Ardis da imagem: Exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira
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Book preview
Ardis da imagem - Edimilson de Almeida Pereira
Jogos de luz e sombra
Que somos nós entre os incêndios destas horas [...]?
Moacyr Félix¹
Os fatos do cotidiano, em sua fugacidade, muitas vezes, remetem a questões bastante complexas da sociedade. A insinuação é válida, se observarmos que, diante de certos comentários ou imagens, limitamo-nos a uma atitude de indiferença, pois, afinal de contas, pode ser que o assunto ou o problema
não diga respeito a nós, mas aos outros. Assim, eximimo-nos de responsabilidades, criando a conveniente ilusão de que a sociedade se realiza com o bem-estar de alguns indivíduos ou grupos.
Contudo, a experiência social mostra o quanto nos distanciamos desse paraíso artificial, já que, ao mesmo tempo em que mudamos o curso do cotidiano, somos atingidos por suas ondas. Somos, simultaneamente, atores e espectadores dos enredos mais frequentes de nossas vidas. Tratamos aqui de relacionar o sujeito à historicidade de suas experiências, mas, além disso, de perceber o dinamismo das forças simbólicas que animam essas experiências. Sob esse aspecto, é possível apreender nas ações cotidianas uma diversidade de representações e de sentidos, que ultrapassam o seu aparente pragmatismo.
É sobre fatos do cotidiano que trata o nosso texto, ele mesmo sugerido como uma resposta a certas provocações diárias. Em linhas gerais, consideramos os processos de exclusão através dos quais são atribuídos lugares às pessoas e às comunidades no conjunto da sociedade brasileira. Ou seja, perseguimos a ideia de que as estratégias de exclusão nem sempre se articulam como alijamento de indivíduos ou segmentos sociais, mas também como um modo de representá-los que indica sua inclusão parcial numa ordem projetada por grupos hegemônicos.
Para explicitar nosso percurso, optamos pela análise da exclusão por motivos étnicos, verificando de que maneira ela se manifesta no discurso oral e no discurso visual através das conversas informais e da mídia impressa. Interessa-nos observar, também, como esses dois discursos interagem e se apresentam como recursos de comunicação compartilhados pelos segmentos que excluem e pelos que são excluídos. Em outros termos, isso demonstra que a aceitação dos discursos como fatos cotidianos dificulta o exercício da autocrítica, o que poderia levar à descoberta da violência e da exclusão ocultas sob as teias das experiências diárias.
Poucos se dão conta da tensão subjacente às expressões do tipo "Ele é um negro até educado,
Ela é negra, mas tem o cabelo bom" ou, ainda, às imagens de mulatas expostas nas capas de revistas e de homens negros mortos nas primeiras páginas dos jornais. De modo geral, essa prática social tem sido considerada como um conjunto de palavras e de imagens habituais a partir das quais se torna quase impossível pensar em outras maneiras de perceber as populações negras. Nesse sentido, os negros, pela sua própria ação ou pela iniciativa de terceiros, aparecem aos olhos da sociedade brasileira, evidenciando-se como parte dela. Porém, é preciso observar que os homens e as mulheres negras são apresentados de uma maneira tão negativa, a ponto dessa sua representação corroer os ideais de sujeito e de cidadania desejados pela sociedade com a qual eles se relacionam. Sendo assim, é possível dizer que o modo como os homens negros e as mulheres são representados na sociedade brasileira converte-se, paradoxalmente, num mecanismo de sua exclusão dessa mesma sociedade.
É importante notar que esse cenário se desenhou sobre as linhas da formação histórica da sociedade brasileira e implica, portanto, um confronto de orientações ideológicas. De um lado, as lideranças que articularam a imagem de um país branco ou mestiço com restrições às influências negras; de outro, as vozes que se levantaram contra esses preceitos. A situação, no entanto, não pode ser reduzida a essa dicotomia, principalmente quando as necessidades das relações cotidianas obrigam os indivíduos a estabelecerem diversos tipos de alianças. Aí emergem as contradições que revelam brancos engajados na crítica à exclusão dos negros e negros assimilados pelas ideias de rejeição ao seu próprio grupo étnico.
Além dessa contradição, frequentemente apontada, temos de ficar atentos para o fato de que a vivência cotidiana aguça os processos de exclusão na medida em que se diversifica e encontra canais para sua difusão. Ou seja, a exclusão por motivos étnicos se desdobra também na exclusão de valores culturais, de modelos fenotípicos, de estruturas de pensamento, de formas de comportamento e de bens materiais de um indivíduo ou de um grupo. Por isso, a exclusão dos negros, que ocorre porque são negros, repercute sobre os demais elementos a eles relacionados.
Junto disso, se entendemos a exclusão como prática decorrente de uma elaboração ideológica, teremos de considerar os canais que permitem o escoamento dos discursos excludentes. A mídia impressa, nesse ponto, constitui um suporte com muitos recursos, decorrentes das múltiplas aplicações atribuídas à palavra e à imagem. Os jornais e as revistas de maior circulação, por exemplo, apostam na combinação de linguagem coloquial e produção visual sofisticada no intuito de atrair os seus leitores. Isso indica que esses veículos, ao mesmo tempo em que interferem nas opiniões e comportamentos dos leitores, também se aperfeiçoam como suportes de comunicação².
Estamos, por fim, imersos no jogo de luz e sombras da convivência cotidiana, no qual a prática da exclusão étnica se evidencia e os elementos envolvidos na elaboração, difusão, aceitação ou crítica aos discursos dessa prática se mesclam e se diluem. Em vista disso, as relações se estabelecem mediante um clima de suspeitas e os atores desse enredo são, de alguma forma, tocados pelas contradições de uma sociedade multiétnica que tem investido pouco numa ética de valorização da diferença.
A busca das sínteses estimula uma vivência cotidiana em que sujeitos situados fora do padrão de uma identidade se tornam suspeitos. Por isso, a suspeita se constitui como uma categoria social ambivalente, ora voltada para os interesses de grupos dominantes, ora aberta como um critério de crítica à exclusão. No primeiro caso, o perfil identitário de um Brasil embranquecido, patriarcal, de classes média e alta, coloca sob suspeita o Brasil do desvio
, representado por negros, índios, mestiços, homossexuais e pobres – isto para nos atermos somente aos aspectos de etnia, gênero e condição econômica. No segundo caso, a suspeita consiste num recurso de autocrítica, que permite desconfiar do perfil identitário apresentado como sendo o valor
da sociedade brasileira. Além disso, o ato de suspeitar questiona a prática que exclui as diferenças apenas porque se articulam como outras identidades e interroga os sentidos dos discursos que tentam impor sua hegemonia.
Adotamos a segunda perspectiva da suspeita para analisar a exclusão étnica, pois entendemos que assim é possível fazer a crítica aos discursos estabelecidos, tecer nossa autocrítica e expor nossa interpretação à crítica de outros analistas. Não pretendemos redigir um discurso de condenação da palavra ou da imagem, mas, cientes da limitação do recorte, optamos por analisar o modo como esses instrumentos se tornam, simultaneamente, o meio e a mensagem da exclusão étnica³. Ou seja, como a palavra e a imagem traduzem o sentido da exclusão na medida em que são, também, a prática da exclusão, como exemplificam frases do tipo Negro não é gente
ou imagens de negros comparados a doenças.
Ainda uma vez, no jogo de luz e sombras do cotidiano, os atores vivem a tensão de terem que iluminar um ou outro dentre os sentidos possíveis dos discursos. A partir daí, uma nova ambivalência pode ser divisada, já que o ato de iluminar um sentido implica lançar sombras sobre outros sentidos, que permanecem latentes. Se a opção por um sentido e não por outro já constitui um procedimento ideológico, ainda é necessário levar em conta que as noções de sentido equivocado ou sentido pertinente também se articulam com base em certas disposições ideológicas.
Por isso, destacamos a importância do papel que a mídia impressa desempenha nos jogos de luz e sombra do cotidiano. Além da expectativa que capta a reduplicação da ideologia de certos segmentos em jornais e revistas, é interessante analisar como o discurso de exclusão étnica desses veículos se torna objeto de consumo dos próprios excluídos. Consideramos a hipótese da falta de opções dos excluídos negros, apesar de o mercado editorial brasileiro ser bastante diversificado. Além disso, é relevante discutir por que os negros brasileiros, mesmo quando têm opções para realizar seus discursos na mídia impressa, tomam por referência o modelo que os exclui.
Nesse caso, não se trata de satanizar a mídia impressa, pura e simplesmente, mas de verificar que sentidos da mídia têm sido iluminados pelos produtores e leitores de jornais e revistas. Como essas operações se desdobram no cotidiano – basta observar o interesse das pessoas que se acercam das bancas de jornais, buscando e trocando informações –, julgamos pertinente analisar como as opiniões de senso comum são manipuladas para delinear certas representações dos negros brasileiros. Nossa análise pretende verificar como a mídia, percebida como veículo de informação coletiva, idealiza e expande os conceitos que as pessoas compartilham no dia a dia, embora os indivíduos exprimam esses conceitos como propriedade particular.⁴
A ênfase na mídia impressa decorre do percurso histórico que orienta nossas reflexões. Partimos dos periódicos do século XIX para chegar aos contemporâneos, na expectativa de compreender como as imagens impressas reduplicam os preconceitos contra os negros já evidenciados no discurso oral. Esse percurso nos ajuda a perceber um painel social em que a imagem dos negros veio sendo administrada com a intenção de realçá-los como imagens de sentidos estabelecidos a priori. Portanto, a visibilidade das populações negras não pode ser pensada apenas sob o ponto de vista estético. É necessário considerar as implicações políticas desse fato, pois a ênfase no caráter negativo dos negros aponta o seu suposto despreparo para as funções estratégicas da sociedade, bem como justifica a necessidade de outros segmentos assumirem essas funções por