípios de não discriminação e igual protecção ao abrigo da lei, e
que procura proteger os direitos de todas as comunidades do Kosovo. O que inclui,
naturalmente, a minoria sérvia.
A protecção efectiva dos direitos do homem e das minorias étnicas pelo Direito
Internacional exige regras jurídicas internacionais dirigidas ao indivíduo, textos de carácter
obrigatório, para que o homem seja titular de direitos internacionais. A DUDH revelou-se
essencial para a criação de um sistema de protecção dos direitos do homem, tendo sido
aprovada pela AGNU e tem um carácter de mera recomendação (cf. art. 10.º CNU), não
vincula os Estados. Existem também dois Pactos Internacionais sobre os Direitos do Homem,
aprovados na AGNU a 16 de Dezembro de 1966: um sobre direitos económicos, sociais e
culturais, e outro relativo a direitos civis e políticos. Outras Convenções foram celebradas nas
Nações Unidas, como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial. Cunha refere que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem está
entre os melhores mecanismos para a protecção dos direitos do homem, prevendo órgãos
(como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) e procedimentos para garantir esses
direitos. Esta Convenção foi aprovada no Conselho da Europa, onde a Sérvia está presente, e
tem com esta Organização uma ligação fundamental. O Kosovo não está vinculado a ela pois
não é membro do Conselho da Europa, e apenas nele podem participar Estados que se
governem pelo princípio do Estado de Direito e do reconhecimento dos direitos do homem e
liberdades fundamentais.34
É no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos que aparecem pela primeira
vez direitos atribuídos especificamente a minorias étnicas. O art. 27.º deste Pacto refere que,
nos Estados em que minorias étnicas (ou outras) se encontrem presentes, não se negará às
pessoas que pertençam a tais minorias “o direito de, em comunidade com os outros membros
do respectivo grupo, usufruir da sua própria cultura, professar e praticar a sua própria religião
e utilizar a sua própria língua.” Nesta regra jurídica assenta a personalidade internacional das
minorias. Pereira afirma que esta norma resulta da codificação de Direito consuetudinário que
32
Grupo de pessoas que se distinguem da maioria da população de um Estado, pela sua religião, etnia, língua ou
cultura.
33
Cf. TOUSCOZ, op. cit., p. 128.
34
Cf. CUNHA, op. cit., p. 463, 465-469.

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reconhecia directamente direitos a indivíduos:35 à partida, ainda que o Kosovo não seja
membro das Nações Unidas e não se tenha vinculado ao Pacto, está obrigado, por costume
internacional, a respeitar os direitos das minorias sérvias. A mesma obrigação que a CNU e a
DUDH impõe aos Estados – o que não é o mesmo que conceder direitos às minorias étnicas.
Ou seja, o Pacto referido não concede personalidade internacional ao individuo, mas dele
resultam obrigações para o Kosovo.
Na Acta Final da Conferência de Helsínquia36 de 1 de Agosto de 1975 (na qual a ex-
Jugoslávia participou), retomou-se novamente o princípio de protecção das minorias,
estabelecendo-se um princípio de “respeito dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais, incluindo a liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença (…) sem
distinção por motivos de raça, sexo, idioma ou religião.” Neste domínio, a Acta remete a
actuação dos Estados para uma conformidade com os princípios presentes na CNU e a
DUDH. A Acta refere também, na sua parte VII, a importância do respeito pelos direitos das
minorias: os indivíduos pertencentes a estas têm o direito de igualdade perante a lei e de
usufruir de forma plena dos seus direitos e liberdades fundamentais. Este respeito e tolerância
por parte do Kosovo é essencial para a estabilidade na região, e para a paz internacional,
justiça e bem-estar indispensáveis nas relações internacionais com outros Estados. E a
manutenção da paz internacional e o respeito pelos direitos do homem, sem discriminações
está bem patente no art. 1.º, n.ºs 1 e 3 da CNU.

IV – A declaração de independência do Kosovo pode ser considerada uma violação da


soberania e integridade territorial da Sérvia?
Os Estados, constituídos pelos elementos interdependentes já referidos, afirmam assim
a sua soberania. Para Touscoz, a soberania é a expressão jurídica da independência do
Estado, e fundamenta o direito de não-ingerência de terceiros nos seus assuntos internos.37
Shaw38 equipara soberania a independência, que afirma ser um direito fundamental de um
Estado, assim como existência pacífica e a igualdade (jurídica) entre Estados. É a capacidade
de um Estado prover o seu bem-estar e desenvolvimento, livre da dominação de outros
Estados, sem afectar ou violar os direitos destes. Esta independência legal não é afectada por
qualquer dependência económica ou política (a não ser que haja uma dependência formal

35
PEREIRA, André Gonçalves: QUADROS, Fausto de – Manual de Direito Internacional Público. 3.ª ed. rev.
aument. Coimbra: Almedina, 1997. p. 387-391.
36
ESCARAMEIA, op. cit., p. 557.
37
TOUSCOZ, op. cit., p. 65, 67.
38
SHAW, Malcolm N. – International Law. 5.ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 189-190.

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relativamente a outro Estado, como superior). Um Estado pode ter obrigações provenientes de
um tratado que haja celebrado ou de costume, restringindo a sua liberdade, mas manterá o seu
status de país independente.
Shaw39 considera que a noção de independência na lei internacional implica direitos e
deveres: o direito de um estado de exercer uma jurisdição interna no seu território e
população permanente, ou de legítima defesa em determinadas situações; e um dever de não
ingerência nos assuntos internos de outros estados soberanos. Este princípio de não
ingerência, plasmado na Resolução 2625 e no art. 2.º, n.º 7 da CNU, proíbe intervenções
directas (por coacção, por exemplo) ou indirectas (por apoio ou financiamento de grupos
internos) nos assuntos internos de um Estado, e protege a soberania do Estado, mas é limitado
por um direito, que é também um dever de ingerência da comunidade internacional para
proteger os direitos da pessoa humana – e tal protecção não é uma interferência nos assuntos
internos de um Estado, sendo legítima. Os conflitos de 1999 são um bom exemplo disso.
Considerou-se40 que a declaração de independência do Kosovo não se justifica no
direito à autodeterminação dos povos, pelo que a soberania e integridade territorial da Sérvia
são um limite desse direito, nos termos da Acta Final de Helsínquia e Resolução 1514 da
AGNU. O princípio da integridade territorial resulta do princípio da igualdade soberana,
plasmado no art. 2.º, n.º 1 da CNU e Resolução 2625 da AGNU. Nos termos da Resolução
2625, igualdade soberana não significa que os Estados sejam verdadeiramente iguais, mas sim
que, independentemente do seu poder ou diferenças (económicas, sociais, políticas, etc.), são
iguais juridicamente, e possuem um voto na AGNU como membros da comunidade
internacional. Esta Resolução afirma também que a integridade territorial e a independência
política de um Estado são invioláveis.
O princípio da integridade territorial proíbe a interferência na jurisdição interna de um
Estado, nos termos do art. 2.º, n.º 7 da CNU, assim como ameaças ou uso da força para ocupar
o território de um Estado ou contra a sua independência política, nos termos do art. 2.º, n.º 4
da CNU, corroborada pela Resolução 2625 da AGNU que acrescenta que tal ameaça ou uso
da força constitui uma violação de Direito Internacional. E como já vimos, choca com o
princípio de autodeterminação dos povos. Shaw41 refere que este tem sido interpretado como
um direito dos habitantes de territórios não-independentes – portanto, não se aplicaria, como
vimos, ao povo do Kosovo. Segundo o autor, este princípio não confere quaisquer direitos de
secessão (unilateral) a determinados grupos (como a etnia albanesa que compõe a maioria dos
39
SHAW, op. cit., p. 191.
40
Ver Questão I.
41
Cf. SHAW, op. cit., p. 443-4.

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kosovares) existentes em estados já por si independentes, e estes podem exercer a


autodeterminação, mas considerando que os Estados são soberanos e respeitando a
manutenção da integridade territorial desses Estados, a não ser que o grupo, existente numa
colónia, seja alvo de perseguição extrema. Nos casos de autodeterminação de ex-colónias a
aquisição não é ilegal, não há qualquer violação da integridade territorial porque tal território
não era originariamente parte do Estado. Não é este o caso, a declaração do Kosovo não
respeita a integridade territorial e a soberania da Sérvia sobre o seu território. Ainda que se
aceite a independência do Kosovo esta aquisição de território é ilegal.

V – Poderia a Sérvia recorrer ao uso da força armada para evitar a independência do


Kosovo? E pode a comunidade internacional utilizar a força armada para impedir que a
Sérvia reaja contra a independência do Kosovo?
O uso da força armada presumiria a ocorrência de uma agressão por parte do Kosovo.
O que é agressão? A Resolução 3314 da AGNU define agressão como o uso de força armada
por um Estado contra a soberania ou integridade territorial de um outro Estado, e neste caso, o
acto de agressão invocado pela Sérvia, nos termos desta Resolução, seria a invasão do seu
território e aquisição do mesmo pelo Kosovo. Touscoz afirma que uma guerra de agressão é
um crime contra a paz internacional e implica responsabilidade internacional.42 Será a invasão
do território da Sérvia razão suficiente para legitimar um ataque armado ao Kosovo? Mas
ainda que a Sérvia, intervindo militarmente, alegasse legítima defesa, para defesa da sua
integridade territorial e soberania, esta não poderia nunca ser preventiva, apenas repressiva, e
condicionada à verificação de um ataque armado por parte do Kosovo (o que não é o caso),
havendo uma obrigação de comunicar ao CS as medidas adoptadas, de limitar o seu exercício
até que o CS haja tomado medidas adequadas à manutenção da paz, assim como subordinar a
legítima defesa ao princípio da proporcionalidade (art. 51.º da CNU).43
Outra questão que se põe é se a independência do Kosovo é um problema de direito
interno da Sérvia ou um problema internacional. Se a Sérvia utilizar a força armada, intervir
militarmente, há que recordar o art. 2.º, n.º 3 da CNU, segundo o qual os Estados devem
solucionar os seus diferendos por recurso a meios pacíficos, considerando que o art. 2.º n.º 4
da CNU estabelece uma clara proibição do recurso à força. A única excepção a este princípio
de proibição do recurso à força é a legítima defesa, para proteger a soberania e integridade
territorial do Estado, da Sérvia, referida no art. 51.º da CNU. Fora esse caso o uso da força só
poderá ocorrer se legitimado pelas próprias NU, mediante autorização do CS que, nos termos
42
Cf. TOUSCOZ, op. cit.
43
Cf. CUNHA, op. cit., p. 526-527.

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do art. 41.º e seguintes da CNU, determinará as medidas a tomar, e não necessariamente com
recurso a meios militares – pelo que a Sérvia teria de acatar tais medidas. De acordo com os
art.ºs 33.º a 38.º da CNU, o Kosovo e a Sérvia devem ainda procurar resolver este conflito de
forma pacífica.
A Sérvia tem, de facto, um direito de legítima defesa, nos termos do art. 51.º da CNU,
mas do ponto de vista do seu Direito Interno. Mas se ocorresse, no exercício desse direito,
uma violação dos direitos humanos (como sucedeu em 1998/9), poderia legitimar uma
intervenção humanitária por parte da comunidade internacional. Esta poderia ainda intervir
militarmente, para impedir uma reacção da Sérvia à independência do Kosovo, pois o
objectivo das NU é a manutenção da paz internacional (art. 1.º da CNU) com respeito aos
direitos do homem (art. 1.º, n.º 3 da CNU), desde que com autorização do CS, cujas decisões
os membros têm o dever de acatar (art. 25.º da CNU).

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