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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DAEDigÁOON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
AMO III
Índice
Pág.
I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Pódese admitir que as docncas do corpo estejam rela


cionadas com a consciéncia moral c com as atitudes religiosas do
pudente ?
Se de fato existe ésse nexo, como deve ser entendido ?" 311

2) "Os curandeiros c os que exercem a medicina em nome de


ciencias ocultas ou do S. Evangelho, serño realmente condenareis,
como se diz ?
Realizam militas curan mararilhosas. Niio será isto o sinal de
que Deus está com cica ?" 317

II. DOGMÁTICA

3) "As fallías da nnturesa (a doenca, os seres defeitnosos e


monstruosos, a própria viorte) nao depóem contra a existencia
de Deus ou ao menos contra a sabedoria e a bondade do Criador ?" 320
4) "A historia do pecado de Adáo e Eva parece inventada
para explicar a morte e seas precursores (a doenca, a jome, a
dor...) no mundo. Dir-ne-ia, porém, que i fábula vá, pois a morte
e as miserias nao precixam de explicacáo especial.
Ou será que se encontra fora do Cristianismo algo de seme-
Ihante a historia de Adáo e Eva, corroborando a nogáo de urna
culpa original ?" 320

5) "Poderei estar certa dn minlia, salvando eterna i


Terei a graca de urna boa morte e da perseveranca final?" 33.1

III. SAGRADA ESCRITURA

G) "Sao Paulo, aos Efésios 2,8s, escreve: 'Pela graga é que


sois salvos, mediante a fe, e isto nao vem de vos, porque- é dom-
de Deus; nao vem das obras, para que ninguem se glorie'.
Nao quer este texto dizer que gómente a fe salva, de moiln
a nao se poder atribuir ulgum mérito as boas obras ?" ;>41

TV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

7) "Que dizer da condenacüo de Giordano Bruno (f 1600)


pela Inquisicáo ?
Nao será éste caso ton exemplo fricante de que a Igreja en-
travotc o progresso das ciencias até época recente?" 31,7

CORRESPONDENCIA MIÚDA 351

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano III — N? 32 — Agosto de 1960

I. CIENCIA E RELIGIÁO

ARIEL (Rio de Janeiro):

1) «Pode-se admitir que as doencas do corpo estejam


relacionadas com a consciéncia moral e com as atitudes reli
giosas do paciente?
Se de fato existe ésse nexo, como deve ser entendido?»

A questáo aborda um assunto muito complexo. Se nao é


possível dizer sempre a última palavra no tocante as origens
das doengas, é-nos facultado ao menos discernir alguns prin
cipios importantes em tal setor. Consideraremos, pois, certos
fatos muito significativos referentes ao surto de molestias
humanas; ésses fatos nos habilitaráo a deduzir conclusóes
valiosas tanto para o paciente como para o médico.

A elaboracáo desta resposta seguirá de perto os dados fornecidos


pelo Prof. Dr. Arthur Jores, Diretor da II. Med. Univ.-Klinik, de
Hamburgo, Eppendorí, em urna aula inaugural, cujo texto foi publi
cado na revista «Die Medizinische Welt» de 6 de Janeiro de 1951.

1. Os dados da Medicina e da Psicología Experimental

1. Há cérea de cinqüenta anos atrás, as doengas eram


preponderantemente consideradas como fenómeno de bioquí
mica e de física estritamente ditas. O fator psíquico ou a pre-
senca de urna alma espiritual no paciente nao entrava na
consideragáo dos homens de ciencia; tal fator pertenceria ao
dominio da filosofia ou das especulagóes mais ou menos subje
tivas dos «metafísicos».
2. Hoje em dia, diversa tornou-se a atitude da ciencia
médica: reconhece que a doenga é algo que afeta o homem
todo ou a personalidade como tal. Nao há dúvida, o aspecto
bioquímico da molestia deverá ser sempre levado em conta;
nao basta, porém, para explicar devidamente os estados patoló
gicos que acometem o ser humano.

É o que se depreende, por exemplo, do fato de que o homem


costuma «viver (isto é, carregar com toda a sua personalidada) a sua
doenga» como se fosse parte integrante do seu ser, principalmente
se ele sofre de molestia crónica. O paciente fala da «sua» doenca,

— 311 —
expressáo esta cuja legitimidade os médicos nao lhe contestam: a
individualidade do doente impregna a sua própria molestia; mesmo
quando os exames de anatomía e as análises de laboratorio pouca
diferenca acusam entre a tuberculoso do cidadáo A, a do cidadáo B
e a do cidadáo C, verifica-se que as proporcóes assumidas pela molestia,
a sua evolucáo e as repercussóes da mesma na vida de cada paciente
tém características marcantes que nao correspondem ás pequeñas
diferencas verificadas pelos exames clinicos. Daí dizer-se que o psi-
quismo do homem, ou seja, sua vida espiritual influí na coníiguragao
dos seus estados patológicos ou melhor, faz parte essencial da estru-
tura désses estados docntios.
A distingáo entre materia e espirito, assim como a existencia de
urna alma espiritual no homem, aqui pressupostas já foram expla
nadas em «P. R.» 5/195S, qu. 1.

O fato de que o homem todo vive a sua doenga, é compro-


vado pelo papel de grande vulto que a molestia desempenha
na historia dos individuos e das sociedades: muitos e muitos
mudam seu teor de vida para melhor ou para pior por causa
da doenga, enquanto outros realizam faganhas de bravura ou
notáveis descobertas de ciencia por causa de calamidades mór
bidas (haja vista ainda recentemente a producáo da penicilina
e de tantos antibióticos por ocasiáo da última guerra mundial).

As estatislicas nesse setor se tornaram particularmente signifi


cativas: mostram, por exemplo, que as doencas sao fator económico
de grande peso, pois alta porecntagem de pessoas vive á custa das
molestias de outrem, o nao poucas classcs de profissionais se consa-
gram totalmente ao cuidado dos doentes: assim na cidade de Hamburgo
o recenseamento de 1946 evidenciou que cérea de 90 profissóes e 30
setores da economía estavam a servico dos doentes e da saúde.

A afirmagáo de que a doenga no homem nao constituí


mero disturbio somático, é outrossim corroborada por um
confronto com os animáis irracionais: estes podem sofrer dos
mesmos estados mórbidos que os homens; néles, porém, a
doenga está longe de ter as mesmas consecuencias que entre
os seres humanos. Isto significa que na criatura racional nao
sómente a animalidade (parte material), mas também as facul-
dades própriamente humanas (isto é, a parte espiritual do
individuo) sao envolvidas pela doenca: a consciéncia de u'a
missáo a desempenhar na térra, o conhecimento do bem e do
mal, a liberdade de arbitrio e outros fatóres típicamente huma
nos concorrem para exacerbar no ser intelectivo as molestias
que afetam também os irracionais.

3. A verificacáo déstes fatos tem levado médicos moder


nos a falar do sentido ou da finalidade da doenga, querendo
éles com isto frisar que mesmo as molestias acometem o homem
em vista de um objetivo transcendente; sob o goyérno da Pro-

— 312 —
videncia Divina, elas devem do seu modo concorrer para que o
paciente atinja a vida eterna.

4. O que acaba de ser dito, deverá agora ser aprofundado


por breve análise dos principáis estados patológicos que possam
afetar o homem.

a) As neurosos sao, como o nome diz, disturbios nervosos


ora mais, ora menos graves. A psicología das profundidades
tem revelado que tais desordens sao, muitas vézes, oriundas
de um confuto de consciénc'a (problema t:pico do esp'rito).
Pode acontecer, sim, que alguém, colocado diante da necsssi-
dade de optar entre a virtude e o vicio, nao se ouse definir;
a luta que assim se desencadeia no seu íntimo, chega nao raro
a provocar a neurose; esta se manifesta entáo señi que o próprio
paciente ou alguma pessoa de sua cercanía a saiba explicar.
A solucáo para o caso nao será exclusivamente do dominio
da medicina: esta se poderá esgotar, sem grande resultado,
ñas tentativas de trata mentó; a cura pertencerá, principal
mente, ao setor da moralidade ou da consciéncia, pois consis
tirá, antes do mais, em fazer o paciente tomar ánimo e optar
decididamente em favor do bem, repudiando o mal.

Eis um exemplo típico de tal neurose:


Durante a guerra passada. a Senhora N. foi infiel a seu marido
convocado para o exército; terminada a tormenta, soube aue ele estava
para regrcssar ao lar. Conseqücntemente, um problema de consciéncia
se lhe apresentou. cuja soluqáo em qualquer hipótese seria muito
ardua: ou rompería com o amante para reconstituir a vida com o
marido, ou abandonaría definitivamente a éste após lhe haver declarado
o que se dera. Pós-sc a refletir, sem. porém, conseguir decidir-se.
Comecou entáo a experimentar, principalmente á noite. misteriosas
paípitacóes do coraeáo e sentimentos de angustia, que a fizeram
susneitar de urna doenca cardíaca, motivando urna consulta ao
médico...
Éste caso evidencia como alguém pode cair doente por estar
vivendo contra a consciéncia ou por estar envolvido num confuto de
pneadn o v'rtude. Muitas vñzes a doenca é a «solucáo* para urna
situado desreproda da qual a pes?oa nao ousa sair ñor vía normal;
a doenca dispensa de tomar decisao enérgica; é fuga, mas fuga
aparentemente justificada e honesta; excita a compaixáo do próximo
e parece desculpar o individuo perante ele mesmo e perante a socie-
dade (há quem fale das «vantagens» de ser doente; um atestado
médico muitas vézes «soluciona» caso embaracoso!!.

b) As doencas orgánicas. Na opiniáo de bons médicos,


hoje em dia nao se observa táo rígidamente a clássica distingáo
entre doen"a dos ñervos e molestia orgánica: a neurose pode
transtornar o metabolismo do paciente de modo a néle provocar
urna doenca orgánica; há mesmo urna serie de molestias orgá
nicas que na realidade sao muitas vézes tidas como resultado

— 313 —
de perturbagóes nervosas: asma, úlceras, tensáo cardíaca, e
outras que acometem freqüentemente o homem contemporáneo.
É o que permite estender, até certo grau, as doengas orgánicas
o que atrás dizíamcs a respeito das neuroses e dos conflitos de
consciéncia.

Em particular, recentes estudos de asma tém corroborado éste


novo modo de considerar a doenca orgánica. Conscientes de que a
asma consiste em espasmos musculares provocados pela aeáo dos
mais diversos fatóres sobre urna constituigño íisica excessivamente
sensivel, os médicos procuravam outrora por meios físicos e químicos
neutralizar os espasmos para debelar as crises de asma; tal trata-
mento podía acalmar um achaque asmático, mas nao impedia o
surto de ulteriores crises. Outro processo terapéutico, já mais radical,
visava eliminar as causas de irritacáo ou os estimulantes nefastos
para o paciente; mas também éste método se comprovava pouco
proficuo, pois a maioria dos asmáticos é «polivalente», isto é, sensivel
a grande número de influencias. Assim as tentativas de curar a asma
por processos físico-químicos se mostravam mais ou menos vas
(Marcel Proust era acometido de violentas crises de asma, quando
via rosas!). Quando, porém, os médicos se puseram a considerar a
índole «funcional» ou o sentido que a asma possa ter numa persona-
lidade humana, averiguaram o seguinte: o asmático é alguém que
sofre da angustia mais penosa possivel, pois julga achar-se na situacáo
de quem está para se afogar; ora, submetendo-se ésse paciente a
testes e análises psicológicos, verifica-se que na raiz de urna doenca
asmática está geralmente urna angustia «existencial», ou seja, urna
situacao de vida cm que a personal idade inteira é profundamente
angustiada; em conseqüéncia. os clínicos passaram a recorrer a tera
péutica psicológica em casos de asma, terapéutica que multas vézes
deu resultados ineompar&velmente superiores aos dos métodos ante
riores. O asmático, por conseguinte, é freqüentemente alguém cuja
situacáo de vida angustiada ou cuja opressao psíquica se exprime
numa opressáo ou numa angustia física.
Também sobre as úlceras do estómago a medicina moderna pode
dizer algo de muilo valioso. Sabe-sc que, de modo geral, as perturba-
cóes digestivas sao particularmente freqüentes em pessoas que se
queixam de nao ser felizes ñas suas tentativas de amar. Já aconteceu
que um vario, mal sucedido em sua vida conjugal, tenha comecado a
sofrer de úlcera gástrica; logo, porém, que se separou da esposa,
recuperou a saúde.
Experiencia muito significativa a éste propósito é a que se realizou
em 1950 numa clínica sueca. Foram entao submetidas a exame psico
lógico 108 pessoas atetadas de úlcera, apurando-se os seguintes
resultados:
54 dos pacientes sofriam de conflitos psíquicos agudos;
29 padeciam conflitos psíquicas crónicos;
22 apresentavam síntomas de desequilibrio psicológico;
3 apenas pareciam nSo depender de fatóres psicológicos.

c) As doencas infecciosas. Neste tipo de molestias, parece


mais difícil supor a intervengo de fatóres de ordem psíquica.
No entanto, observa-se que as epidemias infecciosas nao atingem
igualmente todos os homens da mesma regiáo (alguns nao sao

— 314 —
mesmo atingidos) nem se alastram igualmente por toda a
parte. Essa desigualdade pode muito bem ser atribuida a diversa
resistencia que os organismos opóem á contaminagáo infecciosa;
há pessoas predispostas a tal e tal doenga, como há também
pessoas premunidas... Tal explicagáo é, sem dúvida, válida,
mas parece exigir um complemento. Estudos recentes feitos
sobre a tuberculose deram a ver o seguinte: o bacilo desta
molestia contamina, inegávelmente, com mais freqüéncia as
pessoas que entram em contato com tuberculosos; analisando-se,
porém, o estado psíquico dos pacientes, verificou-se que a tuber
culose contagia e se desenvolve principalmente ñas fases de
crise de consciéncia por que pode passar urna pessoa.

Eis um caso muito significativo.


Durante muitos anos a enfermeira N. dedicou-se zelosamente a
urna clínica de tuberculosos, sem ser contagiada. Casou-se e deixou
o servico, passando a viver feliz com seu marido; o tempo de coabita-
cao, porém, foi breve, pois logo o esposo teve que partir para a
guerra. A enfermeira, entáo, obrigada a ganhar o pao, voltou a traba-,
lhar na mesma clínica sem, o principio, sofrer contaminacáo alguma.
Veio, porém, a apaixonar-se por um homem com o qual estava prestes
a contrair uniáo ilícita, quando repentinamente foi vítima de violenta
hemoptise... Ora a análise psicológica dessa paciente averigüou que
ela se sentía ainda profundamente ligada ao seu legitimo marido e
quo a voz da consciéncia Ihe censurava claramente a infitlelidade que
ola estava para cometer. O caso é significativo, porque durante anos
a mesma pessoa sujeita ao perlgo de contaminacao só velo a contrair
a molestia no momento em que seu estado de consciéncia se abalpu.
Dir-se-á. porém: «A coincidencia do contagio com o desajuste
de consciéncia foi meramente casual!» Esta tentativa de explicacao
— que nada explica — nao é aceita pelos estudiosos, vista a freqüéncia'
de casos análogos que se tém registrado. Os bons cientistas, levando'
em conta ésses fntos, eoncluom que a predisposicño para a tuberculose
e, de corto modo, para as doencas infecciosas em geral estáí em parte; •
baseada na situacáo psíquica de cada individuo; o risco de contrair,
urna infeccáo nao depende apenas do perigo de contagio a que cada
um se expóe, nem apenas da resistencia física de cada organismo,'
mas também do estado de alma de cada pessoa.

d) As domáis doencas a, em particular, as molestias


moríais. A todo homem incumbe nesta vida a tarefa de desen
volver as virtualidades de sua personalidade. Ora ninguém
negará o papel importante que a doenca desempenha no exer-
cício dessa tarefa. O homem receptivo, o homem que se deixa
educar pela tribulagáo, aprendendo a se desapegar dos valores
transitorios da materia, para mais aderir aos do espirito, muito
ganha em generosidade e heroísmo ao padecer a molestia; esta
é, para nao poucos, a genuína escola de maturidade, escola
sem a qual nunca sairiam da mediocridade; nota-se que varios
dos grandes vultos da humanidade foram durante toda a sua

— 315 —
vida acompanhados por achaques fisicos. — É o que nos leva
a dizer que, em última análise, toda e qualquer doenga tem
significado providencial, do qual o paciente deve procurar tirar
partido.

Em particular, a molestia que o médico diagnostique como mortal,


vem a ser a exortacáo do Pal Celeste para que o homem melhor se
disponha a comparecer diante de Deus. Donde se vé que, lora casos
excepdonais, os amigos do paciente podem a éste prestar grande
beneficio revelando-lhe seu auténtico estado de saúde; evite-se que
a marte sobrevenha sem que o doente tenha previamente tomado
consciéncia déla.
O que acabamos de dizer, tem suas aplicacóes de grande valor
na vida cotidiana, como se verá no parágrafo abaixo.

2. As consecuencias práticas

a) Para o paciente, a doenga será sempre ocasiáo de um


exame de consciéncia (o cristáo, em particular, sabe que a
doenga entrou no mundo em conseqüéncia do primeiro pecado;
cf. «P. R.» 2/1957, qu. 7); a natureza humana, mesmo nos
santos da vida presente, será sempre suscetível de correcto e
melhora.
A medicina moderna dispóe de urna serie de recursos que
costumam produzir com certa presteza a cura do doente. O
emprégo de tais remedios é muito desejável, pois todo individuo,
ñas circunstancias normáis, tem a obrigagáo de defender a sua
saúde. Acontece, porém, que, atravessando mais rápidamente
a molestia, o homem contemporáneo menos ensejo tem de «cair
em si» e tomar consciéncia do seu estado geral de corpo e
alma; a doenga assim se torna menos significativa no curso
de vida do individuo. Em conseqüéncia, o paciente, rápidamente
curado, continua a carregar consigo os problemas de ordem
espiritual que talvez estivessem na raíz da doenga debelada;
nao será para recear entáo que, apenas parcialmente curado,
torne a cair enfermo?

«Por isto nos, médicos, conhecemos doentes que urna interminável


historia patológica traz continuamente á nossa presenca. De seis em
seis meses, ou ainda mais a miüde, novo achaque se verifica: um
resfriado sucede a urna gripe; a seguir, vém urna furunculose e urna
pneumonía com inflamacáo das cavernas laterals, ou ainda um desas
tre ou urna fratura, que requerem intervencao cirúrgica, e assim por
diante. Nunca em algum désses casos o doente toma consciéncia
do sentido da molestia. Será preciso, porém, dizer que um enfermo a
vacilar constantemente entre a saúde e a doenga so se restabelecerá
por completo restaurando em si a ordem interior que deve reinar
entre a alma e o carpo» (Dr. Arthur Jores, artigo citado).
Tais observag5es merecem, sem dúvida, toda a atencáo do leitor
sincero.

— 316 —
Além disto, nota o Dr. Jores que a medicina moderna, pelos novos
recursos que emprega, conseguiu, sem dúvida, prolongar a duracáo
media da vida humana, debelando males que outrora seriam fatáis;
nao conseguiu, porém, diminuir o número de pessoas doentes; antes,
éste parece aumentar. «Em abono do que afirmo, refiro-me apenas
a neurose... que tende a tornar-se a molestia da nossa época...
Poder-se-á debelar a pneumonía, por exemplo, á custa de injecSes
de penicilina; com isto, porém, ninguém impedirá o paciente de cair
em perturbacíio neurótica por nao ter realizado o sentido da sua
doenca» (Jores, art. cit.).
Jores frisa bem que nao quer em absoluto depreciar a ciencia
e a técnica modernas, mas visa únicamente chamar a atengáo para
um problema de outra Índole, pelo qual o enfermo e o médico contem
poráneos nao podem deixar de se interessar.
Torna-se assim lógico consideráronos agora as conseqüéncias dos
íatos referidos.

b) Para o médico: éste, principalmente quando católico,


nao poderá limitar sua tarefa ao setor somático e bioquímico;
verá, antes, no paciente urna personalidade em que o físico
e o psíquico sao simultáneamente afetados; e procurará, na
medida do possivel, ajudar o doente a remediar nao sómente
ao corpo, mas também á alma ou á consciéncia. Incumbe
destarte ao médico u'a missáo que toca as raias do sacerdocio
e que de certo modo prepara a fungáo do ministro oficial de
Deus junto ao doente; o clínico nao poderá dar por consu
mada a sua tarefa enquanto ele nao tiver procurado fazer
o doente tomar consciéncia do sentido de sua doenga, contri-
buindo á maturidade da sua personalidade. — Está claro,
porém, que, para exercer tal encargo, o médico há de ser
portador de apurado senso religioso e de esclarecida consciéncia
crista; sem isto, em váo se esforgaria por solucionar crises de
almas; arriscar-se-ia mesmo a causar mais daño do que
beneficio ao paciente!

SEQUIOSO (Sao Paulo):

2) «Os curandeiros e os que exercem a medicina em


nome de ciencias ocultas ou do S. Evangelho, será» realmente
condenáveis, como se diz?
Rcalizam muitas curas maravilhosas. Nao será isto o
sinal de que Deus está com éles?»

O exercicio da medicina em nome da Religiáo é algo de assaz


comum em nossos dias, até mesmo ñas classes mais elevadas da
sociedade.
Para proceder com seguranga no estudo de táo estranho fenómeno,
procuraremos abaixo analisar o comportamiento do terapeuta ocul
tista e o do seu paciente — o que nos possibilitará chegar a algumas
conclusoes significativas.

— 317 —
Na elaboracáo da presente resposta, muito nos valemos do estudo
de Maurice Colinon: «Les Guérisseurs». Paris 1957, na colecao «Le
Bilan do Mystére» n' 1. Grasset, éditeur. — Antes de escrever tal
obra, o autor realizou demoradas pesquisas no mundo dos curandeiros,
dedicando-se, a seguir, á prática do magnetismo durante alguns meses.
Guiado por tal experiencia, Colinon resolveu escrever, proíessando
«nao obedecer a preconceito ou paixáo de especie alguma» (ob. cit.
pág. 8).

1. A psicología do curandeiro

Observa-se que há curandeiros e terapeutas ocultistas dos


mais variados tipos: alguns fazem sobre o paciente uma prece
acompanhada de «bénciío»; outros dáo-lhe um cha específico;
outros, agua «milagrosa», que o enfermo deve beber ou aplicar
á parte doente do seu corpo; ainda outros entregam um «ben-
tinho» ou um talismá... Em geral, cada curandeiro especiali-
za-se no recurso a um désses meios, que ele costuma aplicar
independentemente da índole da doenca que lhes seja apresen-
tada pelo cliente.
Contudo, por muito pobres e monótonos que sejam os
procedimentos dos curandeiros, o resultado que estes anunciam
e que os pacientes dizem obter, é sempre o mesmo: recuperagáo
da saúde.
Déste fato já se deduz uma conclusáo importante: na
chamada «medicina livre» nao é própriamente o remedio que
importa e que cura, mas, sim, o homem ou a pessoa do curan
deiro.

Alias, isso é bem compreensívcl. O curandeiro. nao tendo estudado


a medicina científica, nao se pode interessar muito pelo diagnóstico
científico das molestias; ele tcm que visar muito mais o enfermo do
que a enfermidade como tal; a essénda da sua arte consiste em cstabc-
lecer um contato de pessoa a pessoa com o seu consulente, aue o vai
procurar freqüentemente mim estado de ansiosa expectativa. Nao
estando ligado as normas da medicina científica, o curandeiro pode
com destreza amoldar-se á personalidade do seu paciente, procurando
«simpatizar» com ele («simpatía» no sentido etimológico de «padecer
com..., identiíiear-s<? eom quem soíre»), ... procurando outrossim
corresponder ao temperamento e aos anelos que o enfermo Ihe apre-
senta; em uma palavra, ele se torna para todos «o homem do momento».

Transcrevemos aqui dois testemunhos que bem ilustram quanto


acaba de .ser dito. O primeiro provém de um curandeiro italiano, o
Dr. Racanelli, que, para se «informar á lei civil, fez seus estudos
de medicina:
«O segrédo do curandeiro reside precisamente nessa comunháo,
consciente ou inconsciente, com o enfermo que néle tem fé. O curan
deiro nao cura a doenca. mas o doente» (F. Racanelli, Le don de
Guérison. Delachaux et Niestlé 1951. 33).
Confronte-se tal depoimento com o seguinte testemunho, emanado
de um médico norte-americano, o Dr. Arnold Hutschnecker, o qual
procede estritamente segundo os métodos científicos:

— 318 —
«O novo homem de ciencia, o especialista, aproxima-se do doente,
munido de aparelhagem completa e variegada. Ele vé diante de si
nao própriamente um enfermo, mas urna enfermidade» (Arnold Hut-
schnecker, La volonté de vivre. Robert Laffont 1954, 10).

Justamente por nao possuir formagáo de medicina cientí


fica, o curandeiro fácilmente eré possuir um dom extraordinario
— o dom das curas — assim como a missáo divina de utilizar
essa graca em favor do próximo. É o que explica certos títulos
atribuidos a famosos terapeutas de Franga: «Radar do diagnós
tico, Mulher-rádio».

2. A psicología do cliente do curandeiro

Maurice Colinon, durante seus dez anos de estudos do


assunto, realizou um inquérito junto a doentes que iam procurar
os curandeiros, indagando quais os motivos por que assim
procediam. As respostas mais freqüentemente obtidas eram
do teor seguinte:

«... porque sabem coisas que todos nos ignoramos».


«... porque cíes nos compreendem e nos os compreendemos».
«...porque os curandeiros restauraram os remedios simples e
naturais, já há muito tempo esquecidos».
«... porque o curandeiro é gente de vanguarda^.

Como se vé, estas respostas nao se baseiam própriamente


em dados científicos nem em raciocinio rigoroso; sao, antes,
a expressáo de urna benevolencia preconcebida para com os
curandeiros; estes parecem despertar nos clientes o sentido
do «misterioso» ou do «místico», sentido particularmente
arraigado na alma de tais pacientes.

Outro inquérito do mesmo teor, efetuado pela revista «Présences»


(n* especial «Malades et guérisseurs», pág. 56), sugería semelhante
conclusáo. Notem-se algumas das respostas entáo registradas:
certas pessoas confessavam que iam ter com o curandeiro, porque
tentavam escapar a urna intervengao cirúrgica ou a internagáo em
casa de saúde;
outras, ... porque desejavam evitar a compra de remedios caros;
outras, ... porque o tratamento receitado pelo curandeiro nao é
doioroso.

Sintetizando os resultados de numerosas análises e pesqui


sas, os estudiosos chegaram á verificagáo seguinte: á seme-
Ihanca do que se dá com o próprio curandeiro, também o
consulente déste é movido primariamente por razóes emocio
náis; nao examina muito a ciencia nem o preparo intelectual
do terapeuta; o que, antes, o fascina é a pessoa déste, geral-

— 319 —
mente apregoada como extraordinaria, dotada de poderes tau
matúrgicos, de intuigóes místicas, etc. É a pessoa, e nao o
remedio, que age sobre ele; verifica-se até que o mesmo remedio
aplicado ao paciente por outra pessoa que nao o curandeiro
«tal», nao produz efeito algum.

Procurando explicitar ainda mais a psicología do cliente da


«medicina livre», lembraremos o seguinte: o estado de ánimo de
quem vai consultar um ocultista é bem diferente do estado de quem
se dirige a um médico própriamente dito. Quem vai ao ocultista ou
ao curandeiro, se acha em situagáo de sofrimento exacerbado. Desi
ludido dos recursos que a ciencia costuma indicar no caso respectivo,
tal infeliz ouve repentinamente falar de nova esperanca que lhe parece
sorrir na pessoa de tal ou tal «taumaturgo»; varias curas maravilhosas
lhe sao relatadas... A impressáo é tal que, pondo de lado o senso
crítico, o enfermo fácilmente concluí: «Porque nao tentaría, também
eu, urna consulta ao homem portentoso? Afinal de contas, nada
perderei com isso!». Enceta entáo urna viagem que por vézes é longa
e penosa, apta a acumular impress6es na mente do enfermo; no lugar
de chegada, junto ao consultorio do «taumaturgo», tem multas vézes
que esperar em condicSes incómodas, entre dezenas de doentes febris,
uns desfigurados, outros quicá transfigurados pela esperanga; enquan-
to aguardam, váo narrando uns aos outros as maravilhas efetuadas
pelo terapeuta; a atmosfera fervilha; o sonho de recuperarem a saúde
se torna cada vez mais vivaz e impressionante; dir-se-ia que pouco
falta para que se torne realidade!...
Chegado finalmente á presenca do «taumaturgo», o enfermo, por
seu olhar suplicante, por sua voz emocionada, por suas maos trémulas,
parece exprimir duas coisas apenas: extraordinaria confianca no
médico e o pedido de que éste ponha em agáo o seu poder milagroso...

3. O benéfico encontró

O encontró com a personalidade do paciente nao pode


deixar de abalar, de certo modo, também a personalidade do
terapeuta ocultista; éste, estimulado pela atitude confiante de
quem assim o interpela, julga-se, ainda mais do que antes,
capacitado para socorrer ao infeliz; a fé «na missáo que Deus
lhe deu» torna-se néle ainda mais dinámica. Curandeiro e
doente assim entram em acordó tácito (acordó que é o efeito
da sugestáo reciproca): «Nao há dúyida, a cura há de ser
obtida, nao poderá deixar de ser eficaz o recurso aplicado
(prece, béngáo, agua lustral, cha...); o poder do Alto há
de corresponder maravillosamente». O curandeiro póe entáo
em prática a sua arte, com todo o aparato de que ela se
costuma revestir. — Tal arte por si é certamente inadequada
para resolver a situagáo; acontece, porém, que ela pode produzir
— e de fato muitas vézes produz — o efeito desejado, nao por
seu valor intrínseco, mas por exercer a fungáo que se poderia
dizer de «catalisar», isto é, de acelerar um processo psíquico

— 320 —
já iniciado no paciente. Éste processo psíquico é que provocará
finalmente a cura (real ou aparente, duradoura ou transi
toria...; isto depende das circunstancias de cada caso) da
molestia que acabrunha o consulente.

Assim se explica que em nao poucos casos o encontró do enfermo


com o curandeiro acarrete realmente a restauracáo (ao menos apa
rente) da saúde. O tratamento entáo é psíquico, e nao somático, como
se depreende da análise ácima (já verificamos, na resposta anterior
a esta, que grande número de molestias somáticas sao, pela medicina
moderna, íntimamente relacionadas com o psiquismo do paciente).
Observe-se ainda que, no encontró do enfermo com o seu curan
deiro, aquéle nao é sómente passivo nem éste sámente ativo, mas
há entre ambos influencia reciproca; talvez mesmo o paciente dé
mais do que o próprio curandeiro.
Sim; «o doente... reforca no curandeiro a acáo da sugestáo
coletiva... sem a qual o curandeiro nada conseguirla... O doente
oferece ao mago aquilo de que éste precisa: a sua fé, o seu ato de
íé (no poder taumatúrgico do terapeuta). Entao estabelece-se o
contato... entre dois inconscientes gémeos, igualmente fracos, igual
mente sugestivos, como se um dissesse ao outro...: 'Eu te torno
curandeiro', e o outro respondesse: 'E eu, eu te curo'... Multo chama
a atencao o fato de que a maloria dos curandeiros nao tem confianca
em seu próprio poder senáo na medida em que essa confianca lhes
é imposta pelos doentes mesmos» (Colinon, Les Guérisseurs 111).

4. Pesquisas científicas comprovam ...

A explicagao do processo de cura que acabamos de dar,


supóe sejam o curandeiro e seu cliente personalidades em alto
grau capazes de receber sugestóes; ambos se deixam, sim,
afetar profundamente pela «onda do momento» e comunicam
um ao outro, de maneira extraordinariamente forte, a impres-
sáo que tal onda possa causar.
Essa afirmagáo, mormente no tocante aos curandeiros,
tem sido comprovada por pesquisas, cujos resultados principáis
váo aqui brevemente consignados.

1. Em abril de 1954, realizou-se em Saint-Paul-de-Vence (Franga)


um Coloquio Internacional de Parapsicología (estudo de fenómenos
que ocorrem ao lado — para, em grego — dos normáis, nao, porém,
contraditóriamente aos normáis). Partíciparam do certame dentistas
de renome, como Adlous Huxley e os professdres de Universidade
Bender (Friburgo), Ducasse (Brown, EE.UU. da América), Eisenbud
(Denver), van Lennep (Utrecht), Meng (Basiléia), Meier (Zürich),
Servadlo (Roma), Thouless (Cambridge), Nrban (Innsbruck), assim
como o Dr. Leuret, presidente do «Bureau des Constatations Medicales»
(Comissao de Exames Médicos) de Lourdes. Entre os principáis pontos
do programa de estudos estavam consignadas as «curas paranormais»
(sua origem e seu desenvolvimento). Pois bem; sem dificuldade os
estudiosos se mostraram de acardo em reconhecer «a importancia
essencial, única, da personalidade do curandeiro» em tais processos.
Em conseqUéncia, o Prof. van Lennep propós a análise aprofundada

— 321 —
da psicología do curandeiro, da psicología do paciente, assim como
das relacóes que entre éles se estabelecem por ocasiáo da terapéutica.
Van Lennep pessoalmente submeteu curandeiros holandeses ao
teste das «quatro imagens»; o Prof. Heiss fez que outros passassem
pelo teste das «pirámides de cor». Etn conclusáo, ambos verificaram
que tais taumaturgos apresentam entre si profundas semelhancas de
ánimo, a ponto de se poder dizer que constituem quase um grupo
psicológico caracterizado.

Pesquisas ainda mais significativas foram efetuadas pelo


Dr. Moser, de Zürich, o qual recorreu aos testes de Szondi,
cujo desenrolar é o seguinte: apresentam-se ao cliente seis
series de fotografías, cada uma das quais representa pessoas
de tipos psicológicos muito diversos; em cada serie, o «sujeito»
deve indicar os dois semblantes que mais Ihe agradam e os
dois que menos o atraem; a escolha há de ser rápida e espon
tánea, como um reflexo.

O Prof. Szondi, ao conceber tal teste, baseava-se na tese de que as


escolhas que o hotnem faz na vida, dependem de genes próprios,
responsáveis pela atracáo ou pela repulsa que tal ou tal pessoa experi
menta era relacáo a tais e tais outras pessoas. Existe, portanto, con
forme Szondi, um «genotropismo», tropismo éste que vai mover, por
exemplo, tal doente a escolher tal médico ou tal curandeiro; os
mesmos genotropismos existentes em pessoas diversas provocam
análogos comportamentos na vida e íundam uma especie de comunháo
de sortes entre essas pessoas.

Pois bem; os testes de Szondi aplicados pelo Dr. Moser a


curandeiros suigos levaram as duas conclusóes seguintes:

1) as curas tparanormais» (no nosso caso:... ocultistas) verifi-


cam-se com freqüéncia toda especial entre pessoas associadas entre
si por afinidade psicológica ida qual elas geralmente nao tém cons-
ciéncia).
2) «Personalidade iraca» é condicáo necessária para que se déem
tais curas.
Por «personalidade iraca» entende-se aqui «temperamento profun
damente influenciável ou sugestionável». Em uma palavra, as duas
conclusñes ácima confirmam o que diziamos: a terapéutica curandei-
rista supóe entre o «médico» e seu cliente afinidade baseada em
elevada tendencia a se deixarem empolgar por misticismo, e misti
cismo cegó ou descontrolado.
«Poder-se-ia crer que ésse tipo de personalidade (iraca, sugestio-
nável) é nocivo ao prestigio dos curandeiros. De modo nenhum. É, ao
contrario, a condicáo necessária ao seu éxito. Pois o curandeiro por
si nada é; ele só é tal, mesmo aos seus próprios olhos, por Influencia
dos doentes que o v3o procurar e por influencia da fama que estes
Ihe proporcionam. O ambiente místico é indispensável ao curandeiro.
Caso se atenué ou desapareca, o 'dom' desaparece com o ambiente»
(Colinon, ob. cit. 105s).

A sugestionabilidade dos que se acham envolvidos no


curandeirismo, explica que muitos e muitos déles possam estar

— 322 —
agindo de boa fé: totalmente empolgados pela situacáo que se
cria em torno déles, nao conseguiriam sequer suspeitar algum
erro no seu procedimento pessoal.

2. Também a grafía dos curandeiros foi submetida a


exame... Um grafólogo de autoridade, membro do Conselho
da Sociedade de Grafologia de Franga, tendo analisado a escrita
de bom número désses terapeutas, averigüou entre as notas
mais comuns as seguintes:
temperamento pouco dado a intelectualidade e ao raciocinio,
desequilibrio de glándulas endocrinas (hipófise e suprarrenais),
nervosismo acentuado.
(Noticia colhida na citada obra de Colinon, pág. 113s).
Estes dados fazem eco aos dos testes psicológicos atrás mencio
nados: a peculiaridade do curandeiro reside no seu psíquico; nada
tem que ver nem com ciencia própriamente dita nem com a interven-
cáo de fórcas superiores ocultas.

3. Instituiram-se outrossim estatisticas a respeito das


molestias que mais freqüentemente sao curadas por via para-
normal, verificando-se que em media 83% dos casos bem suce
didos tém por objetivo urna das seguintes doengas: certos
fibromas, hipertiroidismo, úlceras do estómago, asma, infeccóes
cutáneas e molestias ditas «sem causa».
Ora a medicina tem averiguado que sobre tais enfermida-
des a sugestáo exerce influencia por vézes decisiva.
O assunto já foi abordado na resposta á questao precedente;
si-Kuem-se aquí apenas algumas notas complementaros.
É Colinon quem observa:
«Milhóes de seres humanos vivem numa atmosfera saturada de
bacilos; contudo sómente alguns dentre éles caem doentes, e multas
vézes nao sao os menos resistentes do ponto de vista puramente
fisiológico. Um dos grandes misterios da vida humana é justamente
o de saber porque somos atingidos em tal momento por tal infecgáo
á qual escapamos em outras circunstancias análogas ou mais propi
cias á contaminacao. Verifica-se assim que nao há 'doencas físicas'
e 'doencas imaginarias'; há, sim, seres humanos em desequilibrio,
nos quais a molestia equivale a um brado de alarme» (ob. cit. 117).
Ilustrando com urna imagem as idéias ácima, o Dr. Hutschnecker
escrevia:
«O agente físico que chamamos 'causa da doenga' — o microbio
da gripe ou a célula maligna — se relaciona com a doenca como o
Uro do revólver de Saravejo se relacionou com a primeira guerra
mundial» (La vulonlé de vivre 13).
O que quer dizer: a acáo do bacilo mórbido é por vézes mera
ocasiáo para que um processo de desordem psíquica latente no íntimo
de urna personalidade prorrompa finalmente num disturbio somático.
Se nao fóra essa desordem psíquica, o bacilo nao lograría efeito.
Quanto ás molestias cutáneas em particular (urticaria, verrugas,
eczemas, etc.), Colinon (que, como notamos no inicio desta resposta,
praticou a medicina conforme as normas do magnetismo) assevera
que constituem o setor de triunfo de todo curandeiro principiante:

— 323 —
«Lembro-me da minha primeira paciente... a qual, já havia dez
anos, sofria de eczema crónico. Em duas sessóes obteve a cura.
Foi o que deu fundamento á minha fama de taumaturgo... Nao
me lembro de ter alguma vez fracassado em caso de eczema ou de
verruga... Basta soprar sobre as verrugas. Era o que eu fazia
conscientemente. O enfermo executava o resto, isto é, em horas
marcadas efetuava urna serie de gestos complicados que eu inventava
conforme o caso. O essencial era que tais gestos exigissem muita
atencáo e muito lempo. — Nao se diz, alias, que o segrédo da eficacia
dos cataplasmas consiste no fato de exigirem meia-hora de prepa
rativos?» (ob. cit. 119s).
Por finí, a propósito das doencas cuja origem nao é ¡mediata
mente perceptivel (doencas ditas «sem causa», como acontece com
certas enxaquecas, nevralgias, palpitaeóes cardiacas, insuficiencias
hepáticas, paralisias parciais), verifica-se muitas vézes que estáo
profundamente associadas a um estado psiquico perturbado; íígado,
coracáo, estómago se acham. do ponto de vista fisiológico, em con-
digoes totalmente normáis; de nada adíantaria aplicar-lhes drogas
e tratamentos; o que deve ser reformado em tais casos, é o estado
de ánimo do paciente; ora é justamente isto o que urna visita ao
curandeiro pode muitas vézes provocar (recurso contudo precario,
pois, como veremos adiante, nao soluciona o problema pela raiz).
«O homem que é causa da sua própria doenga (sem ter conscién-
cia disso, é claro; muitas vézes mesmo, recusando-se .a admitir tal
hipótese), pode ser causa da sua própria cura. Basta, para isto, que
o processo psicológico tome o sentido oposto» (Colinon, ob. cit. 120).

Os dados ácima corroboram bem o que anteriormente


dissemos sobre a importancia capital do fator psíquico ñas
curas dá chamada «medicina livre ou ocultista». Resta-nos
agora rematar a explanagáo propondo breve

5. Reflexao final

É inegável que, por arte dos curandeiros, se podem debelar certas


molestias. Contudo a análise de tais curas dá a ver que nao se trata
de efeitos sobrenaturais, mas, sim, do desencadeamento de íórcas
psíquicas latentes no próprio enfermo e «catalisadas» no momento
oportuno pela presenca e pela acáo do curandeiro. Os progressos da
medicina moderna, principalmente a descoberta do caráter psico-somá-
tico das doencas humanas, fornecem assim a explicacao dos fenómenos
do curandeirismo (um ou outro caso talvez leve a supor direta inter-
vengáo do demonio).

Ninguém negará que a medicina ocultista é muitas vézes


praticada por pessoás (terapeutas e pacientes) dotadas de
sinceridade. Contudo essa técnica nao pode deixar de provocar
a repulsa de quem tenha o espirito um pouco esclarecido,
mormente de quem tenha o espirito cristio.
E por que?
Por dois motivos:
1) Do ponto de vista meramente humano ou psicológico,
verifica-se que o curandeirismo, longe de extinguir o mal do

— 324 —
paciente, apenas o desloca. Sim; o enfermo que sofría de um
estado psíquico manifestado por tais sintomas ou por tal doenga
do corpo, após a cura ocultista passa a sofrer de outro estado
psíquico pouco regular; éste nao se patenteia pelos mesmos
sintomas que o anterior, mas tende a se revelar cedo ou tarde
mediante nova doenga do corpo.

De resto, deve-se irisar que o adepto do curandeirismo padece


como que um recuo do seu psiquismo, tornando-se semelhante a urna
criancinha amedrontada, a bracos com suas angustias e á espera
das... «fadas» que a líbertaráo!

Ora está claro que nao vale a pena iludir-se com o recurso
a tal terapéutica!

2) Do ponto de vista cristáo, o curandeirismo representa


evidentemente um abuso da fé e dos valores religiosos. A fé
nao é algo que Deus dé ao homem para que se imunize dos
males do corpo e da vida presente; ao contrario, Cristo prometeu
aos seus fiéis a cruz como instrumento de purificagáo interior
— o que nao pode deixar de ser doloroso (cf. Mt 16,24);
acontece mesmo que, quanto mais elevado é o grau de perfeigáo
a que alguém se destina, tanto mais também deve contar com
a agáo da cruz em sua vida (cf. Apc 3, 19).
O cristáo doente, longe de pretender fazer da Religiáo o
instrumento de sua cura somática, procurará, á luz da fé,
rever o seu estado de alma e corrigir os defeitos moráis, gran
des ou pequeños, que ai possa haver. A fé ensina, sim, que
toda enfermidade se prende ao pecado, ao menos ao primeiro
pecado (o pecado de Adáo), cuja heranga todos nos trazemos.
Consciente disto, o discípulo de Cristo verá na sua doenga
um sinal providencial de Deus, que o desperta para um exame
de consciéncia e para a emenda de sua vida, vida quigá tibia
e sempre suscetível de perfeigáo maior. A fé, iluminando désse
modo o sentido da doenga de um cristáo, concorrerá eficaz
mente para tornar a enfermidade proficua, embora a fé nao
sempre contribua para restaurar a saúde do corpo (valor éste
que é secundario em comparagáo com o vigor sobrenatural da
alma).

Ulteriores esclarecimentos sobre os assuntos aqui explanados se


podem encontrar em

«P. R.» 28/1960, qu. 2 e 3 f (distincáo entre natural, sobrena-


11/1958, qu. 1 I tural e preternatural)

«P. R.» 18/1959, qu. 1 í (a influencia do demonio no surto de


23/1959, qu. 1 I doencas)

— 325 —
II. DOGMÁTICA

P. N. (Mariana):

3) «As falhas da natureza (a doenca, os seres defectuosos


e monstruosos, a própria morte) nao depoem contra a existen
cia de Deus ou ao monos contra a sabedoria c a bondade do
Criador?»

A questáo ácima focaliza um aspecto do grave problema do mal


existente no mundo, problema já abordado em «P. R.» 5/1957, qu. 1.
O assunto requer aplicacáo serena do raciocinio, isento de sentimen
talismo superficial. É o que nos propomos fazer nos incisos que se
seguem.

1. Que é o mal?

1. Antes de analisar qualquer dos aspectos do problema, torna-


-se-nos imprescindlvel definir o que se entende própriamente por «mal».
Urna das mais freqüentes causas de dificuldades no estudo da
questáo é a espontánea tendencia que se tem, de conceber o mal como
urna entidade positiva ou como um ser subsistente em si. Ora tal
nao se dá; o mal justamente nao é algo de positivo, mas é
nega§9o ou ausencia de ser
e — note-se bem — ausfincia_do.ser_deyWo ou do ser que deveria
existir em tal determinado sujeito (é o qui se chama própriamente
carencia).
Assim a falta de olhos no homem é um mal. pois a natureza
humana inclui em suas notas constitutivas a potencia visual; ao
contrario, a ausencia de asas na criatura humana nao é um mal, pois
a esséncia do homem nao implica a faculdade de voar.
Caso a carencia se dé na ordem fisica, ou seja, na linha da
esséncia estática ou da estrutura característica, de um ser, tem-se
o mal fisico (a cegueira, por exemplo). Se, porém, a carencia se veri
fica na linha moral, isto é, na atividade de um ser consciente que,
em vez de se encaminhar para seu auténtico Fim Supremo, se desvia
déste, tem-sc o mal moral ou o pecado (o furto, por exemplo).
Estas breves consideragóes sobre a esséncia do mal já sao sufi
cientes para que nos voltemos pnra a quostao focalizada no cabec.alho
déste artigo.

2. E os defeitos da natureza...?

1. A possibilidade de incorrer no mal ou de ser falho é ine-


rente ao conceito de qualquer ser criado. Com efeito, quem diz
«criatura», diz «ser que comecou a existir,
... ser, portanto, que existe transitoria ou con
tingentemente,
... ser que nao se explica por si mesmo, mas
que é explicado por outro, a saber, por
Aquéle que lhe deu inicio».

— 326 —
Sondo assim, entende-se que toda criatura, pelo fato mesmo
de nao possuir necessáriamente o seu ser (ela nao era, e veio
a ser por obra de um agente que nao é ela mesma), está sujeita
a perder ésse ser ou em parte (desvirtuando-se e definhando)
ou totalmente (caindo na ruina e na morte). Urna criatura que,
por sua natureza mesma, nao fósse sujeita a falhar e perecer,
seria urna contradigáo: seria simultáneamente
volúvel, transitoria, nao tendo em si mesma a sua razáo
de ser (pelo fato de ser criatura),
e imutável, absoluta (pelo fato de nao poder perder o ser).
Vé-se assim que Deus jamáis poderia ter feito urna cria
tura que nao fósse naturalmente sujeita a decair e perecer
(a infalibilidade, caso exista na criatura, é dom gratuito do
Senhor); Deus nao poderia ter feito outro Deus; o Absoluto
nao poderia ter produzido outro Absoluto.

2. Positivamente, a mesma conclusáo se poderia formular


nos seguintes termos: ao conceber cada criatura, o Criador
concebeu-a dotada de perfeigóes em grau limitado. Isto, longe
de depor contra a perfeicáo do Criador, era, e é, algo de neces-
sário, algo de inerente ao conceito mesmo de criatura.
O que caracteriza a obra do Ser Perfeito ou de Deus, é o
fato de que, no seu setor próprio, cada urna das criaturas é
harmoniosa, reunindo um conjunto de elementos bem concate
nados entre si; todos os seres criados sao limitados, mas nenhum
é, por sua esséncia mesma, contraditório ou absurdo.

Assim a natureza do ferro é em si devidamente equilibrada para


desempenhar as funcóes características déste metal; nao se espere,
porém, que urna barra de ferro cresca e se multiplique...!
A rosa representa um artefato de Criador no setor da flor; nao
se espere, porém, que raciocine...
O homem. sim, é dotado da faculdade de raciocinar; ninguém,
porém, exigirá que o homem, raciocinando, chegue a conhecer todos
as segredos da natureza; sdmente urna inteligencia é capaz de com-
preendor tuclo que existe: a inteligencia do Ser Absoluto ou de Deus.

3. A limitacáo e a defectibilidade inerentes a cada


criatura explicam até mesmo a existencia de indivíduos-mons-
tros no mundo. Sim; o Criador, ao acompanhar com a sua
Providencia a historia do género humano, nao tolhe a atiyjdade
das-criaturas ;ao contrario, suscita-a. Suscitando-a, porém, nao
modifica a natureza das criaturas, isto é, nao as torna infalíveis.
Donde se segué que na historia da natureza mesma podem
acontecer, e de fato acontecem, casos de aberracáo ou defor-
midade (cegos, paralíticos, surdo-mudos de nascenca, etc.); o
processo de formagáo de urna criancinha, por exemplo, no seio

— 327 —
materno supóe a agáo de glándulas, hormónios, tecidos, etc.
dotados de perfeicáo finita; ao se concatenaren!, compreende-se
que tais fatóres possjun_.desgastar-se, dando lugar a erros, que
sao os chamados «erros da natureza». Ésses erros, cuja freqüén-
cia é relativamente exigua, nao encobrem a harmonía geral
do universo nem depóem contra a perfeigáo^de Deus, pois nao
''sao devidos ao Criador ou á CausaJPrimária. mas as criaturas
ou as causas secundarias, qué o Senhor Supremo se digna
envolver no plano de administrar o mundo.
Urna analogía muito clara ilustra quanto acabamos de dizer:
Tenha-se em vista urna grande máquina sabiamente instalada
numa oficina para fabricar determinados objetos. O seu fundonamento
é automático; a pressáo sobre um botáo desencadeia urna corrente
elétrica que póe em movimento rodas, engrenagens, alavancas, etc.;
a materia prima colocada na abertura da máquina sai do lado oposto
pronta para o consumo... — Certamente urna sabía inteligencia
humana inventou tal aparelhagem; outra inteligencia humana — a
do operario técnico — desencadeia e observa atentamente o íunciona-
mento da máquina. Da parte do inventor e do operador, pode haver
i todo o esmero profissional desejável; nao obstante, é inevitável.jao
!fim do processo, o aparecimento de objetos defeituosos ou monstruo
sos (urna fólha de papel enrugada, em vez de lisa; páginas em branco
na impressáo de um livro, etc.). Tais falhas decorrem da deficiencia
; natural do mecanismo (houve desajuste em alguma engrenagem ou
comecou a faltar óleo numa alavanca, desgastou^se urna pesa...);
1 cada um dos elementos do conjunto sendo defectivel, é normal que
um ou out.ro deixe de prestar sua funcáo até mesmo quando menos
se espere. Os^smonstros» que procedam da máquina, nao desdizem
a inteligencia" do inventor nem a do operador; acontece, porém, que
nenhuma inteligencia pode fabricar pecas de metal, lona ou óleo
totalmente isentos de dosvirtuamcnto; quem conseguissc tal, já nao
estaría produzindo pecas de metal nem lona nem óleo...
Ora algo de semelhante se dá no universo: a sabedoria do Criador
concebeu e coordena as atividades de cada criatura em vista de urna
harmonía de conjunto... Pois bem; a perfeigáo do Criador se mani-
festa nüo numa pretensa ausencia de íalhas dos seres criados (isto
equivaleria a cancelar a atividade mesma désses seres); patenteia-se,
antes, na arte grandiosa de tirar dos males um bem mais relevante,
um bem muito reluzente, porque colocado sobre um fundo muito
negro, um bem mais admirável porque obtido por meio (ou apesar)
de toda a precariedade de instrumentos criados.

Flores que nao murchem nem morram sao flores artificiáis,


flores que nao possuem perfume,... que sao e nao sao...
Será que a vantagem de nao murchar, no caso, aínda é
vantagem? O fato é que Deus nao quis fazer flores artificiáis;
fé-las como as vemos na natureza, pereciveis, sim, mas perfu
madas e fiéis as leis da vida; o Criador permite que as flores
naturais morram, mas sabe utilizar essa própria morte das
flores para produzir novos e maiores bens...
Assim faz Ele também com os homens,... e com os males
dos homens!

— 328 —
4) A historia do pecado de Adáo e Eva parece inventada
para explicar a morte e seus precursores (a doenca, a fome, a
dor...) no mundo. Dir-se-ia, porém, que é fábula va, pois a
morte e as miserias nao precisam de explicacáo especial.

Ou será que se encontra fora do Cristianismo algo de


semelhante á historia de Adáo e Eva, corroborando a nocao
de urna culpa original?»

Elaboraremos nossa resposta examinando sucessivamente dois


tipos de depoimentos sobre o chamado «pecado original»: o testemunho
da razáo e o da historia das Religióes.

1. O testemunho da razao

Nao há dúyida, como foi dito na resposta n» 3 déste fascí


culo, a defectibilidade faz parte das características mesmas de
qualquer criatura; esta, nao possuindo em si própria a sua
razáo de ser (pois «ser criado» diz «ser produzido por outrem»),
nao é Ser Absoluto, mas relativo, limitado e, conseqüentemente,
sujeito a falhar.

Na base destas verdades, muitos teólogos afirmam que


quem atualmente observa o homem e o mundo, com suas defi
ciencias cotidianas, nao é necessáriamente levado a concluir a
existencia de urna catástrofe no inicio da historia, catástrofe
que teria sido a causa das fainas verificadas hoje no universo.
Estas se poderiam explicar satisfatóriamente pela defectibilidade
inerente a qualquer natureza criada.

Sao Tomaz de Aquino, porém, embora professe o que acaba


de ser dito, julga que há no mundo ao menos sinais de provável
rebordosa inicial. Sim; quem considera nao tanto as criaturas
em si, mas, antes, a Providencia Divina, é levado a crer que
esta deve ter, a principio, disposto os seres de modo tal que
os superiores em tudo possuíssem dominio sobre os inferiores,
e os menos perfeitos estivessem plenamente subordinados aos
mais perfeitos. Na verdade, tudo que Deus faz, traz a marca
da proporgáo e da harmonía. Ora nao seria ilógico supor que,
para conseguir tais características no inicio do mundo, a Sabe-
doria Divina tenha, por meio de dons gratuitos, harmonizado a
diversidade de tendencias das criaturas, introduzindo ordem
e colaboragáo entre todas. Assim teria o Criador garantido ao
homem o exercicio do primado que lhe compete em relagáo
aos demais seres visíveis. Por conseguinte, segundo Sao Tomaz,
quem leva em conta principalmente a Providencia, é induzido

— 329 —
a julgar que provávelmente os conflitos das criaturas entre si
(da carne, por exemplo contra o espirito, dentro do homem;
dos seres inferiores contra os superiores, no mundo) nao sao
originarios, mas devidos a urna violagáo da ordem inicial;
seriam urna sangáo acarretada por culpa do homem (que é
naturalmente responsavel pelos seres inferiores perante Deus).
Assim o observador de bom senso poderia, ao menos com certa
probabilidade, concluir a existencia do pecado original de que
fala a Escritura Sagrada (Génesis 3). Cf. S. Tomaz, Suma
contra os Gentíos IV 52.

Na verdade, a Biblia ensina que o Senhor Deus clotou o primeiro


casal — Adáo e Eva — de dons que, ultrapassando as exigencias da
natureza, permitiam ao homem gozar de períeita harmonía no seu
interior (entre a carne e o espirito) e em tdrno de si (as criaturas
inferiores serviam devidamente ao seu rei). No estado inicial, portante
a criatura humana era isenta de sofrer e morrer, assim como de
outros achaques naturais; contudo, note-se que tal condicüo provinha
de puro dom de Deus, que destarte se dignava corrigir as deficiencias
naturais do ser criado.
Abusando, porém, do livre arbitrio (que o Senhor lhe dera para
que voltasse nobremente ao seu Autor), o homem violou a ordem
estabelecida por Deus: o seu espirito insubordinou-se contra o Supre
mo Bem, pretendendo encontrar em si mesmo a felicidade; em conse-
qüéncia, o corpo humano já nao é sujeito ao espirito, mas tem suas
concupiscencias desregradas, e o mundo exterior, em vez du colaborar
com o homem, humilha-o e esmaga-o (a rocha, o mosquito, as secas
e as enchentes... sao capazes de destruir a vida humana).
Dai dizer-se, segundo a fé crista, que as desordens atualmente
registradas no mundo, embora pudessem a riRor ser explicadas pela
defectibilidade congénita das criaturas, na realidade nao sao simples-
mente naturais, mas resultam de urna derrocada que o homem,
pecando, infligiu a si e aos seres inferiores.
Esta conclusáo é agora ilustrada mediante

2. O testemunho da historia das Keligioes

Muito chama nossa atengáo o fato seguinte: os povos


antigos geralmente professam que a morte e as miserias neste
mundo nao sao algo de originario, mas, sim, conseqüéncias
de urna desordem introduzida pelo homem ao transgredir as
leis de Deus.
Ora o fato de que os homens localizados ñas mais desco-
nexas regióes do globo, detentores hoje de urna cultura que
corresponde aproximadamente á dos albores da humanidade,
professem idéntica concepgáo a respeito da morte e do seu
significado, insinúa que já a professavam quando se achavam
reunidos numa só populagáo, antes de se dispersarem. Esta
observagáo nao deixa de dar novo esteio á doutrina bíblica

— 330 —
segundo a qual Deus nao fez o mal nem a morte, mas estes
infortunios entraram no mundo em conseqüéncia do pecado;
tal ensinamento parece, conseqüentemente, pertencer ao patri
monio das noc.5es primordiais do género humano e só se explica
devidamente se de fato corresponde á realidade histórica.
Naturalmente, cada tribo primitiva deu á narrativa do
primeiro pecado seu colorido próprio, caracterizado pelo am
biente de vida e pela mentalidade particular de tal ou tal clá;
nao é ésse colorido, variável de povo a povo, que interessa ao
presente estudo, mas é a mensagem doutrinária assim transmi
tida. Essa mensagem, em última análise, faz eco á da Escritura
Sagrada (Gen 3), corroborando-a estupendamente.

Nao há dúvida, o confronto do texto bíblico com os documentos


pagaos dá a ver que a Escritura conservou a mensagem primitiva
revestida talvez de um ou outro símbolo (a fruta a significar o
preceito divino; a serpente a representar o demonio...); conservou-a,
porém, isenta de qualquer corrupcáo da superstigáo e do politeísmo.
Fora de Israel, a mensagem foi envolvida em aberragóes da religio-
sidade decadente.

Passamos, portanto, a enunciar algumas das narrativas dos


povos primitivos referentes á origem da morte no mundo.

1) Em New South Wales (Australia) varias tribos afirmam que


os primeiros homens foram destinados a nao morrer. Contudo era-lhes
proibido aproximar-se de certa árvore oca, em que abelhas selvagens
linham feito a sua colmeia. No decorrer do tempo, as mulheres cobi-
garam o mel da árvore proibida, até que, belo dia, urna délas, despre-
zando as admoestagóes dos homens, tomou do seu machado e o
arremessou contra o tronco; imediatamente saiu déste urna enorme
coruja. Era a Morte, a qual de entáo por diante circula livremente
sobre o mundo c reivindica para si tudo que ela possa tocar com
as asas.

2) Os pigmeus referem que Deus (Mugasa) a principio criou


dois rapazes e urna jovem, com os quais vivia amigávelmente na
floresta, como pai com seus filhos, num lugar de toda bonanga: nada
faltava aos homens, nem tinham que recear por alguma perspectiva
de morte. Mugasa apenas lhes proibira que procurassem ver a sua
face. Habitava urna tenda, diante da qual diariamente a jovem tinha
que depositar lenha para o fogo e um jarro de agua. Um dia, porém,
a moca, vencida pela curiosidade, escondeu-se atrás de urna árvore,
ficando a espreita do «Pai», que havia de aparecer. De fato, ela o
pode ver, quando estendia o braco reluzente de ornamentos a fim de
apanhar o jarro. A menina alegrou-se entáo profundamente e guardou
o segrédo do ocorrido. Mugasa, porém, percebera a desobediencia.
Chamou os tres irmáos á sua presenta e lhes censurou a falta,
predizendo-lhes que havia de os deixar; para o futuro, a indigencia
e a moríe pesariam sobre éles. Os prantos do grupinho humano nao
conseguiram deter a sentenga; certa noite Mugasa partiu rio ácima,
e nao foi mais visto. Quanto ao primeiro filho que nasceu a mulher,
morreu apás tres dias de existencia...

— 331 —
3) Os Bagandas da África Central contam que Kintu, o primeiro
homem, depois de ter superado varios testes, obteve a licenga de se
casar com Nambi, urna das filhas de Mugulu (o Céu ou o Alto). O pai
da donzela deixou que ela viesse com seu consorte para a térra,
trazendo ricos presentes, entre os quais urna galinha; ao despedir-se
do casal, mandou que se apressassem por sair, aproveitando o íato
de que o irmao de Nambi, chamado Warumbe (a Morte) estava fora
de casa; recomendou-lhes, outrossim, que nao voltassem para apanhar
o que quer que tivessem esquecido. Durante a caminhada, porém,
Nambí veriíicou que chegara a hora de dar de comer á galinha; já
que esquecera o milho, consentiu entüo em que Kintu voltasse á casa
para buscá-lo. Mugulu, o pai, ao rever o genro, irritou-se pela deso
bediencia; Warumbe (a Morte), estando de novo em casa, fez questáo
de acompanhar Kintu; toda resistencia tendo sido vá, a Morte desceu
com o casal para a térra, onde até hoje habita com os homens.
4) Graciosa é a historia que contam os japoneses: o principe
Ninighi se enamorou pela princesa «Florescente como as flores».
O pai da jovem, que era o Deus da Grande Montanha, consentiu em
seu casamento, e deixou-a partir com sua irmá mais velha «Alta
como as rochas». Esta, porém, era tremendamente feia, de sorte que
o noivo a mandou voltar para casa. Em conseqüéncia, o velho Deus
amaldicoou o genro, e declarou que sua posteridade seria frágil e
delicada como as flores!
5) Os «Bataks» de Palawan (ilhas Filipinas) contam que o seu
deus costumava ressuscitar os mortos. Todavia certa vez os homens
o quiseram engañar, apresentando-lhe um tubarao enfaixado como
um cadáver. Quando a Divindade descohriu a astucia, amaldigoou
os homens, condenando-os a ficar sujeitos ao sofrimento e á morte.
6) No territorio, de Uganda (África) os «Masáis referan que
um dos seres divinos ou Demiurgos deu a um homem a seguinte
ordem: todas as vézes que morresse urna crianga, deveria remover
o cadáver dizendo: «Homem, morre e vem de novo á vida! Lúa, morre,
e desaparece definitivamente!». Essas palavras produziam o efeito
de ressuscitar. Um dia, porém, o dito comissário da Divindade, posto
diante de urna erianca que nao Ihe pertencia, houve por bem deso
bedecer, invertendo os dizeres da famosa fórmula. Quando na vez
seguinte repetiu a frase certa sobre um de seus próprios filhos,
verificou que ela perderá o seu poder. De entáo por diante acontece
que, quando a Lúa morre, ela volta á vida, ao passo que o homem,
caindo ñas garras da morte, é por esta detido.
7) Por fim, deve-se mencionar a crenca numa era de inocencia
e felicidade anterior aos lempos presentes, crenca professada freqüen-
temente pelos aborigénes da América.
Os indios de Cheyenne, por exemplo, falam de urna época para
disíaca, em que os homens, moralmente puros como eram, nao usavam
vestes e caminhavam em meio a campos férteis; guerra, endientes
e fome teráo sucedido a tal fase da historia, a ponto de dominar
atualmente o mundo. A morte, ñas narrativas semelhantes a estas,
é muitas vézes apresentada como conseqüéncia de urna culpa moral
ou de um pecado; é o que se verifica, em particular, ñas tradigóes
dos esquimos.
Os egipcios proíessavam a existencia de urna idade de ouro no
inicio da historia, idade em que o Deus Sol governava soberanamente
o orbe e nao havia nem pecado nem espiritos malignos; revoltando-se
contra Deus, os homens teriam perdido a felicidade original. Haja
vista, por exemplo, a narrativa intitulada «Destruigáo do género

— 332 —
humano»: o Deus Solar, Ra, caracterizado pelo seu amor ao bem,
reinava em tempos remotos sobre os deuses e a humanidade. Enve-
lheceu, porém, e os homens comegaram a tratá-lo irreverentemente;
Ra entao mandou-lhes seu próprio dlho sob a forma da deusa Hator,
a íim de os destruir. Ora Hator nao hesitou em provocar tremenda
carnificina humana, que a divertiu durante um dia inteiro. Ao fim
déste, Ra compadeceu-se e resolveu salvar do total exterminio a
estirpe dos homens. Recusou-se contudo a habitar doravante sobre
a térra, retirando-se conseqüentemente para o céu.

Como foi dito, as «historias» que acabam de ser referidas,


nao nos interessam aqui pelas figuras infantis ou fantasistas
que apresentam, mas, sim, pela mensagem que em todas elas,
de algum modo, se repete: a morte e seus precursores (as
desgranas) nao sao originarios na historia do género humano,
mas nela entraram sub-repticiamente por terem os homens
violado a ordem de coisas estabelecida por Deus. — Ora é
justamente isto o que o livro do Génesis ensina... A conver
gencia de depoimentos difícilmente se explicaría se nao corres-
pondessem á realidade histórica.

A. F. P. (Belo Horizonte):

5) «Poderei estar certo da minha salvacao eterna?


Terei a graca de unía boa morte e da perseveranca final?»

Desenvolvendo a resposta as questOes ácima, consideraremos su-


cessivamcnte: 1) cm que consiste a perseveranca íinal; 2) a maneira
de obter esta graga e 3) os motivos de confianza do cristao perante
o misterio da salvagáo eterna.

1. Em que consiste a perseveranca final

1. Em estrita linguagem teológica, diz-se que a perse-


veranga final é o dom resultante da ocorréncia simultanea de
dois favores especiáis do Senhor:
a) o estado de graga, em que o justo possui. a vida sobre
natural e o conjunto de dons (virtudes infusas, dons do Espirito
Santo) que ornamentam a alma em tal situacáo;
b) a coincidencia da hora da morte com a posse do
estado de graca — o que equivale ao dom de boa e santa morte.
Nao há dúvida, para que o homem encerré sua peregrinagáo
terrestre precisamente num instante em que sua alma esteja
voltads. para Deus, requer-se especial disposigáo da Providencia,
pois só esta domina soberanamente os termos da vida e da
morte. É precisamente na simultaneidade do instante da morte
com o estado de graca que consiste a graga da perseveranga
final.
Os dois elementos ácima assinalados sao evidentemente dons ou
favores do Senhor, já que o livre arbitrio humano, falível como é,
nao tem em si o poder de permanecer ou de se imobilizar no bem,
muito menos tem o poder de se imobilizar no bem em certo mo
mento de sua existencia, como é o momento da morte (momento
cuja escolha ou determinacáo escapa totalmente ao nosso alcance).
Por isto o Concilio de Trento fala do «grande dom da perseve-
ranca final» (Denzinger, Enchiridion 726); é dom do qual, em última
análise, depende toda a salvacao eterna do homem (cf. Mt 10,22:
«Aquéle que perseverar até o íim, será salvo»); por isto deve ser
atribuido a especial benevolencia do Criador para com a criatura.

2. As páginas bíblicas, em mais de urna passagem, incul-


cam a soberanía de Deus no tocante á salvagáo humana; esta,
de modo geral, deve ser tida como gratuito dom do Altissimo.
É o que S. Paulo ensina com muita énfase:

«Nao somos capazes de atribuir a nos o que quer que seja, como
se proviesse de nos mesmos, mas é de Deus que vem a nossa aptidao»
(2 Cor 3,5).
«Que é que te distingue? Que é que possuis que nao tenhas
recebido?» (1 Cor 4,7).

Alias, o próprio Cristo afirmou:

«Sem Mim nada podéis fazer» (Jo 15,5);


«Ninguém vem a Mim, se o Pai nao o atrab (Jo 6,44).

Explícitamente, a perseveranga final é atribuida á soberana


graca de Deus no seguinte texto de Sao Paulo:

«Rendo gragas a meu Deus todas as vézes que me lembro de


vos... convicto que de Aquéle que iniciou em vos a boa obra prosse-
guirá no seu aperfeicoamento até o dia do Cristo Jesús» (Flp 1,3.6).

... ou ainda nos dizere? de Sao Pedro:

«O Deus de toda a graca, que por Cristo vos chamou á sua eterna
gloria, vos aperfeicoará, vos dará firmeza e vigor, tornando-vos inaba-
láveis» (1 Pdr 4,10).

No Antigo Testamento, o livro da Sabedoria mostra a


Providencia Divina a fazer coincidir a hora da morte com o
estado de inocencia do homem justo:

«Deus transferiu o justo do meio dos pecadores, onde vivia.


Foi arrebatado para que a malicia nao lhe corrompesse o modo de
pensar, nem a astucia lhe pervertesse a alma... Sua alma era agra-
dável ao Senhor; e é por isto que Ele sem demora o retirou do meio
da perversidade» (Sab 4,10s. 14).

3. Por sua vez, os concilios no decorrer da historia da


Igreja ensinaram tal doutrina.

— 334 —
Assim o sínodo de Orange (Gália) em 529 inculcava que
«os cristáos batizados e os santos deveráo sempre implorar o
auxilio de Deus, para que possam chegar a santo desenlace
e perseverar na prática do bem» (Denzinger 183).
Mais tarde, o Concilio de Trento (1545-1563) declarou
solenemente:

«O grande tlom da perseveranca final nao pode provir senáo


d'Aquéle que é poderoso para corroborar quem está em pe, a fim de
que persevere, e... poderoso para rcerguer aquéle que caí» (Den
zinger 832).
«Se, exceto em caso de especial revelacao divina, alguém com abso
luta e infalível seguranca asseverar que certamente possuirá o grande
dom da perseveranca final, seja tido como hereje» (Denzinger 826).
«Ninguém pode com absoluta certeza prometer a si mesmo o que
quer que seja, embora todos devam colocar firmíssima esperanca no
auxilio divino. Com efeito, se a criatura humana nao se furta á graca,
Deus leva a bom termo a obra que Ele comecou, produzindo no
homem tanto o querer como o realizar» (Denzinger 806; cf. Flp 2,13).

Como se vé, o Concilio acentúa bem duas verdades capitais,


que, embora paregam antagónicas, se completam mutuamente:
de um lado, ninguém pode ter certeza absoluta de que perse
verará no bom até o fim de sua vida, pois a adesáo ao bem e a
coincidencia desta com a hora da morte sao independentes da
vontade e do esfórco humanos; ninguém pode garantir para si
bom éxito no combate travado contra a carne, o mundo e o
demonio. De outro lado, a incerteza assim gerada é cheia de
confianca e esperanza, pois o Senhor nao recusa a nenhum
justo sincero o auxilio oportuno; nao deixa inacabada a obra
que Ele iniciou na sua criatura (e o sinal de que iniciou sua
obra, é o propino desejo sincero que a criatura humana tenha,
de perseverar no bem).

Já estas proposicoes nos incutem a consciéncia de estarmos


focalizando um dos mais insondáveis, mas certamente grandiosos,
designios da Sabedoria Divina. Contudo. nao será ilícito perguntar:

2. Gomo se poderia obter a


graca da perseveranga final?

Em duas sentencas se resume a resposta:

1) O dom da perseveranca final nao pode ser merecido


(ou obtido por inerecimento).

Por mérito entende-se a recompensa que Deus dá a alguma boa


obra do homem ou a titulo de justica (tal é o mérito dito «de condigno»)
ou a titulo de caridade, isto é, levando em conta os direitos da amizade

— 335 —
que existe entre o Senhor e a alma justa (tal é o mérito dito «de
congruo»).
Pois bem; os teólogos aíirmam que a perseverarla final nao
pode, a titulo algum, ser obtida por mérito. É o que se depreende do
seguinte raciocinio:

O dom da perseverarla final nao é senáo o estado de graga


conservado ou restaurado no momento da morte.
Ora o estado de graga vem a ser o principio mesmo de
todo e qualquer mérito; vem a ser a condigáo indispensável
para que se possa adquirir algum mérito, pois é a graga que
eleva a alma á ordem sobrenatural, habilitando-a a agir no plano
da recompensa eterna.
Em outros termos: toda recompensa que o homem possa
obter de Deus, é de ordem sobrenatural; ora sómente a graga
coloca o homem na ordem sobrenatural ou á altura de adquirir
algum título (ou mérito) na linha sobrenatural.
Está claro, porém, que o principio ou a condigáo previa de
qualquer mérito nao pode ser simultáneamente objeto adquirido
por mérito; a raiz do mérito nao pode ser merecida; em caso
contrario, ter-se-ia um círculo vicioso. Donde se vé que a posse
do estado de graQa e, em particular, do estado de graga na hora
da morte (= dom da perseveranga final) jamáis pode ser con
quistada por mérito, mas há de ser dom totalmente gratuito
da parte de Deus.
Isto equivale a dizer que é a Misericordia, e nao a Justiga
de Deus, que coloca o homem em estado de graga e que o
conserva neste estado (a conservagáo nao é senáo urna criagáo
continuada ou «o ato inicial de colocar em estado de graga»
continuado ou prolongado). E, a sua Misericordia, Deus a
exerce para com todo justo que a aceite ou que nao íhe ponha
obstáculo; Ele só nao a exerce (permitindo entáo que se atue
simplesmente a Justiga) no caso em que a criatura a recuse
ou lhe resista.

É essa dualidade de procedimento divino que se observa na cena


dos dois Iadr5es crucificados com Cristo: a um, que se mostrou
de ánimo bem disposto, embora nao tivesse mérito algum, o Senhor
outorgou o dom de urna santa morte ou da morte em estado de
graca, ao passo que nao se pode com certeza dizer o mesmo a respeito
do outro malfeitor, que aínda nos últimos instantes de vida blasfe-
mava contra Deus (contudo ninguém ousará afirmar que o mau
ladrao haja incorrido na condenacao eterna; pode-.se ter finalmente
arrependido em seu Intimo). — Sobre o valor da fé e das obras na
justifjcacáo, veja a resposta n' 6 déste fascículo.
De resto, o concilio regional de Quierzy (Franca) em 853 incul-
cava claramente:
«Deus todo-poderoso quer que todos os homens sem excecáo se
salvem (cf. 2 Tim 2,4), embora nem todos o consigam. O fato de que

— 336 —
certo número déles obtétn a salvacao, deve-se ao dom do Salvador;
quanto á perda dos outros, seja ela atribuida á culpa dos mesmos»
(Denzinger 318).

2) O dom da perseveranga final pode ser obtido pela


oracáo.

É precisamente a oragáo o recurso que o homem tem para


se dirigir á Misericordia de Deus (ao passo que o mérito se
dirige á Justica Divina).
Nao há dúvida de que pela oracáo os homens podem conse
guir gragas que éles nao obtém por mérito. Tal é o caso, por
exemplo, do pecador que, orando, pode alcangar do Senhor
o dom da conversáo ou a graga santificante, graga que certa-
mente ele nao obtém por mérito, pois tal graga vem a ser o
principio ou a raiz de qualquer mérito. — Ora o mesmo se dá
com o dom da boa morte ou da perseveranga final.

Disto se depreende a necessidade que a todos os íiéis incumbe,


de pedir a Deus urna santa morte; nao a pedir constituiría a mr.is
funesta das negligencias, ou a negligencia da salvacáo eterna. Eis
também porque freqüentemente a Igreja coloca nos labios de seus
filhos a prece: «Santa María, Máe de Deus, rogai por nos, pecadores,
agora e na hora da nossa morte». Tendo em vista o íato de que toda
oragáo feita em nome de Cristo, ou seja, em demanda dos bens da
Redencáo, jamáis é va (de acordó com a promessa do próprio Jesús
em Jo 16,23s), muitos teólogos julgam provável a sentenca segundo
a qual o dom da perseverarla final pode, com sucesso infalivel, ser
obtido mediante a á
Sao Tomaz se compraz em enumerar quatro condicoes que hSo
de ser preenchidas para que se possa atribuir plena eficacia á oracáo:
«...reze o orante por si (em seu favor), pedindo bens necessários
a salvacáo, de maneira piedosa e perseverante» (Suma Teológica
II/II 83,15 ad 2).
A primeira condicáo talvez cause estranheza: reze o orante em
seu próprio favor... A cláusula se explica pelo fato de que, quando
rezamos por outrem, talvez estejamos intercedendo por alguém cujo
coracáo se achc voluntariamente obstinado no pecado, resistindo,
portante, á graca de Deus; em tal caso, é claro que a nossa oracáo
pode ser frustrada, pois Deus nao costuma conceder seus dons a quem
nao os queira receber. Ao contrario, quando rezamos por nos mesmos,
é de supor estejamos sinceramente desejosos de receber a graca do
Senhor.
A cláusula «rezar com perseveranca» também merece especial
atencáo. Assim como nao é fácil á criatura persistir no cumprimento
do bem, também nao lhe é fácil persistir na prática da oracáo. Em
vista disto, recomendam os autores, estimemos com particular afinco
a graga de perseverar na prece; pecamos ao Senhor, nao nos deixe
sucumbir á tentacáo1 de nao orar; livre-nos do mal de perder o prazer
de rezar, fazendo-nos, antes, atravessar vitoriosamente as fases de
aridez e cansaco que nao Taro acometem as almas de oracáo.

— 337 —
3. Os motivos de imperturbada confianca

Na incerteza em que todo homem se acha perante o misterio da


sa!va<;áo eterna, o cristáo vive muito alegre e sereno (basta recordar,
por exemplo, a figura otimista e ardorosa de Sao Paulo refletida ñas
epístolas do grande Apastólo).

1. Tres sao os pontos aptos a suscitar, no discípulo de


Cristo, profunda e tranquila confianga frente aos arcanos da
perseveranga final.
1) O primeiro désses pontos é — paradoxalmente — o
fato mesmo de que a nossa persistencia no bem está baseada
nao no poder e na sabedoria do homem, mas, sim, na trans
cendente e soberana munificencia de Deus. O fato de que tudo
depende do Senhor, por muito aterrador que parega á primeira
vista, vem a ser justamente a maior fonte de paz e alegría
para o cristáo; com efeito, éste sabe que a misteriosa Libera-
lidade de Deus é sempre movida por bondade e amor, nunca
por espirito de prepotencia ou tiranía. Se Deus quer dar e
pode dar (como de fato acontece), certamente dará, e dará
com muito mais eficacia e abundancia do que a criatura daría
a si mesma — desde, porém, que se verifique da parte do
homem urna condigáo indispensável: nao oponha resistencia
á graga, seja dócil á agáo divina em sua alma. Seja licito
repetir: por depender da Liberalidade divina, a salvagáo do
homem está muito mais garantida do que se dependesse direta
e exclusivamente da sabedoria da criatura.

Escrevendo a urna pessoa assaltada por preocupac.3es concernentes


á salvagáo eterna, o famoso bispo e pregador Bossuet (t 1704) reco-
mendava:
«Essas preocupacóes. quando vém ao espirito, provocando da
nossa parte vaos esíorcos para as dissipar, devem induzir-nos final
mente a um abandono total de nos mesmos a Deus, abandono tranquilo
porque nossa salvacáo está infinitamente melhor ñas máos de Deus
do que em nossas próprias máos; é tiesta atitude, e nesta só, que
encontramos a paz. É a tal abandono que nos devem provocar toda
a doutrina da predestinacao, assim como os designios misteriosos do
Soberano Senhor, designios que é preciso adorar sem os pretender
perscrutar. É mister que nos percamos nesse abismo e nessa profun-
didade impenetráveis da Sabedoria de Deus; é necessário que nos
lancemos irrestritamente dentro da sua imensa Bondade, esperando
tudo de Deus, sem, porém, nos dispensarmos dos esíorcos para nos
salvar que o Senhor exige de nos... O desfecho de vossas preocupa-
cSes deve ser o abandono a Deus, que destarte está obrigado, por sua
bondade e suas promessas, a vigiar por vos» (Cartas de direcáo, ñas
Obras completas de Bossuet. Paris 1846 XI 444).

O mesmo autor, em suas «Meditares sobre o Evangelho» II parte,


72' dia, pondera o seguinte:
«O homem soberbo teme que a sua salvacáo se torne demasiado
incerta. caso nao a possua em suas máos; engana-se, porém. Poderia

— 338 —
eu ter segurarla em mim mesmo? Meu Deus, sinto que minha vontade
me escapa a todo momento; se me quisésseis constituir único senhor
da minha sorte, eu recusaría íaculdade táo perigosa para a minha
íraqueza. Nao me digam, portanto, que a doutrina da graca e da livre
nscolha divina leva as almas boas ao desespero. Julgam os homens
que mais me tranqüilizaráo se me fizerem apoiar-me em mim mesmo
e se me entregaren! a minha inconstancia? Nao, meu Deus; nao con-
sinto nisso. Nao posso encontrar seguranca senáo abandonando-me
a Vos. E tanto maior é a minha paz quanto mais vejo que aqueles
a quem dais a conftanca de se abandonarem totalmente a vos, rece
be m ... os melhores sinais de vossa Bondade que se possam ter
sobre a térra».

Por conseguinte, entrega confiante a Deus; eis a única


atitude que o cristáo possa e deva tomar após verificar que
a sua salvacáo depende primariamente da benevolencia do Pai
Celeste.
2) O segundo motivo de confianca frente ao misterio da
salvacáo é a eficacia mestna da oracáo, de que tratávamos atrás.
O Senhor insistentemente exortou os discípulos a pedir «em
norae de Cristo», ou seja, a pedir os bens necessários á vida
eterna, prometendo atender benévolamente (cf. Jo 16,23s).
Está claro que a oracáo sincera é geralmente acompanhada
de conduta de vida virtuosa, e, vice-versa, a vida virtuosa está
intimamente associada a prática da oracáo. É o que leva os
teólogos a afirmar que de modo geral o exercício assiduo das
boas obras é sinal de perseveraba final na graca (nao em váo
se costuma dizer que «cada pessoa morre como viveu»).

Em particular, os autores indicam os seguintes característicos


como sinais de perseverarla final no bem:
a) a delicadeza de consciéncia, que leva o cristáo a nao condes
cender com pecado algum, ainda que pareca leve. Cf. 1 Jo 3,21: «Ca-
rissimos, se nosso coracáo nao nos condena, temos plena seguranca
diante de Deus»;
b) o espirito de oracáo e meditacáo. Cf. Eclo 7.40: «Em tudo que
fizeres, recorda-te do teu fim, e jamáis pecarás»;
c) verdadelra humildadc, a qual é o melhor penhor da obtencao
da graca e da conservacáo das virtudes. Cf. Tg 4,6: «Deus resiste
aos soberbos, e dá a graca aos humildes»;
d) paciencia serena ñas adversidades. Cf. Rom 8,17: «Sofremos
com Cristo para ser glorificados com Ele»; 2 Tim 2,12: «Se sustentar-
mos com Cristo, com Ele reinaremos»;
e) caridade operosa em favor do próximo e freqüente exercicio
das obras de misericordia espirituais e corporais. Cf. Tg 5,20: «Aquéle
que do erro converte um pecador, salvará da morte a sua própria alma,
e cobrirá ua multidáo de pecados» (cf. também Tob 4,11);
f) devocAo sincera
a Cristo Redentor,
á S. Eucaristía,
á Paixáo do Senhor,

— 339 —
á Ssma. Virgem, refugio dos pecadores,
á Santa Igreja, dispensadora da graca
e da verdade.

3) Referem-se revelagóes, de caráter particular, que


prometem a graga da perseveranga final a quem pratique tais
ou tais obras boas; seriam, por exemplo, a promessa do S.
Coragáo de Jesús em favor de quem receba a S. Comunháo na
primeira sexta-feira de nove meses consecutivos, a promessa
da Virgem Santíssima em favor dos devotos do escapulario
do Carmo, a promessa de Fátima (1).
Note-se, porém, que estas e outras promessas (as quais
nao constituem materia de fé obrigatória) nao devem ser tidas
como «passaportes» para a eternidade. A eficacia de tais pro
messas está condicionada ao cumprimento das demais condigóes
impostas a todos os homens para que alcancem a vida eterna
(observancia dos preceitos de Deus e da Igreja, esfórgo em
prol das virtudes...); as promessas mencionadas desempenham
primariamente o papel de fomentar as práticas de virtude ou
de devogáo para com a S. Eucaristía ou para com a Ssma.
Virgem, ... práticas que, como se dizia atrás, sao geralmente
consideradas penhores de perseveranga final no bem.

Sao Roberto Belarmino (t 1621) propSe no texto abaixo os prin


cipios que sen'em para so interpretar qualquer promessa de salvacáo
anexa a alguma obra particular:
«Muitas vézes a S. Escritura atribuí a alguma prática de piedade
o poder de justificar as almas ou mesmo de Ihes assegurar a salvagáo.
Isto nao quer dizer que tais práticas por si mesmas possam justificar
e salvar, mas apenas que possiiem a eficacia de contribuir para a
jusüficagáo e a vida eterna, contanto que sejam associadas a outros
meios de salvacáo, como a fé, o estado de graca, a observancia dos
mandamentos» (De paenitentia 1. II c. VID;
Entendidas dentro déste quadro doutrinário, pode-se reconhecer
verdadeiro valor ás práticas de devogao recomendadas por revelagSes
particulares feitas a tais e tais santos no decorrer da historia.

2. Em se tratando de motivos de conflanga crista, pode-se por


fim mencionar, a titulo de ilustragao, urna sentenca propalada prin
cipalmente por teólogos modernos: julgam, sim, que na hora da
morte o Senhor ilumina a mente de toda e qualquer criatura humana,

(1) Aqui se segué, conforme o depoimento de Lucia, o teor da


mensagem que Maria Santissima terá dirigido a esta vidente em
Fátima:
«•Tu, ao menos, procura consolar-mc, e dize que prometo assistir
na hora da morte, com todas as gracas necessárias á salvacáo, a
todos os que, no primelro sábado de cinco meses seguidos, se confes-
sarem, receberem a Sagrada Comunháo, rezarem um tergo e me
íizerem companhia durante quinze minutos, meditando os misterios
do rosario, com o fim de me desagravarem».

— 340 —
a íim de que conceba clara idéia de Deus e conseqüentemente opte,
com pleno conhecimento de causa, por ou contra o Senhor Deus; a
clarividencia assim outorgada, acrescentam, poderla mesmo ser tal
que provoque necessáriamente a conversáo do pecador para Deus.
O primeiro esbóco de tal hipótese parece ter sido proposto no
sáculo XIV:
«Todo ser humano, adulto ou nao, Sarraceno, Judeu ou pagao,
mesmo que morra no seio materno, recebe, antes da morte, a clara
visao de Deus; sob esta visáo conserva a liberdade de se converter
ao Senhor ou de se afastar d*£le; caso se volte para Deus, salva-se;
na hipótese contraria, condena-se».
A proposicáo assim concebida íoi condenada em 1368 por Simáo
Langham, arcebispo de Cantuária (éste pronunciamento porém, nao
significava condenacSo da tese por parte do magisterio iníalível da
S. Igreja).
No séc. XIX o teólogo alemáo Klee íormulou semelhante hipótese
para o caso das criangas que morram sem batismo: Deus as iluminarla
na hora da morte, de modo a poderem conceber ao menos o déselo
do batismo (Katholische Dogmatik ni. Mogúncia 1835, 119). A sen-
tenga loi repetida com ligeiras inovac.5es por Karl-Maria Mayrhofer
em 1851 e por Laurent em 1879. Dom Démaret incluiu na sentenca
o caso mesmo dos adultos (cf. «Les morts peu rassurantes, motifs
d'espérance et de priére». Montligeon 1923).
Sob qualquer das suas modalidades, tal sentenca se apresenta
pouco verossímil. Nao sómente nao se lhe pode apontar fundamento
na Escritura Sagrada ou na tradic.ao oral, mas ao contrario parece
pouco condizente com as palavras de Cristo e dos Apostólos que
exortam os discípulos á vigilancia continua a fim de nao incorrerem
em ruina eterna; cf. Mt 24,42.44; 25,13; Le 12,39s; 21,34; 1 Tes 5,2.6;
2 Pdr 3,14; Apc 3,3; 16,15.
De rosto, a confianza do cristáo na Providencia Divina é suficien
temente firme para que se possa dispensar de pedir apoio a doutrinas
novas e pouco seguras.

ID. SAGRADA ESCRITURA

EVANGÉLICO (Belo Horizonte):

6) «Sao Paulo, aos Efésios 2,8s, escreve: 'Pela grasa é


que sois salvos, mediante a fé, e isto nao vem de vos, porque
é dom de Deus; nao vem das obras para que ninguém se glorie'.
Nao quer este texto dizer que sómente a fé salva, de modo
a nao se poder atribuir algum mérito as boas obras?»

Sao Paulo, antes de se converter ao Cristianismo, foi ardoroso


íariseu. Éste lato deverá ser levado em conta por quem deseje penetrar
auténticamente o pensamento do Apostólo. Com efeito, Saulo, na
fase pré-crista da su a vida, conforme a tendencia dos fariseus, daya
enorme valor ao cumplimento minucioso da Lei de Moisés, ou seja,
«ás obras da Lei» (cf. Gal 2,19s); convertendo-se, porém, ao Evangelho,
tornou-se o testemunha, por excelencia, do dom ou da graga de Deus,
que se antepóe a qualquer obra humana. A mentalidade do Apostólo
é inegávelmente marcada pelo seu curriculo de vida. Sendo assim,
no estudo da questáo ácima proposta, para evitar interpretacoes

— 341 —
unilatcrais, devoremos distinguir os dois planos nos quais se move
o pensamento de Sao Paulo: a) íé e obras antes da conversáo para
Cristo (ou seja, antes da primeira justif¡cacao); b) íé e obras após
a conversáo para Cristo (ou após a justif¡cacao inicial).

1. Fé e obras antes da conversáo para Cristo

1. Urna das notas características das epístolas de Sao


Paulo é a descrigáo do estado moral do género humano anterior
a Cristo: o Apostólo mostra a incapacidade dos homens para
se emancipar do pecado («todos pecaram e precisam da gloria
de Deus», Rom 3,23; cf. Gal 3,22) e a conseqüente gratuidade
da justiga ou do cancelamento da culpa outorgado por Cristo;
evidenciando isto, Sao Paulo faz ver que nao se pode atribuir
a justificagáo a algum mérito ou direito previamente adquirido
pelo homem. Éste, ao contrario, para se tornar justo perante
Deus, so pode apresentar suas boas disposigóes, ou seja, sua
adesáo á Palavra de Deus que benévolamente o chama para
lhe comunicar o perdáo e um novo principio de vida. Donde o
axioma pelo qual freqüentemente os exegetas traduzem o pen
samento do Apostólo: a fé é o principio da justificagáo, e nao
as obras realizadas pelo homem anteriormente á sua conversáo
a Cristo.

2. Consideremos os textos dos quais se depreende tal


conclusáo.
Justamente os versículos que precedem a passagem de
Ef 2,8s, citada no cabegalho déste artigo, constituem urna des
crigáo muito viva da miseria dos homens antes do contato
com Cristo:

«Vos (cristáos eíésios convertidos do paganismo) estáveis morios


pelos vossos delitos e pecados, em que outrora vivestes, segundo o
costume déste mundo segundo o Espirito que prossegue a sua
obra naqueles que resistem... Nos todos (incluindo agora os judeus
convertidos ao Cristianismo I íomos outrora semelhantes. vivcndo
conforme os desejos da carne, servindo aos caprichos da carne o
dos pensamentos culposos, de modo a sermos por natureza íilhos (ou
merecedores) da ira (de Deus)» (Ef 2,1-3).
Semelhante descriCáo do lamentável estado moral em que se
encontravam pagaos e judeus antes de Cristo, lé-se cm Rom 1,18-2,16.

Tendo assim inculcado a lamentável situagáo dos povos


antes da conversáo a Cristo, Sao Paulo pode, na citada epístola
aos Efésios (2,4-8), realgar com toda a énfase a índole gratuita
de tal transformagáo: esta foi realizada pela graga ou pelo
dom de Deus mediante a fé. Isto quer dizer: o Senhor concedeu
aos pecadores primeiramente o dom da fé; a fé iluminou a

— 342 —
mente dos homens culpados, fazendo-lhes ver as desordens de
sua conduta e levando-os a repudiá-las; destarte a fé habilitou
tais homens a receber o perdáo e um principio de vida nova,
a filiagáo divina. A conversáo, por conseguinte, nao se verificou
como conseqüéncia de boas obras, pois, antes de se converterem,
nem pagaos nem israelitas levavam vida digna de Deus; prati-
cavam, ao contrario, obras más; a graca do acesso a Cristo
e a RedenQáo Ihes foi dada realmente «de gracr.». é o que se
lé em continuacáo do texto de Ef 2,1-3:

«Mas Deus, que é rico em misericordia, pela extremada caridade


com que nos amou, aínda quando estávamos mortos pelos pecados,
deu-nos vida juntamente em Cristo — é por graca que sois salvos —
e com Ele nos ressuscitou... Pela graca é que sois salvos, mediante
a íé, e isto nao provém de vos, mas é dom de Deus; nao é o efeito das
vossas obras, para que ninguém se glorie» (Ef 2, 4s.8s).

Sintetizando a doutrina do Apostólo, dever-se-á dizer o


seguinte:
Dois elementos concorrem para a salvacáo do homem: da
parte de Deus, a graga, que é o primeiro e principal fator; da
parte do homem, a fé, ato que serve, por assim dizer, de instru
mento a graca («é mediante a fé...», diz S. Paulo no v. 8).
Em última análise, porém, verifica-se que estes dois elementos,
a graga e a fé, ambos sao dons de Deus; sim, Sao Paulo visa
subtrair as fórcas naturais do homem o que se refere á própria
conversáo: «isso nao provém de vos, mas é dom de Deus; nao
é o efeito das vossas obras, para que ninguém se glorie» (Ef
2,8s). leseado neste texto, o Concilio regional de Orange
(Gália) em 529 declarou que já a conversáo ou o «initium
fideb ó efeito da graga divina, e nao de pretensos merecimentos
do convertido (cf. Denzinger, Enchiridion 178). Sim; anterior
mente a conversáo, o pecador está morto em conseqüéncia das
suas faltas, sendo por isto táo incapaz de merecer quanto um
morto é incapaz de se mover.
3. Conludo deve-se notar que a S. Escritura (e, com ela,
o Apostólo) nao nega todo valor as obras boas que o pecador
possa praticar: embora estas nao Ihe meregam a conversáo,
encaminham-no para a Verdade e para Deus.

É por isto que Sao Pedro relaciona as oragóes e as esmolas do


centuriao pagáo Cornélio com a sua conversáo:
«Cornélio, tua oracáo íoi atendida e tuas esmolas foram recor
dadas diante de Deus... Em qualquer nacáo, é-lhe agradável aquele
que O teme e pratica a justica» (At 10,31.35).
Sao Paulo, por sua vez, ao anunciar o verdadeiro Deus aos ate
nienses, diz que estes O ad.Tam sem O conhecer, dado o sea senso
religioso muito férvido:

— 343 —
«Atenienses, vejo em tudo que sois os mais religiosos dos homens.
Passando pela vossa cidade e observando os vossos monumentos
sagrados, encontrei mesmo um altar com a inscricáo «Ao Deus desco-
nhecido». Ora o que vos adoráis sem conhecer, eu vo-Lo anuncio»
(At 17,23s).
Donde se vé que as boas obras anteriores k conversáo, embora
nao sejam motivo de mérito, constituem remota preparagáo para a
conversáo do pagáo ou do pecador.

4. Quanto a salvagáo outorgada por Deus, Sao Paulo


em Ef 2,8 a menciona mediante um verbo no tempo de perfeito:
éste sesosménoi, em grego. Ora o perfeito grego significa urna
agáo que, iniciada no passado, aínda se vai processando no
presente. É realmente esta a Índole da salvagáo que o pecador
recebe quando se converte pela primeira vez a Cristo: trata-se
de um germen de vida eterna que tende a se desabrochar lenta
mente no decorrer desta vida, podendo, porém, ser sufocado
pela infidelidade da criatura. Éste caráter germinal da salvagáo
na vida presente faz que Sao Paulo a ela se refira ora em termos
de pretérito, ora em termos de futuro, ora em termos de
pretérito e futuro simultáneamente. Sim,

a) ... ora em termos de pretérito (a salvagáo já foi iniciada e,


segundo a reta ordem das coisas, deverá chegar á sua plenitude);
cf. Tit 3,3-7: «Éramos insensatos,... escravos de varias paixdes e
deleites... Mas, quando apareceu a bondade do Salvador nosso Deus...,
nao por obras de justica que tivéssemos íeito, mas segundo a sua
misericordia, salvou-nos pelo batismo de regeneracao e renovagao do
Espirito Santo... para que, justificados pela sua graga, sajamos
herdeiros, segundo a esperanca, da vida eterna». Seja licito notar a
respeito da última frase déste texto: o dom de Deus funda a esperanca
apenas, e nao a certeza da vida eterna.
b) ... ora em termos de futuro (o que bem se en tende pelo fato
de que a gloria celeste ainda está para ser alcancada). Cf. Rom 5,10:
«Se, quando éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte
de seu Filho, com muito mais razáo, depois de reconciliados, seremos
salvos por sua vida».
c) ... ora em termos de pretérito e futuro simultáneamente. Cf.
Rom 8,24: «Na esperanca é que fomos salvos». Sim; o cristáo aquí
na térra vive essencialmente do passado e continuamente em demanda
do futuro; o pretérito e o porvir caracterizam simultáneamente cada
instante do discípulo de Cristo.

2. Fé e obras após a conversáo para Cristo

1. Depois de haver descrito em termos muito vivos o


que era (e é) o homem anteriormente a Cristo, o Apostólo
inculca o que ele vem a ser depois da conversáo. É nova criatura
(cf. 2 Cor 5,7; Ef 2,10; Gal 6,15; Tit 3,5), pois recebe novo
principio de vida — a graca santificante. Em conseqüéncia, o
cristáo pode e deve produzir obras correspondentes a ésse novo

— 344 —
estado de coisas — obras que sao o fruto da grasa néle exis
tente (cf. Gal 5,22). Sao Paulo chega mesmo a dizer que a
vocagáo normal do discípulo de Cristo é a de caminhar pela
senda das boas obras: «Somos feitura d'Éle (Deus), pois fomos
criados em Cristo Jesús em vista das obras que Deus preparou
de antemáo para que as pratiquemos» (Ef 2,10) (1).
A expressáo «boas obras que Deus preparou de antemáo»
merece nossa atengáo. Significa enfáticamente que o homem,
mesmo depois de convertido a Cristo, por si nada poderia fazer
em vista da salvagáo eterna; qualquer obra boa que ele efetue,
vem a ser fruto da graca oferecida ao homem e por éste aceita;
Deus se antecipa ao homem mesmo na producáo das boas obras
após a conversáo. Acontece, porém, que, embora se antecipe, o
Senhor nao deixa de solicitar a aquiescencia e a üvre colabora-
Cáo da criatura com a graca. Um dos maiores infortunios que
possam ocorrer a um cristáo, seria, como diz Sao Paulo, o de
«receber a graca de Deus em váo» (2 Cor 6,1). Dando, porém,
seu consentimento á graca e movendo-se com o auxilio desta,
o cristáo se torna verdadeiro autor de suas boas obras, de sorte
que pode adquirir algum título a ser recompensado por Deus
no dia do juízo. É o próprio Jesús quem afirma:

«O Filho do homem há de vir na gloria de seu Pai com os seus


anjos, e entáo dará a cada um a retribuicáo conforme as suas obras»
(Mt 16.27).

2. Mediante as boas obras produzidas com a graca do céu, o


cristáo, que é um íilho de Deus (cf. Rom 8,14), torna-se herdeiro do
Pai Celeste e co-herdeiro de Cristo (cf. Rom 8,17). Sao Paulo (como
Jesús, alias) inculca freqüentemente a correlagao que existe entre as
obras do cristáo nesta vida e a sua sorte postuma... Observemos em
particular o seguinte texto:
«Agora, libertados do pecado e feitos escravos de Deus, tendes
como fruto a santlíicagáo e como fim a vida eterna. O sóido do pecado
é a morte, ao passo que o dom de Deus é a vida eterna em Cristo Jesús
Nosso Senhor» (Rom 6,22s).
Estas palavras incutem, sim, a proporcáo existente entre o que
fazemos nesta vida e o que comeremos na eternidade. Mas nao sómente
isto... Sao Paulo em tal passagem concebe a existencia do cristáo
na térra como um servico militar prestado ou a Deus ou ao pecado.
Ora o sóido (opsonia, em grego) que, conforme o Apostólo, o pecado
paga a seus militantes, é a morte, a morte eterna; esta é a partilha
que, a titulo de estrita justiga ou de salario, compete aqueles que

(1) Transcrevemos aqui mais dois textos do Apostólo a incutir


a mesma dou trina:
«Esta é urna verdade infallvel. e quero que a afirmes, para que
procurem avantajar-se em boas obras aqueles que créem em Deus»
(Tit 3,8);
«E aprendam todos os nossos a ser os primeiros em boas, obras
para atender as necessidades urgentes; do contrario, seráo infrutuosos>
(Tit 3,14).

— 345 —
praticam o mal. Quanto á vida eterna. Sao Paulo nao a aprésenla
como um sóido, mas como um dom (chárisma, em grego) que Deus
outorga a seus fiéis. — A diversidade de termos (salario, de um lado;
dom, favor gratuito, de outro lado) é intencional da parte de Sao
Paulo; já S. Agostinho no séc. V a observava. Empregando a palavra
«dom (chftrisma)», o Apostólo quería significar que Deus nao concede
a vida eterna a seus filhos como quem paga urna divida, nao. A rigor,
o Senhor nada deve á criatura; os próprios títulos ou méritos que o
cristáo possa adquirir para ser recompensado na eternidade, sao
obtidos por influencia da graca ou mediante previo dom de Deus.
Disto, porétn, nao seria lícito concluir que o homem se comporta
de modo meramente passivo sob a agáo da graca; na verdade o
cristáo conserva-se livre para aceitar ou recusar o dom de Deus;
caso o aceite, éle age realmente de modo a poder merecer recompensa;
S. Agostinho exprimía muito bem esta verdade dizendo que a vida
eterna também pode ser tida como um sóido, sóido, porém, pago á
justica de Deus existente no homem (é, sim, justica que provém
de Deus e que o homem apropria a si mesmo).
«Falsificaría o pensamento de Sao Paulo quem supusesse que o
mérito... possa ser o efeito de nossos esforcos apenas. É Deus quem,
depois de haver colocado em nossas máos o poder de merecer, nos
excita e ajuda a fazer uso do mesmo... Isto nao impede que o mérito
seja nosso e nos proporcione um verdadeiro direito junto a Deus»
(F. Prat. La théologie de St. Paúl, 10a. ed. 1925, 456).

3. Em conclusáo: verifica-se que o conceito de «mériío,>


ou «direito á recompensa eterna» está bem no ámago da nien-
sagem do Novo Testamento: pelas boas obras o homem é capaz
de merecer nao a conversáo do pecado para a graga (esta
prescinde de obras anteriores), mas a passagem da graga
santificante característica desta vida para a gloria própria da
eternidade; deve-se mesmo dizer, conforme S. Paulo, que, se
o cristáo nao coopera com o dom de Deus, produzindo boas
obras, a graca da conversáo fica estéril e nao desabrocha na
gloria celeste. — De outro lado, porém, é preciso notar que os
méritos ou os títulos de justiga que o homem possa adquirir
em vista da bsm-aventuranca eterna sao ssmpre antecipados
pelo dom do Redentor (scm a graca de Cristo a criatura ruidu
consegue fazer; cf. Jo 15,5), de tal modo que se pode afirmar
com S. Agostinho que Deus «no homem justo coroa os seus
próprios méritos (isto é, os méritos do próprio Deus)». . .
Tal no;-áo de mérito em nada derroga ao primado absoluto
de Cristo e da graga; por conseguinte, nao suscitará escrúpulos
dos irmáos «evangélicos». De resto, tais irmáos, na prática, nao
valorizam as boas obras menos do que os católicos; nao seria
isto indicio de que, em última análise, também nao pensam
muito diversamente dos católicos no que concerne á fé e as
boas obras?

— 346 —
A aparente divergencia entre S. Paulo, que mais acentúa o papel
da íé, e S. Tiago, que inculca principalmente as obras, explica-se
plenamente pelo íato de que S. Paulo, como dissemos, tem em vista
a primeira conversSo ou a passagem do estado de pecado para o de
graca, ao passo que S. Tiago escreve para um grupo de cristáos já
de há muito convertidos, mas tendentes a cair na frouxidáo espiritual;
a tais leitores, está claro que Tiago devia inculcar a necessidade das
boas obras ou de urna conduta de vida que fósse profissáo de fé
prática, traduzida pela caridade. Isto, porém, nao implica que um
Apostólo haja negado a posicáo do outro; trata-se apenas de dois
modos, diversos e complementares, de considerar o tema da justiíicagáo.
A respeito da fé e das obras segundo o Protestantismo, veja
«P. R.» 17/1959, qu. 4; 8/1958, qu. 3; sobre a possibilidade de se perder
a salvacáo outorgada por Deus, cf. «P. R.» 3/1958, qu. 6.

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

TERCEIKO (Niterói):

7) «Que dizer da condenacao de Giordano Bruno (f 1600)


pela Inquisicao?
Nao sera éste caso um exentólo frisante de que a Igreja
entravou o progresso das ciencias até época recente?»

Giordano Bruno, filósofo do séc. XVI, é um dos personagens


que a critica liberal costuma apresentar como vítima da «estreiteza
de mente» da Igreja. É essa situacao que vamos agora considerar,
localizando primeiramente a vida e a personalidade do citado varáo,
refletindo, a seguir, sobre a atitude da Igreja frente ao mesmo.

1. As vicissitudes de Giordano Bruno

1. Filippo (tal era o nome de batismo de quem na vida domini


cana se chamarla Giordano Bruno) nasceu em Ñola (reino de Ñapóles)
em 1548. Recebeu educagáo e instrucao de escol. facilitadas pelos
dotes de imaginacáo ardente e de aplicacáo ao estudo que caracteri-
zavam o menino. Aos 14 ou 15 anos entrou na Ordem Dominicana,
onde professou a vida religiosa, sendo ordenado em 1572.
Já aos 18 anas de idade, como ele mesmo confessou aos seus
juízcs, sofreu as primeiras dúvidas de fé. Isto so explica polas circuns
tancias da época: os filósofos humanistas dos séc. XV/XVI tendiam
a fundir com o Cristianismo as dou trinas da antiga filosofía paga,
principalmente do neoplatonismo (sistema panteista ou monista, pois
concebe o mundo como emanacáo ou continuacao da substancia mesma
de Deus). Os ensaios de tal fusáo, a presentados geralmente em estilo
elegante, fascinavam nao poucos estudiosos da época, chegando a
contaminar Giordano Bruno. Éste, no convento mesmo, se inclinava
a interpretacSes racionalistas dos dogmas cristáos: o Filho (ou a
segunda Pessoa da Ssma. Trindade) seria apenas «o intelecto do Pai»:
o Espirito Santo seria «a alma e o amor do universo». A Divindade
de Cristo lhe aparecia como titulo meramente metafórico para designar
a extraordinaria assisténcia outorgada por Deus ao homem Jesús.
De modo geral, passou a conceber a Religláo e suas manifestacoes
como símbolos de verdades intelectuais, adaptadas á mentalidade

— 347 —
ignorante do vulgo e possu¡dores apenas de valor prático (ou seja,
do valor de disciplinar os costumes da massa humana).
Em conseqüéncia, abriu-se em Ñapóles um processo de heresia
contra Giordano. Éste íugiu para Roma e, tendo abandonado o hábito
religioso, pós-/.e a vaguear pela Italia e a Franga, indo finalmente
fixar-se por algum tempo em Genebra (Suica), onde o Calvinismo
tinha sua sede principal. Havendo aderido a esta denominagao religiosa,
nao tardou a se incompatibilizar com os mestres calvinistas, que o
processaram (15S0>. Recomecou entüo sua vida errante pela Franca,
a Inglaterra, a Alemanha a Boémia. a Suiga. Deteve-se, por fim, na
república de Veneza (1592)... As idéias que disseminara e as nume
rosas obras que cscrevera nesses anos, eram cada vez mais estranhas;
pode-se dizer que algumas já nao tinham caráter própriamente filosó
fico, mas índole marcadamente íantasista e satirica.
O mais famoso dos escritos de G. Bruno é o diálogo intitulado
«Spaccio della Bestia trionfante» (A expulsáo da bésta triunfadora),
Paris 1584. Apresenta urna coméd'.a mitológica o zombeteira de signi
ficado ambiguo: Júpiter, irritado no Olimpo por ver negligenciado o
seu culto, intima a comparecer di ante de si as 48 conste] agoes do
céu, entre as quais deseja implantar urna reforma; o Deus Momo
entáo lhe faz ver que o lamentável descaso provém de que foram
dados aos astros os nomes dos deuses — désses deuses escandalosos
que por suas aventuras se tornaram objeto do deprézo dos próprios
mortais; em conseqüéncia, sugere Momo sejam tais apelativos subs
tituidos por nomes de virtudes... — Pergunta-se: como se definirla
a mentalidade do autor de tal peca?
Quanto aos tratados cujo tema é própriamente filosófico, propSem
todos urna ideología panteísta assaz confusa, segundo a qual Deus
é a ménade inicial que entra na composigáo de qualquer ser visível;
a substancia dos corpos é imperecivel e nao difere da dos espíritos;
a materia e o espago sao infinitos, como a própria esséncia divina.
As almas podem emigrar de um corpo para outro, até para outro
mundo; a mesma alma é capaz de habitar simultáneamente em
dois corpos. O mundo existe desde toda a eternidade.
Os comentarios bíblicos de Giordano Bruno também sao inspira
dos pela imaginagáo mais do que pela exegese objetiva: sómente os
hebreus seriam descendentes de Adao e Eva; os outros homens teráo
nascido de outro casal, anteriormente criado por Deus. Moisés haveria
concebido por si só o Decálogo; teria realizado seus milagres por
meio da mag'a (aplicagáo de receitas reservadas aos iniciados), coisa
boa e licita. Cristo mosmo nao haveria sido mais do que um mago de
importancia considcrávcl.
Em Veneza, o Grao-Duque Giovanni Mocenigo muito desejava
aprender com Bruno a arte de utilizar sabiamente a memoria (arte
que, no pensamento de Giordano B., estava muito ligada com a magia).
Contudo nao conseguiu tolerar as afirmacSes antirreligiosas do mestre,
que Mocenigo acabou denunciando ao Sto. Oficio como hereje.
Iniciou-se, por conseguinte, era 1592 novo processo contra Bruno,
processo que as autoridades eclesiásticas de Roma quiseram orientar
dlretamente. Giordano foi entáo enviado para Roma em 1593; a causa
foi sendo julgada com vagar, pois Bruno, embora professasse sub-
missáo aos poderes eclesiásticos, se recusava sorrateiramente a retratar
alguma de suas afirmagóes antigás; foram-lhe apresentadas oito pro-
posigdes extraídas de seus escritos e portadoras de heresias teológicas
(nao se tratava de ciencias naturais, no caso). Bruno, depois de muito
protelar a resposta, negou-se formalmente a reconhecer os erros

— 348 —
teológicos; nao sabia o que haveria de retratar... Em conseqüéncia,
após tres anos de espera, a Inquisicáo resolveu proceder decisivamente:
Giordano Bruno íoi declarado transgressor dos seus votos monásticos
e apóstata da fé; de acordó entáo com a jurisprudencia vigente, os
inquisidores o entregaram ao braco secular, isto é, ao Governador de
Roma, para que lhe aplicasse a pena devida; ora esta, no caso de
um hereje renitente, era a morte pelo íogo. Depois de sentenciado,
os juizcs aínda eoncederam oíto días a G'ordano Bruno para que
se reabilitasse; em váo. porém. Aínda por ocasiáo da execucjio no
Campo dei Fiori (Roma), Bruno rejeitou o crucilixo que lhe apresen-
tavam. Assim encerrou ele os seus dias aos 17 de fevereiro de 1600.
2. Por todo o século XVII o nome de Giordano Bruno era rara
mente mencionado na galería dos homens doutos da historia (Keppler,
tl630, porém, a ele se refería ao tratar da pluralidade de mundos
habitados).
Do séc. XVIII em dianto é que Bruno se tornou famoso, princi
palmente entre os livres pensadores, dos quais foi tido como precursor
e mártir. Quem contribuiu decisivamente para exaltar o mestre ita
liano, foi o filósofo Jacobi (tl818), com as suas «Cartas sobre a
doutrina de Spinoza». ñas quais G. Bruno é apresentado como imediato
precursor do panteísmo do pensador judeu Baruch Spinoza (tl677).
— Por sua vez, Schelling (tl854) e Hegel (tl831) muito honraram
a Bruno como arauto inicial do seu sistema idealista (que é panteismo-
-monismo). Por incrivel que pareca. também o positivismo (doutrina
que rejeita a metafísica ou a especulagio em torno de objetos invi-
siveis) enalteceu Giordano Bruno, tendo em vista o naturalismo
(recusa do sobrenatural) professado pelo ex-dom:nicano. Nesse concha
ve nao faltaram nem sequer os políticos do século passado; com
efeito, os nacionalistas do «Risorgimento» italiano e os demócratas
da esquerda tomaram Giordano Bruno como vanguardeiro do seu
espirito anticlerical e macón.
Hoje em dia nao é tanto por suas doutrinas muito subjetivas a
fantasistas que Bruno goza de alguma fama, mas é, sim, pelo seu
espirito de revolta contra as instituicñes cristas tradicionais.
Urna vez enunciados estes elementos de historia, pergunta-se: que
pensar sobre o caso?

2. Um juízo sobre a historia narrada

Procuraremos avaliar o significado do episodio de G. Bruno,


dosenvolvendo tres observacóes:
1) A condenagáo do ex-frade por parte das autoridades
eclesiásticas constituí mais urna das facetas da historia da
Inquisicao. Ora a Inquisigáo é fenómeno típico da mentalidade
medieval, mentalidade que certamente nao é a do homem
moderno e que, por isto, táo dific.lmente hoje cm dia é recons
tituida e compreendida.

Já foram propostas em «P. R.» as grandes idéias que, aos olhos


do cristáo medieval, norteavam e legitimavam a Inquisicao; tenham-se
em vista os fascículos
«P.R.» 8/1957, qu. 9 (a historia e o espirito da Inquisigáo);
«P. R.> 4/1958, qu. 12 (o processo de Galileu);

— 349 —
<P. R.» 8/1958, qu. 9 (o processo de S. Joana d'Arc);
• P. R.» 16/1959, qu. 7 (o processo dos Templarios)
Resumiremos aqui o principal do que ja foi dito nos fascículos
citados.

Para o homem medieval, era indiscutivel o principio de


que o bem da alma mais vale do que os bens do corpo. O cida-
dáo, na Idade Media, tinha consciéncia de que a alma existe,
e a esta dava o lugar devido — lugar de primazia sobre o corpo.
Disto se segué que tudo que dizia respeito á salvacáo da alma,
na Idade Media, assumia importancia capital; ora, entre os
bens referentes á salvagáo da alma, contava-se (e conta-se)
a verdadeira fé; a perversáo do credo, portanto, mediante a
heresia era tida como mal gravissimo.
Habituado a esta maneira de apreciar as coisas, o medieval
assim raciocinava: se a jurisprudencia da época julga réu de
morte o criminoso que p5e em perigo a vida do corpo de seu
semelhante, muito mais deverá ser considerado réu de morte
o hereje, que, contaminando a verdade (da qual se nutre a
vida da alma), póe em perigo a alma de seu próximo. — Déste
raciocinio o medieval, com a consciéncia tranquila, concluia nao
sonriente ser lícito, mas até necessário, eliminar da sociedade
os cidadáos cuja obstinacáo na heresia constituisse evidente
perigo de deterioragáo da verdade revelada por Deus.
A tal cidadáo — isto é muito importante — nunca era
recusada a reconciliagáo com Deus mediante os sacramentos
da Confissáo e da Comunháo; ora, absolvido sacramentalmente
antes de sofrer a morte física, o réu poderia perfeitamente
salvar a sua própria alma e ir para o céu (éste é o único
objeto que um juiz jamáis poderia licitamente recusar ao réu;
quanto a urna prolongada permanencia neste mundo, sabemos
que ela nem sempre é vantajosa para o homem!).

Note-se outrossim que, ao raciocinar de maneira táo irla, o


medieval seguía urna das tendencias marcantes da época — tendencia
a se guiar muito mais.pelo rigor da lógica do que pela ternura do
sentlmento. O homem moderno, ao contrario, é menos propenso ao
raciocinio rígido e mais inclinado a se nortear pelo sentimento ou
pela afetlvidade impulsiva e incoerente (hoje em día os homens nao
acreditam muito em principios perenes, tendendo, antes, a tudo julgar
segundo criterios relativos e subjetivistas). Sendo a Índole dos medie-
vals mais especulativa e lógica, nao nos surpreenderemos pela rudez
com que aíirmavam e defendiam a escala dos valores que se oíerecem
ao homem aqui na térra.

De resto, a fé era algo de táo vivo e espontáneo na Idade Media


que difícilmente se admitiría viesse alguém a negar com boas inten-
coes um só dos artigos do credo.

— 350 —
2) A mentalidade que inspirou a Inquisigáo, longe de
arrefecer no séc. XVI, foi ainda agucada em virtude da cha
mada «Renascenca» dos séc. XV/XVI.

Com efeito, nessa época as ciencias naturais progrediram grande


mente, seguindo novos métodos de trabalho, que lhes proporcionaram
descobertas de notável relevo. O homem de ciencia assim tendia a
julgar-se cada vez mais emancipado de qualquer autoridade (inclusive
da fé). A «vertigem da inteligencia» ia-se apoderando de alguns
pensadores que de maneira mais ou menos confessada chegavam a
lancar um brado de morte a Deus (tal íoi o caso, por exemplo, de
Campanella, 1568-1639). Em urna palavra: urna onda de ateísmo reves
tido da capa de ciencia alastrou-se capciosamente por círculos de estu
diosos do séc. XVI.

Em conseqüéncia, as autoridades eclesiásticas, ciosas de


conservar o patrimonio da verdade, se sentiram, a novo título,
estimuladas á vigilancia: desde que um filho da Igreja, como
era Giordano Bruno, se mostrasse arauto da nova mentalidade,
aos juízes eclesiásticos devia parecer lógico que nao lhe pode-
riam permitir a propagagáo das suas idéias dissolventes; o
bem coletivo, ou seja, o patrimonio da fé (que é fonte de vida
espiritual) corría perigo! É o que explica o fato de que Giordano
Bruno, professando urna filosofía paga revestida ora de termos
de ciencias naturais, ora de termos de teología crista, tenha
provocado contra si a agáo dos Inquisidores.

3) De resto, independentemente mesmo do caso de Giordano


Bruno, nunca será demasiado inculcar a distincao a se fazer entre
a Igreja como tal e estes ou aqueles de seus fIlhos, por mais graduados
que sejam. Freqüentemente no decorrer da historia o procedimerto
dos inquisidores destoou das normas oficiáis da Igreja e foi objeto
de reprovacáo por parte dos Papas.
Quanto á tese de que a Sta. Igreja se tenha oposto ao progresso
da ciencia nos séculos passados, já foi analisada em «P. R.» 5/1958,
qu. 10; 29/1959, qu. 6.

CORRESPONDENCIA MIÜDA
PERTURBADO : É difícil instituir comparagáo entre as virtudes.
Cada qual tem sua grandeza e seu brilho peculiares ; em última análise,
todas sao solidarias entre si, de modo que o progresso de urna virtude
implica naturalmente no desenvolvimento das demais. Normalmente,
nenhuma virtude cresce sem que as restantes com ela cresgam.
Nao obstante, pode-se observar o seguinte esquema :
1) Se a raíz de todo pecado é a soberba (haja vista a transgressáo
de Adáo no paraíso, que foi, em primeira linha, devida ao orgulho), o
fundamento de toda vida virtuosa é a humildade. É a presenta desta
que faz que os hábitos bons de urna pessoa sejam motivos de louvor a
Deus e enobrecimento do individuo, em vez de serem razóes de vá com
placencia ou de endeusamento do próprio "eu" (o que equivale a dizer:...
motivos de desfigurado do individuo).

— 351 —
Em particular, a castidade cultivada scm humildadc pode tornar-so
ocasiáo de desordem e aberragáo, como parece ter acontecido no caso das
Religiosas de "Port-Royal", consideradas por M. de Péréflixe "puras
como anjos, orgulhosas como demonios" (cf. "P.R." 31/1960, pág. 303).
—• Esta observa?áo, porém, está longe de querer desvirtuar a grandeza
da castidade e da virgindade consagradas a Deus.
2) Como virtude de cúpula, criterio supremo de perfeic,áo e san-
tidade, enuncia-se a carídade (cf. Col 3,14). — A caridade, no caso,
significa amor a Deus e ao próximo, soja éste "simpático", scja "anti
pático" do ponto de vista natural.

NOVO ASSINANTE (Aracajú): O celibato do clero e o uso da


língua latina entre os fiéis ocidentais nao estáo necessáriamentc ligados
entre si. O fato de se acharem simultáneamente em vigor hoje em dia
deve-se a fatóres históricos independentes uns dos outros. O amigo leu
o histórico do celibato em "P.R." 4/1957, qu. 7 e 7/1957, qu. 7 ; poderá
encontrar o histórico do uso do latim na liturgia em "P.R." 5/1957, qu. 3.
Em resumo : o celibato do clero representa um valor perene, digjio
de toda estima em qualquer época (cf. 1 Cor 7), ao passo que o emprégo
do latim no culto sagrado é algo de contingente e transitorio. Nunca a
Santa Igreja teve a .intengáo premeditada de celebrar o culto em idioma
alheio á lingua materna dos fiéis; muito ao contrario... Apenas cir
cunstancias históricas levaram a autoridade eclesiástica a vedar o aban
dono do latim no séc. XVI, até que inconvenientes de momento J se esva-
necessem. Ora estes já váo passando ; em conseqüéncia, tem entrado
cada vez mais o vernáculo nos ritos oficiáis da S. Igreja. Aguardemos
a evolueáo dos tempos.

MILES CHRISTI (Curitihn): Os ascetas de Qumran (judous) cul-


tivavam o celibato por motivo religioso, sem dúv.ida, ou seja, para melhor
se aplicar ao servico de Deus, á vida una, que é antecipacáo da vida
celeste.

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