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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESEISTTAQÁO
DA EDI9ÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'." visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
II vista cristáo a fim de que as dúvidas se
. dissipem e a vivencia católica se fortalega
ij" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO V

N O V E M B R i

1 9 6
ÍNDICE

I. CIENCIA E RELIGIAO

P&g.
1) "Existem rasas inferiores ? A emancipaedo dos povos da
Asia e da África nao criará entraves á eivilizacáo ?

Os homens sao ou nao sao iguais entre si?" 448

II. DOGMÁTICA

2) "Qual o sentido dos fenómenos maravilhosos ou dos mila-


gres na vida crista ?" 450

8) "Quais as notas que diferenciam de um falso milagre


(fenómeno doentio ou diabólico) o verdadeiro milagre realizado
por Deus ?" 455

m. sociología

4) "O caso dos chamados 'padres-operarios* continua muito


em foco.

Nao será a prova de que a Igreja nada pode ou nada quer


fazer em prol dos operarios ?

Que há de certa a tal propósito ?" ■ -462

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

S) "Como julgar a obra 'Utopia' de Sao Tomas Moro, chan-


celer inglés canonizado pelo Papa Pió XI em 1985 f

. Suas idéias assaz avangadas no sentido do socialismo ainda


se poderiam conciliar com a doutrbta crista 9" 472

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Anp V — N» 59 — Novembro de 1962

I. CIENCIA E RELIGIAO

UNIVERSITARIO (Salvador) :

1) «Existem ragas inferiores? A emancipacáo dos povos


da Asia e da África nao criará entraves á civilizaba»?
Os homens sao ou nao sao ignais entre si?»

Já em «P.R.» 34/1960 (corr. miúda) e 46/1961, qu. 1 abordamos o


conceito de raca a luz da ciencia moderna : vimos que nada tem daquela
rigidez que há decenios atrás lhe atribuiam; é tido como conceito assaz
flutuante ou vago.
Ao que íoi dito nos citados artigos, acrescentaremos aqui alguns
tópicos que mais ainda evldenclam a imprecisáo do conceito de raca;
dai depreender-se-á naturalmente quanto é despropositado íalar de «raca
inferior» e «raga superior». A seguir, consideraremos a questao corre
lativa : se nao há racas inferiores, nao se poderla afirmar que todos os
homens devem ser nivelados entre si?

1. Raca : conceito vacilante

É costume asseverar que há quatro grandes ragas: a


branca, a amarela, a negra e a «pele vermelha». Hoje em dia,
porém, nao se hesita em reconhecer que existem individuos ama-
reíos de tez branca (na Coréia) assim como individuos de raga
negra cuja tez embranquece quando mudam de clima (assim
certos aborígines da Australia),

Há cérea de vinte e cinco anos, ensinava-se nao raro que a raga


branca se caracteriza por seus cábelos castanhos ou louros, seus olhos
azuis e seu nariz retilíneo, ao passo que a raca negra seria marcada por
cábelos em carapinha, nariz «achatado» e labios espessos. Em hossos
dias, contudo, dá-se muita atencao ao fato de que na Suécia e na No
ruega existem numerosos brancos de cabeleira encarapinhada e olhos
negros; também se sabe que há habitantes da Núbia (África) cuja tez
é negra como o ébano, mas o cábelo é liso e o nariz retilineo.
É por isso que os antropólogos mais recentes nao concordara entre
si quando procuram delimitar as racas humanas. Chegam mesmo á
mudar de sentenca no decorrer de sua vida. Alias, foi o que se deu já
no século passado com o lamoso cientista Haeckel, que em 1873 contava
doze racas e em 1879 admitía trinta e quatro; em nossos dias os mais
ponderados dos estudiosos nao hesitam em reconhecer a existencia de
centenas de grupos raciais entre os tres biihQes de habitantes da térra,

—. 443 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 1

Em conseqüéncia, define-se hoje em dia um tipo racial pela


presenga, ora mais, ora menos acentuada, de traaos que em
outros tipos raciais também se encontram, variando apenas a
proporgáo em que se acham disseminados em cada tipo. Os an
tropólogos desistem de assinalar confins de ragas, pois, na ver-
dade, nao há nítidos limites entre elas, mas, antes, matizes que
formam urna escala gradativa quase imperceptível. Os tipos
humanos estáo profundamente mesclados uns com os outros.

Destarte a nogáo de pureza racial, táo acariciada por certas ideolo


gías, tem sido últimamente considerada como um quase-mito (isto é,
um ideal que própriamente nao existe' senáo na fantasia de quem o
apregoa). Quasemito, sim, e nao realidade, porque desde os tempos
pré-históricos as migragSes e, por conseguí nte, os cruzamentos entre os
seres humanos e os tipos raciais nao cessam de se verificar sobre a face
da térra: sao motivados pelas circunstancias do ambiente em que se
possa encontrar urna populacao (modificacOes de clima, inundacoes,
íome, carestía de víveres) ou também pelo espontáneo desejo que todo
ser humano possui, de variar..., de ganhar novos espacos vitáis, de
conquistar um teor de vida mais confortável... Principalmente na
Europa Ocidental, península na qual se acumularam as mais variadas
tribos de emigrantes, a populacáo é mista, de maneira que se torna
impossivel identificar «tal populacao» com determinada raga. As cha
madas «racas» podem e devem ser subdivididas em «subragas» ou «rasas
secundarias» numerosas. É mesmo necessário reconhecer que os tipos
raciais tém existencia transitoria: nascem, crescem, modiíicam-se e
desaparecem; os mesmos fatores que as criam, também as destróem.
Assevcram, aliAs, alguns estudiosos que a própria tendencia a defi
nir e exaltar as racas constituí, de corto modo, um dos traeos caracterís
ticos de certos grupos raciais <é, portanto, algo de relativo ou algo que
depende de determinada mentalidade). Com efeíto, verifica-se que em
todas as épocas da historia as populagóes nórdicas foram mais inclina
das a distinguir ragas do que as populag8es meridionais; na India, por
exemplo, o sistema de castas (que é urna especie de racismo) foi iatro-
duzido por invasores que vinham do Setentriáo.
A luz destas idéias, talvez surja na mente do leitor urna questáo á
qual o racismo contemporáneo tem dedicado especial atengao :

2. E o primado dos arianos... ?

Segundo a tradigáo hindú, «Airyas» era um territorio correspon


dente á Pérsia Oriental, ao Aíganistá e ao Noroeste da India de hoje.
Os habitantes dessa regiáo terlam sido homens brancos, louros, de
olhos azuis e nariz aquilino, dotados de grande estatura, que os tornava
semelhantes a semldeuses (de fato, encontram-se ainda hoje no Aíga-
nistá e na India algumas tribos que corresponden! a tal descrigáo: os
Kaffires ou Hunzas, os Nagares, os Chitralis, os Tadjiks, os Mastujis,
os Dardos e os Patas).
Ora, diziam autores do século passado, as tribos da regiao de
«Airyas» ou arlanas emigraram da Asia para a Europa no segundo
milenio antes de Cristo, dando origem a raga nórdica ou «proto-nórdica»
da Europa, a qual seria a raga ariana de nossos dias. O Conde de Gobi-
neau atribuía a essá linhagem urna «esmagadora» superioridade sdbre

' — 444 —
EXISTEM «RACAS INFERIORES»?

as demais ou «o monopolio da beleza, da inteligencia e da robustez»


(cf. «Eesai sur l'inégalité des races»). Vacher de Lapouge a considerava
«raga semidivina, dotada de olhos do céu e de cábelos de luz»; Hitler,
em seu «Mein Kampf», asseverava que «a raga eleita dos arios tocava
o dlreito de dispor de todos os recursos do planeta».

Atualmente, tais idéias vém sendo mais e mais postas em


xeque... E isto, por dois motivos principáis:
Já o lugar de origem antigamente atribuido á raga ariana
é objeto de controversia; julgam alguns estudiosos que tal es
tirpe provém das bandas do norte do Mar Negro; outros a dizem
oriunda do litoral do Mar Báltico ou dos Montes Urais ou da
Rússia Meridional ou dos planaltos da Hungría ou mesmo... da
África Setentrional. Alguns etnólogos, como Hartmann, Mor-
tillet e Houzé chegam a sustentar que a famosa raga ariana nao
passa de produto da imaginagáo de colegas mal orientados.
Mais aínda. Entre os arianos se registram duas diversas for
mas de cránio : a dolicocéfala (alongada) e a braquicéfala (arre
dondada) . Eis, porém, que, conforme as pesquisas modernas, um
dos poucos tragos realmente hereditarios e aptos para caracteri
zar um grupo étnico é a forma do cránio. Já que os dois tipos
ocorrem na mesma estirpe, pergunta-se : eram os arios braquicé-
falos ou dolicocéfalos? As dificuldades de responder a esta ques-
táo contribuiram para por em dúvida a existencia mesma da táo
apregoada ra:a ariana.
Em conclusáo, vcrifica-se quanto 6 váo falar da suporiori-
dade da ra;a ariana ou mesmo de qualquer raga que seja.
A nogáo de raga, á luz da ciencia moderna, é demasiado vacilante
para ser tomada como sujeito de predicados categóricos. Em
conseqüéncia, qualquer atitude ou qualquer política racista vem
a ser condenável, nao só aos olhos da consciéncia crista, mas
também aos do filósofo e dentista contemporáneo; é algo que o
sáculo XX, século das luzes, nao pode tolerar.

Dito Isto, porém, levanta-se ulterior questao: se nao se podem


admitir os conceitos de «raga superior» e traca Inferior», deverSo os
homens ser simplesmente nivelados entre si, de modo a se dispensar a
todos o mesmo tratamento, «tratamento-padráo» estipulado pelo Estado?
Tal é o aspecto do problema a que nos dedicaremos abaixo.

3. Todos iguais?

A resposta a éste quesito se pode formular ñas proposigóes


seguintes:
1) Se na realidade nao existem ragas humanas puras,
fixas e estritamente delimitadas, é inegável que existem, sim,
grupos rociáis ora mais, ora menos diferenciados entre si.

— 445 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 1

Por «grupos raciais» entendem-se, no caso, populares humanas


em que tais e tais caracteres sao mais marcantes do que em outras.
Sao populacdes, portante, que, diante dos mesmos agentes ou estímulos
externos, reagem de maneira mais ou menos uniforme ou igual.
A evidencia dos fatos comprova esta afirmacáo, como se depreen-
derá abaixo.

2) As diferencas existentes entre as ragas sao diferengas


de grau, e nao de natureza.

Isto quer dizer: as diferengas raciais nao sao senáo varia-


CÓes de atributos fundamentáis que pertencem ao género hu
mano inteiro. A configuragáo do corpo e as reagóes fisiológicas
sao as mesmas em todos os individuos humanos, háo apenas
quanto as suas grandes linhas, mas também quanto á maioria das
suas minucias. Em outras palavras : as diversidades raciais nao
destróem a unidade física, intelectual e moral da especie hu
mana. Todos os povos tém seus individuos bons e maus, capazes
de se aperfeigoar ou de se degradar, tanto do ponto de vista
físico como do ponto de vista moral.

Eis alguns espécimes mais notáveis dessas diferencas de grau :


a) desigualdades na estatura do corpo. Existem, sim, os Pigmeus,
com seu porte pequenino, como também os habitantes da Patagónia,
famosos por sua elevada estatura. Os habitantes do Norte da Europa
costumam ser mais avan tajados do que os dos Alpes ou os da bada
mediterránea ou os semitas (o que naturalmente nao impede excecdes
notáveis).
As desigualdades de estatura estáo associadas a diferencas no ritmo
de desenvolvimento dos individuos. Éste pode ser mais rápido ou mais
lento..., mais acentuado em certas idades, menos pronunciado em
outras. Assim os negros e os indios da América crescem mais acelera
damente nos seus primeiros anos, ao passo que os franceses se desenvol-
vem principalmente dos 7 aos 15 anos e meio;
b) desigualdades de poder muscular. Costuma-se falar, com certo
fundamento, de «ragas iracas» e «racas fortes», embora estas nao sejam
sempre as mais corpulentas : assim, postos ñas mesmas circunstancias,
os mongóis se mostram menos vigorosos do que os brancos e os negros;
os indonesios, os camponeses («fellab») do Egito e alguns tipos hindus
parecem particularmente debéis;

c) desigualdades no funcionamento de órgaos e sistemas do orga


nismo. É necessário, por exemplo, que todo ser vivo conserve tempera
tura constante no interior do seu organismo. Para prover a isto, tem
grande importancia o processo de transpiracjio : contra o acumulo do
calor em seu intimo, o ser humano produz o suor por meio de glán
dulas cutáneas, suor cuja evaporacáo acarreta resfriamento proporcio
nal á quantidade de liquido segregado. Ora o número de glándulas sudo
ríparas varia considerávelmente em íuncao do grupo racial (e, em
última análise, do clima do respectivo «habitat»): é baixo nos esquimos
e nos habitantes da Térra do Fogo; aumenta-se nos europeus, e atinge
o auge em varias estirpes tropicais; em certas regiSes' do corpo, os

— 446 —
EXISTEM «RACAS INFERIORES» ?

negros chegam a ter duas vézes mais glándulas sudoríparas do que os


brancos; os hindus, 32% mais do que os brancos, em media.
Submetendo, durante quinze minutos, um bantu (negro) e um
branco a urna corrente de ar aquecido a 76°, Stigler obteve 173 cm' de
suor do africano, ao passo que apenas 107 cnV do branco. Isto se ex-.
plica bem, por serem as glándulas sudoríparas do negro nao sámente
mais numerosas, mas também mais vascularizadas. Assim se entende
que os negros se possam, melhor do que os brancos, defender do calor
tropical e equatorial, ao qual o individuo de raca branca resüte
menos bem.

d) desigualdades na reacáo contra certas molestias.

As doengas do aparelho digestivo e dos ñervos sao mais freqüentes


entre os brancos do que entre os negros; estes, ao contrario, sao mais
atetados por molestias dos sistemas circulatorio e respiratorio. Pneumo
nía, bronco-pneumonia, gripe, coqueluche e tuberculose atingem muito
mais os negros do que os brancos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, as estatisticas comunicam que
de 1920 a 1924 a mortandade por coqueluche foi duas vézes mais nume
rosa entre os negros do que entre os brancos. No exército norte-ameri
cano, em que soldados brancos e soldados de cor estáo sujeitos ás mes-
mas condic5es de vida, contavam-se em 1938 quarenta casos de pneumo
nía entre os negros para oito casos análogos entre os brancos (cinco
vézes mais, portanto). Certas pesquisas norte-americanas deram a ver
que na fase da adolescencia a tuberculose afeta negros e brancos na
proporcáo de onze para um; favorecidos por Igual tratamento, aqueles
se curam da molestia muito mais difícilmente do que estes. Os mulatos
se comportam de modo intermediario. — Quanto aos semitas (judeus),
parecem gozar de certa imunidade em relacSo ao bacilo de Koch : em
qualquer parte do globo sao muito menos atetados por tuberculose do
que os náo-judeus.
Doutro lado, porém, verifica-se que outras enfermidades, freqüentes
entre os brancos, so raramente ou por excecáo atacam os individuos de
raca negra: assim a difteria, a escarlatina, a erisipela. Em virtude da
constituicáo própria de sua pele e sua mucose, os negros quase nao sao
atingidos por gases asfixiantes; isto foi averiguado primeiramente na
guerra de 1914-18 e confirmado na campanha italiana contra a Abissí-
nia : os invasores a principio utilizaram bombas de gas tóxico; tiveram,
porém, que desistir déste recurso, em vista do resultado quase nulo
assim colhido.
No tocante, ao daltonismo (defeito de visáo que dificulta o discer-
nimento do vermelho e do verde), está averiguado que afeta os brancos
na proporcáo de 8%, os negros na de 4%, a os Indios da América na
de 2%.
Exemplos análogos poder-se-iam multiplicar.

3) Considerando-se a capacidad© craniana cm particular,


verifica-se que ela nao constituí indicio de maior ou menor valor
intelectual.

Questáo especial é geralmente proposta a respeito do peso


ou do volume do cerebro dos diversos tipos humanos. Os racis
tas, muitas vézes, apelam para a exigua capacidadé craniana

— 447 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 1

desta ou daguela raga para deduzir inferioridade intelectual; tal


seria mesmo o argumento supremo em favor do racismo.

Em 1933, por exemplo, o etnólogo inglés H.L. Gordon atribuía a


populacho negra do Kenya urna deficiencia intelectual pelo fato de ter
pequeño volume craniano. Anos mais tarde, porém, urna pléiade de espe
cialistas de primeira ordem, tais como Huxley, Leakey, Steggerda,
Keith, Kohlbrugge, Reezins, publicava conclusoes absolutamente con
trarias as de Gordon.

O peso do lobo frontal, tido outrora como sede da inteligen


cia, representa 44% do peso total do cerebro tanto nos negros
como nos brancos. Encontram-se, de resto, em todas as ragas
todas as variedades de configuracóes e dobras da massa do ce
rebro. Diferengas raciais, portanto, nao se poderiam basear nesse
aspecto dos seres humanos.
Conseqüentemente, em 1962 os bons autores afirmam (con
trariamente ao que outrora se dizia) que peso do cerebro e capa-
cidade do cránio nada revelam a respeito das aptidóes intelec-
tuais dos individuos humanos.
Michel Leiris observa que os cerebros de grandes pensado
res foram postos na balanga após a morte, verificando-se que
eram mais leves mesmo do que a media comum.

Merecem atencáo os dizeres de Aimé Michel no artigo «Les jeunes


prodiges» em «Science et Vie» n' 537, junho de 1962, pág. 107:

«Apontam-se os cránios gigantescos de Cromwell, Lord Byron,


Bismarck, mas também se apontam os erantes minúsculos de Gambetta
e Anatole France. Einstein nada tinha que chamasse a atencáo a nao
ser o seu olhar e a sua cabeleira desordenada. Os cránios de Pasteur e
Arago eram como os dos demais homens. Pascal chegava a ser micro-
céfalo; Buffon, também. A cabeca de Descartes, exposta no Museu do
Homem (em Paris) ao lado da cabeca de famoso assassino, nao apre-
senta traeos diferenciáis. Muitas vézes estudei o cránio de Jean Cocteau,
menino prodigio... capaz de desenhar o seu próprio retrato enquanto
discutía a relatividade do tempo. Verifiquei que era como o de qualquer
outro cidadáo» (pág. 107).
«Do ponto de vista da neurofisiologia, nada se parece mais com mn
cerebro sadio do que outro cerebro sadio, pertenca ele a Einstein ou a
um ciclista. A propósito, vem-nos a mente a pilhéria daquele fisiolo-
glsta que dizia estar pronto a receber na Academia o primeiro estu
dioso que lhe mostrasse alguma diferenca cerebral (característica da
inteligencia), mesmo usando de microscopio» (ib. 106).

4) As diferengas entre as ragas sao também relativas e


circunscritas.

Em outras paíavras : pode-se demonstrar a superioridade


de urna raga sobre outra neste ou naquele setor particular; é

— 448 —
EXISTEM <RACAS INFERIORES» ?

impossível, porém, afirmar que essa mesma raga, pelo conjunto


de suas notas características, é superior as demais.
Assim há fundamento para admitir que os brancos suplan-
tam os negros por sua capacidade de raciocinio abstrato. Deve-se
reconhecer, porém, que os negros superam os brancos no tocante
á sagacidade ou á perspicacia de seus sentidos: experiencias
feitas na ilha de Jamaica, por exemplo, demonstraram que os
negros percebem muito melhor pequeñas diferengas de intensi-
dade, ritmo e timbre musicais.

«No decorrer de observares na Aírica, pudemos pessoalmente apre


ciar o verdadeiro valor moral de muitos negros, sua dedicagáo, seu
altruismo, sua delicadeza de alma, predicados por vézes muito mais
notorios entre éles do que na media dos brancos. Segundo a palavra de
Goethe, repetida por G. Pouchet, o total do ornamento é inegávelmente
o mesmo em todas as ragas; variam, porém, as quantias destinadas as
diversas despesas» (Jacques Millot, Égalité et Races, em «Études Car-
mélitaines. Les Hommes sont-ils égaux?». París 1940, pág. 70s).

5) As diferengas entre as rasas sao transitorias ou provi


sorias.

É o que demonstra a historia universal: no decorrer dos sé-


culos, a hegemonía da civilizagáo tem passado de nagáo para
nagáo, ou seja, dos Sumarios aos Egipcios,... aos Chineses,...
aos Gregos,... aos Romanos,... aos Francos,... aos Germa
nos, povos ésses dotados de características étnicas bem diferen
tes, todos até certo grau mestigos ou mesclados.

«Se os Chineses e os Egipcios tivessem julgado nossos antepassa-


dos, como nos muitas vézes julgamos as ragas estrangeiras, teriam.
apontado entre éles varios sinais de inferioridade, a comegar pela tez
alva da qual muito nos prezamos e que éles talvez considerassem como
indicio de um deíinhar irremediável» (De Quatrefages).
«Quando os Germanos nao tinham outra mansáo senao as sombrías
florestas, a raga amarela podia-se ter na conta de primeira do mundo»
(Souffret).
Após estas reflexoes, entende-se bem a conclusao de Gérald Mas-
sadié, no artigo «Existe-t-il des races inférieures?» da revista «Science
et Vie» n» 537, junho de 1962, pág. 44 :
«Nao há própriamente ragas superiores e inferiores, mas há cul
turas superiores e inferiores. E qual a causa disso? É o jógo da historia.
Do poderoso imperio dos Mayas, hoje apenas restam vestigios arqueo
lógicos, ao passo que o Celeste Imperio (a China) de outrora renasce
em nossos dias e prepara a sua bomba atómica. O declinio ou o desapa-
recimento de urna civilizacáo jamáis poderao habilitar alguém a julgar
o valor da raga que tenha suscitado tal civilizagáo.
Por isso nao nos haveriamos de surpreender se, em um dos próxi
mos anos, viéssemos a saber que íoi um médico negro quem descobriu.
o mais eficaz remedio contra o cáncer ou que íoi um Chinés quem for-
mulou a equigao universal, em váo procurada por Einstein».

— 449 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 2

6) Maior pode ser a diferenca que distancia individuo de


individuo dentro do mesmo grupo racial do que a diferenfa que
distancia grupo racial de grupo racial.

Afirmam os etnólogos que há, por certo, menos diferenca


entre um camponés do Norte da Europa e um camponés da
Mandchúria do que entre um cidadáo inteligente e culto de" París
e seu concidadáo vizinho, tarado e inculto.

No que diz respeito ao p§so do cerebro, verif ica-se que oscila bas
tante entre individuos da mesma raca. O modo de oscilar, porém, é o
mesmo em racas diferentes. Assim entre os negros tem-se urna escala
que vai de 1010 a 1560 gr; entre os brancos,... de 1040 a 1555 gr.

Donde se vé que, se, de um lado, nao é lícito estabelecer dis-


criminagáo racial (pois a natureza nao fornece fundamento para-
isto), doutro lado tambémnáo é lícito dispensar a todos os ho-
mens simplesmente o mesmo tratamento, «tratamento-padráo
estatal». A igualdade de tratamento ha de ser nao absoluta, mas
relativa, ou seja, proporcional las aptidóes e necessidades de cada
um, pois cada individuo humano difere realmente do seu pró
ximo por seus caracteres pessoais (e nao por características de
cor da pele, forma dos olhos, configuracáo dos cábelos...). Em
urna palavra: a personalidade humana individual (qualquer
que seja a sua raca) deverá sempre ser levada em consideracáo
direta e respeitada ciosamente com seus direitos e deveres por
qualquer legislador que nao queira cometer injustica. A socie-
dade, com sua organizacáo e suas leis, existe para favorecer a
expansáo das diversas personalidades humanas de que ela
consta, e nao vice-versa.

II. DOGMÁTICA

MARAVILHADO (Rio de Janeiro) :

2) «Qual o sentido dos fenómenos maravilhosos ou dos


milagros na vida crista?»

Já em «P. R.j> 2/1957, qu. 2; 6/1958, qu. 1; 11/1958, qu. 1, íicou


demonstrada a possibilidade do verdadeiro milagre, ou seja, fie inter-
vencoes extraordinarias de Deus no curso da natureza. Embora se queira
conjeturar que a ciencia, progredindo, venha a explicar tal ou tal fenó
meno que a nos hoje parece maravilhoso, nao se destrói o conceito
de milagre. Na verdade, para que se possa falar de milagre em lingua-
gem crista, bastam os dois seguintes elementos :

1) de um lado, ó apregoado fenómeno seja, no momento (inde-


pendentemente do que se dará no futuro), totalmente lnexplicável pela

— 450 —
O SIGNIFICADO DOS GENU1N0S MILAGRES

ciencia (dal a necessidade absoluta de se esgotarem todos os recursos


da ciencia para elucidar o portento; se resta brecha para alguma ex-
plicacáo científica, já nao é levado em conta no foro religioso);

2) de outro lado, requer-se que ésse fendmeno totalmente inexpli-


cável pela ciencia de hoje se tenha produzido dentro de contexto reli
gioso autentico, como que em resposta a urna prece ou a urna atitude
humilde e confiante de determinadas pessoas. Neste caso, o milagre
vem a ser o sinete que Deus imprime a tal quadro religioso, para teste-
munhar a autenticidade das virtudes ou da doutrina e da missao da res
pectiva pessoa.
Vé-se, pois, que o milagre é essencialmente um sinal, urna Paiavra
de Deus, dirigida aos homens em vista de circunstancias que de algum
modo apelavam para tal resposta de Deus. E esta característica de sinal
é muito mais importante no milagre cristáo do que a índole maravilhosa
do fenómeno.
Repitamo-lo : basta que o fato seja maravilhoso ou totalmente inex-
plicável aos olhos da ciencia de hoje. Tais seriam, por exemplo, os casos
de restituicáo de um ñervo ótico, de cura da doenca de Hodgkin, ou seja,
de linfogranulomatose maligna, da cura de amencia total postencefalí-
tica acompanhada de paralisia dos quatro membros. Se ésses fenómenos
se produzem (como, de fato, se tém comprovadamente produzido) sem
possibilidade de explicacáo científica, e após invocagáo da Onipoténcla
Divina, pode-se dizer que constituem a resposta do Senhor Deus ou um
auténtico milagre.
A documentado referente a milagres tidos como genuinos pela
autoridade da Igreja se pode encontrar ñas seguintes obras:
Louis Monden, Le Miracle, signe de salut. Desclée de Brouwer 1960;
Henrl Bon, Le miracle devant la sclence. París 1957;
Jean Lhermitte, Le probléme des miracles. Paris 1956.
Eis, porém, que justamente o segundo elemento — o elemento reli
gioso, o mais importante — é o que na prátlca mais difícilmente se pode
reconhecer. Há, com efeito.muitas atitudes falsamente religiosas inspi
radas por estados de ánimo desequilibrado, doentio, ou por crencas
erróneas ou também pela vaidade, a ostentacáo, a cobica de lucro, etc.
Em tais circunstancias, podem-se produzir fenómenos maravilhosos...
Estes, porém, nao provém de Deus (pois o Senhor assim estaría con
firmando o erro), m,as derivam-se do desequilibrio psíquico dos devotos
ou — mais raramente — de intervencóes diabólicas.
Já que, em vista de tantas atitudes religiosas, nao é fácil distinguir
a genuina devocüo, que acompanha o verdadeiro milagre, autenticando-o,
vamos aplicar-nos, ñas páginas que se seguem, a estipular as principáis
circunstancias que costumam indicar as intervencóes milagrosas de
Deus rieste mundo. Em primeiro lugar, diremos algo sobre o significado
do maravilhoso em geral na vida crista; a seguir (na resposta n' 3),
abordaremos os criterios que o caracterizam.

Significado e valor do «maravilhoso»

Tres proposigóes parecem abranger a doutrina respectiva :

1) Na vida crista, os fatos ordinarios ou normáis consti


tuem a nota principal ou dominante. Os extraordinarios sao es-

— 451 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMO5> 59/1962, qu. 2

porádicos e só tém valor em funcáo ou em vista do que é ordi


nario.

Bem se compreende tal estado de coisas : o fato central e


característico do Cristianismo é o misterio da Encarnacáo. Deus
se fez homem e quis santificar o mundo mediante a carne hu
mana. Isto se deu dentro de circunstancias ordinarias, sem ala
rido nem rebordosa da natureza; o Filho de Deus, Jesús Cristo,
se inseriu na serie das geragóes humanas e viveu como homem
entre os homens. O próprio fato da ressurreicáo de Cristo dentre
os mortos transcorreu numa atmosfera de discrigáo e sobrie-
dade notáveis. Jesús ressuscitado nao apareceu aos seus juizes
nem aos seus carrascos, nem mesmo as multidóes indiscrimina
damente, mas sómente aos Apostólos e aqueles que Lhe deve-
riam dar testemunho através do tempo e do espago. A salvagáo
foi destarte adquirida para o género humano por vias simples
e ordinarias.
Compreende-se que, em conseqüéncia, toda a vida crista no
decorrer dos séculos seja marcada por ésse cunho da simplici-
dade e da discrigáo: é mediante a Igreja e os sacramentos (a
agua, o pao, o vinho, o óleo...) que Cristo comunica a salvacáo
adquirida na Cruz. E é na fé, nao na visáo face a face, que o
cristáo apreende o dom de Deus. «O justo vive da fé», afirma
tres vézes o Apostólo no Novo Testamento (cf. Rom 1, 17; Gal
3,11; Hebr 10,38), repetindo urna frase do profeta Habacuque
(2,4). Tal é o regime normal da vida crista.

Dai nao se segué que no Cristianismo nao se admita também o


extraordinario ou portentoso. Na própria vida de Jesús houve milagres
e prodigios. Tais fenómenos, porém, só ocorrem por causa dos elemen
tos ordinarios e em vista déstes. Mais precisamente, dir-se-á :

2) O extraordinario, na vida crista, é esencialmente


sinal..., sinal que confirma, em nome de Deus, os meios ordina
rios de salvacáo.

Em outros termos : todo genuino milagre é, como dizíamos,


Palavra de Deus que se dirige aos homens em circunstancias fora
do comum, a fim de corroborar a Palavra que se dirige ñas cir
cunstancias comuns, através da Igreja e dos sacramentos. Des
locado déste contexto ou sem esta finalidade, o milagre nao tena
cabimento, pois Deus nao faz portentos apenas para ostentar a
sua Onipoténcia.
Entende-se a conveniencia de tais sinais: a natureza hu
mana, constando de espirito e materia, só atinge as realidades
espirituais ou invisíveis mediante elementos materiais ou visí-

— 452 —
O SIGNIFICADO DOS GENUÍNOS MILAGRES ,

veis; a alma humana precisa do «trampolim» (ou do sustentá


culo) das coisas sensíveis para se elevar até Deus. Nao é estra-
nho, portante, que o homem procure sinais de Deus que impres-
sionem a sua sensibilidade, nem é estranho que Deus lhe res
ponda mediante portentos ou milagres. Será preciso, porém,
admitir que ésses milagres nao podem constituir urna finalidade
a ser almejada por si mesma nem urna via que leve para Deus
independentemente da via habitual de salvacáo; o seu papel é,
antes, o de confirmar a fé nos sacramentos e na Palavra trans
mitidos pelos trámites normáis.
Daí a advertencia do Cardeal Ottaviani:

«Há anos vimos assistindo a urna recrudescencia da paixao popular


em demanda do maravilhoso, mesmo no setor da religiao. Multiddes de
fiéis váo ter aos lugares de presumidas aparicSes ou de pretensos mila
gres, desertando a igreja, os sacramentos e os sermdes» (artigo publi
cado no «Osservatore Romano» de 2 de fevereiro de 1951). .
Esta avidez representa, pode-se dizer, urna inversáo da hierarquia
dos valores.

Note-se ainda : já que os milagres tém o valor de elementos


subsidiarios, e nao de termos essenciais da vida crista, a sua
existencia nunca pode ser presumida, mas tem que ser sólida
mente provada; só poderá ser admitida, caso nao reste brecha
para alguma explicagáo científica ou racional do fenómeno em
foco (enquanto fique a mínima possibilidade de elucidagáo hu
mana, tal fato nao pode ser levado para a conta de milagre).

«Nao desprezemos, pois, as intervencoes extraordinarias do céu


na vida da Igreja, mas nao lhes atribuamos urna funcao que elas nao
tém nem podem ter: a funcao de descobrir aos homens novas vias
para chegarem a Deus. A criatura que, tendo recebido a Palavra de-
Deus, usa devidamente dos sacramentos, pode estar segura de que vai
caminhando na via reta, na única via» (J.-H. Nicolás, La foi et les
signes, em «Supplément de la Vie Spirituelle» n' 25,15 de maio de 1953,
pág. 140).
Consciente de que os milagres nao constituem algo de essencial na
vida crista, a Igreja costuma proceder com vagar e reserva diante dos
casos de portentos que váo sendo referidos; as autoridades eclesiásticas
nessas situaefies se empenham por repelir os possíveis desvios de dou-
trina ou piedade antes do que por proclamar a Índole milagrosa de tais
' fenómenos. É o que o Sto. Papa Pió X declarava :
«No tocante ao modo de julgar as narrativas piedosas..., a
Igreja... usa de prudencia tal que Ela nSo permite sejam essas narra
tivas reproduzidas em escritos públicos, a menos que isto se faga com
grande cautela; o escritor está entáo obrigado a fazer a declaragáo
imposta por Urbano VHI (declaragáo de submissáo ao juizo da Igreja).
Contudo, mesmo em tais casos, a Igreja nño pretende garantir a vera-
cidade das narrativas publicadas; Ela apenas nao proibe, se dé fé a
coisas em favor das quais nao faltam motivos de credibilidade humana.

— 453 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962. qu. 2

Foi isto, alias, o que, há trinta anos atrás (aos 2 de malo de 1877), a
S. Congregagáo dos Ritos decretou: 'Tais aparicñes ou revelacóes (de
Índole privada) nao íoram condenadas pela Santa Sé, a qual simples-
mente permitiu que os devotos lhes dessem crédito meramente humano,
em vista das tradigSes que as referem, corroboradas por testemunhos e
documentos dignos de fé'. Quem observa esta doutrina, está em segu-
ranca> (ene. <Pascendi> § VI).
Tais palavras do S. Padre Pió X sugerem ¡mediatamente a seguinte
proposicáo:

3) O gosto febril do maravilhoso, tao disseminado em


nossos dias, é por vézes indicio de pouca fé.

Em última análise, ésse gosto significa que os homens váo


perdendo o sabor da Palavra Divina. Nao se sabem mais alimen
tar e corroborar com as verdades que Deus revelou para todos
e que sempre foram ensinadas no Cristianismo; julgando-as insu
ficientes ou insípidas, apelam para outras proposigóes, as quais
já nao vém de Deus (o Senhor nao profere revelagóes a gosto
dos homens), mas únicamente da imaginagáo humana.
A fé degenera assim em crendice e superstigáo.

Muito sabias sao as observacSes de Louis Monden a tal propósito :


«O desejo de prodigios espalhafatosos e indubitávels nasce... da
aspira gao a urna fé sem sombras e a urna redencáo sem cruz...
S6 é verdadeiramente cristáo o milagre que nao suprime o risco
da fé, mas ajuda a aceitá-la. Deus nao empurra a sua criatura, nem a
torca; Ele a convida na profundeza da sua liberdade e a chama» (Le
Miracle, signe de salut 1960, 62).
Como expressoes da sede contemporánea de maravilhoso, podem-se
apontar dois «Centros de Diíusáo de Portentos», existentes na Franca
em 1953 : colhiam em jomáis, revistas, íolhetos e livros as noticias de
Íen6menos extraordinarios ocorrentes em qualquer parte do mundo e as
publicavam ¡mediatamente, sem usar de criterio algum para classificar
essas noticias e averiguar o seu grau de veracidade; nao raro chega-
vam mesmo a lhes acrescentar comentarlos óu interpretacSes de índole
totalmente arbitrarla e íantasista. Pediam outrossim aos leitores que
lhes comunicassem tudo que viessem a conhecer nesse setor, a fim de
o publicar sem demora; destarte alimentavam no público urna atitude
de ánimo pouco sadia ou urna rellgiosidade exuberante, mas vazia e
inconsistente. Embora as publicares désses Centros declarassem
submeter-se ao julgamento da Igreja, difundiam noticias de aparicóes
formalmente desaprovadas, como as de Espls e Bouxiéres.
A guisa de espécimen, els urna das comunlcacSes que mais preten-
dlam edificar o leit'or:
Na aldela de Tilly (Franca), diziam, a Virgem Santísslma apareceu
no inicio do século XX, pedindo a recltacSo do rosario. Os homens,
porém, nao lhe obedeceram. Em conseqüéncia, Tllly foi destruida na
última guerra mundial. E, para corroborar esta Interpretado dos fatos,
os arautos da mensagem lembraram que durante os combates de junho-
•Julho de 1944 Tllly foi pelos beligerantes tomada e retomada vinte e

— 454 —
CARACTERÍSTICAS DO GENUINO MILAGRE

tres vézes. Ora vinte e tres seria justamente o número das encíclicas
dedicadas ao rosario pelo S. Padre Leáo XIII!

Como que para temperar tal desejo de revelacóes particula


res em nossos días, vém a propósito as palavras de S. Joáo da
Cruz:

«Nao convém interrogar a Deus por via sobrenatural, nem é neces-


sário que Ele nos íale désse modo; tendo Ele manifestado todas as
verdades da fé em Cristo, nao há mais ié a revelar nem jamáis haverá.
Querer receber conhecimentos por via extraordinaria é, como dissemos, •
notar falta em Deus, achando nao nos ter dado bastante em seu Filho.
Mesmo quando se deseja essa via sobrenatural dentro da fé, nao deixa
de haver curiosidade proveniente da fé diminuta. Assim nao devemos
querer nem buscar doutrina ou outra coisa qualquer por meio extraor
dinario. Quando Jesús, expirando na cruz, exclamou : 'Tudo está consu
mado' (Jo 19,30), quis dizer terem-se acabado todos ésses meios, e tam-
bém todas as cerimdnias e os ritos da Lei antiga. Guiemo-nos, pois,
agora pela doutrina de Cristo-Homem, de sua Igreja e seus ministros,
e por éste caminho humano e visivel encontraremos remedios para
nossas ignorancias e fraquezas espirituais, pois para todas as necessi-
dades ai se acha abundante remedio. Sair désse caminho nao só é
curiosidade, mas muita audacia; nao havemos de crer, por via sobrena
tural, senáo únicamente o que nos é ensinado por Cristo, Deus e Ho-
mem, e seus ministros, homens também. É o que nos diz Sao Paulo
nestas palavras: 'Se algum anjo do céu vos ensinar outra coisa fora
do que nos, homens, vos pregamos, seja maldito e excomungado' (cf.
Gal 1,8)» (A Subida do Monte Carmelo 1. n cap. 22).

Ñas linhas ácima, o Santo nao nega a possibilidade nem o valor


de xevelacóes particulares; apenas intenciona a cautelar os devotos
contra as possiveis ilusóes nesse setor, e censura os que tendem a esti
mar essas comunicagoes mais do que a grande Revelacáo transmitida
por Cristo á Igreja inteira.

Com estes dizeres parece suficientemente esclarecido o lugar


que compete aos fenómenos extraordinarios no trámite da vida
crista.
Focalizemos agora urna questáo intimamente ligada com a
que acaba de ser abordada.

LAUREANO (Ilhéus) :

3) «Quais as notas que diferenciam de nm falso milagre


(fenómeno doentio ou diabólico) o verdadeiro milagre realizado
por Deus?»

Dizfamos que nem todo fenómeno portentoso pode ser considerado


como sinal de Deus ou como portador de mensagem divina. Tanto o
fenómeno em si como o respectivo quadro religioso devem preencher
determinadas condicdes para que se possa admitir germina intervencao
de Deus no caso. Analisaremos agora essas condicñes, distinguindo entre

— 455 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 3

características negativas e características positivas da verdadeira Ínter-


vencáo de Deus ou do genuino milagre.

1. Criterios negativos

Eis as principáis notas que servem para denegar a algum


fato maravilhoso o valor de'milagre própriamente dito:

a) Circunstancias que tornem o fenómeno indigno de Deus;


assim
. irreverencia a Deus,
imoralidade,
índole infantil ou ridicula,
foros de charlatanismo ou ilusionismo,
vantagens materiais e lucro financeiro sistemáticamente
aceites pelo pretenso taumaturgo,
ocasióes de satisfazer ao orgulho, á vaidade ou á sensuali-
dade das pessoas envolvidas no portento.

Certamente os Evangelhos apócrifos, principalmente os da Infancia


de Jesús, reíerem pseudo-milagrcs do Senhor, denunciados, uns, por
seus traeos irreverentes ou sua Índole indigna de Deus (tenham-se em
vista as punieses violentas e arbitrarias infligidas por Jesús a seus cole
gas e ao seu mestre na escola), outros, por carecerem de significado
messiánico, apresentando-so como mera ostentacüo de poder (que sen
tido religioso poderla ter o fato de que Jesús modelasse pássaros de
argila e os fizesse esvoacar logo depois de plasmados?). Cf. «P. R.»
56/1962, qu 7.
A luz déste criterio, poder-se-áo julgar certos portentos relatados
no decorrer dos sáculos cristáos. Louis Monden, Le Miracle, Signe de
salut pág. 60, observa :
«Se a ciencia nao tivesse provado que a trasladado da Casa Santa
de Nazaré (para Loreto) constituí urna lenda, nos o teriamos suspei-
tado, dada a Índole mesma de tal prodigio. A missáo dos anjos no plano
redentor nao é precisamente a de transportadores benévolos».
A respeito da Casa de Loreto, veja-se «P. R.» 12/1958, qu. 9.
Outro exemplo de portento que, vistas as circunstancias em que se
realiza, nao pode ser atribuido a extraordinaria intervencáo de Deus, é
a prática do horóscopo, principalmente como se verifica nos consultorios
de grandes mestres ou em Institutos especializados : abstracáo feita
de outras circunstancias, o simples fato de se estabelecer comercio sis
temático, com finalidades altamente lucrativas, em torno da predlcao
do futuro, bem significa que essa predigáo nao pode ser inspirada por
Deus, mas deve decorrer de obra meramente humana.
Assim há de ser considerada a empresa de um mestre parisiense
que, sob o pseudónimo de «Fakir Birman», nos anos anteriores a última
guerra mundial montou prestigiosa agencia de horóscopos nos Campos
Elisios de París. Tinha a scu servico numerosa equipe de funcionarios,
que se aplicavam ás tarefas de estipular, escolher, copiar e despachar
oráculos, dos quais lhe provinha urna renda de 50 milhóes de francos.

— 456 —
CARACTERÍSTICAS DO GENUINO MILAGRE

Na mesma época funcionava em Monaco semelhante Instituto, cujos


lucros nao devem ter sido exiguos, visto o teor dos respectivos pros
pectos de propaganda: «Horóscopo completo, com estudo minucioso e
datas'decisivas do ano; o ano em curso, com os acontecimentos de cada
dia • 1000 francos. Comparacao de dados que permitem sondar o futuro
de um casamento ou de urna associagáo : 200 francos, etc.».
Simultáneamente em Paris existia ainda outro orago ou adivinno,
Taran Bey ao qual afluiam consulentes de todas as partes da cidade;
cuando realizava sessSes publicas no Circo de Paris, a multidáo de es
pectadores era tal que certa noite, excitados e impacientes junto as
respectivas bilheterias, chegaram a arrancar e levar consigo um poste
de iluminacáo pública!

Eis outro criterio que pode servir para desqualificar o por


tento :

b) índole fortemente sensacional ou retumbante do pro


digio.

As obras de Deus costumam ser discretas, mesmo quando


derrogam ao curso ordinario dos acontecimentos. Nunca remo-
vem o regime de fé em que os cristáos viveráo até o fim dos
tempos. Portento exageradamente sensacional já nao seria sinal,
já nao levaría os espectadores a procurar e entrever outra rea-
lidadc invisivel assim assinalada, mas, macigo e privado de trans
parencia, prendería a atencáo dos observadores; alimentaria a
fantasía e a curiosidade profanas mais do que as faculdades su
periores do homem e a reverencia a Deus.
O auténtico milagre, portanto, nunca dá aos homens a impressáo de
estarem num universo já glorificado ou no paraíso reconquistado.
Assemelha-se antes a um sorriso reconfortante que Deus dirige a sua
lerda posta no caminho da cruz. De resto, iludir-se-ia quem julgasse
que os milagres mais retumbantes provocariam em todos os homens a
adesao a Deus. Quem nao possui urna certa docüidade ou urna atitude
inicial de fé, tende a contornar e desvirtuar qualquer prodigio; procura
explicacSes racionalistas, sugeridas por preconceitos obcecados, veri-
fica-se assim o que Jesús disse no fim da parábola de Lázaro e do
ricaco: «Mesmo que alguém ressurja dentre os mortos, nao lhe darao
Em Lourdes, onde se julga, com ra2áo, haver auténticos milagres,
a discricáo é um dos tragos mais marcantes. Ali nao há curas em massa;
os fenómenos portentosos ficam sendo exceedes (cf. significativa esta-
tistica em «P. R.» 11/1958, qu. 1). Também nao há cálculos humanos
que levem a prever a obtengáo de alguma cura por se terem preenenido
determinadas condicoes; nem se pode falar de probabilidade estatística
em favor de tal ou tal caso. As circunstancias das curas registradas nao
podem ser reduzidas a um processo uniforme : na piscina, em procissao,
durante a Missa, numa enfermaría comum ou num quarto isolado dao-se
os portentos. Ademáis a maneira como se realizam é muito sobria.

Mais um trago que desabona os fenómenos maravilhosos,


seria

— 457 —
«PERQUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 3

c) O espirito de arrogancia e de dominio com que o tau


maturgo trata as coisas de Deas e os fenómenos portentosos.

Quem julga ter direito a algum milagre, porque possui cien


cia e receitas ou porque é virtuoso e sempre foi fiel a Deus, já
se coloca fora das disposigóes riecessárias para ser atendido pelo
Senhor Deus. O auténtico milagre é sempre sinal gratuito, nunca,
é devido por Deus ao homem; por isto estaña simplesmente
fugindo ao Pai celeste quem exigisse um milagre como condi-
Cáo de sua adesáo a Deus. É com humildade e disponibilidade
que o homem se deve colocar perante o Senhor, esperando a
gratuita condescendencia do Altíssimo.

Observa Monden, ob. cit. 65 :


«Estas consideracóes ajudam valiosamente a discernir os verdadei-
ros milagres. Será considerado ao menos como improvável qualquer
fato maravilhoso que esteja constantemente á disposicáo do povo cris-
táo ou que se produza a intervalos regulares. Parece-nos contaminada
por inverossimilhanca a hipótese (Jaqueles, por exemplo, que atribuem
a liquefagáo do sangue de Sao Januário em Ñapóles a urna intervencáo
milagrosa, e nao a um processo químico natural. Deus usa do milagre
conforme as normas da sua soberana liberdade; é difícil admitir que
Ele queira fazer do portento um brinquedo maravilhoso oferecido &
curiosidade dos filhos dos homens».

Em particular, no tocante a predigóes e revelagóes, sao sus-


peitos os oráculos que apresentam

d) Grande abundancia de pormenores ao descrever o fu


turo.

Há vaticinios que descem a minucias grotescas, reduzindo-se


freqüentemente ao seguinte esquema : haverá tremendos flage
los para a humanidade nos próximos tempos; sobreviveráo ape
nas os bons, os quais, terminada a borrasca, passaráo a gozar de
prosperidade sobre a térra. Tem-se assim a afirmacáo de um
Cristianismo que tende a se instalar neste mundo e a se dar por
satisfeito com os bens da vida terrestre (o que, na verdade, é
muito pouco cristáo). Tais oráculos gozam de muita voga por
que constituem urna especie de consolo para o homem atribu
lado de nossos dias; correspondem, sim, a urna atitude psicoló
gica do cidadáo moderno e nao a urna revelagáo divina; fome-
cem devaneio á fantasía e satisfagáo ia curiosidade, coisas que
vém muito a propósito numa época em que o homem procura
tantos paliativos (meias-solugóes) para as miserias que o aco-
metem.

Val aqui transcrito um espécimen de tais oráculos, datado de malo


de 1947 (época de calamidades (mediatamente decorrentes da última
CARACTERÍSTICAS DO GENUINO MILAGRE

guerra mundial). É bem íiel ao esquema habitual (devc-se á <Oeuvre


Mondiale de Propagande et d'Information». Bourg-Saint-Maurice, Sa-
voia, Franca) :
«O reino do S. Coragáo de Jesús está próximo. Contudo, antes que
chegue, desencadear-se-ao terríveis provacOes sobre o mundo, a íim de o
levar de volta a Deus pela penitencia e exterminar por justo castigo
aqueles que nao se quiserem converter. Assim a térra será purificada
e o mundo renovado.
Primeira serie de provagdes...
Segunda serie de provaodes (ainda haverá impíos e ateus)... Entáo
o grande flagelo do céu precipitar-se-á sobre éles, flagelo inédito e es
pantoso, que atingirá especialmente os impenitentes. Ésse novo flagelo
será breve, muito breve; seguir-se-lhe-á imediatamente o triunfo dos
servos de Deus. A mor parte do género humano desaparecerá nesse
inaudito castigo; aqueles, porém, que sobreviverem, serviráo o Senhor
com temor e amor».
Obedecem ao mesmo esbóco profecías sucessivamente propagadas
nos últimos cem anos : assim a <Profecia do Cura de Ars», a «PredicSo
de Orval», a «Profecía de Santa Odilia», as «InterpretacOes modernas de
Nostradamus», etc. SSo documentos que por si mesmos se despresti-
giam.

Jamáis será intencáo da Igreja atrair a si os homens me


diante promessas de remuneragáo temporal ou de prosperidade
terrestre para os bons. Portanto, a utilizagáo de tais profecías na
Apologética comunicaría nocáo errada do Evangelho, fundamen
taría a vida crista sobre a crendice mais do que sobre a fé;...
sobre a curiosidade mais do que sobre a procura do verdadeiro
Deus;... sobre temores e sonhos terrestres mais do que sobre a
verdadeira esperanga crista. O apologista católico nao procurará,
sucesso para a sua causa á custa de traicio dos valores mesmos
(sobrenaturais, invisiveis) que a Apologética quer defender.

Nótese a propósito urna sabia observagáo de Sao Tomaz : na Suma


Teológica III qu. 69, a. 3, pergunta o S. Doutor por que o Baten»,
apagando o pecado original, nao extingue também as consecuenciasi do
pecado, que sao os sofrimentos da vida presente c a morte. E responde.
«Nao os extingue, a fim de que os homens nao procurem o Batismo,
movidos pelo desejo de urna vida terrestre isenta de tnbulacSes, mas o
facam únicamente em vista da gloria da vida eterna».
O Cristianismo, por corto, nao garante existencia prazenteira neste
mundo. Donde se vé quáo suspeitas sao as profecías que prometen» o
que quer que seja neste sentido.

Também nao se recomendam os oráculos marcados por

e) Acentuada tendencia a interferir em assuntos de cien


cias naturais, elucidando em nome da Religiáo questóes da al-
gada das ciencias profanas.

— 459 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 3

Relatam-se, com efeito, vaticinios que pretendem desven


dar novos horizontes referentes a origem e á evolugáo do mundo
e do homem, a natureza dos anjos, etc.

Certo farmacéutico, ex-aluno do Laboratorio de Geografía Física de


Paris redigiu urna «Geología Mariana», baseada nos estreitos liames
que ele julgava haver entre os terrenos calcários e as apancles de
Maria Santissiraa. Assim concluía a sua explanacáo :
«Poder-se-ia do seguinte modo representar, em simbolismo peí-
feito, o ato central da historia déste mundo (a Encarnacáo): 8, numero
de Maria (5, número do homem, acrescentado a 3, numero de Deus),
unido ao Infinito ( 00 ), dá urna flor em forma de cruz, a qual evoca
a hostia miando esta é colocada no centro de um Ómega de plenitude
divina, que é, antes do mais, o sinal geológico das escavacSes subterrá
neas» (libelo publicado sem licenca da autoridade eclesiástica e sem o
nome do editor; aqui transcrito da revista «La Vie Spirituelle. Supplé-
ment» n« 25 de 15/V/1953, pág. 155).

DifícU é entender o que o autor quer significar mediante talelu-


cubragSo. Em todo caso, deve-se afirmar que é vitima de falsa «visaos;
nao é ao Espirito Santo que se devem tais intuicoes. A ciencia e a Reli-
giáo nao contradizem urna á outra; contudo nao é necessáno, nem
lonsentáneo, pedir á Religiáo respostas para desvendar os místenos da
ciencia.

Seiam agora apontados os principáis indicios positivos do


genuino milagre ou das auténticas intervengóes de Deus.

2. Criterios positivos

Devem-se indicar separadamente os traeos que caracterizam as


pessoas envolvidas no genuino portento, e os que concernem os frutos
ou os efeitos déste.

a) As pessoas envolvidas no auténtico milagre devem


apresentar verdadeira atitude religiosa, marcada, antes do mais,
pela oracao e a humildade.
As idéias professadas por tais pessoas deveráo ser as da
Revelacáo crista. O milagre verificado em tal contexto sera
entáo, como já foi afirmado atrás, o sinete dado por Deus para
confirmar a virtude, a doutrina ou a missáo das pessoas por in
termedio das quais ou em favor das quais o portento se realiza.
Sendo assim, entende-se que os genuínos milagres se efetuem
geralmente na vida dos santos e dos pregadores ou arautos de
Deus, pois estes justamente é que precisam de credenciais, isto
é, precisam- de ser identificados ou confirmados pelo Senhor aos
oíhos do mundo. .
A rigor, nao se exclui que um milagre ocorra por inter
medio de pessoa de vida indigna ou de ideología errónea. É de

— 460 —
CARACTERÍSTICAS DO GENUINO MILAGRE

crer, porém, que isto só se dé excecionalmente e que o Senhor,


ao realizar o portento, remova os perigos de ilusáo; Deus entáo
fará que os homens compreendam o sentido do prodigio ou o
termo preciso ao qual se refere o sinal milagroso (pode-se dar
que o Senhor se queirá servir de um homem pecador ou pagáo
para ser portador de urna verdade ou de urna mensagem divina;
em tais casos, o milagre atestará a veracidade de tal mensagem,
mas nao comprovará a conduta de vida ou o conjunto de idéias
do arauto; o Senhor permitirá que isto se torne claro aos ho
mens) .

Multo a propósito dizia Pascal: «Les miracles discernent la doctrine


et la doctrine discerne les miracles. — Os mllagres levam a reconhecer
a doutrina, e a doutrina leva a reconhecer os milagres». Donde se vé
que a importancia do milagre, na teología católica, nao é absoluta, más,
sim, relativa; deverá ser avallada á luz de um contexto ideológico que
os homens nao de reconhecer de algum modo como válido já antes de
reconhecer o fenómeno milagroso.
Cf. «P. R.» 6/1958, qu. 1, onde se trata da possibilidade de autén
ticos milagres ou sinais de Deus fora da Igreja Católica.

O quadro mais normal dentro do qual o milagre se insere,


é o da prece humilde: o prodigio aparece entáo como a resposta
de Deus ao apelo da miseria do homem. Nao é a miseria que im
pede o homem de ser agraciado por Deus (contanto que o mise-
rável ore com um coragáo contrito e humilde), mas sao o orgu-
lho e a presungáo que criam obstáculo á grasa e á intervengáo
milagrosa de Deus..
Pode-se dizer que em Lourdes há um só elemento constante
em todos os casos de milagres : é a oragáo. Os prodigios consti-
tuem a resposta á oragáo humilde.

Passemos agora a outro indicio positivo do auténtico mi


lagre.

b) Os efeitos do genuino portento sao, entre outros, a con-


firmacáo dos homens na verdade e no bem, repudio do pecado,
conversSes á reta fé, paz de alma, concordia e caridade entre os
homens, fídelidade ao dever de estado, obediencia as autori
dades. ..
Estes indicios já foram objeto de consideragáo em «P. R.»
6/1958, qu. 1, onde o leitor poderá colhér ulteriores informacóes
sobre o assunto.

c) As genuinas revelacoes milagrosas nunca sao inova-


coes em relagáo a doutrina tradicional da Igreja, mas apenas
constituem explicitagóes da mesma ou aplicagóes a casos parti
culares] além disto, a Igreja nao as impóe á fé do povo de Deus.

— 461 —
tPERGUNTE E RESPONDEREMOS> 59/1962, qu. 4

Assim a mensagem do S. Coracao de Jesús a S. Margarida Maria


Alacoque em Paray-le-Monial (séc. XVII) nao é senáo a concretizacáo
dos dogmas da Encarnacáo e da Redencáo numa época em que se ia
'esquecendo o Amor de Deus para arvorar o temor religioso jansenista.
A devocáo ao S. Coracao de Jesús tem fundamento cabal no Credo (é,
sim, a devogáo ao Amor do Redentor ou ao Amor de Deus que se fez
homem para remir os homens). Em conseqüéncia, poderia alguém pres
tar culto ao S. Coracao de Jesús, sem muito se interessar pelas gracas
extraordinarias concedidas a S. Margarida Maria, até mesmo sem as
conhecer. — Díganse algo de análogo a propósito das aparicóes da Vir-
gem Santíssima em La Salette, Lourdes, Fátima: a mensagem ai atri
buida a Maria (repudio do pecado, entrega á oracáo e á penitencia, reci-
tacáo do Rosario) está incluida no ensinamento dos Pontífices e do ma
gisterio comum da Igreja; as aparicSes apenas visaram avivar nos cris-
táos a consciéncia da importancia e da necessidade de tais elementos.

Estas consideracóes já bastam para que o leitor possa dis


tinguir os genuínos milagres e avaliar o significado (nem abso
luto, de um lado, nem desprezível, de outro lado) que Ihes com
pete no conjunto da Revelacáo e da vida cristas.

IV. SOCIOLOGÍA

SEMANARIO (Rio de Janeiro) :

4) «O caso dos chamados 'padres-operarios' continua


muito em foco.
Nao será a prova de que a Igreja nada pode ou nada quer
fazer em prol dos operarios?
Que ha de certo a tal propósito?»

Importa, antes do mais, delinear a origem e o histórico do movi-


mento dos «padres-operarios». A seguir, exporemos a atitude da Igreja
frente ao mesmo; donde se evidenciará o que as críticas tém e nao tem
de auténtico neste setor.

1. Padres-operarios: surto e atividades

1. Conscientes da dolorosa descristianizacáo do mundo


operario, alguns sacerdotes, durante a última guerra mundial
(1939-1945), resolveram empreender nova tática de apostolado :
penetrando ñas fábricas, usinas e minas, procuraram identifi-
car-se cada vez mais com a vida e os costumes dos proletarios,
a fim de Ihes dar ¡mediato e eloqüente testemunho de Cristo.

O primeiro caso registrado foi o do Padre Loew, que em 1941 se


tornou trabalhador das docas de Marselha.
Meses mais tarde, alguns sacerdotes seguiam para a' Alemanha
oomo trabalhadores voluntarios a acompanhar jovens franceses recru-
OS PADRES-OPERARIOS

tados para o servigo de trabalho («Arbeitsdienst») que o govérno na


zista toes impunha. Fizeram destarte as vézes de capeláes clandestinos,
correndo riscos e perigos que n&o eram despreziveis (o Pe. Dillard,
entre outros, morreu no campo de concentracáo de Dachau); foi assim
que conheceram de perto o ateísmo que dominava a juventude francesa,
tacaneando proporgñes surpreendentes. Essa experiencia concorreu para
desencadear a etapa seguinte :

A 1» de julho de 1943, o Cardeal Suhard, de París, houve


por bem dar caráter oficial a tais esforgos até entáo entregues
a iniciativa particular : com a colaboracáo dos Padres Godin e
Daniel, fundou a chamada «Missáo de París». O ideal dessa obra
era a identificacáo total dos sacerdotes com os proletarios; ado-
tariam o regime de ganha-pao déstes (8 h de trabalho manual),
compartilhariam sua morada e seu modo de vida dia e noite,
visando assim aos poucos impregnar de Cristianismo o ambiente
materializado das fábricas e oficialas, ou, em outros termos, dar
um sinal concreto da presenca de Cristo, capaz de arrancar ao
indiferentismo a classe trabalhadora.
O padre-operário despertou a atencáo simpática de ampios
círculos do público francés; tornou-se como que um símbolo ou o
«apostólo dos tempos modernos», feito pequenino com os peque-
ninos, oprimido com os oprimidos. Nao há dúvida, tal programa
supunha grande fervor, notável abnegagáo e heroísmo.

O número désses novos missionários foi crescendo, até chegar em


1953 ao total de 103, dos quais cérea de vinte eram Religiosos (jesuítas,
dominicanos, capuchinhos...). Vinte e cinco estavam localizados em
Parto' os demais se achavam distribuidos por onze dioceses da Franca;
em 1953 o mais jovem contava trinta anos de idade, enquanto o mais

AtaH£SÍ^^m seminaristas foi sendo orientada para tal


género de apostolado; ñas ferias escolares dedicavam-se á aprendizagem
de determinada técnica operaría, que éles haviam de exercer como
sacerdotes.

2 Como se terá desenvolvido ésse novo empreendimento?


A reacáo comunista, a principio, foi fortemente contraria a
tal especie de intrusáo dos sacerdotes no ambiente proletario.
Aos poucos, porém, em vez de se opor aos padres-operarios, os
marxistas resolveram neutralizar a sua agáo, ou melhor, resol-
veram utilizá-los no servigo da causa marxista : por suas pala-
vras e seus artificios bem premeditados e extremamente saga-
zes, colocavam-nos mais e mais diante do dilema :
ou imergir-se totalmente ñas campanhas de reivindicacóes
dos operarios, participando em todos os movimentos sindicáis,
ou restringir-se a atividades meramente religiosas entre os
trabalhadores.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 4

Ora esta última opgáo significaría simplesmente o abandono


da tática que era característica do padre-operário e que consti
tuía o seu ideal de apostolado. Sendo assim, os sacerdotes, em
grande número, optaram pela primeira solugáo (evitariam des-
tarte qualquer acusagáo de covardia ou de procura de interésses
pessoais). Isto, porém, concoma igualmente para o sucesso e a
propaganda da causa comunista, pois os companheiros marxis-
tas em suas campanhas de reivindicagóes, se puseram a clamar :
«Mesmo os padres estáo conosco».
As conseqüéncias désse estado de coisas foram-se manifes
tando aos poucos. Os resultados nao correspondiam as expecta
tivas : em vez de cristianizar o seu ambiente, os sacerdotes-ope
rarios é que sofriam a descristianizagáo sugerida pelos seus com
panheiros de jornada; em graus diversos (sem dúvida), bom nú
mero déles ia-se deixando impregnar por um modo de ver ma
terialista, marxista; a sua linguagem se tornava cada vez mais
linguagem partidaria, a inspirar a luta de classe e as divisóes,
antes que a caridade crista.

O ritmo da vida cotidiana induzia-os mais e mais a negligenciar a


oracao. A principio, ainda realizavam as suas funcSes sacerdotais : cele-
bravam a S. Missa todos os dias, geralmente a noitinha, pois de manhá
era necessário apressar-se em demanda das oficinas. Os operarios que
freqüentavam essas Missas eram poucos, como se compreende, e total
mente alHiios ao rito. Ora, a íim de fazer que éste se lhes tornasse mais
compreensivel, os sacerdotes tomavam a liberdade de introduzir inoya-
cóes na S Liturgia, passando por cima das prescrig3es canónicas : assim
celebravam em quartos de dormir, alegando que os operarios na igreja
Daroauial se sentiriam desambientados; celebravam sobre urna mesa de
cozinha (as vézes, a ünica de que podiam dispor);... em francés, para
se tornar inteligíveis;... intercalando reflexOes em alta voz, por oca-
siáo da epístola, do Evangelho, dos «Mementos». Chegaram a compor
oracSes «litúrgicas» novas, entre as quais a seguinte : «Oremos. Uvrai-
•nos, Senhor, da escravidáo do capitalismo...».
Quanto á recitacáo do Breviario, que seria obrigacao da vida sacer
dotal muitos padres-operarios, após oito horas de penoso trabalno, jul-
gavam-se dispensados de a cumprir. Destarte a oracSo mais e mais se
ia reduzindo na sua vida.

Com o tempo, muitos padres-operarios já nao se encontra-


vam em condigóes físicas e psicológicas para celebrar a S. Missa
todos os dias. Tal rito lhes parecía fora de propósito no am
biente em que viviam. Para justificar entáo o seu alheamento as
fungóes sagradas, alguns comegaram a distinguir dois tipos de
ministerio : o «sacerdocio do culto», dirigido para a Eucaristía,
e o «sacerdocio do testemunho» ou «da presenga», que sem ati-
vidade propriamente litúrgica devia tornar o Cristo presente no
meio operario.

— 464 —
OS PADRES-OPERARIOS

Aconteceu mesmo que certa vez na solenidade de Natal os estiva-


dores do pdrto de Marselha, tendo consigo alguns padres-operarios, pe-
diram que um déles celebrasse a S. Missa de Natal. Eis, porém, que,
com grande surprésa para os trabalhadores, os sacerdotes lhes respon-
deram que, para ésse fim, deviam procurar outros padres: a Missa
pública de Natal, éles nao a poderiam celebrar, já que o seu sacerdocio
entre os trabalhadores era um sacerdocio de presenga, e nao de funcoes
rituais!

Em outros termos : propagou-se entre os padres-operarios


a idéia de que a tarefa primaria do sacerdote é de índole tem
poral, social ou económica; consistiría, antes do mais, em esta-
belecer urna sociedade sem classes, libertando os que hoje sao
oprimidos ou explorados. Sómente após essa libertagáo ou «re-
dencáo» o padre daria ao mundo a Redengáo própriamente reli-
. giosa ou crista, exercendo o seu ministerio sagrado ou estrita-
mente sacerdotal. Havia quem julgasse que só depois de conse
guir essa redengáo temporal é que o operario se poderia interes-
sar pelas verdades religiosas e pela Redengáo sobrenatural. Por
conseguinte, o padre-operário, enquanto atendesse á sua pri-
meira tarefa (de índole meramente social), nao pensaría em
evangelizar.

Como se ve, tais proposigóes coincidem exatamente com a posicao


marxista, segundo a qual a Religiio é apenas urna superestrutura ou
um elemento relativo na vida do homém, elemento que vacila de acordó
com as vacilagoes da producao material e do bem-estar temporal. Tal
apreciagáo se op6e frontalmente ao ponto de vista cristáo.
O fato é que, seguindo a ideología inovadora, certos órgáos da im
prensa, assim como grupos de cristáos, se puáeram a preparar, de ma-
neira mais ou menos dissimulada, a entrada do comunismo dentro do
Catolicismo, como se a fusSo fósse possivel. Alguns padres-operarios
se tornavam vitimas ou instrumentos de tais atividades.

A experiencia comprovou que urna posigáo religiosa táo di


luida ou apagada como a que os padres-operarios iam adotando,
ficava totalmente estéril para o apostolado. Os trabalhadores,
em particular os militantes marxistas, consideravam o padre-
-operário como qualquer outro operario a quem éles estendiam a
máo num gesto meramente humanitario; julgavam existir um
vínculo de solidariedade entre todos aqueles que sao explorados,
üidependentemente do credo ou do modo de pensar de cada um;
por conseguinte, nao lhes seria lícito excluir dessa solidariedade
alguns trabalhadores pelo fato de serem outrossim sacerdotes.

Em Bordéus, por exemplo, no ano de 1952 faleceu, vítima de ací


dente no cais, um sacerdote que trabalhava ñas docas; ora ao seu en
terro compareceu a maioria dos companheiros, nao porque se tratava
de um padre, mas porque tinham em vista urna vitima, semelhante a
éles, da dita exploracáo «patronal» (veja-se «II Lavoro» de 6/XII/1953,
órgáo da Confederac&o Italiana do Trabalho).

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 59/1962, qu. 4

Um dos padres-operarios, Bernard Chauveau, trabalhador das usi


nas Renault, chegou mesmo a escrever o seguinte depoimento :
«Pessoalmente, vivo há varios anos com militantes revolucionarios,
cristaos e nao-cristáos, comunistas e nao-comunistas. Caso Ihes procla
memos ser cristaos ou sacerdotes, mostram-se totalmente desinteressa-
dos; pederíamos do mesmo modo dizer-lhes que somos budistas ou par
tidarios da objecáo de consciéncias» («Documentaron Catholique», 18/X/
1953, 1300s).

Entende-se que, vivendo em tais condigóes, mais de um


padre-operário tenha finalmente deixado o hábito clerical e a
profissáo de sacerdote, tomando esposa e constituindo familia.
Houve também quem chegasse a professar e propugnar veemen-
temente o comunismo; entraram decididamente na luta de clas-
ses, dando inteira colaboragáo a entidades revolucionarias da
esquerda; participaram ativamente de greves, combateram os
sindicatos livres, desaconselhando aos colegas a matrícula nestes.

Observava o Cardeal Feltin aos 27 de setembro de 1953 :


«Há mesmo, por vézes, sacerdotes que querem, sob pretexto de jus-
tica, tomar parte na luta de classes... Para éles, o mal e o pecado se
resumem no regime capitalista; derrubá-lo, portante, vem a ser um ato
bom; a luta de classes entáo se destina a apagar o pecado coletivo»
(«Documentaron Catholique», 18/X/1953, 1304).

O rumo dos acontecimeiltos, o mal-estar e os escándalos


assim suscitados nao podiam deixar de provocar

2. A interven$ao da Igreja

As autoridades eclesiásticas, diante dos desvíos do movimento,


foram tomando atitudes mais e mais restritiyas, as quais finalmente se
concretizaram em urna serie de normas práticas.

Aos 20 de junho de 1951, a Santa Sé baixava urna deter-


minacáo que proibia fóssem admitidos novos membros no grupo
dos sacerdotes-operarios; ao mesmo tempo exigía a retirada de
todos aqueles que ai houvessem entrado sem a devida autoriza-
cao da hierarquia. Quanto aos sacerdotes que ficavam nesse
setor de apostolado, foi-lhes dado um regulamento próprio e um
horario de vida que incluiam, além do trabalho manual, o exer-
cício de atividades própriamente sacerdotais. Tais disposigóes
encontraram certa resistencia por parte dos interessados : estes
pieitearam de varios modos a revogagáo da Umitagáo do número
de padres-operarios; o regulamento e o horario nao chegaram a
ser aplicados; tornou-se mesmo difícil chamar á antiga vida sa
cerdotal os padres que se haviam imbuido de idéias subversivas
ou se tinham engajado em movimento paracomunistas.

— 466 —
OS PADRES-OPERARIOS

Os bispos da Franga insistiram no cumplimento das leis res-


tritívas. Em váo, porém... Por conseguinte, foi preciso que de
novo a Santa Sé interviesse.
Em julho de 1953, a S. Congregagáo dos Estudos dispós que
os seminaristas da Franga nao seriam mandados, durante as
ferias, a fazer estágio ñas usinas. Levantou-se, em conseqüéncia,
urna celeuma através da imprensa : rumores, preyisóes e criticas
tomavam o ambiente carregado. Entrementes bispos e teólogos
da Franga se reuniam para estudar a problemática. Finalmente,
em novembro de 1953 os Cardeais Feltin, de París, Gerlier, de
Liáo, e Liénart, de Lille, foram a Roma; tendo-se entretido com
o Santo Padre Pió XII sobre o assunto, houveram por bem redi-
gir um estatuto definitivo, o qual, aprovado por Pió XII, foi pu
blicado aos 16 de novembro de 1953. Pouco mais tarde, aos 19 de
Janeiro de 1954, os bispos da Franga, dando aplicagáo a essas
normas, elaboraram mais um comunicado, que completou a nova
legislagáo referente aos padres-operarios.
Eis os grandes principios entáo estabelecidos pela autori-
dade da Igreja:
1) a Igreja, mais do que nunca solicita pelo bem espiritual da
classe operarla, nao somente nao a abandona, mas Insiste em que o
clero das paróquias e os diversos ramos da Acjlo Católica mais e mais
se dediquem a ésse apostolado.
2) Contudo a Igreja afirma, mais urna vez e solenemente, a trans
cendencia da missao de seus sacerdotes. Estes foram consagrados a
Deus para se tornarem,
junto aos homens, os mediadores e dispensadores dos dons celes-
. tes 6
' junto a Deus, os representantes de todos os fiéis indistintamente,
e nao apenas de urna classe de homens.
3) O movimento dos sacerdotes-operarlos, quanto aos seus moldes,
métodos e quanto ao seu nome, deve ser tido como definitivamente en-

4) O apostolado sacerdotal entre os trabalhadores prossegulr-se-á


no movimento dito «dos Padres da Missao operária> («Prétres de la
Mission ouvriére*). Visando o mesmo objetivo, essa nova Instituicao
aplicará métodos estipulados pela Santa Igreja e pautados pelas se-

8 1 a) os sacerdotes-operarios seráo pessoalmente escomidos pelos


bispos e dotados de formacSo especifica tanto do ponto de vista reli
gioso como do ponto de vista doutrinário;
b) nao viveráo isolados, mas incorporados a urna comunidade de
sacerdotes ou a urna paróquia;
c) prestaráo sua colaboracaoao ministerio paroquial, ficando
também em contato com o apostolado do clero diocesano e da Acáo
Católica;
d) o trabalho manual, cuja dignidade a Igreja reconhece plena
mente, nao ocupará os padres-operarios por mais de tres horas do dia,
a fim de que nao íiquem absorvidos por ele, mas possam satisfazer á
oracSo e a outras obrigacoes de apostolado estrltamente sacerdotal;

— 467 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 4

e) os padres-operarios renunciarlo a todo e qualquer compromisso


de Índole meramente temporal ou proíana, como sao os que se contraem
em sindicatos, campanhas, movimentos de reivindicagSes, etc. Tais com-
promissos ficario reservados ao laicato católico.

Estas normas eram inegávelmente ditadas por prudencia e


sabedoria, que, se, de um lado, tinham caráter restritivo, nada
apresentavam de mesquinho; inspirava-as urna visáo sobrena
tural, mas bem realista, da situagáo. Contado a imprensa ten
denciosa (principalmente os jomáis comunistas «Franc-Tireur»
e «L'Humanité») derramou sobre elas urna serie de comentarios
sarcásticos, que muito contribuirán! para aumentar a confusáo
de idéias.
Em breve, ou seja, aos 4 de fevereiro de 1954, apareceu um
manifestó assinado por 73 padres-operarios e eivado de espirito
partidario; entre outras coisas, sugería ser inevitável, até mesmo
para os sacerdotes, engajar-se numa violenta luta de classes.
Os bispos da Franga e a Santa Sé ouviram os padres-opera
rios com muita paciencia e com espirito profundamente paterno;
em cartas e alocugóes sucessivas procuraram mostrar-lhes o
verdadeiro sentido das restrigóes promulgadas pela Igreja: de
modo nenhum implicavam em abandono do apostolado entre os
trabalhadores, mas apenas visavam garantir o bom éxito désse
mesmo apostolado, que fóra até entáo efetuado segundo métodos
de todo inoportunos; nao havia, pois, motivo para indignagáo ou
revolta, de mais a mais que a Santa Igreja, ao cercear um tanto
a liberdade de seus sacerdotes nesse terreno, mobilizava outras
fórgas católicas (as do laicato ou da Agáo Católica), mais afei
tas 'á luta operaría, a fim de suprirem aquilo que doravante os
sacerdotes nao dariam.
A agáo do tempo se encarregou de apaziguar os ánimos:
serenaram-se as paixóes. As novas formas de evangelizagáo
entre os trabalhadores se foram exercendo com resultado; era
margo de 1957 o Episcopado francés instituiu o Secretariado dito
«da Missáo Operaría» («Mission Ouvriére»), incumbido de coor
denar tudo que diz respeito ao apostolado operario (empreendi-
mentos do clero e dos leigos) — o que bem revela a crescenté
penetragáo da Igreja no mundo proletario da Franga.

Importa-nos agora analisar de perto as razoes pelas quais a Igreja


em 1953/1954 se opds ás taticas aplicadas pelos padres operarios.

3. Um juízo sobre a questao

1. Reduzem-se a duas as razfies que justiíicam a intervencáo da


Santa Sé na obra dos padres-operarios :

— 468 —
OS PADRES-OPERARIOS

a) a mentalidade désses sacerdotes ia sendo insensivel-


raente transformada pelo ambiente, em vez de exercer a dese-
jada transformagáo do meio proletario. O perigo da situagáo era
especialmente agudo pelo fato de que os órgáos mais populares
da opiniáo pública (como a imprensa, o radio, o cinema, a tele-
visáo...) exaltavam o ideal do padre-operário a ponto de incutir
falsa nocáo do sacerdocio. Em lugar de descrever o padre como
o homem de Deus (cheio de valores sobrenaturais e eternos),
que, vivendo em meio ao mundo, procura dar aos homens o que
ele recebe de Deus, descreviam o sacerdote como o emissário
dos homens que procura dar aos seus semelhantes o que os ho
mens possam conceber de melhor; embora o sobrenatural nao
fósse frontalmente renegado, era removido para plano táo lon-
gínquo e apagado que práticamente ele nada significava.

Cancelava-se assim o caráter transcendental ou religioso da própria


religiáo e do sacerdocio, a íim de dar lugar ao naturalismo que, de ma-
neira elegante e sedutora, desvirtúa o sobrenatural.
Mais precisamente : ésse naturalismo era a ideología marxista, que
os padres-operarlos, ora mais, ora menos conscientemente, respiravam
no seu ambiente de vida; estavam tao entecados por éste que nao conse-
guiam mais emergir ou vir á tona. Sim; oito horas diarias de duro tra-
balho manual eram suficientes para extenuar a resistencia física, redu-
zindo ao mínimo (ou extinguindo) as possibilidades de reflexüo, ostudo
e oragáo; os sacerdotes eram assim amistados pela onda (sem talvez
o saber nem querer).

Na verdade, como se poderia conservar nos sacerdotes a


consciéncia da sua missáo sobrenatural ou religiosa, dado que
nao exerciam mais as suas fungóes sacerdotais própriamente
ditas: Missa, Breviario, oracáo, estudos sagrados? Inevitável
era assim o esvaecimento dos valores que o sacerdote como
sacerdote tem que dar ao mundo. Em conseqüéncia, advertía sa
biamente o Cardeal Liénart:

«Ser sacerdote e ser operario sao duas funcñes, dois estados de vida
diferentes; nao é possivel associá-los na mesma pessoa sem alterar a
nocáo mesma de sacerdocio. O padre é chamado a consagrar a sua vida
a Deus e ao servico das almas, ao passo que o operario desempenha
urna tarefa temporal; nao é possivel fundir entre si essas duas funeSes.
Ainda que os métodos de apostolado aplicados pelos sacerdotes-opera
rios tenham dado alguns resultados, ninguém tem o direito de tocar
no sacerdocio tal como Cristo o instituiu. Doutro lado, o longo1 espago
de tempo consagrado ao trabalho manual já nao delxa margem ao sacer
dote para preencher suas funcfies essenciais; assim arrisca-se ele a se
comprometer no plano dos afazeres temporais; ora o sacerdote deve
ficar íora désse plano, sem contudo se separar do mundo. Essas raz5es
sao táo evidentes que só nos resta inclinar-nos diante délas» (alocugáo
do Card. Liénart, proferida aos 28 de dezembro de 1953; cf. «Documen-
tation Catholique» 1954, col. 137).

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 4

Em outras palavras : «ser sacerdote» e «ser operario» sao duas vo-


cacSes muito dignas que Deus dá aos homens, vocacSes, porém, dife
rentes urna da outra, de tal modo que o Senhor nao dá simultáneamente
as duas a mesma pessoa.
Recorrendo a figura do Corpo Místico, dir-se-á : é preciso que haja,
até o fim dos tempos, na Igreja íuncaes e tárelas diversas entre si,
embora convirjam todas para urna só íinalidade suprema. Sim; para
que o olho auxilie eficazmente a mao, nao é necessário que se torne
ele mesmo máo; ao contrario, ... Análogamente, para que o sacerdote
seja útil ao operario, nao é necessário que se transforme totalmente em
operario, mas bastar-lhe-á ter contato Intimo e assiduo com o operario;
em caso de identificacáo total, o próprio operario seria prejudicado
(como prejudicada seria a máo que nao pudesse mais contar com a fun-
cáo especifica do dlho).

b) Além de assimilar a ideología marxiste, os padres-ope


rarios nao puderam evitar na plática a colaboracao com o comu
nismo (geralmente, na qualidade de inocentes úteis; em poucos
casos, na de líderes conscientes).

Nao se podendo subtrair as solicitagOes de seus cantaradas opera


rios, nao restava margen» aos padres-operarlos para escapar a compro
missos de sindicatos e campanhas de classe, que eram geralmente ins
pirados e alimentados por comunistas. O perigo era tanto maior quanto
mais os sacerdotes viam que a sua popularidade muito dependía da sua
intervencao em tais tareías. Seria utopia julgar que os padres-operarlos
se poderiam desembaracar de semelhantes compromissos no momento
em que a hierarquia da Igreja os quisesse aplicar a outro setor de apos
tolado.

2. Positivamente, a questáo dos padres-operarios deu oca-


siáo a que fóssem reafirmados certos principios fundamentáis
que devem nortear o sacerdocio católico e que se poderiam assim
resumir:

a) A obra do sacerdote é obra esencialmente sobrena


tural.
Isto quer dizer : a salvagáo das almas (que o sacerdote visa)
é fruto da graga divina; a atiyidade humana, neste setor, fica
sendo mero instrumento ou meio, nunca é em si mesma um fim.
Por comseguinte, nao há organizacáo ou tática de apostolado que
seja por si necessária e insubstitulvel.

A atividade exterior só tem valor e resultado na medida em que o


apostólo, principalmente o sacerdote, a vivifica pelo emprégo dos meios
sobrenatural indispensáveis (Santa Missa, Breviario, meditacáo coti
diana, exame de consciéncia, etc.). O trabalho nunca pode substituir a
oracao e o cultivo da vida interior; ao contrario, ele só se torna fecundo
caso seja um efluxo da intima uniáo da alma com Deus. Ora, já que a
. uniáo com Deus se obtém normalmente dentro do Corpo Místico de
Cristo, segue-se que:

— 470 —
OS PADRES-OPERARIOS

b) A obra do sacerdote se exerce em estrita uniao com a


Igreja.
Em outros termos : o verdadeiro apostólo cristáo, máxime o
sacerdote, é humilde, submisso aos seus superiores; esforca-se
por «sentiré cum Ecclesia» (pensar e vibrar com a Igreja), cons
ciente de que sómente assim estará pensando e vibrando com
Cristo.

Caso o padre deva sacrificar algo dos seus pontos de vista


e das suas atividades para atender as diretivas da Sta. Igreja,
recorde-se de que foi justamente pela obediencia, a renuncia e
a cruz que Cristo resgatou o mundo. O paradoxo ou o absurdo
da cruz que salva — já apregoado por Sao Paulo em 1 Cor
1,22-25 conserva toda a sua validade no sáculo XX; constitui
elemento capital na mensagem crista.

Inegávelmente, certo espirito de aversao á obediencia e procura da


autonomía é nota marcante da mentalidade moderna. Tem-se infiltrado
até mesmo entre os católicos, sugerindo a alguns a idéia de que os im
perativos da consciéncia subjetiva gozam de primazia absoluta, mesmo
sobre os preceitos da autorldade eclesiástica.

É o que dá ansa á seguinte observacSo do Cardeal Feltln, concer-


nente aos padres-operarios em particular:
cHouve quem repetisse lncessantemente através do radio que nao
é necessário obedecer as exigencias das legítimas autoridades, mas '
basta que cada um siga a sua consciéncia... Esta disposic&o, que pode
ter dolorosas conseqüéncias na ordem social, nSo deixa de as ter, e
mais graves ainda, no setor religioso e principalmente no sacerdotal.
Ela dá origen» a um néo-protestantismo, que o Sto. Padre lastima tao
profundamente: nSo se quer reconhecer como lei senSo o modo de jul-
ear do próprio individuo. Tal disposicSo, em certas almas, produz re-
bordosas que chegam a alterar o sentido da fé; é o que se dá com alguns
jovens sacerdotes, que dizem perder a fé e a coníianga, porque a Igreja,
movida por legitimas razCes, julga nao poder corresponder, nem noje
nem amanha, aos pontos de vista ou aos desejos désses jovens» (alocu-
cao proferida aos 27/DC/53; cf. «Documentation jCatholique» 1158, de 18
de outubro de 1953, col. 1306).

c) O sacerdote, com sen dnplo aspecto (natural e sobrena


tural), será figura intangível e dnradonra na Igreja até o fim
dos sécalos.
Diga-o o famoso escritor francés Francois Mauriac em um
artigo do jornal «Le Fígaro» de 12 de Janeiro de 1954 :

«O proletariado évolui. A 'desproletarizacSo', já iniciada nos Esta


dos Unidos, n5o prosseguirá alhures? As usinas eletrónicas (tipo
'robots') da Inglaterra e dos Estados Unidos nSo anunciam urna reno-
vacio total das condicoes de vida dos operarios nos próximos cinqüenta
anos?...

— 471 —
.«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 5

Ao contrario, as condicSes de autenticidade do sacerdote nao muda


rlo- até o fim dos terapos ficaráo sendo essencialmente as mesmas...
O homem que recebeu do Filho do Homem o poder de perdoar os peca
dos, o homem que consagra e eleva o cálice em nome de todo o povo,
jamáis será um homem igual aos outros...».
A seguir, observa Mauriac que, «num mundo entregue á idolatría
como o nosso, num mundo em que ninguém mais parece precisar do
padre, num mundo em que o padre mesmo se pode sentir desambien
tado», íácilmente o sacerdote é tentado a crer que melhor é tornar-se
um homem igual aos demais homens, adaptando-se aos outros cidadaos
por seu modo de pensar e viver.
Neste caso, o sacerdote babearía de plano, deixando de se guiar
pela fé e pela consciéncia do sobrenatural, para adotar pontos de vista
meramente humanos ou naturais. Seria menos paradoxal, mas — diga-se
também — seria menos útil e valioso para o mundo. Sim; embora o
mundo profira sátiras a respeito de Deus e dos valores espirituais, em
última análise o mundo precisa justamente de Deus. Nestas circunstan
cias, deixar de lhe ialar de Deus, silenciar a respeito do sobrenatural,
seria verdadeira calamidade, seria expor a sociedade á miseria e a ruina
totais. Ou o sacerdote prega abertaménte os valores religiosos sobrena-
turais (segundo a capacidade de compreensáo do seu auditorio, é claro)
ou entáo carece simplesmente da sua razao de ser.

Concluí Mauriac que, se o sacerdote-operario eré realmente


naquilo que ele é, o maior servigo que ele pode prestar aos seus
irmáos é o de renunciar a pontos de vista meramente humanos
para abracar integralmente as normas da obediencia e da sub-
missáo á Igreja; doutro lado, o pior servigo seria o de nao salva
guardar em sua conduta a figura do sacerdote (homem de Deus
e da Igreja), pois é desta figura que os homens, sem o saber,
necessitam; caso nao dé os valores de Deus e da Igreja, o sacer
dote dará o que é seu pessoalmente, dará o humano e o próprio
«eu», elementos estes de que o mundo está saturado até o tedio.
As sabias ponderagóes de Mauriac constituem ótimo epilogo
para quanto acaba de ser dito sobre os padres-operarios. Con-
viria apenas frisar ainda que, encerrando era 1954 a iniciativa
dos padres-operarios em seus moldes iniciáis, a Santa Igreja so
fez aprimorá-la em moldes novos, a partir dessa mesma data.
A Santa Igreja nao intencionou de modo algum desinteressar-se
ou separar-se das classes proletarias.

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

D. L. (Campiña Grande):

5) «Como julgar a obra «Utopia' de Sao Tomaz Moro,


chanceler inglés canonizado pelo Papa Pió XI em 1935?
Suas idéias assaz avanzadas no sentido do socialismo ainda
se poderiam conciliar com a doutrina crista?»

— 472 —
A «UTOPIA» DE TOMAZ MORO

A íim de formar um conceito adequado a respeito da «Utopia» de


S Tomaz Moro esbocaremos o currículo biográfico e os traeos princi
páis da personalidade do autor. A seguir, consideraremos a mencionada
obra.

1. Vida e personalidade de Tomaz Moro

1. Tomaz Moro nasceu em Londres aos 7 de fevereiro de


1478, como filho do grande jurista John Moore (o nome «Morus»
nao é senáo a forma latina do inglés «Moore»). Dotado de re-
conhecido genio intelectual, foi aos quatorze anos enviado a
Oxford, a fim de completar os seus estudos. Nessa cidade, rece-
beu a formagáo clássica que as Facilidades da época renascen-
tista muito fomentavam; ai também conheceu o famoso huma-
nista Erasmo de Rotterdam, com quem travou sincera amizade.
Voltando para Londres, Tomaz, a pedido de seu pai, estudou
Direito; habitava entrementes na Cartuxa de Londres, onde
participava zelosamente dos exercicios de oragáo e penitencia
dos monges.

Erasmo, em urna de suas cartas, deu o seguinte testemunho a res


peito do amigo: «Aplicava-se de corpo e alma a exercicios de piedade,
meditando sobre a sua vocac&o monástica, em vigilias, jejuns, oracSes
e outras práticas austeras».
Desde entao usava permanentemente um cilicio, como mais tarde
revelou sua filha Margarida. N3o obstante, era animado de inabalável
bom humor ou de jovialidade, em conseqüéncia da qual foi durante a
vida inteira cognominado «o jovem Morus».

O seu talento lhe valeu brilhante carreira. Em 1504


foi eleito para o Parlamento da Inglaterra. Em certa ocasiáo,
usando de muita coragem, conseguiu impedir a promulgagáo de
urna lei injusta. Éste e outros gestos de idoneidade contribuíram
para que aos poucos se tornasse o homem mais popular do país.
Desde 1520, o nome de Tomaz Moro era envolvido em exemplos de
um compendio de retórica disseminado em tedas as escolas da Ingla
terra; naja vista o seguinte exerdeio: «Exprimir em latim, de cuatro
modos diferentes, esta proposito: Morus é um homem de espirito an
gélico e de inigualável saber».

Finalmente em 1529 tomou-se Chanceler do Reino. Em


breve, porém, entrou em conflito com o monarca, pois, fiel aos
seus principios cristáos, repudiava o divorcio que Henrique Vin
pleiteava da Santa Sé.
Em 1531 o reí consumou o cisma, atribuindo a si o título
de «Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra». Em 1532, Moro,
recusando assinar o juramento de fidelidade ao novo mentor reli
gioso, foi considerado traidor e réu de cárcere. Durante qua-

— 473 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 5

torze meses ficou deudo na «Tower» (prisáo da Torre) de Lon


dres, onde se entregou á meditagáo, da qúal resultou um escrito
precioso intitulado «Comfort against tribulation» («Consoló na
tribulagáo»).

A corte, os nobres e o rei tudo tentaram para reduzir o ánimo táo


delicado quanto inquebrantável de Tomaz; ém váo, porém. O duque de
Norfolk, seu amigo, lembrou-lhe o risco que corría : «Indignatio princi-
pis mors est. — A indignacáo do soberano acarreta morte»; ao que Moro
respondeu: «So isso, milord? Em tal caso, só haverá urna diferenca
entre nos : é que eu morrerei hoje, e Vossa Mercé amanhá!».
Ainda no cárcere dizia á sua íilha Margarida :
«Por certo, nao poderias ter coracáo mais delicado e mais temo do
queteu pai. Embora a minha natureza se revolte com tanta veeméncia
contra o sofrimento, a ponto de que um piparote me faga estremecer,
minha grande forca provém, 6 filha, do fato de que, em todas as angus
tias mortais que tive de atravessar, nunca pensei, gracas á misericordia
e ao poder de Deus, em consentir no.que quer que íósse contrario á
minha consciéncia».
E em urna precé formulava ele a sua prontidáo para se sacrificar
por puro amor:
«Dai-me, 6 Senhor, o desejo de estar junto a Vos, nSo para me sub-
trair as calamidades déste mundo ou as punic8es do óutro,... nem por
algum interésse pessoal, mas única' e exclusivamente por amor de Vos».

A 1» de julho de 1535 foi condenado la morte dos traidores.


■ Contado o rei Henrique Vm comutou a pena de fórca e esquar-
tejamento do corpo em simples decapitagáo. Até o desenlace,
ocorrido aos 6 de julho de 1535, Moro conservou o ánimo jovial.
Chegado ao patíbulo da execucáo, pediu que o auxiliassem a gal-
> gar os degraus, dizendo : «Ajudai-me a subir; para descer, pro-
videnciarei sozinho!». Tendo subido, rezou o salmo 50 (peniten
cial), amarrou a venda sobre os olhos; e, ao deitar-se sobre o
tronco de morte, dirigiu-se ao carrasco, dando-lhe urna moeda
de ouro «pelo servigo que ia executar» : «Coragem, rapaz, nao
receies cumprir o teu dever. Tenho o pescogo curto. Nao vas
bater de lado com o machado, para nao te desonrares como bom
profissional». Ainda levantou a cabega para arrumar a langa
barba branca que deixara crescer na prisáo, dizendo : «Nao me
rece ser cortada, pois nao cometeu traigáo alguma». Proferidas
estas palavras, recebeu o golpe mortal com ánimo sereno.

2. Tomaz Moro foi um santo profundamente humano, que


o humanista Erasmo assim apreciava :

«A meu ver, nunca a natureza produziu espirito mais hábil e mais


pronto,... jamáis produziu criatura mais bem dotada e de maior resso-
nancia. Junte-se a isto urna facilidade de conversa que está á altura do
seu extraordinario genio,... um espirito que nunca deixa de ser
amavel».

_ 474 —
A «UTOPIA» DE TOMAZ MORO

Como bom cristáo, mas também como bom británico, soube


enfrentar as mais diversas situacóes da vida sem perder o sor-
riso, antes com delicioso humour. É mesmo tido como o santo
do bom humor.

Com palavras e com íatos combateu o preconceito de muitos dos


seus contemporáneos, que recusavam as mulheres o estuda e a erudi-
cáo; suas filhas granjearam notoria cultura clássica. — Nao1 obstant?,
quando lhe perguntavam por que se casara com muiher tao baixinna
como era Jane Colt, sua primeira espasa, respondía : «Dos males, o
menor...»

Para entender a personalidade de Moro, leve-se em conta


também o seguinte : o mundo medieval está marcado pelo cunho
da unidade, ao passo que o mundo moderno traz o sinal da diver-
sidade. Entre os dois se sitúa o séc. XVI, com o Renascimento,
que representa a transicao entre um e outro. Pois bem; Tomaz
Moro é auténtico filho da sua época : cristáo ardoroso como os
medievais, mas, ao mesmo tempo, aberto para os múltiplos valo
res novos que a cultura renascentista trouxe á tona.
É justamente por exprimir urna época de transigáo que a
figura de Tomaz Moro se apresenta, ás vézes, misteriosa, sus
citando, entre outros, o problema da interpretagáo da «Utopia».
Voltemo-nos, pois, para esta questáo, conscientes de que
deve ser considerada á luz tanto do temperamento como das
circunstancias históricas que marcam a personalidade de Tomaz
Moro.

2. A «UTOPIA»

A «Utopia» tornou-se, dentre os escritos de Moro, o mais ponhecido,


embora esteja longe de ser o mais representativo do pensamento désse
autor. Resumiremos o conteúdo da obra para depois tentar a ínterpre-
tacüo adequada.

a) Circunstancias e enredo da «Utopia».

Em 1516 Moro achava-se em Antuerpia (Flándria) a servico


do rei da Inglaterra, a fim de tratar da exportagáo de tecidos
británicos para o continente, quando concebeu a idéia de escre-
ver estranho livro...

Erasmo, o amigo de Moro, redigira o «Elogio da Loucura», em que


dava a palavra á Dama Loucura a fim de que esta pronunciasse amarga
sátira contra os costumes de seu tempo. Inspirando-se neste proceder
literario, Tomaz resolveu íazer íalar a Dama RazSo para incriminar as
desordens de sua épo'ca (que ele bem conhecera através de viagens e
legacoes) e descrever um mundo mais razoável do que aquéle em que
vivia, mundo chamado «Utopia» (do grego ouk-tópos, em parte alguma

— 475,—
4PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962. qu. 5

existente, mundo meramente ideal). O escrito intitular-se-ia «De óptimo


reipublicae Statu deque nova ínsula Utopia. — S6bre a constituicáo
ideal do Estado e a nova ilha Utopia» e aparecería em Londres no ano
de 1518.

Qual o conteúdo désse escrito?


Consta de duas partes, das quais a primeira esboga, em
tom de crítica, um quadro da sociedade européia da época, vul
nerada pelos males do feudalismo decadente. — O autor se apre-
senta em diálogo imaginario com um navegador, Rafael Hitlo-
deu, que fóra companheiro de Américo Vespucio na viagem para
a América... Rafael póe-se a incriminar os abusos das monar
quías européias, insurgindo-se contra o seu despotismo, contra o
servilismo dos cortesáos, a venalidade dos cargos, a ganan
cia, etc.; ataca a severidade das leis, que punem com a morte
o ladráo, o vagabundo e o assassino; e concluí nao ser possível
a felicidade nos Estados em que existam tais abusos. Tomaz
Moro, tendo ouvido essas críticas, responde que nao se pode dar
remedio aos males apontados. Hitlodeu, porém, nao se quer
conformar. E, entrando na segunda parte da obra, abre ao inter
locutor perspectivas novas, descrevendo-lhe a vida dos habitan
tes de urna ilha maravilhosa, a «Utopia», que ele, em sua viagem,
teria explorado... Essa descrigáo, meramente fantasista para o
leitor do séc. XX, podía gozar de certo crédito no séc. XVI, vinte
e poucos anos após a descoberta da América, de mais a mais que
as cartas de Américo Vespucio, publicadas em 1506, haviam lo
grado extraordinario sucesso.

Nao será necessário referir aqui as minucias da vida na


Utopia. Basta mencionar as suas notas características, objeto de
controversia entre os intérpretes; sao as cinco seguintes :

o sistema económico da regiáo nao reconhece a propriedade parti


cular, havondo absoluta comunhSo de bens; o único administrador da
Droducao 6 o Estado í
a íilosofia dos cidadaos é o hedonismo, o qual enaltece o gozo e
ignora a aséese ou a mortificacao;
o divorcio é legitimo; ,.,.*,
o suicidio é recurso aceitável nos casos de molestia incurável;
a religiao prevalente é o deísmo, ou seja, a aíirmacáo de um Deus
posto & altura da razao humana, com exclusáo de qualquer revelagáo
sobrenatural.

Conscientes de quanto estas teses destoam da doutrina


crista, perguntam os estudiosos que significado possam ter tido
na mente de Tomaz Moro... E como é possível que a Igreja
haja declarado santo o escritor que as propós com tanto sucesso
que vem a ser enumerado entre os precursores do socialismo

— 476 —
A «UTOPIA> DE TOMAZ MORO

moderno? — É a estas questóes que devemos agora dedicar a


nossa atengáo.

b) Como interpretar a «Utopia»?

Antes de se focalizaren» em particular os principáis pontos


controvertidos da «Utopia», impóem-se duas observacóes gerais
que constituem a chave para a auténtica interpretagáo dos dize-
res do autor:

1) Verifica-se que nao é o próprio Tomaz Moro quem, no


diálogo da «Utopia», propóe as instituigóes intrigantes ou revo
lucionarias ... É, sim, o seu interlocutor Hitlodeu. Quando éste
acaba de falar no fim da obra, propóe Moro o seu juízo solene
sobre o quadro apresentado :

«Assim que Rafael terminou a sua narrativa, veio-me á mente urna


quantidade de coisas que, ñas leis e nos costumes dos utopianos, me
pareceram absurdas, tais como o seu sistema de lazer a guerra, o culto,
a religiáo e varias outras instituicóes. O que mais transtornava as
minhas idéias era o alicerce sobre o qual fdra erguida a estranha repú
blica, quero dizer, a comunháo de vida e de bens, sem tráfico de
dinheiro. Ora essa comunháo destrói radicalmente tdda nobreza e magni
ficencia, todo esplendor e majestade, coisas que, aos olhos da opiniao
pública, fazem a honra e o verdadeiro ornamento de um Estado. Con-
tudo nao aprésente! a Rafael alguma objecáo, porque o sabia fatigado
tía longa narrativa. Por outro lado, nao estava certo de que suportarla
pacientemente a replica... .
Tomei entáo pela máo o narrador, a fim de o levar a cear, e prometí
que de outra feita, leriamos ocasiáo de meditar mais profundamente
sobre ésses assuntos e de conversar mais demoradamente.
Praza a Deus que isto aconteca algum día! Pois, se de um lado
nao posso concordar com tudo que disse ésse homem, alias íncoiitesta-
velmente muito sabio e hábil nos negocios humanos, de outro lado con-
fesso sem dificuldades que há entre os habitantes da Utopia urna quan-
tidat'e de coisas que desejo ver establecidas em nossas cidades.
Desejo mais do que espero».

Estas palavras que Moro diretamente profere, encerrando


o seu livro, bem mostram que o autor nao se identificou com as
teses revolucionarias propostas por seu imaginario interlocutor.

Tal conclusáo é confirmada por mais urna observagáo de


conjunto :

2) Os escritos posteriores e toda a conduta de vida de


Tomaz Moro constituem desmentido formal as estranhas afirma-
góes da «Utopia».
Tenham-se em vista os seguintes fatos como que colhidos
a esmo no currículo biográfico de Moro :

— 477 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 5

Depois de escrever a «Utopia», o autor entrou em controversia dou-


trinaría com um ¡novador de tendencias luteranas, Tyndale. A doutrina
entáo defendida por Tomaz é o mais puro Catolicismo. Doutro lado, se
os adversarios do santo em sua vida pública tivessem conhecimento de
alguma evolucao doutrinária do mesmo, té-lo-iam certamente explorado
em seu favor. Ora disto nao há sinal nos documentos da historia.
Mais ainda : se, ao ser nomeado Chanceler do Rei em 1529, Tomaz
pudesse ser acusado de algum deslise doutrinário, haveria sido denun
ciado por seus oponentes; nem o rei Henrique VIII o teria promovido...
Sábese, alias, que nesse ano de 1529 Moro publicou urna apología exata
da doutrina tradicional crista no seu «Diálogo sobre as heresias».
Na sua «Resposta a Lutero» («Responsio ad Lutherum»), escrita
noucos anos depois da «Utopia», Tomaz Moro apontava como «insa-
nissima dogmata> (mui tolas proposicfies) varias das inovacSes que
Hitlodeu apresentava como usuais entre os utopianos. Assim, por exem-
plo, escrevia a Lutero e seus discípulos:
«Citai-me algum povo que, em época anterior a vos, tenha profes-
sado idéias semelhantes ás vossas. Indicai-me qual a sociedade crista
que nao tenha ieito distincSo entre um sacerdote e um leigo..., que
haja permitido ás mulheres ouvir coníiss5es,... quelhes tenha facultado
tornar-se sacerdotizas e administrar a Eucaristía.:. Em qualquer fase
da existencia da Igreja, tanto ñas promiscuas multidóes de bons e maus
como nos grupos homogéneos de homens bons, tanto ñas regiSes que
obedeciam ao Pontífice Romano como em qualquer outra parte, a dou
trina da Cristandade íoi sempre contraria a vossa e ainda hoje con
dena as vossas mui tdlas proposigñes» (Responsio ad Lutherum, ed.
Frankfurt c. 2 pág. 62).
E nao há indicio de que Moro se tenha algum día tornado adepto
de tais loucuras.

Nao se poderá, de resto, esquecer como, contrariamente ao que pro-


fessavam os utopianos, Tomaz Moro se opós ao divorcio de Henri
que VIII, guardando assim fidelidade absoluta á doutrina crista e
acarretando sobre si dolorosas conseqüéncias.

Na própria «Utopia», alias, o autor parecía contradizer a si mesmo,


estipulando a pena de morte para o adulterio naquela mesma Uha mará,
vilhosa em que tal pena era tida como imoral,... admitido tambéma
escravatura numa sociedade que nao reconhecia o direito á propnedade
particular.

Estas observares de índole geral habilitam-nos a conside


rar com certa clareza é seguranga os pontos que tém sido objeto
de controversia entre os comentadores da «Utopia». Percorramo-
-los sumariamente:

3) No tocante a comunhao de bens e a- extingao da pro-


priedade particular, deve-se notar o seguinte : é, conforme ficou
dito atrás, Hitlodeu quem propugna estas teses, como se fóssem
a solucáo única e necessária para reprimir os males da sociedade
do séc. XVI. No diálogo literario, Moro, após ouvir tal opiniáo,
manifesta-se-lhe francamente desfavorável.

— 478 —
A «UTOPIA? DE TOMAZ MORO

Eis como se exprime Rafael Hitíodeu :

«O único meio de distribuir os bens com igualdade e com justica e


de íazer a felicidade do género humano é a abolieáo da propnedade.
Enguanto o direito de propriedade 16r o fundamento do edificio social,
a classe mais numerosa e mais estimável nao terá por quinhao senao
miseria, tormentos e desespero».

Ao que Tomaz Moro replica :

«Longe de compartilhar tuas conviccóes, julgo, ao contrario, que o


pais onde se estabelecesse a comunháo de bens seria o mais miserável
de todos os países. Com efeito; como entüo produzir para as necessida-
des do consumo? Todos fugiriam do trabalho e deixariam de se preo
cupar com a própria subsistencia, pois cada um confiarla tranquila
mente no zélo dos outros. E, no caso de que a miseria sobreviesse sem
que fdsse licito aos cidadáos dispor de alguma coisa como de sua pro-
priedade particular, que se seguiría dai senáo incessante rebehao, esfo-
meada e ameacadora? Os morticinios ensangüentariam a tua república.
Que barreira se oporia a anarquía? Os magistrados teriam apenas
autoridade nominal; estariam destituidos de tudo que impoe temor e
respeito. Nao chego mesmo a conceber a possibilidade de govérno nesse
povo de n'veladores que repelisse toda especie de supenondade» (Uto
pia, parte I, ed. Athena. Rio de Janeiro 1937, pág. 61).

Ora estas críticas ao sistema da comunháo de bens na so-


dedade (e nao a tese de Hitíodeu) é que representam o genuino
modo de pensar de Tomaz Moro. Nao somente o contexto da
«Utopia» incute tal conclusáo, mas também urna explícita decla-
racáo de Moro na sua última grande obra, intitulada «Consolo
na tribulacáo», onde o autor expóe suas idéias referentes a
economía:
«É absolutamente necessário que haja homens dotados de posses;
em caso contrario, existirSo mais mendigos do que ]á existem, e nao
haverá ddadáo a altura de socorrer o seu próximo. Tenho para^mim
como certa a seguinte conclusáo : se todo o dinheiro existente nestepds
fósse amanhá siqüestrado de seus proprietários, acumulado num depó
sito comum e, a seguir, redistribuido, em porcSes iguais a cada um dos
habitantes da regiao, estaríamos depois de amanha em piores c°ndicí>es
So que amanhá Pois creio que, se todos os cidadaos recebaran igual
porgSo de bens, os que hoje estao bem colocados ficariam em posicao
pouco melhor do que a de um mendigo de hoje; doutro lado, aqueles
que hoje sao mendigos, apesar do que lhes sobreviesse mediante essa
nova reparticao de bens, nao seriam colocados em situacáo multo me
lhor do que a de um mendigo de hoje. Acontecería, em todo caso que
muitos daqueles que hoje sao ricos, se viessem a possuir apenas bens
movéis (dinheiro), se tornariam pobres para todo o resto da vida.
Os homens, como bem sabéis, nao podem viver neste mundo sem
que uns proporcionem os meios de vida a muitos outros. Nem todos
estáo em condicóes de possuir um barco, nem todos estao habilitados
para exercer o comercio (por falta de estoque), nem todos estao a
altura de ter um arado (nSo obstante, sabéis como essas coisas sao

_ 479 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 5

necessárias). E quem poderia vlver da prolissáo de alfaiate se nao exis-


tisse quem estivesse em condi;oes de encomendar urna roupa? E quem
poderia viver da profissáo de pedreiro ou carpinteiro, se nao existissem
homens capazes de mandar construir igrejas ou casas? E que fariam os
tecelóes se faltassem proprietarios de fábricas para movimentar a sua
respectiva industria? Melhor é a condicao do homem que. nao tendo
nem sequer dois ducados em sua casa, entrega o que tem e fica sem
coisa alguma, do que a condicao daquele que, sendo rico propnetário
(do qual o primeiro é empregado), venha a perder a metade dos seus
haveres Éste outro estaría entSo obrigado a fe tornar empregado ele
mesmo. Acontece, porém, que o homem pobre (empregado) tem a sua
íonte de vida precisamente nos haveres do rico. Em tais circunstancias,
dar-se-ia com o pobre aquilo que se deu com a mulher da qual trata
urna das fábulas de Esopo : esta tinha urna galinha que diariamente Ihe
dava um 6vo de ouro; uro belo dia, julgando que, de urna só feita, se
poderia tornar proprietária de grande quantidade de ovos, matou a gali
nha- eis, porém, que só encontrou um ou dois ovos no ventre da ave.
Assim por cobica désses poucos ovos ela veio a perder grande numero
déles».

Por estes dizeres Tomaz Moro evidencia com suficiente cla


reza quanto era alheio a qualquer teoría niveladora da proprie-
dade ou qualquer sistema socialista. Doutro lado, porém, é pre
ciso frisar que ele estava longe de incorrer .no perigo do capita
lismo liberal, individualista e ganancioso dos sáculos XVÜI/XIX:
muito insistía na fun-áo social do dinheiro, ou seja, na obrigacao
que incumbe aos proprietarios, de fazer render as suas posses
em proveito do próximo. Com efeito, assim continuava ele as
considerares ácima transcritas :

<Aauéle que nao tem solicitude pelos süditos, é pior do que um


aoóstata da fé. Os nossos súdltos sao os que nos foram confiados ou
Déla natureza ou pela lei ou por algum mandato de Deus :... pela natu-
rS cornos nossos ÍUhos;. ..pela leí. como os nossos serventes
domésticos. Embora filhos e serventes nao nos estejam confiados do
mesmo modo creio que, mesmo com relagáo aos serventes (cornos
Sfa'Ttemos menos estreita ligacao). estamos obrigados a ser solícitos
e a prover as suas necessidades... Estamos, sim, obngados, tanto
quinto nos é possivel, a cuidar de que nao carecam das coisas quet lhes
sao necessárias enquanto se acham a servico nosso. Por conseguirte, se
vém a adoecer enquanto nos servem, cabe-nos o dever de os tratar, de
modo nenhum ser-nos-ia licito expul?á-los de casa e abandoná-los sem
conforto por todo o tempo em que nao estejam em condicOes de tra-
balhare de prover a si mesmos? Um tal procedlmento seria contrario
á todas as regras do bom senso humano».

Condui-se assim que, para Tomaz Moro, o que merece con-


denagáo nao é o dinheiro nem a propriedade, mas, sim, a estima
egocéntrica dos bens déste mundo.
O proprietário egoísta e apaixonado é diretamente repreen-
dido em outra passagem do diálogo «Consoló na tribulacáo» i

— 480 —
A «UTOPIA» PE TOMAZ MORO

«Julgo, ó primo, que, se alguém concentra riquezas em torno de si


a íim de obter gloria e poder neste mundo..., um tal é, sim, váo, louco,
soberbo e, na verdade, destituido de todo valor».

Eis, porém, que táo clara posicáo de Tomaz Moro em favor


da propriedade particular, administrada com altruismo, sugere
ulterior questáo : porque entáo terá o autor apresentado Hitio-
deu na «Utopia» a proferir conceitos táo semelhantes aos de um
socialismo avangaao?
Após considerar atentamente os matizes das expressóes e
do pensamento do escritor, eis o que se pode responder de ir ais
plausivel: Moro desejava, de um lado, rejeitar, sim, todo nivela-
mento imposto á torga ou por leis do Estado; de outro lado,
porém, intencionava na «Utopia» insinuar que a comunháo de
bens podena ser um ideal, sim,... caso fósse abracada espontá
neamente (o que quer dizer também : ... em grupos pequeños,
por cidadáos inclinados a isto). Em outras paiavras : a quanto
parece, Moro desejava lembrar aos seus leitores cnstáos que a
comunháo de bens representa o ideal da vida crista levada até
as últimas conseqüéncias, em amor a Deus e ao próximo.

Expliquemo-nos melhor: o grande objetivo da obra «Uto


pia» era «reprimir os abusos de urna socieaade crista embotada
(como a da Europa dos séc. XV/XVi)», sociedade que se ia
deixando obcecar pelas conquistas materiais e pelos lucros fi-
nanceiros oferecidos a todos os cidadáos desde a descoberta de
novas térras no Oriente e no Ocidente. Ao extremo apego ao
dinheiro, Tomaz Moro quis opor o extremo desapego do dinheiro,
nao, porém, como o preconizava tütlodeu (isto é, de maneira
violenta, por imposigáo estatal), mas, sim, como o ensinava o
Evangeiho e o Cristianismo auténtico (isto é, de maneira livre e
espontánea). Com efeito; lé-se numa das passagens da «Utopia»
referentes á Religiáo o seguinte episodio, muito significativo no
nosso caso : a populacáo da ilha maravilhosa professava urna
religiáo naturalista e pálida; aconteceu, porém, que um día
tomou conhecimento do Evangeiho, e se converteu prontamente
a Cristo. — E por que táo prontamente? — Porque, observa
Hitlodeu, «os utopianos tinham ouvido dizer que Cristo inspirou
o ideal da espontánea comunháo de bens entre os seus discípulos
e que essa comunháo de bens ainda era praticada por cristáos
ávidos de perfei^áo». Destarte Moro propunha a comunháo de
bens inspirada pelo Evangeiho, isto é, pelo amor a Deus e ao pró
ximo, como supremo ideal, junto ao qual o comunismo da
«Utopia» deveria ser tido como falsa solu;áo; ésse ideal cristáo
íoi justamente o termo que Tomaz Moro quis inculcar na sua
«Utopia». Que os leitores o praticassem..., uns ao pé da letra,

_ 481 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 5

vendando tudo que tivessem em proveito dos pobres, a fim de


seguir o Cristo na pobreza voluntaria (como ela sempre fói
observada na Igreja), ... os outros em espirito, isto é, conti
nuando a possuir os bens que a Providencia lhes concederá, mas
dentro de urna atmosfera nova, com total desprendimento
interior!
Tal é a interpretacáo mais fidedigna que se possa dar aos
dizeres «socializantes» da obra «Utopia». Moro os terá formu
lado nao como expressáo do seu próprio pensamento, mas única
mente como estímulo pungente e paradoxal que provocaría os
seus leitores cristáos a refletir um pouco e a corrigir os avances
do egoísmo capitalista que solapavam a sociedade da sua época.
Moro terá descrito o desapego praticado por um povo náo-cristáo
(os utopianos, inspirados apenas pelo bom senso humano), a fim
de lembrar aos cristáos que a ganancia os fazia descer a um
nivel religioso e moral inferior ao dos povos náo-cristáos.
Éste modo de entender a «Utopia» é, com muito acertó, desenvol
vido por um dos principáis intérpretes de Tomaz Moro — Christopher
Hollis — no seu valioso estudo «Sir Thomas More» (London 1937),

P 8 «Na 'Utopia' temos a descricáo do estado da sociedade ao qual o


homem pode chegar sem a revelacáo divina. Ñas passagens em que
os costumes dos utopianos diferem dos costumes cristáos, enganar-se-ia,
como já se tem dito, quem pretendesse que Moro prefería os costumes
dos utopianos. Conforine Moro, os cristáos devem sob todos os aspec
tos levar um género de vida superior ao dos utopianos. Nao obstante,
era" característico do genio de Moro aproveitar-se da oportunidade para
mostrar que, em alguns setores da vida cot diana, os cristáos da sua
época haviam caído nao sómente abaixo do nivel normal da vida crista
mas até mesmo abaixo do nivel ao qual aspirava o bom senso dos
pagaos. Tal é certamente o sentido do contraste que constantemente
aoarécé ñas duas partes do livro 'Utopia', contraste entre o desprézo
dHfnheiro praticado pelos utopianos e o apego ao capital que prevale-
cia entre os cidadáos do século XVI: «o-foitn
•Os utopianos imaginaram um uso do ouro e da prata perfeita-
menteem harmonía com o restante das suas instituicSes, mas emcom-
?le?o desacordó com as do nosso continente, onde o ouro é adoradocomo
um Deus e procurado como o bem supremo. Éles cómeme beberni em
pratose copos de barro ou vidro...; o ouro e a prata sao destinados
aos usos mais vis, tanto nos estabelecimentos públicos como ñas casas
part"culare^ sSo feitos com éles até os vasos noturnos. Com o ouro e
a prata forjam-se cadeias e correntes para os escravos, e marcas de
ooróbrio para os condenados que cometerán» crimes infames. Estes réus
?evam anéis de ouro nos dedos e ñas orelhas, um colar de ouro no pes-
V..» (1. II, cap. «Das viagens dos utopianos», ed. cit. pág. 107s)>.
A estas frases Christopher Hollis (ob. cit. pág. 86) acrescenta
oportuno comentario:
«Nao temos fundamento para dizer que Moro professava pessoal-
mente... as opinioes que ele atribuía a Hitlodeu. Moro sabia descrever

— 482 —
A «UTOPIA» DE TOMAZ MORO

quadros paradoxais, a íim de provocar os leitores á reflexáo, sem,


porém, querer identi£icar-se cora tais paradoxos».
Era, portanto, pela sátira fina que Moro quería censurar os seus
concidadaos e corrigir os costumes da época. Tal proceder estaya, alias,
na linha do temperamento do santo, sempre jovial e sempre animado do
bom «humour» británico e cristáo. Bem observa Brémond (Thomas
Morus. Regensburg 1935, pág. 72) : ..,,,.., f „*„
«Nao será preciso sublinhar que Moro se tena deleitado profunda
mente com o desapontamento dos leitores, se tivesse sido obrigado a
lhes dizer até que ponto levava a serio as suas teorías. Em seus escritos
como em sua vida ele permaneceu sempre o mesmo yarao : conforme
Stapleton, nem mesmo a sua esposa sabia jamáis se fleeitava tetando
serio ou em brincadeira, serione aut loco aliquid diceret (Vida de Tomaz
Moro c. XIII, publicada em 1588)».

É á luz destas idéias, decisivas para a interpretagáo dos es


critos de Tomaz Moro, que se háo de entender os demais pontos
controvertidos da «Utopia».

4) O hedonismo, o divorcio e o suicidio (éste, em casos de


doenga incurável) vém a ser, no quadro da «Utopia», expressSes
da mentalidade de urna sociedade náo-cristá, que se guia apenas
pelas categorías da prudencia humana. Tomaz Moro muito se
empenhou por frisar ésses tragos, pois, como já temos dito, que
ría sublinhar que os seus contemporáneos pareciam, por
suas desordens sociais, levar um género de vida menos digno
do que o de urna sociedade náo-cristá. Esta, dentro do seu relati
vismo religioso, seria amiga dos prazeres que a vida cotidiana
oferece (donde o hedonismo dos utopianos, que nao e epicurismo,
nem deboche, pois conhece moderacáo e disciplina); urna tal so
ciedade também nao vena motivos para suportar incondicional-
mente um matrimonio pouco prazenteiro aos olhos da natureza
(o que nao significa que praticaria o amor livre), nem um estado
de doenga sem esperanga de cura corporal. Se bem que errónea
nesses pontos, quería Tomaz Moro «icutir que urna tal sociedade
teria descido a um nivel de vida moral menos baixo do que a
sociedade de sua época entregue á cobiga e ao egoísmo.

«Pode-se dizer com razáo : 'Utopia' apresenta urna sociedade que se


eleva tSo alto quanto é possível a urna populagao que, de um lado, nao
esteja detida por algum empecilho da natureza ou dos vicios, mas que,
de outro lado, só conté com a sua razáo natural para chegar até a. ver-
tode Nada insinúa que Tomaz Moro tenha considerado essa religiao
natural como substitutivo equivalente ao Cristianismo Ao contrario, na
■Utopia' essa religiao natural empresentada como disposicao valiosa
que induziu os utopianos a abragar o Cristianismo desde que ouviram
a presagio do Evangelho. Sim; declara Hitlodeu : 'Depois que éles nos
owrinmfalar do nome de Cristo, da sua doutrina. das suas leis, dos
seus milagres e da admirável constancia de tantos mártires, cujo san-
gue generosamente derramado trouxe grande número de nag8es ¿ara a

— 483 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 59/1962, qu. 5 "

sua crenca, nao acreditarías com que alegría os utopianos aceitaram


essa mesma fé (crista)... Éles a consideravam como intimamente rela
cionada com as suas mais caras tradigSes'» (Hollis, ob. cit. pág. 78).

Em conclusáo : consciente das genuínas intengóes e da su


tileza de mente de Tomaz Moro, o leitor moderno nao atribuirá
a éste escritor as teses libertinas que Hitlodeu profere na «Uto
pia» e que, aos olhos de Moro, constituem apenas o fundo para
fazer contraste e para realgar urna genuína mensagem crista :
para que naja felicidade social, requer-se espirito de desprendi-
mento, , ■
desprendimento que nao significa extingao da propnedade
particular (o que seria contrario <á natureza humana), mas uso
altruista dos haveres próprios, ,
desprendimento que pode, em casos especiáis, levar a urna
vida em comunháo de bens e pobreza voluntaria tal como ela
tem sido realizada pelos cristáos sequiosos de maior perfeigao
.em todas as épocas da historia.
De resto, a mensagem crista de Tomaz Moro fica indelével-
mente documentada e corroborada pelo teor de vida désse varao,
que, sem favor, pode ser tido como um dos grandes herois da
fé crista.

Bibliografía:

Christopher Hollis, Sir Thomas More. London 1937.


Henri Brémond, Le bienheureux Thomas More. París 1335.
A. Amoroso Lima. Tomaz Monis, em «A Ordem» vol. XXHI (1940)
pág. 3-24.

D. Esteva© Bettencourt O.S.B.

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