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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIN-E

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanza a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
Vv . visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questdes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico • filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
MAIO' 196?
ÍNDICE

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Teühard de Chardin... Sería possível explicar por que


desperta tanta simpatía em muitos leitores, ao ntesmo tempo que
outros Ike fazem serías reservas ?" 189

n. SAGRADA ESCRITUBA

S) "Por que meios os Evangelistas puderam saber que Jesús


foi tentado pelo demonio ?
Como entender essa tentasao ?" 109

m. DOGMÁTICA

S) "Houve reeentemente um debate em torno da S. Euca


ristía, Alguns teólogos preferíram usar os termos 'transignifica-
gao' e 'transfinalizacáo', em lugar de 'transubstanciacáo', para
exprimir o modo de presenta de Cristo em sua Santa Ceia.
Que pensar a respeito ?"

IV. LITURGIA

4) "As revistas tém propalado noticias e fotografías refe


rentes a eelebracóes litúrgicas em novo estilo : Missa em casas
de familias, sem paramentos, com formularios improvisados...
Que diser a respeito !"

V. HISTORIA. DO CRISTIANISMO

5) "Pairam dúvidas sobre o eignifieado da visita do Presi~


dente Nicolau Podgorny. 'da Rússia Soviética, ao S. Padre
Paulo VI.
A Igreja pretenderá dar mais urna guiñada para a esquerda?" £28

CORRESPONDENCIA MIODA

COSÍ APROVAgAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano VIII — N' 89 — Maio de 1967

I. FILOSOFÍA E RELIGIÁO

REGINA (Sao Paulo) :

1) «Teilhard de Ghardin... Seria possível explicar por


que desperta tanta simpatía em muitos leitores, ao mesmo
tempo que outros lhe fazem serias reservas ?»

Nesta resposta, nao pretendemos analisar sistemáticamente


o pensamento de Teilhard de Chardin, pois tal tarefa já foi
brevemente empreendida em «P. R.» 8/1958, qu. 1. Visamos
apenas indicar alguns dos traeos da síntese teilhardiana que
mais parecem atrair a atencáo do público; feito isto, tentaremos
apontar as notas que tomam Teilhard de Chardin suspeito aos
olhos de alguns estudiosos. Por fim, tentaremos formular um
juízo sobre o assunto.

1. Elementos positivos. . .

Logo de inicio, observe-se o seguinte : parece que Teilhard


de Chardin atrai muito mais pelas grandes linhas do seu pen
samento do que pelas afirmagóes singulares dos seus escritos;
como veremos, estas, tomadas em si mesmas, sao, por vézes,
obscuras e complicadas, nao resistindo a um exame atento e
preciso. Dir-se-ia que Teilhard teve urna bela intuigáo; entrevia
(mais do que viu) algo de grandioso referente ao mundo, ao
homem e a Deus, e, ésse algo de grandioso ou ésse panorama
geral, ele tentou apresentá-lo aos seus correspondentes e leitores
em tragos semelhantes aos de um «croquis» ou desenho «á
crayon» rápidamente lancado sobre o papel; quem observa
ésse tragado, percebe talvez ai um belo esquema, mas difícil
mente entenderá os pontos particulares que deveriam dar con-
teúdo e pleno sentido a ésse destínho em «crayon».

Quais seriam, pois, as linhas grandes e atraentes da síntese


teilhardiana ?

1) Antes do mais, Teilhard tenta reunir numa visao única


e harmoniosa tudo que existe: o universo visível, o homem
e Deus.

— 189 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 1

Em todos os tempos, os pensadores procuraram congregar


os seus conhecimentos em torno de urnas poucas idéias ou
mesmo em torno de um só conceito (tenham-se em vista os
filósofos gregos pré-socráticos, os neoplatónicos, os hindus, etc.).
Ora Teilhard procurou fazé-lo, por sua vez, associando em sua
síntese as conclusóes mais recentes da ciencia positiva e os
dados da fó crista. Tentou apresentar a escala das criaturas
em ascensáo homogénea para Deus; essa escala, desde os pri-
meiros degraus, parece obedecer a um plano único, o qual
se vai desenvolvendo aos poucos, de tal modo que na mais
simples das criaturas materiais já se encontra um prenuncio
dos seres mais complexos ou superiores e, em última análise,
um vestigio do próprio Deus.
Para Teilhard, «subir» é «convergir», e convergir num
único percurso «para Deus».
O jesuíta francés empolga o seu leitor descortinando-lhe
os horizontes do «infinitamente» grande e do «infinitamente»
pequeño. Além disto, tenta abranger numa só visáo o passado
— o mais remoto passado da térra, que já conta bilhóes de-
anos — e o futuro, a humanidade perfeita, que a inda nao
podemos alcangar com os nossos olhos, mas que desojaríamos
profetizar. Assim a mente do leitor que acompanha as elu-
cubragóes de Teilhard, se vai dilatando; tudo que parega dis
perso e desconcxo aos olhos de um observador desprevenido,
desfila homogéneamente ante a inteligencia do leitor; a reali-
dade que parecía vasta demais para poder ser abarcada pelo
homem vulgar, é compreendida como que numa só intuipáo;
já nao sufoca nem esmaga o estudioso, mas, ao contrario,
perece deixar-se dominar integralmente por éste.
Nao há dúvida, a todo ser humano deleita o contato com
tais explanagóes panorámicas, universalistas; nao há quem nao
sinta o prazer de abranger tudo num só relance.

Sublinhando a convergencia harmoniosa de todos os seres para


Deus, Teilhard faz algo de profundamente cristáo. Sao Paulo, em
suas epístolas, já mostrou como tudo que existe foi criado em vista
de Cristo; Éste é o ponto supremo e central de grande cúpula que é a
criacüo, ponto som o qual tudo desmoronarla (1); Cristo, enquanto
homem, está no ápice de todas as criaturas e um dia as apresentará
todas, harmoniosamente congregadas, a Deus Pai (2).

(1) Cf. Col 1,16: «Néle (Cristo) foram criadas todas as coisas,
tudo foi criado por Ele e para Ele...; tudo subsiste néle».

(2) Cf. 1 Cor 15.28.

— 190 —
TEILHARD DE CHARDIN

Por conseguinte, compreende-se que o esfórgo de Teilhard,


ao procurar realzar a convergencia de todos os seres para
Deus, encontré aceitac.áo e aplausos da parte dos seus leitores.

Eis outro traco positivo do teilhardismo, intimamente associado


a éste primeiro :

2) O pensamento de Teilhard se apresenta como concilia-


5áo entre a Ciencia e a Fé. Partindo das mais recentes afirma-
góes das pesquisas modéralas (de que Teilhard era assíduo
cultor), chega até Deus, no qual os valores da ciencia e da
cultura se consumam.
O jesuíta francés era mesmo movido em seus estudos por
urna intengáo fortemente apologética: quería dissipar o infeliz
preconceito de que o uso da razáo e o assentimento da fé sao
incompatíveis entre si.

Justamente o tema «evolucáo» (aplicado á Biología, á Sociología,


ao Direito...) era, a partir de Darwin, o grande campo de disputa
entre crentes e ateus; estes pareciam encontrar em tal setor o
fundamento para solapar a crenca em Deus, na criagáo, na Provi
dencia Divina, etc.. Conseqüentemente, Teilhard se voltou de modo
especial para o conccito do ovoUiqSo, tentando fazer déle o eixo de
urna grande síntese, em que o saber humano e a ciencia de Deus se
coadunam; mediante o evolucionismo mesmo, Teilhard quis manifestar
a existencia de Peus aos seus contemporáneos.

Destarte o pensador francés é benemérito, pois mais


urna vez asseverou que a ciencia nao está necessáriamente
associada ao materialismo e ao ateísmo. Mais urna vez...;
sim, porque antes de Teilhard já se evidenciava a plena conci-
liagáo de criagáo e evolugáo neste mundo; nem é preciso hoje
em dia recorrer a Teilhard de Chardm para comprovar a
harmonía existente entre os dois conceitos. Cf. «P. R.» 29/1960,
qu. 1.

«O cristáo devera estar cíente do fim apologético e polémico que


orienta nesta materia a obra de Teilhard...
Teilhard se incumbiu, como de tarefa impar, de tornar de novo
presente no mundo moderno, científico e técnico, o Cristianismo com
as suas verdades fundamentáis: a realidade do espirito, o primado do
amor e de Deus pessoal... O marxismo fascina milhóes de homens
pela audacia- com que projeta um mundo diferente e melhor. Teilhard
quer mostrar pela palavra e pela acáo que o Cristianismo se encontra
igualmente na vanguarda do pensamento humano» CSmulders, A visáo
de Teilhard de Chardin, Petrópolis 1965, 121).
«Ele (Teilhard) quer fazer ver a Deus ao mundo moderno, fasci
nado pela ciencia, pela técnica, pela perspectiva de urna humanidade
unificada. Quer fazer aparecer Deus como o fim e o coroamento do

— 191 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 1

caminho da humantdade. Esta idéia original... o leva a propor ao


crente urna especie de esperanga que nao faca explícitamente apelo
á fé em Deus» (ib. 153).

Outra nota positiva do pensamento de Teilhard seria

3) O otimismo. O autor francés se compraz em realgar


com énfase particular tudo que de belo e grandioso se encontra
no cosmos; aponta a ascensáo harmoniosa de elementos simples
e menos perfeitos que se tornam mais complexos e perfeitos.
A existencia de falhas e do mal neste mundo, que Teilhard
nao podia deixar de reconhecer, parece assim englobada e
diminuida pela conviccáo de que tudo converge para a plenitude.

Por fim, ainda se pode realgar

4) Originalidade de estilo e vocabulario. Nao raro a lin-


guagem de Teilhard atinge as raias da poesía, servindo-se de
metáforas ousadas; as vezes mesmo, aproxima-se de certas
pegas da literatura mística. O leitor tem assim a impressáo
de que Ghardin possuia urna profunda intuicáo da realidade
imensa que nos cerca; vislumbrava algo que as palavras e
regras da linguagem comum nao podem exprimir adequada-
mente.

«Chegouse a dizer que Teilhard era um poeta; suas cartas e seus


primeiros escritos testemunham realmente urna sensibilidade e um
poder de evocacjio extraordinarios» (Smulders, ob. cit. 34).

Tal estilo, como se compreende, pode empolgar o leitor,


pois todo pensador bem percebe que a prosa cha é insuficiente
para dizer com fidelidade o que existe em nos e em torno de nos.
Estas parecem ser as características do teilhardismo que,
num primeiro contato, impressionam e atraem. Sao inegável-
mente valiosas. Contudo ésses mesmos tragos positivos, tais
como foram propostos por Teilhard, contém pontos obscuros,
que impóem reservas a um estudioso sereno.

2t Ressalvas

Nao tendo a intengáo de fazer urna critica exaustiva das


idéias de Teilhard, aqui tentaremos apenas manifestar algumas
lacunas do pensamento de Teilhard, passando das mais gerais
as mais particulares.

1) AmbigUidade. Teilhard emprega um modo de falar


muito pessoal, em que sao freqüentes os neologismos. Destarte

— 192 —
TEILHARD DE CHARDIN

muitas vézes torna-se difícil perceber o que o autor quer dizer.


Para superar tal obstáculo, foi confeccionado um dicionário
em que os termos peculiares de Chardin sao explanados.
Os comentadores do jesuíta francés, ao expor o pensamento tei-
lhardiano, sao íreqüentemente obrigados a fazer distincoes e subdis-
ting6es a iim de transmitir sem erros ou equívocos o que o mestre
toncionava propar. Nem sempre, porém, conseguem exprimir-se com
clareza; algumas vézes parecem dizer e nao dizer ao mesmo tempo,
ou propóem idéias sob íorma interrogativa. O próprio Teilhard, por
■natureza, nao era um espirito filosóíico, cioso de precisao; era muito
mais tendente a tracar grandes linhas, deixando a seus ouvintes ou
leitores a tarefa de burilar, colorir ou mesmo cortar arestas.

Há ainda outro fator que, em certos casos, toma ardua


a compreensáo do pensamento teilhardiano. Com efeito, o autor,
no decorrer dos seus anos, parece ter hesitado em suas afirma-
góes, pendendo ora para urna, ora para outra solugáo diante
do mesmo problema. Tem-se dito — e com muita probabilidade
— que nem no fim da vida chegou a plenitude de evolugáo das
suas idéias; Teilhard nao publicou, como tais, as obras que,
após a sua morte, foram editadas por seus discípulos; tais obras
sao, em parte, coletáneas de artigos, apostilas ou cartas do
autor. Tem-se a impressáo de que, ao morrer, Teilhard ainda
estava tentando esbogar urna grande visáo científico-religiosa.
Tais circunstancias explicam que, nao raro, se possam
interpretar de maneiras diversas ou até contraditórias as sen-
tengas do mestre: há quem Ihe queira atribuir panteísmo,
monismo, materialismo, enquanto outros o consideram um dos
mais genuinos autores de mística crista em nosso século.
Um dos espécimes mais flagrantes da ambigüidade teilhardiana é
talvez a seguinte frase:
«COSMOGÉNESE —» BIOGÉNESE —» NOOGÉNESE —» CRIS-
TOGÉNESE» (sentenga escrita por Teilhard em seu «Diario», tres
días antes de sua morte).
Seria Cristo um produto do cosmos ou da materia inanimada ?
Haveria paralelismo entre o aparecimento da vida (biogénese) e o
aparecimento de Cristo (Cristogénese) na historia ? — Certamente
nao é isto o que o Religioso (sempre fiel a sua íé crista) quis dizer.
Contudo nao se pode negar o perigo de mal-entendidos nessa passagem.
Os vocábulos «cefalizacao, cerebralizagáo, enervamento», vocábulos-
•chaves dos escritos de Teilhard, prestam-se igualmente a nao pouca
confusáo.
Alias, para comprovar quanto o pensamento de Teilhard é nebu
loso, pódese citar a sejjuinte observacáo de J. Smulders (comentador
que tenta explicar favorávelmente o mestre francés) :
«O dentista que percebe onde a fenomenología se aproxima do
dogma cristáo, presume dogmatismo da parte déle (Teilhard). O teó
logo, que só ve urna aproximacáo onde elementos essenciais sao deixa-
dos á sombra, acha fálhas em sua ortodoxia» (ob. cit. 34).

— 193 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 1

Estas palavras nao signiíicariam que as intuyes de Teilhard,


consideradas em si mesmas, nao sao aptas para agradar nem a gregos
nem a traíanos ? Para elogiar Teilhard, seria necessária mais boa
vontade do que lógica.
Como íoi dito atrás, o cristáo que procura compreender numa
visáo harmoniosa as criaturas e o Criador (o cosmos, o homem e
Deus), encontra-a bem delineada ñas epístolas de Sao Paulo, princi
palmente em Ef e Col. Nada de mais útil do que recorrer a ésses
textos do Apostólo, aprofundandoos o confrontándoos com tudo
quanto de verídico ensinam os cientistas contemporáneos.

Passemos a outro capitulo de observagóes:

2) Otimismo exagerado. Teilhard acentúa táo fortemente


a ascensáo ordenada das criaturas para Deus que os males e
as desordens neste mundo parecem ter importancia secundaria.
Principalmente o mal moral ou o pecado aiáo é suficientemente
levado em conta. Dir-se-ia que o autor o assemelha a um erro
de máquina; seria algo de necessário ou subentendido na his
toria do género humano... Com efeito, Teilhard observa que
na natureza a plena evolugáo de urna estirpe (vegetal ou ani
mal) só se dá mediante a involucro e a ruina de muitas outras;
paralelamente, sugere ele, para que o género humano chegue
a consumagáo em Cristo, é «quase normal» que, na cammhada
ascensional dos homens, se registrem numerosas falhas físicas
e moráis.
Segundo Teilhard, o género humano se aproxima cada vez
mais de urna era de completa socializacüo, cooperagáo e unidade
entre os povos e os individuos... Ora nao se vé como tal
concepgáo corresponda á visáo crista da historia. Na verdade,
a Sagrada Escritura ensina que, no inicio dos tempos, houve
urna culpa, a qual desagregou os homens, tornando-os sujeitos
a lutas de consciéncia e fazendo que as nacóes se digladiem
mutuamente. Cristo veio remir os homens assim subjugados
ao pecado, chamando-os para um só Reino, "Reino de caridade
sobrenatural. Éste Reino, porém, que já comecou sua agáo
neste mundo (1), nao trará a plenitude de harmonía e enten-
dimento entre os homens senáo depois de atravessar duros
conflitos e perseguigóes no fim dos tempos; quanto mais se
aproxima a consumagáo da historia, tanto mais claramente
se delineiam as duas facgóes, dos bons e dos maus respectiva
mente, ou a Cidade de Deus e a Cidade do Diabo; na consumagáo

1) Consciente distp, a Igreja reza na íesta de Cristo - Rei : «Deus


todo poderoso e eterno, que quiseste instaurar todas as coisas em
Cristo - Rei, fazei que as familias das nagaos desagregadas pela chaga
do pecado, se submetam ao seu suave poder...»

— 194 —
TEILHARD DE CHARDIN

dos séculos o dualismo e as discordias chegaráo ao auge, sendo


entáo o Anticristo (individuo ou coletividade) o grande pro
motor da luta fratricida.
Perguntar-se-ia ainda: que lugar ocupa na síntese de
Teilhard a ascese, ou seja, o dever que ao homem incumbe, de
se purificar de suas más tendencias, de vencer a natureza (ou
o velho homem, segundo Sao Paulo), a fim de poder atingir
a perfeicáo e a uniáo com Deus ? Que significado tém os man-
damentos de Deus e a lei moral no teilhardismo ?
Nao será que éste sistema identifica de certo modo os
deveres da consciéncia com a necessidade que as pegas de urna
máquina tém de se engrenar ñas leis de funcionamento dessa
máquina ? Teilhard, por certo, nao queria negar a ascese, que
todos os sabios e místicos (cristáos e náo-cristáos) tanto exal-
tam; mas as suas premissas tendem a desvirtuar tal prática.
O cristáo nao é dualista nem pessimista em relagáo á materia,
mas conhece por sua fé o grande desastre dos primeiros pais.

Muito provávelmente Teilhard íoi levado a empalidecer o alcance


do pecado neste mundo, por efeito da sua intencáo apologética. O
jesuíta francés desejava tornar o Cristianismo muito acessivel ao
pensamento dos náo-cristüos; estes, como se sabe, nao aceitam fácil
mente a nocáo do «pecado-culpa moral do homem frente a Deus»;
em conseqüéncia, pecado e ascese sao exageradamente silenciados
no teilhardismo.

Na verdade, nao é necessário professar o otimismo exage


rado de Teilhard para corresponder ao auténtico pensamento
da ciencia de nossos dias; esta reconhece os pontos obscuros
que as criaturas apresentam (pontos obscuros que, para o
cristáo, nao sao senáo decorréncias da queda original). Notem-
-se a propósito as seguintes observagóes de Jacques Maritain:

«Nao creio que a ciencia tenha, a respeito da natureza, urna visáo


particularmente otimista. Cada progresso na evolucáo custa um preco
muito elevado: tentativas frustradas, luta desapiedada em toda
parte. Quanto mais minucioso se torna o nosso conhecimento da
natureza, tanto mais percebemos, juntamente com a generosidade e
o progresso que se irradiam do ser, a lei da degradacáo, os poderes
de morte, de destruigáo, a implacável voracidade, inerentes tambám
ao mundo da materia. E, quando chegamos ao homem, rodeado e
invadido como está por um exército de fdrcas em avango, a psicolo
gía e a antropología sao apenas urna explicacáo do tato de que, sendo
essencialmente superior a todos, é o mais desgracado dos animáis.
Assim, quando a visao da inteligencia é iluminada pela ciencia, a
inteligencia unida á fé religiosa se dá perfeitamente conta... de que,
se as mais profundas esperanzas do género humano nao estáo desti
nadas a se tornar ridiculas, é porque atua em jiós urna energia devida
a Deus mais do que á natureza» (Jacques Maritain, Utilidad de la
Filosofía. Madrid 1962, 99s).
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 1

Pode-se dizer ulteriormente que o otimismo de Teilhard


é portador de certo

3) Naturalismo. As explanacóes do dentista francés dei-


xam assaz longe as grandes verdades do Cristianismo (elevagáo
do homem á ordem sobrenatural, pecado, Redengáo, graga de
Deus...), a ponto que tais verdades parecem dispensáyeis a
quem procure esbogar uma visáo da realidade que nos cerca.
Tem-se assim a impressáo de que a historia se pode explicar
satisfatóriamente sem se levar em conta a Revelagáo sobrena
tural. Ñas páginas de Teilhard, é verdade, nao falta a mencáo
de Cristo; contudo o Cristo ai referido está táo fundido com o
cosmos que o seu papel transcendente vem a ser obnubilado.
O autor parece pregar um belo messianismo, mas... sem
Messias pessoal; julgar-se-ia que tudo .neste mundo corre e
correrá bem, desde que se observem as leis da natureza. A
obra de Cristo parece destinada a beneficiar principalmente a
ordem de coisas temporal e social; fica assim um tanto apagada
a finalidade primaria do Redentor, finalidade que é transfi
gurar o mundo e o homem mediante a morte e a ressurreigáo
(producüo da nova criatura de que fala S. Paulo em 2 Cor
5,17; Rom 6,4).
Nao há dúvida, Teilhard nao quis negar um só dos artigos
do Credo cristáo. Ele mesmo nos diría que nao intendonava
entrar pelos campos da filosofía e da teología, mas apenas se
esforgava por descrever os fenómenos ou a face visivel da
realidade. — Observe-se, porém, que é impossível construir
uma síntese sem fazer, em certo grau, obra filosófico-religiosa.
Além do mais, se as obras de Teilhard nao professam o natu
ralismo, disseminam ao menos uma mentalidade naturalista,
pouco ou nada crista.
4) Feitas estas observagóes de índole geral, convém ainda
salientar alguns pontos de doutrina que, de modo particular,
se ressentem de ambigüidade na síntese de Teilhard:
a) a distingáo entre materia e espirito. A linha ascen-
sional das criaturas é táo homogénea na visáo do cientista
francés que o espirito ai nao parece ser mais do que a eflores
cencia da materia ou a materia em seu grau máximo de perfei-
gáo. Teilhard fala de psiquismo e consciéncia rudimentar exis
tentes na materia inanimada. Ora, já que a consciéncia é pro-
priedade do espirito, fácilmente dai se concluiría que as cria
turas materiais inanimadas nao se distinguem dos seres racio
náis senáo por diverso grau de complexidade ou «cerebrali-
zagáo, cefalizagáo, enervamento» (expressóes de Teilhard);

— 196 —
TEILHARD DE CHARDIN

nao haveria, pois, distingáo essencial entre materia e espirito.


Para evitar tal conclusáo, os discípulos de Teilhard recorrem
a distingóes sutis, que, com toda a probabilidade, correspondem
ao pensamento do mestre, mas nao sao evidentes ao leitor
desprevenido.

b) O conceito de criagáo parece identificar-se com o de


emanacáo. Segundo certas afirmagóes de Teilhard, Deus teria
dado origem ao mundo por necessidade, Deus emergiria da ma
teria em evolugáo.

Tenhase em vista o texto ambiguo, extraído de uma carta a


Léontine Zanta :
«O que vai dominando meus interésses e minhas preocupagSes
interiores, vocé já sabe, é o esfórgo para estabelecer em mim e difun
dir em torno de mim, uma religiáo nova (chamemola um melhor Cris
tianismo, se vocé quiser) em que o Deus pessoal deixa de ser o grande
proprietário neolítico de outrora para tornar-se a alma do Mundo a
que o nosso estadio religioso e cultural aspira».
É certo que estas palavras podem ser entendidas em sentido me
tafórico (e assim as terá concebido o Pe. Teilhard). Contudo nao há
advertencia, no texto do pensador francés, que leve o leitor a inter
pretar figuradamente tais dizeres de Chardin. Ora, tomadas ao pé da
letra, as mesmas palavras sugerem concepcóes profundamente con
fusas ou mesmo erróneas.

c) A noosfera, ou seja, a fase futura da historia do género


humano é explicada por Chardin em termos obscuros, termos
que a fantasía, mais do que a lógica, consegue de certo modo
apreender. Trata-se de uma visáo profética assaz arbitraria,
como se depreende do seguinte texto:

«Éste crescimento de interioridade mental..., na medida em que


ele aumenta simultánea e inevitavelmente o raio de acáo e o poder
de penetracáo de cada elemento humano para com todos os outros,
tem por efeito direto de sobrecomprimir sobre si a Noosfera ; esta
sobrecompreensao desencadeia automáticamente uma sobreorganizacáo,
— fomenta ela mesma uma sobreconscientizacáo — seguida por sua
vez de uma sobrecompreensáo — e assim por diante... O sistema se
intensifica indefinidamente sobre si mesmo» (Groupe Zoologique, 133).

Nao será necessário descer a mais pormenores para se


formular uma conclusáo sobre o assunto.

3. Reflexáo final

Tentando agora estabelecer um balango dos pontos posi


tivos e negativos da sintese de Teilhard, julgamos que estes
últimos bem justificam uma atitude de seria reserva perante

— 197 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 1

os escritos do mestre francés. Fácilmente seria levado a erro


quem se deixasse impressionar pelas notas grandiosas do tei-
lhardismo, sem levar em conta as lacunas do sistema. Mais
sabiamente procede quem utiliza os pontos positivos do teilhar-
dismo ácima recenseados, procurando, porém, ñas categorías
da Escritura Sagrada e da lógica (para nao dizer... da Filo
sofía perene) os dados para construir urna visáo crista bem
atualizada da historia universal e do homem. Naturalmente,
esta visáo, de um lado, terá que se desvencilhar das nocóes
da ciencia medieval que estejam obliteradas; de outro lado,
incorporará a si as grandes verdades ou os grandes panoramas
explanados pelos pesquisadores de nossos dias.
Em suma, pode-se dizer que Teilhard foi benemérito por
haver desvendado novos horizontes ao pensamento cristáo e
náo-cristáo de nossos tempos; sugeriu grandes linhas... Contu-
do os «croquis» ou «crayons» que ele langou sobre o papel, nao
podem ser aceitos como tais; necessitam de ser depurados,
cinzelados e coloridos.
Teilhard foi um poeta, urna alma inflamada... É esta
urna de suas características mais marcantes. O jesuíta francés
teve urna intuigáo que a linguagem comum ó insuficiente para
exprimir e que suas obras, cheias de figuras e neologismos,
tentam insinuar. Ora o que, nos escritos de Teilhard, tem
impressionado muitos leitores, levando-os á fé crista, nao é
a presumida lógica ou a presumida construgáo científico-teo
lógica, mas, sim, a chama mística ou o ardor poético que
transparecem através das páginas de Chardin. É geralmente
através da poesía que o místico tende a comunicar sua admi-
racüo contemplativa e a flama de seu amor; foi o que Teilhard
fez, e é isso que própriamente deleita os seus leitores.
A propósito vejam-se as Lnteressantes consideragóes de
Jacques Maritain em «Le paysan de la Garonne. Un vieux
laic s'uiterroge á propos du temps présent». Paris 1966, assim
como o artigo de E. Gilson : «Le cas Teilhard de Chardin»,
em «Seminarium» n. 4, 1965, 720s.

— 198 —
AS TENTACOES DE JESÚS

II. SAGRADA ESCRITURA

AMBROSIO (Teresópolis) :

2) «Por que meios os Evangelistas puderam saber que


Jesús foi tentado pelo demonio ?
Como entender essas tentacoes ?»

O episodio das tentagóes de Jesús por certo nao teve teste-


munhas, pois decorreu no deserto entre o Senhor e Satanás.
Daí a questáo nao raro apresentada : quem garante a autenti-
cidade de tal trecho do S. Evangelho ?
É o que vamos ver abaixo; o valor ou o significado do
episodio saltará assim mais claramente aos olhos do leitor.

1. Como souberam.. .?

As tentagóes de Jesús sao referidas pelos tres evangelistas


sinóticos (Mt, Me e Le): enquanto Sao Marcos apresenta um
relato muito sumario, Sao Mateus e Sao Lucas desenvolvem
explícitamente as tres fases da luta contra o demonio. No
presente estudo, tomaremos como base o texto de Sao Mateus
(4,1-11; cf. Me l,12s; Le 4,1-13).

1 Há críticos que querem atribuir o relato á imaginaeáo das


antigás comunidades cristas, desejosas de atender a questóes e pro
blemas oriundos nos primeiros decenios do Cristianismo... Dsscendo
a explicacóes pormenorizadas, tais exegetas propóem diversas hipo-
teses e tentam reconstituir situaedes dos primeiros cristáos, para as
quais o episodio das tentacSes poderla servir de mensagem... Tal
passagem por conseguinte, nao seria senáo urna pega literaria cheia
de símbolos forjada para levar aos antigos fiéis ensinamentos e con
solos; nao correspondería, porém, a um íato histórico vivido por
Jesús. O próprio Cristo nada teria dito a respeito.

2. Outros críticos, ao contrario, julgam inadmissível tal


explicacáo da origem do relato, e asseveram que Jesús mesmo
o referiu aos discípulos. Eis as razóes em que se baseiam :
a) Nao se pode conceber que os primeiros cristáos, cheios
de fé e reverencia para com o Senhor, tenham inventado seme-
lhante narrativa, em que Cristo aparece táo identificado aos
homens, sujeito as invectivas de Satanás como se pudesse titu
bear em seus santos propósitos. Se as primeiras geragóes cristas
admitiram tal episodio, quase escandaloso para a fé em Cristo-

— 199 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 2

-Deus, isto só se pode explicar pelo fato de que Jesús mesmo


o narrou.

b) Note-se outrossim a simplicidade das respostas que


Jesús dá ao demonio : «O homem nao vive sómente de pao...
Nao tentarás o Senhor... Adorarás o Senhor teu Deus...».
Estas respostas poderiam estar nos labios de qualquer individuo
tentado. Um cristáo que procurasse imaginar respostas «dadas
por Jesús», haveria provávelmente escolhido textos bíblicos
que correspondessem melhor á eminente dignidade que ele atri
buía a Cristo: assim, por ocasiáo da última tentagáo («dar-te-ei
todos os reinos do mundo, se, prostrado, me adorares»), teria
sido obvio apelar para o SI 2,8, em que Deus Pai promete como
heranga a seu Filho (o Messias) todas as nagóes da térra. Na
verdade, Jesús, tentado, se coloca na situagáo de um homem
semelhante aos demais. — Ora urna tal sobriedade de conceitos
referentes ao Messias é pouco condizente com o estado de ánimo
dos primeiros cristáos; estes teriam procurado ao menos real-
car melhor a transcendencia do Senhor Jesús. Sómente o pró-
prio Cristo pode ter usado de tal discrigáo ao falar de si.
c) Mais aínda: é difícil considerar a historia das tentacóes como
produto da imaginacáo popular, pois se trata de urna narrativa cons
truida com grande esmero. Como veremos, ela atesta profunda refle-
xao teológica e clara comprensáo da missáo de Jesús. Isto tudo supóe
a intervencáo de urna personal ¡dado forte. Além do mais, o autor da
narrativa possuia notável sonso poético, em virtude do qual cscolheu
imagens muito significativas. Ora tais qualidades se achavam real
mente reunidas em Jesús, como manifestam os Evangelhos.

Sao estes os principáis motivos que levam a atribuir o


episodio das tentagóes a um depoimento feito pelo próprio
Cristo a seus discípulos.
3. E quando terá feito tal relato ?

Os exegetas indicam como ocasiáo mais adequada para tal


narrativa os fatos ocorridos em Cesaréia de Filipe (cf. Mt 16,
21-23): Jesús predisse aos Apostólos a sua Paixáo e morte; isto
contrariava as esperarigas messiánicas — políticas ou nacionalis
tas — dos seguidores de Cristo, e provocou decidida reagáode
Pedro. Provávelmente entáo Jesús quis dissipar as concepgóes
erróneas dos discípulos, mostrando-lhes que o messianismo polí
tico era tese diabólica, tese que se chocava frontalmente com o
misterioso designio de Deus: pela cruz, e nao pelos sucessos
humanos, quis o Pai celeste remir o mundo.
Por certo, o episodio das tentagóes presta-se bem a éste
ensinamento. É, pois, muito plausível que Jesús nessa ocasiáo

— 200 —
AS TENTAQOES DE JESÚS

o tenha revelado aos Apostólos (note-se, de resto, a afinidade


de expressóes em Mt 4,10a e Mt 16,23a).

2. Até que ponto... realidade histórica ?

As consideragóes anteriores levam a ver que Jesús quis,


mediante o seu relato, incutir principalmente urna concepgáo
teológica a respeito do Messias.
Terá entáo referido que, havendo-se retirado para o deserto
após o seu Batismo, foi solicitado pelo Tentador. Estava no
limiar de sua vida pública; duas vias e duas perspectivas se lhe
abriam ante os olhos :

1) a fidelidade á vontade do Pai, que O enviara a éste mundo


para resgatar o'género humano, vitima da desobediencia e da morte.
Devia, pois, íazer-se obediente até a morte, renunciando aos bens déste
mundo, de que o primeiro Adáo havia abusado ;

2) a possibilidade de adotar urna carreira fácil e agradável, pro


curando impor-se como o Salvador político de Israel; nao Lhe fa\-
tariam meios de fascinar o povo em seu favor. Naturalmente, esta
segunda perspectiva equivalia a urna traigáo aos designios do Fai;
correspondía exatamente ao que Satanás sempre procurou obter dos
homens. O povo de Israel mais de urna vez sucumbirá á tentacáo de
infidelidade para com Javé, principalmente durante os quarenta anos
de travessia do deserto»

Diante do dilema, a santissima vontade humana de Jesús


escolheu deliberadamente a obediencia ao Pai, abracando a re
nuncia, por mais penosa que fósse. Cristo ¡nao imitaría a dureza
de Israel, nem se pona a servigo de Satanás. Mais tarde, no
horto das Oliveiras Jesús de novo faria tal opgáo.
Se queremos falar com sobriedade, evitando pormenores
pouco seguros, devemos dizer que foi isto o que se deu ao cabo
dos quarenta dias de jejum passados no deserto. Para trans-
miti-lo aos Apostólos, Cristo terá usado de urna linguagem
que, embora seja pouco comum entre nos, era muito familiar
a éles, pois recorría a imagens, cenas concretas e numerosas
citagóes bíblicas: o diabo tena transportado o Senhor de um
lugar para outro, teria descoberto urna montanha donde se
podiam ver todos os reinos da térra (concepgáo esta fantás
tica) ... Nao será necessário, portante, tomar ao pé da letra
todo o cenário figurado das tentagóes; pode-se muito bem
admitir (sem ferir a fé nem negar a veracidade do texto sagra
do) que as tentagóes se tenham dado únicamente no íntimo de
Cristo, sem que comparecesse alguma figura diabólica diante
do Senhor (nada, porém, impede que se admita a aparigáo

— 201 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 2

concreta de Satanás diante de Jesús). Está claro também que


as sugestóes nao obtiveram a mínima anuencia da santíssima
vontade de Cristo, nem a fizeram vacilar por um só momento.
Feitas estas consideragóes, procuremos fixar a mensagem
teológica (a qual de modo nenhum excluí o fato histórico
ácima descrito) do episodio das tentacóes de Jesús.

3. Analisando os episodios do deserto...

A chave para se penetrar na narrativa sao as tres dtacóes


do Deuteronomio feitas por Jesús em resposta ao diabo: Dt 8,3í
6,16; 6,13. Estas passagens bíblicas lembram tres dos principáis
acóntecimentos da marcha de Israel pelo deserto; Jesús, ao
citá-las, terá certamente intencionado deduzir délas alguns ensi-
namentos, consoante a norma enunciada por Sao Paulo : «Tais
fatos (do éxodo) aconteceram para nos servir de exemplo,
para que nao cobicemos coisas más, como éles (os israelitas)
ccbicaram... Tudo isso lhes acontecía para servir de exemplo,
e foi escrito para nossa orientagáo» (1 Cor 10, 6.11).
Percorramos, pois, sueessivamente as tres tentacóes de
Jesús, considerando o respectivo fundo de cena ou o texto do Dt.

1) Primeira tentagáo

«Foi entáo Jesús conduzido pelo Espirito ao deserto para ser


tentado pelo demonio. Depois de jejuar quarenta días e qua.renta
noites, teve fome. Aproximou-se d'Éle o tentador e Lhe disse: 'Se és
Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em páes1.
Respondeu-lhe: 'Está escrito : nao só de pao vive o homem, mas
de toda palavra que sai da boca de Deus'» (Mt 4,1-4).

Jesús respondeu citando Dt 8,3. O evangelista referiu a


traducáo grega dos LXX, a qual difere acidentalmente do texto
hebraico, onde se lé : «Nao é de pao apenas que vive o homem,
mas de tudo que sai da boca do Senhor».
A influencia do Dt parece estender-se a todo o relato da
primeira tentagáo. Te.nha-se em vista a passagem do Antigo
Testamento :

«Lcmbra-to de todo o caminho pelo qual o Senhor tcu Dous te


conduziu durante anos no deserto, para humilhar-te e provar-te e
conhecer os sentimentos do teu coracáo e saber se observarías ou
nao os seus mandamentos. Humilhou-te eom a fome ; deu-te por sus
tento o maná, que nao conhecias nem tinham conhecido teus pais,
para ensinar-te que o homem nao vive só de pío, mas de tudo qu«
sai da boca do Senhor... Reconhece, pois, em teu coracáo que, assim
como um homem corrige seu filho, assim te corrige o Senhor teu
Deus» (Dt 8,2s.5).

— 202 —
AS TENTACOES PE JESÚS

Para educar Israel como um pai educa seu filho, Deus o


levou para o deserto; provou-o permitindo que sofresse fome;
Israel murmurou; Javé entáo deu-lhe o maná, para lhe fazer
compreender que nao só de pao vive o homem.
O texto do Evangelho estabelece, pois, urna analogía entre
a situagáo de Jesús no deserto e a de Israel outrora peregrino.
Em sua primeira tentagáo, Cristo de certo modo reviveu a
provagáo que o povo eleito experimentou, quando sentiu fome.
Urna diferenca, porém, é marcante: Israel sucumbiu á prova,
rebelou-se contra o designio de Deus. Jesús, ao contrario, atra-
vessou vitoriosamente a provagáo.
Já neste primeiro quadro das tentagóes, Cristo se apresenta
como irmáo dos homens a compartilhar suas miserias; contudo
nao comete o mal; ao contrario, supera a ocasiáo de pecado,
que Israel nao conseguirá vencer. Percebe-se assim o signifi
cado redentor da luta de Jesús contra o diabo.

Sem dúvida, o Dt afirma que Deus, e nao o demonio, submeteu


Israel á prova. No nosso caso, porém, isto nao tem importancia :
robolar-sc contra Deus é sempre imitar o Maligno, aceitar o exemplo
o a sugcstüo do Diabo.

2) Segunda tentacao

«Em seguida, o demonio o transportou á cidade santa, colocou-o


sobre o pináculo do templo e lhe disse : 'Se és Filho de Deus. lanca-te
daqui abaixo, pois está escrito: Dará ordem aos seus anjos a teu
respeito; éles te levaráo ñas máos para que nao íiras os pés em
alguma pedra'.
Disse-lhe Jesús : 'Também está escrito: Nao tentarás o Senhor
teu Deus'» (Mt 4, 5-7).

Jesús cita Dt 6,16, onde se lé : «Nao tentareis o Senhor


vosso Deus, como tentastes em Massá (= Tentagáo, em he
braico)».
É evocado assim o episodio de Éx 17,1-7. O povo carecía
de agua no deserto e fez ouvir seus protestos a Moisés. Éste
respondeu : «Porque tentáis o Senhor?» (17,2). Deus entáo
ma,ndou que Moisés, com seu bastáo, percutisse a rocha, donde
jorrou agua. «E Moisés deu a ésse lugar o nome de Tentagáo
e Contenda, por causa da contenda dos filhos de Israel, e
porque tinham tentado o Senhor, dizendo : 'O Senhor está ou
nao no meio de nos ?» (17,7).
Israel tentou a Deus, pedindo um sinal de que o Senhor
o acompanhava no deserto; de certo modo, quis impor a Deus
um milagre. Tal conduta era reprovável, como nota o Dt. Foi

— 203 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 2

justamente ésse ensinamento do Dt que Jesús opós a Satanás


em sua resposta. Posto em condicóes semelhantes 'áquelas em
que Israel pecou, Jesús nao falhou; nao tentou o Pai celeste,
nao exigiu um milagre em seu favor.

3) Terceira tentagáo

«O demonio aínda o transportou a um monte muito alto, donde


lhe mostrou todos os reinos do mundo e sua gloria c lhe disse:
Tudo isto te darei, se, prostrando-te, me adorares'.
Entáo Jesús lhe disse: 'Retira-te, Satanás, pois está escrito:
Adorarás o Senhor teu Deus e so a Ele servirás1.
Nesse momento, o demonio o deixou. Logo aproximaram-se os
anjos e O serviram» (Mt 4,8-11).

Jesús, em resposta, referiu-se a Dt 6,13 (texto que, no


Evangelho, é citado segundo a tradugáo grega dos LXX).
Eis o que se lé em Dt 6,12-15 :

«Guarda-te cuidadosamente de esquecer o Senhor que te tirou


do Egito, da casa da servidáo.
Temerás o Senhor teu Deus. e lhe servirás, e so jurarás pelo
seu nome. Nüo seguiréis a outros deuses entre os das nagOes que
vos cercam, porque o Senhor teu Deus, que mora no meio de ti é
um Deus zcloso; sua cólera se inllamaria contra ti e te apagaría
de sobre a térra.»

O texto 'de Dt alude as prescrigóes de monoteísmo que


Javé deu a Israel antes de entrar na Térra Santa, conforme
Éx 34,11-14 :

«Sé atento ao que te vou ordenar hoje. Expulsarei diante de ti


os amorreus, os cananeus, os hiteus, os ferezeus, os heveus e os
jebuseus. Guarda-te de íazer pacto algum com os habitantes da térra
em que vais entrar, para que sua presenta no meio de vos nao se
vos torne um laco. Derrubareis os seus altares, quebrareis seus mo
numentos e cortareis os seus bosques sagrados. Nao adorarás nenhum
outro deus, porque o Senhor se chama zeloso; 6 um Deus zeloso»
(cf. também Éx 23. 20-33).

Como se vé, o Senhor repetidamente mandou a Israel,


nao caísse na idolatría: entrando na térra de Canaá, o povo
elelto seria tentado a adorar os deuses cultuados pelos pagaos
como senhores da regiáo; Israel seria propenso a crer que a
posse de Canaá dependería muito mais do favor dessas falsas
divindades do que da benignidade de Deus, que se manifestara
na longinqua montanha do Sinai.
Em verdade, Israel sucumbiu a tal tentagáo, quando se
apossou de Canaá. É o que referem os livros de Josué e dos
Juizes.

— 204 —
AS TENTACOES DE JESÚS

Jesús, por sua vez, enfrentou a terceira tentagáo. Nao se


tratava entáo apenas de possuir os reinos dos amorreus, cana-
neus, hiteus, ferezeus..., que ocupavam a térra prometida
guando Israel lá entrou. Mas o demonio sugeriu a Cristo a
posse de todos os reinos do mundo, o que, alias, era bem con-
dizente com o ideal messiánico; com efeito, no SI 2 Javé prome-
teu ao Messias: «Dar-te-ei as nagóes por heranga e, como
propriodade, os confins da térra» (cf. SI 2, 7s).
Vé-se que a situagáo de Jesús se tornou, em proporgóes
mais ampias, paralela á de Israel outrora no deserto:
os israelitas estavam para tomar posse de um territorio
que, segundo a meaitalidade dos pagaos, pertencia aos deuses
dos povos desalojados;
Jesús devia receber o imperio sobre o mundo inteiro pagáo,
detido sob o poder do Príncipe das trevas.
Por conseguinte, nao seria prudente que Ele, Jesús, pro-
curasse ter com Sata, o Príncipe déste mundo, os «entendi-
mentos» que Israel procurou ter com os deuses de Canaá ?
Israel cedeu á tentagáo; Jesús, porém, déla triunfou, apli
cando a si a ligáo que o Dt deduzira da última tentacáo de
Israel: «Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás».

4. Conclusa*»

É evidente que a narrativa das tentagóes de Jesús no


deserto contém urna alusáo (intencionada pelo próprio Jesús)
aos quarenta anos que Israel passou no deserto, submetido a
provas ou tentagóes.

Israel (povo que Javé outrora chamou «seu Filho>; cf. Éx 4,22;
Os 11,1; Mt 2,15), sentindo fome na solida o, esperou receber alimentos
da térra ou da parte dos homens e rebelou-se contra o designio
do Deus;
Israel, sentindo sede, pretendeu também obter sinais extraordina
rios de Javé;
Israel, desejando instalarse ueste mundo, adorou ídolos, e assim
derrogou ás prescricoes do único Deus.

Ora Jesús, em sua peregrinagáo terrestre, quis tomar sobre


si as situagóes do antigo povo de Israel. Percorreu o itinerario
espiritual de Israel e suas tentagóes. Mas, em vez de sucumbir
ás provas do deserto, Cristo as superou, revelando ser o Israel
auténtico ou o Filho de Deus por excelencia.
O episodio assim póe em relevo o «porque» da Encarnagáo
do Filho de Deus; Ele se quis fazer homem a ponto de passar

— 205 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 3

pelas tentagóes que nos experimentamos, a finí de dar sentido


novo a tudo que é humano, até mesmo aos assaltos que o Malig
no empreende contra nos. Jesús quis conferir aos homens, para
o futuro, o poder de vencer as tentacóes, que todos devem en
frentar no deserto desta vida ou desta peregrinacáo terrestre;
as situagóes se repetem análogamente através dos sáculos.
Depois que Cristo passou pelas tentacóes e as suplantou, nao
há mais perigo de pecado que seja insuperável aos homens.
Em outros termos: como a historia de Israel tentado se
prolonga na de Cristo tentado, ela se continua outrossim na
vida de todos os cristáos. Também estes sao postos á prova;
compete-lhes, a seu tumo, triunfar, aproveitando as ligóes da
S. Escritura e do Filho de Deus. Saibam, pois, os cristáos
reconhecer os perigos existentes ñas concessóes mórbidamente
feitas a natureza (cobica do sucesso, do maravilhoso e dos
bens temporais) e sigam os caminhos da fé, da renuncia e da
humildade que Cristo trilhou. Assim evitaráo as quedas do povo
pré-cristáo, e tornar-se-áo os verdadeiros discípulos de Cristo.
Tal é a mensagem que o episodio das tentacóes de Jesús
quer transmitir. Essa pericope corresponde a urna realidade
histórica; nao sao, porém, os pormenores do texto que devem
deter a atencáo dos leitores, mas, sim, o seu ensinamento teo
lógico.

III. DOGMÁTICA

PAUIJSTA (Campiñas) :

3) «Houve recentemente um debato em torno da S. Euca


ristía. Alguns teólogos preferiram usar os termos 'transigni-
fícacáo' e 'transfinalizasao', em lugar de 'transubstanciacáo',
para exprimir o modo de presenta de Cristo em sua Santa Ceia.
Que pensar a respeitb ?»

Abaixo resumiremos brevemente o que a fé professa a


propósito da presenca do Senhor na S. Eucaristía. A seguir,
examinaremos o mencionado debate; por fim, formularemos um
juízo sobre o assunto.

— 206 —
TRANSÜBSTANCIACAO E TRANSIGNIFICACAO

1. A doutrina de fé

Os Evangelhos sinóticos (Mt 26,26; Me 14,22; Le 22, 19)


e Sao Paulo (1 Cor 11,23) referem que, em sua última ceia,
Jesús tomou páo,-abencoou-o, partiu-o e deu-o aos discípulos,
dizendo: «Isto é meu corpo». Também tomou um cálice de
vinho e o distribuiu, dizendo: «Isto é meu sangue».
Sao Joáo, que nao transmite éste episodio, comunica-nos
que Jesús prometeu aos discípulos «dar um pao, que seria
sua carne para a vida do mundo», pao do qual todos os fiéis
deveriam comer (cf. 6,53-59).
Desde os primeiros sáculos, os escritores cristáos enten-
deram todas estas palavras de Cristo no seu sentido obvio,
afirmando a real presenca do Senhor sob as aparéncias do
pao e do vinho consagrados; ao repetir o que Jesús efetuara em
sua última ceia, professavam a conversáo do pao e do vinho
no corpo e no sangue do Senhor.

Eis, em estilo esquemático, alguns testemunhos a respeito:

S. Ircncu (t após 191): «O cálice misto e o pao partido recebem


a palavra de Dcus e tornam-se Eucaristía do sangue e do corpo de
Cristo... Os elementos que, pela sabedoria de Deus, sao usados pelos
homens, reeebendo a palavra de Deus, tornamse Eucaristía, que é o
corpo o o snngiic de Cristo» (Adv. hacr. V 2,2s).

Tertuliano (t após 220) lembra que Cristo «tomou e distribuiu


o pao aos seus discípulos e o féz seu corpo, dizendo : 'Isto é meu
corpo'» (Adv. Marc. IV 40).

Orígenes (t 254) assevera : «Comemos os píies oferecidos..., os


quais por meio da oragáo foram tornados corpo, algo de santo e san
tificante» (Contra Celsum VIII 33).

S. Atanásio (t 373): «Dopois que se íizeram grandes e admiráveis


preces, o püo torna-se o corpo e o cálice tornarse o sangue de- Nosso
Senhor Jesús Cristo» (Fragmenta VII).

S. Cirilo de Jerusalém (t 386) observa que «o pao e o vinho, antes


da invocagao da santa e adorável Trindade, eram pao e vinho; urna
vez feita a invocacao, o pao totna-se corpo de Cristo e o vinho sangue
de Cristo» (Catequcse 19).
Em outra passagem S. Cirilo reíere-se á distingáo entre realidf de
e aparéncias : «O que parece pao nao é pao, embora ao gósto pareca
pao, mas é o corpo de Cristo; e o que parece vinho, embora ao
gósto pareca vinho, nao é vinho, mas o sangne de Cristo» (Cate-
quese 22).

S. Gregorio de Nissa (t 395) designa a mudanza eucaristica pelas


palavras «santificar, transmutar» e (o que é particularmente digno
de nota) «trans-elementar» (Ora cao Catequética 37).

— 207 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 3

S. Ambrosio (t 397) é igualmente realista : «A palavra


de Cristo, que do nada pode fazer o que nao existia, nao pode
mudar as coisas que existem naquilo que elas nao sao ? Em
verdade, nao se requer menor potencia para dar tas coisas a sua
própria natureza do que para mudar essa natureza» (De myste-
riis 9, 52).
S. Joáo Crisostomo (f 407) usa também de grande clareza:
«Em verdade, nao é um homem que faz que as oferendas (pao
e vinho) se torncm corpo e sangue de Cristo, mas é o próprio
Cristo» (In prod. Judae, hom. 1).
S. Agostinho (f 430) é, por sua vez, muito marcante:
«O que vedes, caríssimos, na mesa do Senhor, é pao e vinho;
mas ésse pao e ésse vinho, acrescentando-se-lhes a palavra,
tomam-se corpo e sangue de Cristo... Tira a palavra, e tens
pao e vinho; acrescenta a palavra, e já tens outra coisa. E essa
outra coisa que é ? Corpo e sangue de Cristo. Tira a palavra,
e tens pao e vinho; acrescenta a palavra, e tens um sacramento.
A isso tudo vos dizeis: 'Amém1. Dizer 'Amém' é subscrever.
'Amém' em latim significa: 'É verdade'» (Sermáo 6,3).
Por fim, teve grande importancia na historia da teología
o sermáo «Magnitudo» do bispo Fausto de Riez (t 493), que
afirma: «O sacerdote invisível, com o poder secreto da sua
palavra, converte criaturas visiveis na substancia do seu corpo
e do seu sangue» (ed. Migne lat. 67, 1052).
«Ninguem duvide de que as criaturas mais simples, ao
aceno da potencia, da presenca e da majestade (de Deus),
possam passar (transiré) para a natureza do corpo do Senhor»
(ib. 1056).
Os textos de Fausto de Riez e S. Ambrosio foram freqüen-
temente citados pelos teólogos posteriores, os quais incorpora-
ram ao seu vocabulario os termos «substancia do pao, substancia
do corpo de Cristo, conversáo, natureza, aparáncias do pao».
No séc. XI um concilio regional de Roma (1079), reco-
lhendo os dados da tradigáo teológica anterior, redigiu a se-
guinte profissáo de fé:

«Intimamente creio e abertamente confesso que o püo e o vinho


colocados sobre o altar, mediante o misterio da oracao sagrada e as
palavras do nosso Redentor, se convertcm substainclalmente (substan-
tlaliter convertí) na verdadeira, própria e vivífica carne e no sangue
de Nosso Senhor Jesús Cristo; e... que, depois da consagracáo, há
o verdadeiro corpo de Cristo, o qual nasceu da Virgem, foi oferecido
para a salvagáo do mundo, pendurado á cruz e ora está assentado
á direita do Pal; há também o verdadeiro sangue de Cristo, que
jorrou do seu lado,... na propriedade da sua natureza e na realidade
da sua substancia» (Denzinger, Enchiridion 700).

— 208 —
TRANSUBSTANCIACAO E TRANSIGNIFICACAO

Finalmente, no séc. XHI o Concilio do Latráo IV (1215),


retomando a constante doutrina da Igreja, exprimiu-a com a
palavra que se achava esbogada pelos textos anteriores: tran-
substandaoáo.
Os subseqüerites Concilios de Constanga (1415-1417), Flo
ren^. (1438-1444) e Trento (1545-1563) repetiram, em suas
definigóes, o termo que assim se tornara clássico na teología.

Nos mencionados documentos da Igreja — antigos, medie-


vais e tridentinos — o vocábulo «transubstanciasáo» signi
fica que a realidade natural do pao e do vinho se muda ou
converte na realidade do corpo e do sangue de Cristo. Essas
realidades do pao e do vinho, do corpo e do sangue foram
sendo chamadas «substancias»... Os teólogos distinguiram-nas
das «aparéncias», especies ou acidentes, asseverando que as
substancias do pao e do vinho se mudam por completo ou
radicalmente (transubstanciam), enquanto as aparéncias per-
manecem as mesmas.

Esta afirmacáo nao depende dos conceitos filosóficos de


determinada escola (como seria, por exemplo, o aristotelismo),
mas de nogóes elementares que afloram á experiencia humana,
anteriormente a qualquer reflexáo filosófica; nao há quem nao
reconheca a distingáo entre «o que alguma coisa parece ser»
e «o que cm realidade ela é». Tenham-se em vista os textos dos
Doutores dos primeiros sáculos, principalmente S. Gregorio
de Nissa, S. Ambrosio, S. Agostinho; estes escritores pouco
ou nada tinham de aristotélico, mas já falavam de «mudanca
ou conversáo de substancia», na consagragáo eucaristica. — A
Igreja, em suas definigóes conciliares, nao se prendeu a deter
minada escola filosófica, mas quis falar segundo o bom senso
ou a experiencia natural de todos os homens.
É inegável, porém, que a elaboragáo do conceito de «subs
tancia» apresentada por S. Tomás mediante a filosofía de
Aristóteles é a explicacáo lógica e normal do conceito pré-filo-
sófico de «substancia».

A respeito de «transubstanciagáo» em S. Tomás, veja-se


«P. R.» 9/1958, qu. 5.

Estas conslderac.6es de índole histórica devera ser completadas


pela observacao seguinte :
A fé professa urna conversáo total c absoluta da substancia do
pao na do corpo de Cristo de tal modo que o Concilio de Trento re-
jeitou a doutrina de Lutero, que admitía a «empanac&o» de Cristo :
empanac/áo, segundo a qual permanecerían! a substancia do pao e
a do vinho junto com a do corpo e a do sangue de Cristo ; o pao
continuaría a ser realmente pao (e nao apenas segundo as aparéncias),

— 209 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu, 3

o vinho continuada a ser realmente vinho (e nao apenas segando


as aparéncias), de tal sorte que o corpo de Cristo estaría como que
«revestido» de pao e vinho. Para o Concilio de Trento e, conseqüente-
mente, para a íé católica, ésse tipo de presenga de Cristo na Euca
ristía é insuficiente ; é preciso dizer que o pao e o vinho, em sua
realidade íntima (substancia), deixam de ser pao e vinho para se
tornar a realidade mesma do corpo e do .sangue de Cristo.
Como na criacáo há a prodncño de todo o ser («productia totius
entis»), assim na Eucaristía há a conversiio de todo o ser («conversio
totius entis»). Ora «conversáo de todo o ser» é «conversao de toda a
substancia» ou «conversao substancial» ou «transubstanciacáo».
Paralelamente, assim como só Deus pode criar, só Deus pode
«transubstanciar»; urna e outra atividade supóem o poder infinito do
Altíssimo, que pode íazer do «nao ser» o «ser». As criaturas só podem
de «tal ser» fazer «tal outro ser»; elas nao abrangem o ser como tal,
mas apenas aspectos do ser.

Examinemos agora o debate concernente aos termos

2. Transubstanciagáo, transignificagáo e transfinalizasáo

1) A nova teoría :

Na Holanda, por ocasiáo da recente renovagáo da S. Li


turgia, os teólogos e pastores de almas católicos procuraram
tornar mais acesslvel á mentalidade moderna o misterio da
S. Eucaristía. Para tanto, resolveram propor a doutrina da
presenga eucarística de Cristo recorrendo a urna corrente filo
sófica de nossos días: a fenomenología existencialista.

Fenomenología é o estudo do phnlnómenon, do que aparece, do


que salta aos -olhos.
Existenclalista é o sistema que observa o concreto existente, cómo
ele aparece, sem se ocupar com nogóes metafísicas.

O centro désse novo modo de pensar é o homem. — A


pessoa humana, dizem, é essencialmente relacionada com Deus,
com os outros homens e com o mundo. Em conseqüéncia, a
fenomenología existencialista observa a pessoa huma.na em suas
relajees com o Criador e com as outras criaturas, especial
mente com as outras pessoas humanas, ñas atividades da vida
cotidiana : amor, linguagem, esporte e até... refeigóes; as
refei^óes sao, sim, urna clara manifestagáo da índole social
dos homens.
Dentro de tal quadro, os teólogos passaram a analisar a
celebracáo eucarística : esta (diziam) deve ser entendida como
refeigáo com o Senhor ressuscitado, refeigáo na qual Cristo é
o pai de familia, e os homens sao os convidados. O pao e o
vinho da Eucaristía sao as dádivas oferecidas pelo Senhor aos

— 210 —
TRANSUBSTANCIACAO E TRANSIGNIFICACAO

convivas do banquete; tais dádivas nao tém tanto o valor de


nutrigáo biológica quanto o de expressáo da amizade do doador;
éste se torna presente no alimento que oferece. Assim Cristo
se torna presente pelo fato de oferecer aos fiéis o pao e o
vinho da Eucaristía; neste sentido se pode dizer que pao e
vinho sao o próprio Senhor; Cristo se identifica com as suas
dádivas.
Em conseqüéncia, é preciso falar de «transignificagáo»
e «transfinalizagáo» em lugar de «transubstanciacáo». Na Euca
ristía há urna mudanza de significado do pao: éste, em vez
de designar a nutrigáo corporal, significa o amor de Cristo
que se dá aos convivas, ou mesmo... o próprio Cristo. Conse-
qüentemente, há mudanga também de finalidade (transfinali
zagáo), pois o pao eucarístico nao se destina a alimentar a
vida do corpo, mas, sim, a da alma.
O vocábulo «transubstandagáo» é deixado de parte pelos
fautores de tais idéias, pois esta palavra lhes parece demasiado
impessoal; exprime a presenga de urna coisa, nao, porém, a
presenta e a atívidade de urna pessoa que se dá a outras.
Todavía isto nao impede (dizem os teólogos) que se admita a
real presenga de Cristo na Eucaristía, tal como ela foi afé hoje
professada pela palavra «transubstanciagáo».

Os autores propuseram alguns exemplos da vida cotidiana para


ilustrar suas novas idéias :
Imagínese alguém que convida seus amigos para tomar cha;
prepara esmeradamente a bebida, e desta forma coloca no cha sua
amizade ou mesmo... a sua própria pessoa!
Pensemos também numa pega de paño colorido; desde que seja
utilizada como bandeira de determinada naga o, muda de significado,
de finalidade e, por conseguinte, de realidade!

Os teólogos holandeses, explicitando seu pensamento,


distinguiam entre a realidade física, química, botánica» e «rea
lidade ontológica». Diziam : a realidade física, no caso, é a
natureza própria do pao e do vinho; esta permanece, após a
consagragáo eucarística; se nao, nao haveria pao comestível
e vinho potável sobre os nossos altares. A realidade ontológica
é a que responde as perguntas: «Que é ésse pao ? Que é ésse
vinho ?» — No caso, nao se poderia afirmar : «É pao, é vinho»,
mas, sim : «É a presenga real de Cristo oferecido sob os siriais
de pao e vinho».
Assim percebe-se bem a aplicagáo dos principios da feno
menología existencialista : a realidade de um objeto é estipulada
pelo homom de acordó com as circunstancias em que se acha;
pelo fato de que tal objeto toma determinado sentido para tal

— 211 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 3

homem, ele adquire um significado humano (antropológico)


e, por isto, também urna realidade humana (antropológica),
que vem a ser sua verdadeira realidade (realidade ortológica)..
Na Eucaristía, portanto, ter-se-ia a mudanca de significado
(e, por isto, de realidade) do pao e do vinho, pois Cristo e os
fiéis os tomam como sinais da doacjio que Ele (o Senhor) faz
de si mesmo aos homens.

2) Bepercussoes da teoría:

As idéias assim concebidas impressionaram e perturbaran!


os católicos holandeses, porque muitos (tanto entre os leigos
como entre os clérigos) nao percebiam ai a afirmaeáo da real
presenga do Senhor na Eucaristía.
Em conseqüéncia, os bispos holandeses escreveram sobre
o assunto urna carta pastoral datada de 27 de abril de 1965.
Nesse documento, comegaram por reconhecer que a S. Euca
ristía apresenta muitos aspectos, dos quais nos últimos tempos
tem sido focalizado especialmente o de «refeigao» :

«O Senhar está presente na Eucaristía para ser consumido e para


se unir mais Intimamente a nos, a fim de constituir um vinculo mais
estrito entre aqueles que comungam».

Prosseguem os bispos :

«A presenca de Cristo na Eucaristía íaz parte do depósito da íé


crista, de modo que nao nos é licito esquecé-la. A discussSo recente
nao indaga se Cristo está realmente presente na Eucaristía, mas
procura apenas saber como e em que termos se pode conceber e
definir éste misterio da nossa ié... Pódese confiar aos teólogos a
tarefa de pesquisar o modo como Cristo está presente na Eucaristía,
desde que se preservem firmemente o dogma da mudanca do pao e
do vinho no corpo c no sangue de Cristo e o da realidade da pre-
songa ñas especies eucaristicas».

Adiante os bispos exortavam os teólogos á fidelidade e ao


respeito, de modo a evitar inquietagáo dos ánimos. E concluiam:

«A todos desejamos dizer: nao vos perturbéis, nüo permitáis que


a vossa fé diminua; tende confianca na fé e no Senhor. Mostrai-vos
compreensivos para com tedas as opiniCes sinceras, dentro dos limites
em que a discussáo é permitida. Assim o debate teológico concernente
a éste sacramento nao acarralará divisóes entre os irmáos na fea
(cf. «La Documentation Catholique» LXII, tí> 1451, 15/VII/65, col.
11751179).

Aos 19 de julho de 1965, o Papa Paulo VI enviou urna


carta ao Cardeal Alfrink, congratulando-se com os bispos ho-

— 212 —
TRANSUBSTANCIACAO E TRANSIGNIFICACAO

landeses pela referida carta pastoral, e louvando o zélo dos


mesmos por defender a fé contra doutrinas erróneas. E acres-
centava:

«É preciso continuar a exercer essa solicitude pastoral. Regozi-


jar-nos-emos por vossa contribuicáo a íim de explicar a doutrina
autentica désse grande misterio e por vossos esforc.os no sentido de
consolidar o amor o o respeito para com tal sacramento» (Herdcr
Correspondence 1965, 355s).

Poucas semanas mais tarde, ou seja, aos 3 de setembro


de 1965, Sua Santidade o Papa Paulo VI publicava a encíclica
«Mysterium fidei», em que esclarecía qualquer dúvida que
aínda pudesse pairar sobre o assunto. Nesse documento, o Sumo
Pontífice, entre outras coisas, reafirmava solenemente o dogma
da real presenga de Cristo na Eucaristía, tal como a S. Escri
tura, os escritores antigos, os teólogos medievais e modernos
a professaram juntamente com todo o povo cristáo. E observava:

«Nao é licito... discutir o misterio da transubstanciacáo sem fazer


mengáo da admirável conversáo de teda a substancia do pao no corpo
e de toda a substancia do vinho no samgue de Cristo, conversáo de
que íala o Concilio (de Trento). Nao é licito, portanto, limitar os es-
tudos apenas ao que chama 'transignificacáo' e 'transíinalizacáo'»
(«Acta Apostolicae Sedis» 57 [1965] 755).
Mais aínda: «Mesmo que nao se toque na integrldade da íé, é
necessário também manter um modo de falar exato, a íim de que
palavras imprecisas nao sugiram & mente dos homens (o que Deus
nao permita) falsas opinioes a respeito da íé nos mais sublimes
misterios» (ib. 757).
A mesma encíclica incute ainda que o conceito de «transubstan-
ciacáo» nao depende da mentalidade de urna época ou de urna escola
filosófica, mas se deriva ¡mediatamente da experiencia e do bom senso
dos homens de qualquer fase da historia e de qualquer tipo de
cultura (cf. ib. 758).

Estes tópicos já manifestam suficientemente em que con-


sistiu o debate «transubstandagáo x transignificacáo, transfi-
nalizacáo» dos últimos tempos, e qual a posicáo que a autori-
dade oficial da Igreja tomou em relagáo ao mesmo.
Passemos agora a urna apredagáo objetiva da nova teoría
eucarística.

3. Um juizo sobre o assunto

1) Aspectos negativos:

Apesar das ótimas intengóes que as sugeriram, deve-se


dizer que as novas idéias nao satisfazem ao teor do dogma de fé.

— 213 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 3

a) Está claro que o pao e o vinho eucaristicos recebem,


pelas palavras da consagragáo, novo significado e nova fina-
lidade. Contudo essas mudancas (transignificagáo e transfi-
nalizacáo) nao impücam em mudanza de realidade ou de subs
tancia do pao e do vinho, mas, ao contrario, dependem desta.
O novo significado e a nova finalidade do pao e do vinho euca
risticos supoem que Cristo esteja presente sob as aparéncias
désses elementos; nao é a mudanga de significado (transigni
ficagáo) que torna Cristo presente. A transubstanciacáo, por-
tanto, é anterior a transignificagáo e á transfinalizagáo, e jamáis
poderá ser silenciada ao se falar do «misterio da fé»; em caso
contrario, a Eucaristía se tornaría mero símbolo do corpo de
Cristo, simples evocagáo psicológica da presenga de Cristo,
sem conteúdo real correspondente.

Em outros termos : o interésse que o homem dedica a algum


objeto ou o íato de que alguém dé valor a determinado objeto, nao
muda a realidade Intima désse objeto. O pao é pao, sim, para que
os homens o consumam; mas era, e fica sendo, pao, mesmo na íalta
de consumidores ou mesmo que os homens nao lhe atribuam valor ou
significado algum. A chamada «realidade antropológica ou existen-
cial», isto é, o relacionamento de um objeto com o homem, nao
acarreta nova realidade ou nova esséncia para ésse objeto. A mente
humana nao muda o ser intrínseco das coisas.

b) A distincáo entre «realidade física» e «realidade onto-


lógica» é sutil ou mesmo nula. A natureza (física, química...)
de um objeto coincide com a própria esséncia ou com a realidade
ontológica (on, ontos = ente, ser, em grego) désse objeto.
Por conseguinte, jogar com essa distineáo é tornar a doutrina
confusa e ambigua em vez de a tornar mais compreensiyel ao
público. Entende-se, pois, que muitos fiéis holandeses, vítimas
dessa terminología obscura e sutil, tenham julgado que a ,nova
teología considera a Eucaristía como mero símbolo de Cristo.

c) A fenomenología existencialista, fazendo do homem


o centro de sua atengáo, sem dúvida, abre novas perspectivas
para o estudioso; descbbre aspectos profundos nos seres que
cercam o homem. Contudo essa corrente filosófica arrisca-se
a cair no puro subjetivismo, como se o homem fósse a medida
de todas as coisas. Na verdade, existe, independentemente do
homem, um mundo de realidades que tém seu valor, seu signi
ficado e sua finalidade antes que o homem se interésse por elas.
Nao há dúvida, é oportuno que o filósofo ponha em evidencia
a posigáo central que o homem ocupa no conjunto das cria
turas: estas foram, sim, destinadas pelo Criador a servir ao

— 214 —
TRANSUBSTANCIACAO E TRANSIGNIFICACAO

homem, mas nao se pode esquecer que o valor que as coisas


tém para o homem supóe o valor que elas tém em si mesmas.

Por conseguinte, as teorías da transignificacáo e da trans-


finalizacáo aparecem como algo de ambiguo ou vago, desde
que se destinem a substituir a doutrina da transubstanciacáo;
acarretariam um empobrecimento ou mesmo a diluigáo da
verdade que Cristo afirmou nos Evangelhos e que toda a tradi-
cáo crista professou ardorosamente.

2) Aspectos positivos:

É preciso, porém, reconhecer que os conceitos de transig-


nificagáo e transfinalizagáo, associados ao de transubstancia^áo,
podem concorrer para dar nova énfase a um aspecto da doutrina
eucarística que yinha sendo pouco focalizado nos últimos tem-
pos. Sim; contribuem para por em realce o fato de que a
Eucaristia é urna ceia em que Cristo se dá aos homens e os
homens se dáo a Cristo e aos irmáos, constituindo o Corpo
Místico de Cristo.
O corpo do Senhor se torna realmente presente sob as
aparencias do pao e do vinho para efetuar ainda outra realidade,
ou seja, para unir os homens numa só familia que é a S. Igreja,
o Corpo de Cristo prolongado ou místico. A consagracáo euca
rística nao torna Cristo presente apenas para ser adorado,
visitado e aclamado como objeto distante dos homens, mas,
antes do mais, para ser consumido como alimento sobrenatural
e assim levar os fiéis a perfeita comunháo com Deus e com o
próximo.

Em linguagem técnica, dir-se-ia:

A Eucaristia apresenta

1) iim sinal externo: pao e vinho (sacramentum),


2) urna realidade interna: o corpo e o sangue de Cristo
realmente presentes (res et sacramentum); realidade
interna, que, por sua vez é sinal de ulterior realidade,
3) urna realidade que nao é sinal, mas o termo objetivado
pelos termos anteriores: o Corpo Místico ou a Igreja
(res tantuni).

A piedade eucarística, portanto, nao se pode deter apenas


na real présenga de Cristo sob as aparencias do pao e do vinho;
ela se deteria numa etapa intermediaria da acáo da Eucaristia;
deter-se-ia na realidade que, por sua vez, é sinal, é viático em
demanda de urna realidade ulterior. Ela deve ir até o amago

— 215 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 4

da instituigáo de Cristo, preenchendo o designio que o próprio


Senhor tinha em mente ao entregar a S. Eucaristía aos discí
pulos. A piedade eucarística, portante, deve tender
á comunháo com Cristo na hostia santa (ceia, mandu-
cacáo) e, mediante esta,
á comunháo com toda a S. Igreja, com todos os irmaos
na fé.

O debate «transubstanciacao x transigniíicacáo», visto dentro desta


perspectiva, deverá deixar um íruto positivo na mente dos liéis cató
licos : a consciéncia de que a piedade eucarística, em última análise,
tende a constituir mais e mais a S. Igreja ; ela implica em relac5es
de pessoas a pessoas, ou seja, relac5es de cada um dos liéis com
Cristo e com seus irmaos na íé.

Com outras palavras : a Eucaristía, ao mesmo tempo que


dá Cristo aos homens, requer que os homens se déem a Cristo;
ela exige reciprocidade. A presenca de Cristo na hostia consa
grada e no tabernáculo é urna presenca oferecida, mas ainda
nao aceita pelos fiéis; é preciso que ela seja aceita mediante
a S. Comunháo e a adesáo plena de cada cristáo á Igreja (Corpo
Místico de Cristo). Sómente quando aceita désse modo é que
a presenta (oferecida) do Cristo atinge plenamente a sua fina-
lidade e realiza o seu último efeito.
Sem éste aspecto personalista, ou enquanto nao se leva
em conta a exigencia de reciprocidade (entendida nos termos
ácima), a devogáo á S. Eucaristía é privada do seu sentido
profundo e da sua grande finalidade.

IV. LITURGIA

FLAVIO (Sao Paulo) :

4) «As revistas tém propalado noticias e fotografías


referentes a celebracoes litúrgicas em novo estilo: Missa em
casas de familias, sem paramentos, com formularios impro
visados. ..
Que dizer a respeito ?»

Em países nórdicos, e principalmente na Holanda, foram


feitas nos últimos tempos algumas experiencias de inovagóes

— 216 —
MISSAS EM CASAS DE FAMILIA

litúrgicas, que tendiam a assemelhar mais e mais o ritual de


celebracáo da S. Missa ao quadro de urna refeigáo de familia:
certas fotografías de tais ensaios litúrgicos podem fácilmente
dar a crer que se tratava de urna refeigáo comum ou mesmo
de... um coquetel.
O caso tem' provocado justificada surprésa. Como julgar
tais experiencias ? Com que fundamento foram feitas ? Enca-
minham-se para resultados positivos ? — Ou, ao contrario,
desviam-se da genuína mentalidade crista e merecem repro-
vagáo ?
É o que examinaremos abaixo.

1. A Missa-Ceia

1. É notorio que Jesús instituiu a Eucaristía ou o sacra


mento de seu corpo e sajigue no decorrer da última Ceia (cf.
Mt 26,26-29; Me 14,22-25; Le 22,15-20; 1 Cor 11,23-25).

Seguindo o ritual judaico de Páscoa, o Senhor tomou entao o pao


ázimo (sem fermento) que se achava sobre a mesa. Devia proferir
sobro ole urna prece de aguo de gragas que evocasse a libertacáo de
Ismel cativo no Egito, ou soja, a «redengüo antiga» do povo de Dcus;
a seguir, distribui-lo-ia aos discípulos. Em vez, porém, de pronunciar
as palavras habituáis sobre o pao («Bendito seja Javé nosso Deus,
o Rei do mundo, que da térra faz brotar o pao !> ou «Eis o pao de
miseria que comeram nossos pais ao sair do Egito»), disse Jesús.:
«Isto é meu corpo ; tomai-o e comei-o». A ceia pascal de Cristo e
dos Apostólos prosseguiu... No fim da mesma, o Senhor tomou o
cálice de béngáo ou de louvor a Javé (também prescrito pelo ritual
judaico) e, em vez de proferir as costumeiras fórmulas de agáo de
gragas («Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei eterno, que alimentas
o mundo inteiro por tua bondade...»), afirmou: «Isto é meu sangue;
tomai-o e bebei-o. Fazei isto em memoria de mim».

2. Tais palavras do Senhor levaram os discípulos a repe


tir regularmente a «Ceia do Senhor», também dita «Memorial»
ou «Anamnesis» (em grego) do Senhor.
a) O livro dos Atos dos Apostólos atesta que os primeiros
cristáos se reuniam em casas particulares, onde «partiam o páo>
(cf. At 2,42.46). Esta expressio era nova, sem precedentes
na literatura grega ou judaica (note-se apenas Jer 16,7, onde
ocorre em sentido figurado); designava urna nova realidade,
ou seja, o pao sagrado da comunidade crista.

Essas refeigoes sacras dos discípulos de Cristo deviam caracteri-


zar-se por forte nota de aguo de gragas ao Senhor. Já as refeigoes
entre os judeus eram intensamente marcadas pela prece de agrade-
cimento. Assim, por exemplo, ensinavam os rabinos: é proibido

— 217 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 4

ingerir o que quer que seja, sem proferir urna béncáo (louvor), pois
é ao Senhor que pertence a térra inteira com tudo que ela contém;
o Rabino Judá fazia excecáo apenas para o vinagre, os detritos de
frutas e os gafanhotos. Desde que houvesse ao menos tres convivas,
sem contar as mulheres, os escravos e as enancas, deviarn orar em
comum, ainda que fósse para comer apenas urna azeitona ou um
ovo. A oracáo pod'a ser mais estensa e solene mas datas mais impor
tantes do calendario de cada familia ou do povo judaico.

A nota de acáo de gragas que marcava as refei^óes dos


judeus e que se comunicou á ceia sagrada dos cristáos, fez que
esta aos poucos tomasse um novo nome : «Eucaristía» (agrade-
cimento, em grego).

b) Um dos textos mais significativos a propósito da ceia


sagrada dos cristáos é o de 1 Cor 11,17-34. As palavras de Sao
Paulo dáo-nos a saber que o sacramento do corpo e do sangue
do Senhor era consagrado e distribuido no decorrer de urna
refeigáo comum, que devia unir entre si os cristáos, ricos e
pobres.

Tal refeigáo que acompanhava a S. Eucaristía, tomou pos


teriormente o nome de ágape (caridade, amor).

Certos documentos profanos da antigüidade atestam a realizacáo


de ceias de confraternizacáo entre os pagaos. Essas refeiqdes nSo se
faziam ás custas de urna caixa comum, mas, sim, por efeito da ge-
nerosidade dos convivas. — As normas estipuladas para os «cultores
de Diana e Antinoon», por exemplo, mandavam que quatro convivas,
designados a seu turno, providenciassem urna ánfora de bom vinho,
um pao para cada comensal, quatro sardinhas, as almofadas, agua
quente e o servlco (cf. «Corpus Inscriptionum Latinarum» XIV 2112).

Na comunidade crista de Corinto, eram os comensais que


levavam as provisóes para o recinto da assembléia sagrada.
Verificavam-se, porém, abusos : em vez de por á disposigáo
de todos os irmáos os víveres trazidos de casa, os ricos os
consumiam descaridosamente, sem querer esperar o inicio
oficial da ceia fraterna ; chegavam mesmo a embriagar-se.
Assim as palavras e os gestos que o presbítero realizava em seu
lugar para consagrar o pao e o vinho, passavam para um plano
secundario ou tornavam-se formalidade a que nao se dava
atencáo.

É ésse estado de coisas escandaloso que S. Paulo visa


reprimir em 1 Cor 11,17-34 : recorda, como paradigma, a
última ceia do Senhor, e admoesta severamente os profana
dores; nao intenciona, porém, extinguir o «ágape» fraterno
acompanhado da consagracáo do pao e do vinho.

— 218 —
MISSAS EM CASAS DE FAMILIA

Compreende-se bem o seguinte: por se haverem recentemenL


convertido dos falsos deuses a Cristo, alguns grupos de primeiros
cristáos, na época dos Apostólos, ainda traziam certas caracteristicas
de um modo de pensar naturalista. Tal era notoriamente o caso dos
corintios, que, por exemplo, litigavam entre si por causa da arte
oratoria de Paulo, Apolo e Pedro ; cf. 1 Cor 1-2.

3. Em breve, porém, «ceia de confraternizacáo» e «con-


sagragáo do corpo e do sangue do Senhor» foram sendo cele
bradas separadamente urna da outra. Isto se deve a dois
motivos:
1) Os abusos que já em 56 Sao Paulo apontava entre
os corintios, devem-se ter reproduzido análogamente em outras
comunidades. Mentalidade e costumes ainda um tanto pagaos
devem ter concorrido para que se dessem rixas e profanares
no decorrer do ágape-Eucaristía; nao se terá observado sempre
a devida reverencia para com o corpo e o sangue do Senhor.
2) Se toda e qualquer refeicáo, para os judeus, tinha um
cunho religioso, muito mais ainda, para os cristáos, a «Ceia
do Senhor» repetida fielmente devia revestir-se de profundas
características religiosas. Entende-se, pois, que aos poucos as
conrjunidades cristas antigás tenham procurado eliminar de suas
celebragóes eucarísticas os elementos nao estritamente reli
giosos. Conseqüentemente, o ágape (refeicüo que servia á natu
ral alimentacáo dos corpos) passou paulatinamente a ser rea
lizado á parte.
Enquanto o ágape conservava geralmente o seu horario
vespertino característico de ceia, a Eucaristía ou o rito sacra
mental foi antecipado para o momento do despontar do dia,
ou seja, para a hora em que Cristo ressuscitou do sepulcro.

Essa hora muito matinal era sugerida nao só pelo desejo de


comemorar adequadamente a Vitoria de Cristo sotare a morte, mas
também por dois outros motivos:
um texto do livro da Sabedoria (16,28), referindo-se ao maná,
diz «ser necessário antecipar-se ao sol para dar grabas ao Senhor»;
por isto, conforme o autor sagrado, é que o maná era dado por Javé
antes do nascer do dia ;
ademáis urna razáo prática incutia a celebra cao matinal do culto:
no ambiente hostil do Imperio Romano, os cristáos deviam evitar
qualquer manifostagáo religiosa que os denunciasse aos pagaos.

A separágáo de ágape e Eucaristía em Tróade (Asia Me


nor) é insinuada pelo livro dos Atos dos Apostólos (20,7): por
volta de 57, no primeiro dia (domingo) de certa semana, Sao
Paulo e os irmáos de Tróade se reuniram para «partir o pao»;
o Apostólo pós-se a pregar até meia-noite, quando se deu um

— 219 —
y «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 4

acídente com o jovem Éutico, que adormecerá. É de supor que,


após a catequese, ou seja, ao alvorecer do dia seguinte, o
Apostólo tenha «partido o pao» ou celebrado a S. Eucaristía.
Outro indicio de que, desde cedo, a Eucaristía foi celebrada como
cerimSnia estritamente religiosa, sem reíeicáo fraterna anexa, é o
seguinte:
Sabe-se que os autores sacros (Mateus, Marcos, Lucas e Paulo),
ao reierirem a última ceia do Senhor, reproduziram traeos da cele-
bracáo eucaristica tal como era realizada na época (séc. I) e no lugar
(regiOes do Mediterráneo) em que escreveram. Ora Sao Mateus e
Sao Marcos dáo a entender que a consagracáo do cálice se deu logo
após a do pao, pois nao mencionam (como Sao Lucas e Sao Paulo)
o jantar que, no ritual judaico, costumava ter lugar entre a distribuí-
Cao do pao ázimo e a do cálice de béncáo; cf. Mt 26,26s; Me 14,22s.
Éste silenciar de Mt e Me leva alguns críticos a crer que nao estava
(ou já nSo estava) em uso o ágape ñas comunidades para as quais
foram exarados os dois primeiros Evangelhos.

O primeiro testemunho explícito de separacáo entre ágape


e Eucaristía data de 112. Plinio o Jovem, governador romano
da BitSnia (Asia Menor), fóra encarregado pelo Imperador
Trajano de investigar o estranho procedimento dos cristáps'
dessa regiáo. Referiu entáo, em carta, que prendera e interro
gara alguns discípulos de Jesús, apurando finalmente que éles
costumavam reunir-se em dia determinado da semana, antes
do nascer do sol, a fim de cantar alternadamente um hiño em
louvor a Cristo, seu Deus; comprometiam-se a nao cometer
crime algum, e logo se separavam para se reunir de novo á
tarde em urna ceia inofensiva (cf. Plinio, epist. ad Traianum
10,96). A assembléia matinal mencionada em tal carta é muito
provávelmente a da Eucaristía; o hiño referido deve ser a agáo
de grasas com que se consagravam o pao e o vinho (essa agáo
de gragas comegava, sim, por um diálogo ou responsório: «O
Senhor esteja convosco... Coragóes ao alto... Demos gragas
ao Senhor nosso Deus...»).

Outro testemunho de Eucaristía separada de ceia comum ó o de


S. Inácio de Antióquia, que, no inicio do séc. II, escrevia aos cristaos
de Esmirna (Asia Menor) :
«Ninguém sem o Bispo faca coisa alguma que diz respeito á
fereja Seja considerada como válida táo sómente a Eucaristía que
se celebra sob a presidencia do Bispo ou de quem éste tiver encarre
gado Onde está o Bíspo, ai está a comunidade, assim como onde está
o Cristo Jesús, ai está a Igreja Católica. Nao é permitido batizar nem
celebrar o ágape, sem o Bispo».
Como se vé, Eucaristía e ágape sao nesta passagem como dois
ritos distintos ao lado do Batismo.
A medida que se percorre a antlga literatura crista, encontram-se
testemunhos mais e mais numerosos de que era usual entre os cris-

— 220 —
MISSAS EM CASAS DE FAMILIA

táos a celebracáo do ágape ou da ceia de confraternizacáo, indepen-


dentemente da S. Eucaristía. Estéve em voga até os séc. IV/V, quando
comegou a declinar; o servico paroquial em favor dos irmáos neces-
sitados foi-se desenvolvendo de maneira mais sistemática e eficiente.

4. A Ceia do Senhor, separada da ceia comum, foi sendo


celebrada como o ato mais sagrado dos cristáos. Era o rito
solene de acáo de grabas, no qual os fiéis, por meio de seus
presbíteros, davam gracas a Deus pelos beneficios da criacíio
e da Redengáo; dentro désse quadro eram repetidos os gestos
e as palavras com que Cristo consagrou o pao e o vinho. O
consumo déstes elementos (ou a comunháo) vinha a ser ato
estritamente sacral.

Compreende-se entáo que o cerimonial da celebracáo euca-


rística se tenha tornado paulatinamente hierático e estilizado.
Veio a ser expressáo nao das atitudes naturais de urna ceia de
iamília, mas das grandes idéias religiosas comidas nos nvros
do Antigo e do Novo Testamento; tornou-se também a manifes-
tagáo da reverencia com que os fiéis celebravam o misterio
da Paixáo, da Morte e da Ressurreigáo do Senhor. Tal evo-
lucáo do rito é muito inteligível. Com efeito, a estilizagáo é
espontánea em qualquer culto religioso: todo homem que, por
sua fé, tenha consciéncia de estar em presenca da Divindade,
tende a exprimir essa fé por meio de símbolos ou acóes pecu
liares; justamente os símbolos significam que o misterio de
Deus e das relacóes dos homens com Deus é algo de inefável
e transcendente, algo que nao pode ser adequadamente procla
mado pelas maneiras usuais de falar.

Assim se entende que a Eucaristía tenha deixado de ser celebrada


em casas de familia a fim de passar para a Casa de Deus ou para
recintos exclusivamente dedicados ao culto do Senhor. O vestiario
usado pelos ministros foi-se tornando cada vez mais expressivo de res-
peito e adoragao ; os objetos do mesa (cálices, pratos, bandejas...)
foram apresentando um tragado novo, que os distinguía dos copos,
da louca e dos talheres das refeícóes domésticas ; as palavras em
tom comum cederam Ireqüentemente ao canto, pois o canto é a ex
pressáo mais viva dos afetos da alma, principalmente do amor. A fé
produz por si mesma tal expressionismo simbólico, sacral, impregnado
de santo temor e amor (a historia das Religi3es o atesta sobeja-
mente). A fé exige mesmo essas formas de expressáo características,
pois a natureza humana, compondo-se de espirito e materia, vai pro
curar na materia ou nos objetos sensiveis o sustentáculo das suas
intuicdes espirituais ; o homem, mesmo ñas ocasiSes solenes, nao pode
dispensar os seus sentidos ou o contato com a materia, desde que
deseje proceder genulnamente como criatura humana. E é justamente
no culto sagrado que o homem recorre por excelencia ás criaturas
materiais para entoar com elas, e mediante elas, o mais grandioso
hiño de gloria a Deus ; é por isto que houve em todas as religióes

— 221 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 4

(e há no Cristianismo) criaturas irracionais separadas do uso pro


fano, a íim de representarem, no culto de louvor a Deus, o universo
inteiro, sob a presidencia do homem, a cantar a gloria do Criador.

Eis os fatóres que explicam que a celebragáo da Eucaristía


tenha tomado as notas rituais e estilizadas que até hoje a
caracterizam.

Vé-se, pois, que querer destituir a Liturgia da Eucaristía


ou da Missa do seu aparato próprio significa pretender destruir
algo que a sabedoria dos Apostólos e dos antigos cristáos desde
o sáculo I foi construindo. Foi o genuino espirito cristáo, espirito
novo, que provocou a separagáo de ceia ritual e ceia de familia,
ocasionando a estilizagáo da celebragáo da Missa. Recusar tal
estilizagáo equivale a menosprezar as auténticas exigencias da
fé em geral, e da fé crista em particular.
É certo que o uso dos objetos, paramentos e utensilios estilizados
da Liturgia nao implica em pompa e luxo no culto sagrado. O estilo
hierático, o uso de objetos explícitamente sagrados se conciliam per-
feitamente com simplicidade e bom gósto. — É necessário, sim, remo
ver o aparato supéríluo do culto; mas nao é licito privar a íé de suas
expressóes e de seu estilo próprio, diferente do profano.
É á luz destas consideracóes que nao de ser analisadas

2. As experiencias feitas na Holanda

Por ocasiáo da renovagáo litúrgica preconizada pelo Concilio do


Vaticano II, os católicos holandeses se empenharam ardorosamente
por dar sentido vivo e concreto ás celebragSes cristas. A isso foram
movidos nao sámente por razóes própriamente litúrgicas, mas tam-
bém por aspiraedes ecuménicas, ou seja, pelo intento de facilitar ao
máximo a reuniáo dos cristáos separados.

Por isto é que, depois de haver proposto as famosas teorías


da «transignificagáo» e da «transfinalizacáo» (de que trata a
questáo 3 déste fascículo), pediram á Santa Sé a licenca para
fazer novas experiencias de celebragóes eucarísticas; tais expe
riencias despojarían! a Missa de boa parte do seu ritual hie
rático, estilizado, a fim de adaptá-lá melhor aos usos habi
tuáis das refeigóes de familia. Assim, julgavam, os fiéis com-
preenderiam mais claramente o significado vital, existencial,
da Ceia do Senhor.

A Santa Sé, em principio, nao se mostrou contraria a tais


iniciativas. Solicitou, porém, aos católicos holandeses, aguar-
dassem instrugóes mais precisas sobre o assunto.

Todavia o grupo religioso dito «Sjaloom», integrado por


católicos e protestantes, resolveu antecipar-se ás normas da

— 222 —
MISSAS EM CASAS DE FAMILIA

Igreja. Reuniram-se, portante, católicos e protestantes em casas


de familia, ao redor de urna mesa, a fim de repetir a última
ceia de Cristo, dispensando quase todos os sinais religiosos
do ato.

Eis o que refere a reportagem :

«Estamos na Holanda, ao redor de urna longa mesa em forma


de íerradura; 60 estudantes, de 16 a 18 anos, tomam seus lugares.
Talheres e pratos estáo preparados. Mas nao é urna refeigáo comum
que vai ser servida.
Entre os jovens está um padre paramentado. Súbitamente todos
fazem silencio : a Missa comecou.. Nao urna Missa como as outras,
pois essa é urna Missa celebrada 'k mesa'.
Chega o grande momento. Cada um dos presentes pega um pe
dago de pao que o padre acaba de consagrar e se dá, a si mesmo, a
comunháo. As últimas oracOes concluidas, urna refeigáo é posta na
mesa, em meio a confusao de vozes que comega de repente.
Em outra cidade holandesa, numa pequeña sala de paredes caia-
das, cinco homens estáo reunidos. Diante de urna mesa coberta por
urna toalha escura, um homem vestindo um temo simples lé a meia
voz urna epístola de Sao Paulo. Sobre a mesa, um crucifixo, um cálice
chelo de vinho e pao.
O padre se levanta. A emogáo é intensa. Sobre o pao e sobre o
vinho ele pronuncia as palavras de Cristo: *Éste é meu corpo...
Éste é meu sangue... Fazei isso em memoria de mim'. Cada um,
entáo, parte um pedago do pao com suas próprias máos». («Realidades,
íevereiro 1967, pág. 54).
A primeira vista, quem considera as fotografías apresentadas pela
imprensa, nao as distingue talvez de imagens colhidas em um encon
tró de amigos que, com um almdgo ou um cha, pretendessem come-
morar urna data solene ou um personagem ilustre da vida social.

3. Um documento da Santa Sé

Diante de tais experiencias, os órgáos de publicidade fize~-


ram alarde... E a Santa Sé, aos 29 de dezembro de 1966, se
pronunciou a respeito, langando formal desaprovagáo do
ocorrido.
Eis o texto da Declaragáo emanada da S. Congregagáo
dos Ritos e do Conselho destinado a aplicar a Constituigáo
Conciliar referente á S. Liturgia :

«Nos últimos tempos, certos jornais cotidianos e revistas ilustra


das vém oíerecendo a seus leitores noticias e repxoducSes fotográficas
referentes a célebragóes litúrgicas, principalmente celebragoes euce-
rísticas, alheias ao culto católico e quase destituidas de verossimi-
lhanga: trata-se de 'ceias eucaristicas familiares' celebradas em casas
particulares e seguidas de almogos, Missas com ritos, vestes e formu
larios náo-habituais e arbitrarios, por vézes acompanhadas de música

— 223 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 4

de caráter totalmente profano e mundano, nao digno de urna acáo


sagrada. Todas essas manifestacdes de culto, devidas a iniciativas
particulares, tendem fatalmente a dessacralizar a Liturgia, que é a
expressáo mais pura do culto prestado a Deus pela Igreja.
É absolutamente fora de propósito alegar o motivo de atualizacáQ
Caggiornamento') pastoral; esta — é oportuno repeti-lo — se exerce
dentro da ordem, nao dentro da arbitrariedade. Os mencionados fatos
nao sao conformes nem á letra nem ao espirito da Constituicüo Litúr
gica promulgada pelo Concilio do Vaticano II; sao contrarios ao senso
eclesial da Liturgia e prejudicam a unidade e a dignidade do Povo
de Deus.
'A variedade das linguas — disse aos 13 de outubro pp. o Santo
Padre Paulo VI — e a novidade dos ritos, que o movimento renovador
introduz na Liturgia, nao devem acolher coisa alguma que nao seja
devidamente reconhecida pela responsável autoridade dos Bispos e
desta Sé Apostólica,... coisa alguma que nao seja digna do culto
divino,... coisa alguma que seja manifestamente profana e inade-
quada para exprimir a interioridade e a sacralidade da oragáo,...
coisa alguma táo singular e insólita que, era vez de favorecer a de-
vocáo da comunidade orante, a surpreenda e perturbe, impedindo-lhe
a efusáo da sua oracáo e legitima religiosidade tradicional'.
Enquanto se deploram os acontecimentos ácima referidos e a
publicidade que lhes está sendo dada, dirigimos premente convite aos
Ordinarios, tanto diocesanos como religiosos, para que vigiem sobre
a reta aplicacáo da Constituicáo Litúrgica, chamem á ordem com
bondade e firmeza os promotores de tais manifestacóes, ainda que
estejam bem intencionados, e, se necessário, reprimam os abusos,
impedindo toda iniciativa que nao seja autorizada e orientada pela
sagrada Hierarquia; promovam zelosamente a verdadeira renovagáo
litúrgica desojada pelo Concilio, a fim de que a obra grandiosa dessa
renovacáo se possa exercer sem desvíos e consiga dar os frutos de
vida crista que a Igreja déla espera.
Lembramos outrossim que nao é lícito celebrar a Missa em casas
particulares, excetuados os casos previstos e bem definidos pela legis-
lacáo litúrgica.

Roma, 29 de dezembro de 1966.


(a) Giacomo Card. Lercaro, Arcebispo de Bolonha, Presidente do
Conselho destinado a aplicar a Constituicáo sdbre a S. Liturgia.
(a) Arcadio M. Card. Larraona, Prefeito da S. Congregacáo dos
Ritos.
(a) Ferdinando Antonelli, Arcebispo tit. de Idicra, Secretario da
S. C. R.»

Pergunta-se: porque a Santa Sé se terá manifestado des-


favorávelmente ás iniciativas ácima referidas ?
Tres motivos podem ser indicados :
.1) O primeiro já foi explanado ñas consideragóes ante
riores déste artigo.
O memorial do Senhor tem simultáneamente as notas de
ceia e de ato religioso. Ora a consciéncia crista, desde os seus

— 224 —
MISSAS EM CASAS DE FAMILIA

primordios, fez prevalecer as características de ato de culto


na celebracáo da Eucaristía. Disto é sinal, como atrás foi dito,
o próprio nome mais freqüentemente adotado para designar
o memorial do Senhor: Eucaristía, prece ou canto de agáo
de gracas (em que se enquadra .urna refeigáo sacramental).

Cancelar esta evolugáo dos fatos seria querer ignorar a licáo de


quase vintc séculos de Cristianismo. O detrimento daí derivado é
obvio: a Eucaristía, íora do recinto sagrado, quase identificada com
qualquer outra refeicáo, íala muito menos (e tende a falar cada vez
menos) ao espirito religioso; o próprio objeto da fé, o Credo, cor
rería asslm o risco de ser obnubilado ou mutilado. O sagrado ríáo
pode ser apresentado como profano.
Estas reflexoes nao excluem que se acentué, mediante ritos e
preces adequados, o valor da Eucaristía como ceia de Páscoa dos
cristáos ou ainda como «mesa da vida eterna». Ao contrario, o Con
cilio Ecuménico incutiu estes aspectos da S. Eucaristía; sejam pro-
postos na catequese, na pregacáo e na rito de celebragáo da Missa.

2) E no rito de celebragao da Missa... A Santa Sé nao


ignora que as verdades professadas pela fé pedem expressáo
correspondente nos ritos da Liturgia. Se, portante, as cerimó-
nias da S. Missa no decorrer dos séculos se tornaram demasiado
hieráticas, estilizadas ou pouco «existenciais», pode-se (e deve-
-se) augurar sejam devidamente reformadas.

Na verdade, as autoridades da Igreja reconhecem que a forma


de celebracáo da Missa hoje em día apresenta aspectos obsoletos; em
conseqüéncia, nomearam urna comissáo de peritos encarregados de
prover á reforma dos ritos respectivos.

A Santa Sé, porém, reserva a si as modificagóes a ser intro-


duzidas na Liturgia.
Por qué ?
Porque a experiencia dos séculos ensinou que as verdades
da fé foram (e ainda hoje poderiam ser) deturpadas mediante
a adopgáo de ritos e preces exóticos na Liturgia. Sem multi
plicar os exemplos, poder-se-iam lembrar os seguintes :

No séc. IV, os Arianos (discípulos de Ario de Alexandria), que


professavam falsas idéias a respeito de Cristo, procuraran! sorratei-
ramente difundi-las por intermedio de hinos a ser executados pelo
povo na S. Liturgia. Nos séc. XVII/XVIII os jansenistas e galicanos,
na Franga, queriam instilar nos fiéis o rigorismo religioso e um
falso nacionalismo reformando «de leve» as preces do Canon da Missa.

Assim como a fé influí sobre as expressóes da Liturgia,


também as expressóes da Liturgia influem sobre o conteúdo
da fé e da moral. Eis por que as autoridades da Igreja nao

— 225 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967. qu. 4

permitem experiencias litúrgicas improvisadas ou destituidas


de legitima aprovagáo. Compreende-se esta atitude; é o bem do
próprio povo de Deus que a exige.

A propósito, assim se manifestava o Concilio do Vaticano II:


«A xegulamentacáo da Sagrada Liturgia é da competencia exclu
siva da autoridade da Igreja. Esta autoridade cabe á Santa Sé Apos
tólica e, segundo as normas do Diroito, ao Bispo.
Por poder concedido pelo Direito, dispor assuntos de Liturgia
dentro dos limites estabelecidos, cabe também ás competentes confe
rencias territoriais dos Bispos, de varios tipos, legítimamente cons
tituidas.

Portan to, jamáis algum outro, aínda que sacerdote, acreseente,


tire ou mude por própria conta qualquer coisa á Liturgia.
A fim de que se mantenha a sá tradicáo e assim mesmo se abra
caminho para um legitimo progresso, sempre preceda cuidadosa in-
vestigacáo teológica, histórica e pastoral acerca de cada urna das
partes da Liturgia a serem reformadas. Além disso, considerem-se
tanto as leis gerais da estrutura e do espirito da Liturgia, como tam
bém a experiencia proveniente da recente reforma litúrgica e dos
indultos aqui e acola concedidos. Afinal nao se facam inovac8es a
nao ser que a verdadeira e certa utilidade da Igreja o exija e tomando
a devida cautela de que as novas formas de um certo modo brotem
como que orgánicamente daquelas que já existiam.
Cuide-se também, na medida do possivel, de que nao haja dife-
rencas notáveis de cerimónias entre regióes vizinhas» (n« 22 e 23).

3) O terceiro motivo de desaprovacáo da Santa Sé ás


novas experiencias litúrgicas foi o fato de haverem sido prati-
cadas conjuntamente por católicos e protestantes.
Os irmáos evangélicos nao admitem a real presenca de
Cristo na Eucaristía nem aceitam a S. Missa como sacrificio.
Em conseqüéncia, o católico e o protestante, leáis consigo
mesmos, nao podem querer participar ativamente (ou comun-
gar) da mesma Ceia do Senhor, enquanto nao abragam o
mesmo Credo. Com efeito, se o culto é a expressáo da fé,
quem toma parte ativa em determinada forma de culto pro-
fessa aceitar as proposicóes doutrinárias que inspiraram tal
culto; faz assim urna profissáo de fé. O protestante sincero,
por conseguinte, nao há de querer participar ativamente de
urna Missa; ele cairia em contradigáo consigo mesmo ou toma
ría urna atitude de relativismo, que simplesmente nao é crista.
Por sua vez, o fiel católico fara um ato de caridade para com
seus irmáos evangélicos dissuadindo-os de participar ativamente
(ou de comungar) da Missa, enquanto étes professarem a fé
protestante. O relativismo religioso, a ambigüidade na profissáo
de fé nao constituem a atmosfera oportuna para a uniáo dos

— 226 —
MISSAS EM CASAS DE FAMILIA

cristáos. A genuina uniáo só poderá ser obtida na base da


coerénda lógica bu da sinceridade e da verdade.
íl, sem dúvida, muito louvável o zélo ecuménico dos católicos
holandeses; procurem éles, e todos os demais católicos, reconstituir
a imidade violada. Lembrem-se, porém, de que o Credo que os cris
táos receberam de Cristo e dos Apostólos (e que se conservou inin-
terruptamentc na Igreja confiada por Cristo a Pedro), nao pode ser
reformado ou adaptado pelos homens; qualquer aproximacáo entre
os cristáos obtida por meio de retoques ao Credo seria ilusoria, seria
obra meramente humana e nao a obra de Deus.

4. Um texto notável

Á guisa de ilustragáo, váo aqui transcritas algumas inte-


ressantes consideragóes de Louis Bouyer. Éste autor, outrora
protestante, tornou-se católico e notável teólogo. Poucos escri
tores sao táo abalizados como Bouyer para avaliar tendencias
falsamente ecuménicas oriundas dentro do Catolicismo de
nossos dias.

«Pensam ou pensaram (certos protestantes radicáis do séc. XVI


c católicos 'de vanguarda' do séc. XX) que nenhum caráter ritual ou
sacral deveria distinguir a Ceia das refeiedes ordinarias. Daí a conclu
sa o que bem conhecemos...: a Eucaristía ideal, a mais conforme ao
seu primeiro modelo, serla aquela em que tudo tivesse as aparéncias
do mais cotidiano de nossos repastos amistosos ou familiares.
Na verdade,... ésse pseudo-primitivismo nao é senáo urna qui
mera romántica. As nossas atuais refeiedes profanas sao o que menos
se parece com a primeira Eucaristia e com a última Ceia, com a
última refeicáo vespertina realizada pelo Mestre com seus discípulos...
Os estudos contemporáneos (de historia e Liturgia) dissiparam urna
vez por todas o sonho de um Cristianismo primitivo destituido de
ritos. Nada deixam subsistir da ilusáo inveterada segundo a qual
tantos contemporáneos julgam que nos aproximaríamos de Cristo e
de seus discípulos na medida em que nos afastássemos da nossa
liturgia atual para levar a Missa ao plano de urna simples refeicáo
fraternal.
Nao resta dúvida de que a última ceia tenha sido, em eerto sen
tido, urna 'refeicáo fraternal'. Mas nao há denominador comum entre
aquilo que nos entendemos por essas palavras ('.refeicáo fraternal')
e aquilo que Jesús e seus discípulos teriam entendido... O que ca
racteriza urna tal refeicáo, para nos, é o que se chamaría 'a ausencia
de formalismo', ou precisamente aquilo que muitos querem remover
removendo os ritos atuais da Missa. Todavía o que caracterizava a
'refeicáo fraternal' dos discípulos, era, ao contrario, a nota profun
damente (e nao superficialmente) ritual que essa refeicáo assumia,
pois tal refeicáo tirina sentido eminentemente sagrado.
... Quem julga que, dando á Eucaristia as aparéncias de um
banquete ordinario, nos a tornaríamos mais próxima de suas fontes,
se colocarla em direcao contraria h da historia. Quando Jesús cele-
brou a primeira Missa, Ele oficiou como Pontífice: reproduziu gestos,

— 227 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967, qu. 5

repetiu palavras que talvez já tivessem séculos de uso. Ele inscreveu


toda a novidade do EvangeUio ñas linhas escrupulosamente observadas
de um cerimonial solene, portador das mais veneráveis tradicdes de
Israel.

Nesse cerimonial já encontramos os mais fundamentáis elementos


do nosso cerimonial: o ofertorio, seguido da incensagáo e da locáo
das máos; a seguir, o grande prefacio consecratório cantado, prece
dido de um diálogo soleno com os participantes,

... Com que respeito, com que amor nao devemos nos conservar
ésse maravilhoso conjunto de preces e ritos ! Com que prudencia nao
devemos proceder, quando se trata de tocar em cerimónias ou fór
mulas que Jesús mesmo nao quis mudan, mas apenas enriquecer
com um sentido novo !.. .• Nao pode haver urna religiáo crista laici
zada, arrancada á esfera do sagrado» («La premiére Eucharistie dans
la derniére Cene», em «Maison-Dieu» 18, pág. 34-47).

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

JEREMÍAS (Santa Cruz) : '

5) «Pairam dúvidas sobre o significado da visita do Pre


sidente Nicolau Podgorny, da Rússia Soviética, ao S. Padre
Paulo VI.
A Igreja pretenderá dar mais urna guiñada para a
esquerda ?» ,

O encontró de S. Santidade o Papa Paulo VI com o repre


sentante supremo de um dos maiores Estados ateus contempo
ráneos tem suscitado certa controversia; parece influir <na ori-
entacáo da Igreja frente ao comunismo, a ponto de se preconizar
um futuro entendimento entre Catolicismo e Marxismo.
Em vista de tais dúvidas, abaixo analisaremos o fato da
visita de Nicolau Podgorny a Paulo VI e seu verdadeiro sig
nificado.

1. O fato histórico

Aos 30 de Janeiro de 1967, realizou-se na Biblioteca parti


cular de Sua Santidade Paulo VI (Vaticano) a visita do Presi-
rente Nicolau Podgorny ao Pontífice. O coloquio respectivo
durou urna hora, após a qual nao houve a troca de presentes
habitual ñas visitas de Chefes de Estado, mas Sua Santidade
ofereceu ao Presidente Soviético urna preciosa reprodugáo do

— 228 —
O ENCONTRÓ PODGORNY •PAULO VI

«Código Atlántico» de Leonardo da Vinci como sinal do vivo


afeto do Papa «ao grande povo russo» (o comunicado oficial
fala apenas de «grande povo russo», como alias sempre fala-
ram as mensagens de Joáo XXIH a Kruchev).
Por ocasiáo do encontró, S. Santidade apresentou a Podgaray
alguns de seus próximos colaboradores: o Cardeal Cicognani, Secre
tario de Estado, Mons. Brini, Secretarlo da Congregagáo da Igreja
Oriental, Mons. Casaroli, o especialista vaticano em negociacoes com
os países da «Cortina de Ferro», e Mons. Oczl, ex-Reitor do Colegio
Russo de Roma, que servirá de intérprete durante a entrevista de
Paulo VI com Andrei Gromiko, Ministro do Exterior da Uniáo So
viética. Por sua vez, Podgorny apresentou a Sua Santidade o em-
baixador Ryjov e o conselheiro Medvedovsci, substituto do Vice-Mi-
nistro do Exterior Kuznetzov.
Nao se pode dizer que o encontró tenha tido o caráter de audiencia
particular. Seguiu um protocolo semi-oficial, especialmente preparado
para tal ocasiáo. O próprio coloquio travado entre Podgorny com
sua comitiva e o S. Padre com seus colaboradores desenvolveu-se como
se obedecesse a urna agenda de questñes previamente programadas.
Um comunicado oficial do Vaticano léz saber ao mundo que as
conversagSes consideraran^ dois grandes temas : a paz no Vietná
(nome éste que nao íoi explícitamente mencionado na nota oficial)
e a liberdade religiosa na Uniáo Soviética. As duas delegagSes expu-
seram as providencias que haviam tomado respectivamente no tocante
ao problema vietnamita, fixando bem o quadro da situaejio atual. Com
referencia á liberdade religiosa, também manifestaram seus pontos de
vista próprios. Alias, poucos dias antes da visita de Podgorny, S.
Santidade presidirá urna reuniáo secreta dos principáis membros da
Curia pertencentcs á Congregado da Igreja Oriental, a fim de exa
minar as quest5es que deveriam ser discutidas com o Presidente da
Uniáo Soviética. Durante o coloquio com Podgorny, foi o Papa quem
mais falou, tratando principalmente das questóes que concernem diré-
tamente á Religiáo, ou seja, do direito de cultuar a Deus em terri
torio soviético.
O encontró de 30/1/67 no Vaticano é considerado como possível
preludio para o restabelecimento de relaedes diplomáticas entre a
Santa Sé e o Govérno russo.
Após as conversacOes com Sua Santidade, o Presidente soviético
aínda se deteve no Vaticano, visitando a Cápela Sistina e a Basilica
de Sao Pedro. Tentlo chegado no Estado Pontificio ás 12h 30min, daí
se retirou ás 15h.
Afirma-se que Podgorny se manifestou impressionado e até
mesmo satisfeito pelo seu encontró com o Sumo Pontífice. Todavía o
memorável acontecimento suscitou incerteza em boa parte da opiniáo
pública, incerteza alimentada pelos comentarios da imprensa, que
formulou conjeturas e prognósticos em torno do extraordinario fato.
Esta situacao nos leva a procurar

2. O genuino significado do acontecimento


Para se avaliar o alcance do encontró Podgorny-Paulo VI,
basta lembrar que em 1938 Adolf Hitler, como chefe supremo

— 229 —
fPERGUNTEELRESPONDEREMg^^9/19G7, qu. 5 _

da Alemanha nazista, foi a Roma em visita a Benito Mussolini.


Por essa ocasiáo, o Santo Padre Pió XI retirou-se da Cidade
Eterna, em sinal de protesto á política anticristá do nazismo.
— Em 1967, Paulo VI nao sómente nao deixou Roma, mas
aínda recebeu, de maneira semi-oficial, o Presidente do Estado
Soviético ateu...
Porque terá S. Santidade assim procedido ?

Há quem tenha visto no comportamento de Paulo VI urna certa


concessáo á política da máo estendida ou urna implícita aprovacáo ao
comunismo como tal. Um artigo publicado no órgáo oficioso «L'Osser-
vatore Romano» do Vaticano encarregou-se de desfazer éste julga-
mentó.

O auténtico significado do gesto de Paulo VI há de ser


depreendido das seguintes consideragóes :
1) A audiencia foi solicitada por Podgorny ao Pontífice.
É bem possível que o Presidente russo, mediante tal atitude,
tenha tido a intengáo de prestigiar, de novo modo, a sua nagáo,
já que hoje em dia o Papa Paulo VI goza de elevado conceito
junto as Nagóes Unidas.
Como quer que seja, o fato de que Podgorny haja solicitado
um coloquio com o Papa significa notável coragem por parte
do representante russo e nao pequeña mudanga na política
externa e religiosa do Govérno Soviético. Tal mudanga externa
nao pode deixar de estar acompanhada por certa mudanga
de mentalidade, mudanga interna que«deve ter exigido dos
dirigentes soviéticos certo esfórgo e sacrificio. Com efeito,

a) sob Josef Stalin, o Estado russo nutria oficialmente o mais


profundo desprezo para com o Vaticano. Éste era tido como potencia •
aliada ao capitalismo, fomentadora da exploracáo das classes pobres;
a «Pequeña Enciclopedia Soviética» apresentava o Vaticano qualifi-
cado por longa serie de adjetivos depreciativos. — Nao eremos que
a sanha antirreligiosa dos soviéticos se haja abrandado dentro da
própria Rússia (as noticias de campanhas atéias ai efetuadas süo
constantes), mas podemos reconhecer que no seu trato externo a
Uniáo Soviética tomou para com a Igreja a atitude inversa á de
quem injuria; mostrou-se, sim, deferente e cordial.
b) O próprio Nicolau Podgorny, ao pedir audiencia ao Papa,
íéz algo que implica em atenuacao ou retratagao de posigdes que
outrora ele pessoalmente tomara. Sim; no coméco de sua carreira
política Podgorny ocupou o cargo de Secretario da primeira célula
comunista de Karlovka, afirmando entáo ser a Igreja «antipovo,
anti-trabalhador e anti-humana» para os rudes camponeses da sua
Ucrania natal.
c) Procurando entrar em conversares com Paulo VI, Podgorny
nao podia deixar de atrair sobre si e sua nacao maior animosidade da
paVte da China maoista. Sábese que o Governo de Mao, e de modo

— 230 —.
O ENCONTRÓ PODGORNY•PAULO VI

especial a Guarda Vermelha, nao poupam suas críticas ás posicóes


soviéticas, tidas como «revisionistas», Isto é, como transigentes con»
o mundo ocidental «burgués». Podgorny, em sua visita ao Vaticano,
mostrou preferir a aproximacüo de potencias náo-comunistas a ami-
zade da China comunista.

Eis, em poucas palavras, o que implicava o pedido de


audiencia de Podgorny a Paulo VI.
2) A tal pedido o Sumo Pontífice nao podía dar senáo
resposta afirmativa e complacente. Em verdade, nao convinha
que o Papa frustrasse o gesto de aproximacáo soviética. Sua
Santidade, aceitando o encontró com Podgorny, houve por bem •
aproveitar a ocasiáo para abordar com o representante máximo
de urna potencia mundial problemas que interessam a todo o
género humano (a paz internacional) e, em particular, aos
homens de fé (a liberdade religiosa). Foi, pois, a solicitude
para com a humanidade contemporánea e para com a Igreja
que levou o Sumo Pontífice a um coloquio amistoso com o
Presidente soviético.
•¥■-
Tal coloquio, que tinha em mira objetivos práticos e humanitarios,"
poderia trazer frutos benéficos para a humanidade contemporánea,
sem acarretar compromissos para a Igreja em materia de filosofía
ou ideología. Paulo VI procurou entendimento com Podgorny sobre
assuntos que nao implicam em derrogacáo ás verdades da fé ou aos
principios da moral crista. Assim reafirmou práticamente a norma
formulada por Joño XXIII: os cristáos teráo sempre que apontar e
repudiar as ideologías erróneas, anticristas ; nao obstante, poderáo
procurar coexistir e dialogar com os representantes de tais ideologías,
sempre que isto fór oportuno, e de maneira tal que nao seja aletada
a integridade da fé (cf. ene. «Pacem in Terris» n' 157-160).

Verdade é que na Rússia Soviética existem poucos fiéis católicos.


Grande parte, porém, do povo russo professa a fé crista sob a forma
ortodoxa, seguindo o cisma dos bizantinos, que se separaram da
S. Igreja Romana no séc. XI. Além disto, sabe-se que a Rússia exerce
profunda influencia sobre a política religiosa dos países satélites (Po
lonia, Hungría, Tcheco slováquia...), onde vivem milhóes de católicos.
Em vista, pois, de todos ésses cristáos subjugados em sua fé, assim
como em considerado de todos os cidadáos religiosos náo-cristaos da
«Cortina de Ferro» quis oS. Padre procurar entenderse com Podgorny.

Em suma : pode-se dizer que a visita do Presidente Sovié


tico ao Vaticano significa,
a) da parte do Govérno russo, o reconhecimento de que
a S. Igreja Católica, representada especialmente por seu Sumo
Pontífice, é urna potencia no mundo de hoje, a qual nao pode
ser simplesrnente preterida. Potencia, sem dúvida, espiritual..»
Desprovida de exército, de fábricas e de minas, a IgíéjS-'s»
tem comprovado, em nossos días niais do que nunca, comótim;
Vi' ▼
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 89/1967. qu. 5

sinal e foco de amor fraterno, de paz e de reconstnráo da


sociedade no mundo presente. Nao fóra esta elevada posicáo
espiritual da Igreja, Podgorny nunca teria solicitado audiencia
a Paulo VI; motivos de mera cortesia nao justificariam o gesto
do dirigente soviético;
b) da parte da S. Igreja, o coloquio com Podgorny está
de significar reconhecimento ou aprovacáo (direta ou
indireta) do socialismo ou do comunismo. No tocante aos prin
cipios filosófico-religiosos, Cristianismo e Marxismo nao se
podem fundir, sem que um seja absorvido pelo outro, da mesma
forma, alias, como o círculo nunca se poderá tornar quadrado
sem deixar de ser circulo. Todavía, recebendo Podgorny, Paulo
VI quis frisar o que já havia sugerido ao receber Andrei
Gromyko e o que Joáo XXIII tinha insinuado por sua entrevista
com Alexei Adjubei: a Rússia representa, por certo, urna fórca
de grande projegáo na configuragáo da historia contemporánea;
porque entáo nao entrar em contacto com ela, dando-lhe a
saber as aspiragóes de 600 milhóes de fiéis católicos e, muito
provávelmente, de dois bilhóes de outros seres humanos ?
Quem sabe se, de repetidos coloquios entre a Igreja e os diri
gentes soviéticos, nao há de proceder um tratamento mais
humano para os cidadáos que desejem professar a sua fé nos
territorios onde imperam a foice e o martelo ?

A Igreja julga que já mostrou suficientemente a incompatibili-


dade de principios existente entre Cristianismo e comunismo ; os
protestos e o longo silencio que cortaram quaisquer relagSes entre
a S. Sé e Moscou foram bastante eloqüentes; protestos e si'éncio
eram necessários logo que .se implantou o regime comunista na Rússia.
Hoje a Igreja vé aue, além de condenar o comunismo, outra tarefa
ainda lhe incumbe: a de entrar em contato com todos os homens,
mesmo com os ateus, pelo simples fato de serem homens. nao a
lim de aprovar seus erros, mas para manifestar-lhes mais fácilmente
a luz da verdade ou para obter que nao se oponham á verdade no
seu setor de influencias.

Eis por que Paulo VI recebeu amigavelmente Podgorny. Passa-


ram-se os tempos de Stalin na Rússia; passaram se também os tem-
pos em que a apologética marcava certas atitudes da Igreja. Esta
hoje se defende e caracteriza procurando contato com todos os homens.

D. Estevao Bettcncourt O. S. B.

CORRESPONDENCIA MlODA
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